Oseias

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Notas sobre a pesquisa do livro de Oseias no século XX

 

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Brad E. Kelle, da Point Loma Nazarene University, San Diego, California, publicou, em 2009 e 2010, na revista Currents in Biblical Research, dois importantes artigos sobre a pesquisa de Oseias no século XX e primeira década do século XXI: O casamento de Oseias na pesquisa do século XX e Oseias 4-14 na pesquisa do século XX. Os artigos estão disponíveis online1:

KELLE, B. E. Hosea 1–3 in Twentieth-Century Scholarship. Currents in Biblical Research, 7.2, p. 179-216, 2009.

KELLE, B. E. Hosea 4–14 in Twentieth-Century Scholarship. Currents in Biblical Research, 8.3, p. 314-375, 2010.

Vou resumir aqui os pontos principais destes dois artigos, na maior parte das vezes, apenas traduzindo livremente alguns trechos ou organizando em outra ordem as palavras do autor. Por isso não uso aspas. Lembrando que também deixo de citar as inúmeras obras pelas quais circula o autor, mas que recomendo sejam conferidas nas bibliografias que estão no final dos artigos.

Todo mundo que alguma vez já leu o livro de Oseias sabe que seus três primeiros capítulos falam de um tumultuado casamento do profeta com a prostituta Gomer, com quem teve três filhos.

Mas até hoje não sabemos se o livro está falando de uma experiência real do profeta, que teria se casado, de fato, com uma prostituta, ou se temos aqui apenas uma parábola para simbolizar a relação de Iahweh com Israel. Parece que os elementos do texto são insuficientes para uma decisão definitiva.

Certo é que este episódio ou metáfora acaba servindo de medida para o leitor olhar o restante do livro, os capítulos 4 a 14 de Oseias.

 

1. O casamento de Oseias na pesquisa do século XX

No resumo do artigo sobre o casamento de Oseias na pesquisa do século XX Brad E. Kelle diz:

Ao longo do século XX os estudos acadêmicos sobre o livro de Oseias concentraram-se predominantemente na metáfora do casamento em Os 1-3. Os estudiosos, com frequência, viam esses capítulos como estabelecendo as principais questões interpretativas para a mensagem do profeta e do livro como um todo, embora ainda persista a falta de consenso a respeito das questões exegéticas mais básicas.

Novos estudos têm, com razão, tentado ir além desse isolamento de Os 1-3. Este artigo analisa as principais tendências da interpretação moderna desses capítulos, com especial atenção para a segunda metade do século XX.

Do início do século XX até os anos 80, as pesquisas acadêmicas concentraram-se principalmente na reconstrução biográfica do profeta e em sua vida familiar, bem como em preocupações históricas e questões relacionadas à crítica das formas.

A partir da década de 30 a pesquisa preocupou-se particularmente em ler Os 1-3 no contexto de um pretenso culto da fertilidade baalista no Israel do século VIII a.C.

A partir dos anos 80 as leituras crítico feministas de Os 1-3 passaram a ocupar uma posição de destaque. Nos anos subsequentes essas preocupações foram complementadas por uma ênfase crescente na teoria da metáfora conceptual, bem como em novos tipos de análises literárias orientadas para análises sócio-históricas.

Na página 182 o autor sintetiza a pesquisa sobre Os 1-3 ao longo do século XX da seguinte maneira:

De 1900 até por volta de 1980, as principais tendências interpretativas de Oseias 1–3 priorizaram a biografia doCurrents in Biblical Research profeta e as análises histórico-crítica, formal e textual da linguagem e das imagens do livro. Investigações anteriores à década de 30 dedicaram muita energia à reconstrução dos detalhes de Gomer como uma esposa infiel, enquanto a pesquisa a partir da década de 30 enfatizou cada vez mais o suposto contexto de um culto sexualizado de Baal no Israel do século VIII a.C., com ênfase crescente na comparação com tradições do antigo Oriente Médio que esclarecem as imagens do texto.

A partir dos anos 80, as leituras crítico feministas e as questões relacionadas a gênero vieram à tona. Nos anos subsequentes, um enfoque particular nas análises metafóricas, literárias e simbólicas juntaram-se à variedade de tratamentos focados no gênero, resultando em novas leituras literárias e sócio-históricas que revisitam questões antigas e oferecem maneiras nunca antes vistas de conceituar o livro de Oseias como um todo, assim como a metáfora do casamento com a qual ele começa.

 

1.1. Sobre os estudos feministas de Oseias 1-3

Brad E. Kelle explica as abordagens feministas de Oseias 1-3 que emergiram especialmente a partir da década de 80 do século XX. Cito trechos das páginas 197-199:

A partir da década de 1980 a crescente onda de análises feministas invadiu os estudos de Oseias, juntamente com as principais correntes de estudos históricos, comparativos e teológicos. Dentro de poucos anos os estudos baseados em gênero virtualmente dominaram a abordagem acadêmica de Oseias, e os capítulos 1 a 3 tornaram-se rapidamente um dos principais focos da crítica bíblica feminista em geral.

O surgimento de estudos feministas críticos marcou uma mudança significativa nos estudos de Oseias. Antes dos anos 80 os estudiosos exploraram amplamente a metáfora do casamento de Oseias sob uma ótica teológica e histórica, enfatizando as experiências de Oseias e a natureza do amor de Iahweh. Desde o surgimento da crítica feminista, a metáfora tem sido cada vez mais examinada em tópicos como pornografia e violência sexual.

A crítica feminista básica de Oseias 1-3 estuda o conteúdo e as implicações do texto, especialmente as construções ideológicas do imaginário e como elas moldam as experiências das mulheres: o discurso objetifica a sexualidade feminina, nega qualquer subjetividade significativa à mulher, estabelece uma relação hierárquica que iguala o divino ao masculino e o pecaminoso ao feminino e legitima a violência física e sexual contra uma mulher.

Há muitas e diferentes abordagens feministas de Oseias. Uma vertente, por exemplo, faz uma crítica não apenas ao conteúdo dos capítulos, mas também às maneiras pelas quais os comentaristas bíblicos antigos e modernos, especialmente os masculinos, identificaram-se com as imagens do texto, adotaram seus preconceitos ideológicos e reinscreveram sua misoginia. Essas críticas muitas vezes observam que os comentaristas tradicionalmente simpatizavam quase completamente com o marido supostamente abandonado, e ignoraram Gomer e os filhos. Tais comentaristas, ao olhar para Gomer em Oseias 1-3, oscilam entre a fantasia erótica e a condenação moralista.

 

1.2. As metáforas de Oseias 1-3

Brad E. Kelle nas páginas 202-208, trata dos estudos que olham o texto a partir de suas metáforas.

Virtualmente toda tendência interpretativa nos estudos sobre Oseias 1–3 preocupou-se de alguma forma com as metáforas do texto.

Desde a década de 80 do século XX, no entanto, a abordagem de Oseias através das lentes da metáfora, especialmente o uso da teoria da metáfora conceptual, suscitando a questão da função primária das imagens matrimoniais do texto, alcançou uma posição de destaque nos estudos acadêmicos do livro do profeta2.

Naturalmente esses estudos fazem uso de insights de reconstrução histórica, dados comparativos e análise de gênero, mas eles são caracterizados por uma preocupação central em elucidar a principal questão subjacente ou foco retórico que está por trás das metáforas de Oseias. Parte da explicação para o aparecimento desses estudos focados em metáforas é a insatisfação com os resultados das leituras biográficas e históricas.

Nos vários estudos sobre as metáforas de Oseias 1-3, encontramos três interpretações predominantes:
a. interpretação cultual
b. interpretação socioeconômica
c. interpretação histórico-política

a. Interpretação cultual

A interpretação mais duradoura das imagens de Oseias 1–3, que alcançou apoio quase unânime durante vários períodos do século XX, compreende o discurso como se referindo a um conflito religioso generalizado no Israel do século VIII a.C. entre o javismo e o baalismo, e como simbolizando a apostasia de Israel através de alguma forma de culto a Baal (…) Dado que virtualmente todas as interpretações cultuais de Oseias 1–3 ligam esses capítulos de alguma forma a um suposto baalismo ativo nos dias de Oseias, os estudos frequentemente consideram as metáforas do texto como fontes para reconstruir a história da religião israelita.

Esse estudo histórico-religioso chamou a atenção da academia e passou de um consenso relativamente estável em meados do século XX para um estado de debate fragmentado na primeira década do século XXI. As questões mais importantes dizem respeito às definições adequadas de Baal e baalismo em relação à linguagem e às imagens de Oseias.

A suposta prática da prostituição cultual formou o exemplo mais marcante de tais interpretações de fertilidade de Oseias 1–3. Estudiosos extraíram evidências para essa prática principalmente de textos proféticos e escritores clássicos como Heródoto, e sugeriram que as imagens sexuais de Oseias retratam Israel como literalmente envolvido em tais rituais para Baal.

Desde a década de 80, no entanto, estudiosos têm desafiado quase todos os aspectos das evidências literárias e arqueológicas comumente citadas para esta prática em geral, e sua relevância para o estudo de Oseias 1–3 em particular. O consenso atual parece ser que a noção de uma instituição de prostituição cultual fornecendo o contexto para textos como Oseias 2 não pode mais ser sustentada sem grande cautela.

Esses desenvolvimentos relativos à noção específica de prostituição cultual são representativos das mudanças que ocorreram nas duas últimas décadas em relação à ideia geral de um culto sexual literal de Baal como a chave para a interpretação religiosa das metáforas de Oseias. Praticamente todos os ‘ritos de fertilidade’ propostos por eruditos anteriores (prostituição cultual, defloração ritual, promiscuidade sexual em festivais baalistas etc.) estão sob suspeita, e o consenso acadêmico afastou-se significativamente do conceito geral de práticas cultuais sexualizadas como pano de fundo para uma interpretação religiosa de Oseias 1–3.

Embora a falta de evidência de um culto sexualizado de Baal nos dias de Oseias tenha levado a maioria dos estudiosos a abandonar as interpretações cultuais de fertilidade de Oseias 1–3, a leitura dominante desses capítulos continua a ver o culto generalizado e não sexual de Baal no Israel do século VIII a.C. como a chave interpretativa para as metáforas do texto. Assim, enquanto as metáforas da fornicação e do adultério podem não se referir à atividade sexual literal, elas servem como metáforas negativas descrevendo o culto de Israel a Baal.

Contudo, de acordo com as recentes mudanças no estudo da história da religião israelita, a interpretação religiosa de Oseias 1–3 tornou-se mais complexa do que a noção de um simples conflito entre o javismo e o baalismo. Algumas abordagens recentes, por exemplo, identificam o pano de fundo das metáforas de Oseias não como o abandono de Iahweh por Baal por parte de Israel, mas como a prática sincrética de misturar ou identificar Iahweh com Baal.

Resumindo, a interpretação religiosa dominante das metáforas de Oseias 1–3 toma muitas formas na pesquisa atual, incluindo um conflito entre os deuses rivais Iahweh e Baal, o culto de numerosas divindades locais (os baalim), o sincretismo de Iahweh e Baal no culto israelita, e a presença de formas “não-ortodoxas” do javismo como parte da religião “popular”. Essas várias reconstruções, em oposição às leituras literais do início do século XX, representam a principal forma atual da interpretação religiosa da linguagem e das imagens de Oseias.

b. Interpretação socioeconômica

Uma leitura socioeconômica das metáforas de Oseias 1–3 apareceu mais recentemente (…) Esses estudos leram o discurso do profeta como diretamente relacionado à mudança das relações sociais, políticas e econômicas entre o rei, o sacerdote e o profeta na organização política de Israel (…) O corpo feminino sendo prostituído em Oseias 1–3 simboliza o corpo social do Israel do século VIII a.C. em meio a uma crise de identidade e condena as práticas socioeconômicas da época (…) Através do símbolo de um corpo feminino que aceita amantes ilegítimos, Oseias condena o corpo social de Israel, especialmente as elites reais que o governam, porque impõem uma nova organização social baseada na desapropriação e acumulação de terras.

c. Interpretação histórico-política

Uma série de estudos específicos sobre diferentes aspectos de Oseias 1–3 avançaram em direção a uma interpretação mais política das metáforas de Oseias (…) Citando a falta de evidência do difundido culto a Baal no Israel do século VIII a.C., algumas dessas obras examinam a imagem da esposa/mãe em Oseias 2 como uma metáfora para a cidade de Samaria e, portanto, para os líderes políticos que lá governam.

Outros observam o uso predominante de “amantes” como uma metáfora para aliados em tratados políticos do antigo Oriente Médio, bem como o uso de “fornicação” como um veículo metafórico para alianças políticas e comerciais.

Brad E. Kelle, por exemplo, sugeriu que Oseias 2 é um discurso retórico que tenta persuadir o público do profeta KELLE, B. E. Hosea 2: Metaphor and Rhetoric in Historical Perspective. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2005sobre uma crise política a partir de um ponto de vista específico. Oseias condena os governantes políticos na capital Samaria por seu envolvimento com Aram-Damasco durante a guerra siro-efraimita, feminilizando-os como mulheres sexualmente dissolutas, rotulando suas alianças políticas como fornicação e adultério, e usando o termo ‘baal’ para seu aliado arameu.

Assim, as metáforas de Oseias 2 funcionam como um discurso retórico que faz um comentário metafórico e teológico sobre os assuntos políticos de Samaria na época da guerra siro-efraimita, afirmando em última instância que os “erros políticos de Samaria e seus governantes são equivalentes à apostasia religiosa das gerações anteriores e constituem um completo abandono de Iahweh”3.

 

1.3. Conclusão sobre Os 1-3 na pesquisa do século XX

Depois de repassar dezenas de estudos, ele conclui nas páginas 208-209 do artigo:

Está claro que a pesquisa do século XX sobre Os 1-3 abordou uma gama excepcionalmente ampla de questões e empregou várias abordagens metodológicas que frequentemente refletiam as tendências mutáveis ​​nos estudos bíblicos em geral.

Enquanto os estudos recentes continuam a prestar muita atenção a questões mais tradicionais, como a crítica das formas, a reconstrução biográfica e a interpretação cultual, vários novos modos de investigação abriram caminhos inovadores para o significado desses complexos capítulos.

Entre essas abordagens o uso da teoria da metáfora conceptual para debater a natureza e a função das metáforas do texto parece continuar a ocupar posição de destaque. Tais análises certamente empregarão o estudo das metáforas para uma variedade de fins, incluindo oferecer novas perspectivas de gênero para o texto e seus leitores e fornecer novas reconstruções da situação religiosa nos dias de Oseias que se movem para além do antigo enquadramento baalismo versus javismo em um retrato mais complexo das realidades sociais e religiosas que estão por trás do imaginário do texto.

Entre as tendências mais recentes que apresentam uma promessa de desenvolvimento nos próximos anos está uma ênfase nas leituras formais e sincrônicas não apenas de Os 1-3, mas também do lugar desses capítulos dentro do contexto mais amplo do livro de Oseias como um todo. Com base em alguns trabalhos anteriores que se movem nessa direção, começa-se a ouvir o apelo por leituras literárias mais sustentadas e coerentes e até mesmo interpretações do discurso orientadas por livros, em Os 1-3.

Seja testemunha um comentário sobre Oseias de Ben Zvi, de 2005, e sua insistência em ver Os 1-3 como um dos muitos conjuntos didáticos de leituras que funcionam dentro de um “livro” profético projetado intencionalmente para socializar os letrados da elite de Yehud na época pós-monárquica.

Em um nível semelhante, mas mais amplo, alguns estudos mais recentes mostram interesse crescente em interpretar Os 1-3 e, de fato, todo o livro de Oseias, no contexto do Livro dos Doze.

Acima de tudo, a abordagem adotada em vários estudos recentes, que utiliza de maneira inovadora e combina várias perspectivas metodológicas, é muito promissora para o futuro estudo de Os 1-3.

Esses tipos de análises integrativas combinam o estudo metafórico com perspectivas feministas, materialistas, antropológicas e retóricas para produzir novos insights interessantes sobre a dinâmica do texto. Tais abordagens integrativas, especialmente o uso da análise retórica para debater Os 1-3 e suas metáforas em contextos literários, históricos e comparativos interligados e seu funcionamento em contextos retóricos particulares, nos permitem abordar o texto de novo à luz do desenvolvimento de noções de discurso profético em geral e realidades sociais, políticas, antropológicas e religiosas em particular.

Porém, em vez de simplificar o(s) significado(s) de Os 1-3, estudos futuros ao longo dessas linhas prometem produzir uma diversidade de interpretações que possam refletir com precisão a complexidade dos próprios capítulos.

 

2. Oseias 4-14 na pesquisa do século XX

Brad E. Kelle diz, na introdução do segundo artigo, Hosea 4–14 in Twentieth-Century Scholarship, nas páginas 315-316:

O estudo do livro de Oseias no século XX e na primeira década do século XXI foi uma mistura curiosa de abertura e miopia, tradição e inovação.

Por um lado, a pesquisa abrange amplamente questões interpretativas relevantes para todos os aspectos do livro como um todo, e muitas dessas questões representam os problemas tradicionais que há muito tempo são pertinentes para o estudo crítico de toda a literatura profética da Bíblia Hebraica.

Por outro lado, a pesquisa de Oseias nas últimas décadas testemunhou o surgimento de abordagens inovadoras para vários aspectos do livro, incluindo, em particular, o estudo da metáfora e sua relação com a retórica, a construção de gênero e as estruturas e ideologias socioeconômicas.

As abordagens tradicional e inovadora, no entanto, operaram com um foco predominantemente míope quando trataram da metáfora do casamento em Oseias 1–3, levando muitas vezes à falta de envolvimento sério com outras partes do livro.

As tendências contraditórias em relação à abertura e à miopia moldaram, especialmente, o estudo moderno de Brad E. Kelle – Point Loma Nazarene University, San Diego, CaliforniaOseias 4–14. Os intérpretes negligenciaram frequentemente os problemas mais importantes encontrados no capítulos 4–14 em favor dos que foram levantados pelas narrativas relacionadas à vida pessoal de Oseias. Para alguns estudiosos, os capítulos 1-3 serviram para estabelecer a estrutura interpretativa primária através da qual todas as partes subsequentes do livro foram compreendidas.

Entretanto, desde as últimas décadas do século XX, a pesquisa de Oseias mostra um distanciamento cada vez maior destas tendências que subestimam as questões interpretativas nos capítulos 4–14 e que criam uma divisão entre o conteúdo e a dinâmica dos capítulos 1–3 e 4–14. Esse movimento levou a novas considerações sobre os materiais em Oseias 4–14, por exemplo, com nova atenção sendo dada às metáforas do texto em seus próprios termos e aos possíveis cenários de composição compartilhada e funções ideológicas para o livro como um todo.

Este artigo traça os principais contornos e tendências da interpretação moderna de Oseias 4–14, com especial atenção para os estudos da segunda metade do século XX.

Ao contrário da discussão acadêmica de outras grandes coleções proféticas, como o livro de Isaías, ou mesmo das imagens do casamento em Oseias 1–3, o estudo dos capítulos 4–14 não apresenta um movimento claro no qual novas perspectivas metodológicas substituíram nitidamente as abordagens tradicionais mais antigas. Em vez disso, quase todas as antigas pesquisas acadêmicas sobre os capítulos 4–14 permanecem vivas na atual abordagem crítica.

No entanto, os estudiosos agora fazem as perguntas tradicionais a partir de novos ângulos e as colocam em diálogo com algumas linhas de pesquisa anteriormente inexploradas, ambas amplamente geradas por influências interdisciplinares, especialmente aquelas derivadas da análise socioantropológica e da teoria da metáfora conceptual.

A crítica formal, por exemplo, talvez constitua a abordagem clássica de Oseias 4–14, e essa perspectiva continua a ocupar um lugar de destaque nos exames desses capítulos. Mas a literatura erudita agora coloca a análise crítica da forma seminal de Wolff (1974), juntamente com a reformulação de Ben Zvi do gênero, cenário e função de Oseias na origem dos círculos de escribas no Yehud pós-exílico (2005).

Essas reconsiderações das atividades tradicionais tomam forma ao lado de linhas de pesquisa anteriormente inexploradas, como leituras sincrônicas, literárias e teológicas, os estudos do Livro dos Doze e a teoria da metáfora, que estão encontrando um lugar cada vez mais destacado na pesquisa de Oseias.

 

2.1. As críticas de Oseias à monarquia

Brad E. Kelle trata das críticas do profeta à monarquia nas páginas 335-336:

Um aspecto fundamental da pesquisa sobre Oseias 4–14 no século XX é a investigação da relação do profeta com as instituições sociais, religiosas e políticas de seu tempo, especialmente a monarquia, o sacerdócio e a profecia.

O debate sobre a atitude do profeta em relação à monarquia ocupou um lugar de destaque a este respeito. Várias passagens em Oseias explicitamente se referem à monarquia, muitas vezes falando sobre os erros e/ou remoção dos governantes e enfatizando o comportamento inadequado do rei nas atividades políticas, militares e cultuais4. Os textos tratam, na maioria dos casos, da monarquia de Israel Norte, com apenas Os 5,10 falando de Judá. Embora as referências à monarquia em Os 2,2 e Os 3,4-5 sejam positivas, todas as referências em Oseias 4–14 são negativas. Entre estas, a condenação enigmática em Os 8,4 tem consistentemente atraído mais atenção. E seu significado continua a desafiar os especialistas. Diz Os 8,4a: “Eles instituíram reis sem o meu consentimento, escolheram príncipes, mas eu não tive conhecimento”.

A discussão em torno de Os 8,4 é representativa da gama mais ampla de interpretações, feitas ao longo do século XX, da posição de Oseias a respeito da monarquia. A principal questão que dá origem a interpretações divergentes centra-se principalmente no seguinte dilema: Oseias condena a própria existência da instituição monárquica? Ou apenas faz uma crítica mais específica a uma determinada monarquia ou às decisões políticas reais?

Nessa linha, os estudiosos leram as referências de Oseias à monarquia de várias formas. São três as posições principais dos estudiosos:
a. Oseias se opõe à instituição da monarquia
b. Oseias vê a monarquia de Israel Norte como ilegítima
c. Oseias condena reis específicos, especialmente do reino do norte, por causa de suas decisões equivocadas.

Mas há autores que fazem uma análise mais complexa das referências do livro à monarquia. E argumentam que a visão da monarquia no livro é ambígua. Dizem que é preciso abandonar as supersimplificações de muitas análises e demonstram que todas as interpretações acadêmicas usuais, como as três acima, podem encontrar apoio dentro das passagens relevantes (…) Oseias, na verdade, reflete a profunda tensão e ambiguidade entre a natureza problemática da própria instituição da monarquia e a percepção de que a monarquia desempenhará um papel no futuro da comunidade restaurada.

 

2.2. A crítica de Oseias aos sacerdotes e ao culto

“Porque é solidariedade (hesedh) que eu quero e não sacrifício,
conhecimento de Deus [= prática do javismo] mais do que holocaustos” (Os 6,6).

A pergunta agora é sobre a posição de Oseias a respeito do culto e do comportamento dos sacerdotes. Brad E. Kelle diz na página 336:

Os estudos sobre Oseias no século XX têm participado intensamente do longo debate sobre a relação entre os profetas e as práticas cultuais israelitas.

As respostas tradicionais durante grande parte do período moderno a respeito das críticas de Oseias aos sacerdotes e ao culto israelitas propõem ou que ele rejeita o culto como tal, ou que ele rejeita sacerdotes específicos por causa de suas atitudes nas práticas cultuais, mas não o culto em si.

No entanto, a conclusão mais amplamente compartilhada pelos estudiosos modernos explica a visão predominantemente negativa de Oseias sobre o culto e os sacerdotes como uma reação à suposta influência do baalismo na vida religiosa e nas práticas do Israel do século VIII a.C .5

 

2.3. As metáforas de Oseias falam da crise social de Israel

Nas páginas 337-338 diz Brad E. Kelle:

Desde a década de 80 do século XX o estudo tradicional da história e das instituições israelitas passou por uma das reformulações mais significativas nas abordagens acadêmicas de Oseias. E na primeira década do século XXI essa reformulação passou a ocupar um lugar central no estudo do livro. Sob a crescente influência das perspectivas das ciências sociais nos estudos bíblicos em geral, os últimos anos do século XX e a primeira década do século XXI testemunharam o aparecimento de análises socioeconômicas para explicar o contexto do livro de Oseias.

Tomados como um todo, esses trabalhos interpretam as metáforas mais significativas de Oseias, especialmente as metáforas sexuais relacionadas à promiscuidade, como figuras de linguagem para determinados desenvolvimentos sociais e econômicos em Israel no século VIII a.C.

Baseando-se em perspectivas antropológicas e sociológicas do estudo comparativo das sociedades agrárias,KEEFE, A. A. Woman's Body and the Social Body in Hosea 1-2. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2002. essas novas abordagens identificam o século VIII a.C. como uma época em que Israel passou por uma mudança dramática em seu sistema econômico devido à expansão do poder real no território e à política externa implantada. A sociedade israelita experimentou um aumento da desigualdade entre a elite e os camponeses, viu o surgimento de uma economia tributária com concessões reais de terra e com a criação de culturas rentáveis e o crescimento do comércio exterior.

Os oráculos e as metáforas de Oseias refletem esses desenvolvimentos, especialmente as maneiras pelas quais todos os outros elementos do culto, da política, etc. se tornaram personificações da crise social (…) Há autores, por exemplo, que interpretam as imagens da prostituição usadas no livro de Oseias como um símbolo do corpo social desintegrado de Israel.

 

2.4. Há quatro categorias de estudos das metáforas em Oseias

Nas páginas 355-360 do artigo sobre Oseias 4-14, Brad E. Kelle classifica os estudos das metáforas no livro de Oseias, ao longo do século XX e primeira década do século XXI, em quatro categorias. Ele diz:

Os estudos das metáforas no livro de Oseias podem ser agrupados em quatro categorias:
a. atenção às metáforas divinas e humanas
b. interpretações religiosas, socioeconômicas e políticas
c. a natureza indeterminada e instável das metáforas do livro
d. novas variações nas abordagens feministas de imagens ao longo do livro

a. Atenção às metáforas divinas e humanas

A primeira categoria de estudo das metáforas, que explora as imagens do livro que falam de Iahweh e das pessoas, é a mais comum, com algumas abordagens que tratam das representações da natureza e suas implicações ecológicas.

Comentários ao longo de todo o século XX destacam o uso de imagens familiares – marido-esposa, pais – como as principais representações da relação entre Iahweh e o povo, mas também enfatizam a vasta gama de metáforas usadas tanto para Iahweh quanto para o povo. Essas metáforas se enquadram em vários agrupamentos, incluindo representações de Iahweh com imagens de atividades humanas, de animais e da natureza, assim como representações do povo com imagens de animais e da agricultura.

As metáforas do livro de Oseias para falar de Iahweh são predominantemente masculinas. Mas o capítulo 11 tem provocado intensos debates, pois algumas intérpretes feministas afirmam que a linguagem do capítulo retrata Iahweh em termos femininos, como uma mãe que alimenta uma criança, quando fala de Iahweh que cuida de seu povo. A presença de tal linguagem, argumenta-se, pode dar origem a uma teologia feminista que oferece uma alternativa à natureza predominantemente patriarcal das metáforas de Oseias. No entanto, alguns estudos recentes sobre as metáforas do livro, incluindo algumas obras produzidas por estudiosos feministas, argumentam que a linguagem do capítulo 11 é ambígua, e que as interpretações abertamente feministas têm uma fundamentação frágil.

b. Interpretações religiosas, socioeconômicas e políticas

A segunda categoria de estudo das metáforas no livro de Oseias, que oferece interpretações religiosas, socioeconômicas e políticas das imagens do livro, aparece em trabalhos recentes que tentam explicar o contexto do discurso de Oseias.

A interpretação mais persistente das metáforas do livro, que alcançou apoio quase unânime durante vários períodos do século XX, compreende as imagens como referência a um conflito generalizado entre o javismo e o baalismo no século VIII a.C.

Vários trabalhos recentes, entretanto, sugerem uma leitura socioeconômica das metáforas de Oseias, baseada em grande parte nas reconstruções da pesquisa histórica mais recente. Essas obras interpretam as metáforas do profeta como símbolos das mudanças nas relações sociais e econômicas ocorridas em Israel no século VIII a.C.

c. A natureza indeterminada e instável das metáforas do livro

A natureza indeterminada e instável das metáforas no livro de Oseias constituem a terceira categoria de estudos. Há autores, embora sejam minoria, que percebem a linguagem do livro como fraturada e suas metáforas como desintegradas, refletindo, propositalmente, a situação da época.

d. Novas variações nas abordagens feministas de imagens ao longo do livro

A quarta categoria de estudo das metáforas de Oseias traz novas abordagens feministas, postulando que as metáforas matrimonias do livro não devem ser vistas como padrão para a interpretação das outras metáforas, mas sim que cada metáfora deve ser lida no seu contexto e na sua função retórica própria. E há, na primeira década do século XXI, outras variações nas abordagens das metáforas femininas e masculinas de Oseias.

 

2.5. O texto hebraico do livro de Oseias é difícil

O texto hebraico do livro de Oseias é difícil, digo sempre aos estudantes de Literatura Profética. Basta ver a quantidade significativa de notas de rodapé que as traduções modernas da Bíblia precisam colocar. E esta dificuldade textual é uma pena, já que dificulta a leitura e a compreensão do livro.

Especialmente porque considero Oseias e Jeremias como os profetas mais radicais de Israel. Em que sentido? Porque “quase” entenderam, apesar dos limites da linguagem teológica, que a raiz principal de todos os problemas que eles denunciam é a estrutura tributária dos dois Estados israelitas governados por Samaria e Jerusalém.

No citado artigo, Brad E. Kelle fala das dificuldades do texto hebraico de Oseias e das explicações apresentadas pelos estudiosos do livro do profeta para tal fenômeno ao longo do século XX e primeira década do século XXI. Ele diz nas páginas 317-321:

No século XX Oseias chamou a atenção dos especialistas em crítica textual, em grande parte porque o texto hebraico do livro é extremamente difícil e muitas vezes obscuro. Praticamente todos os comentários importantes do período moderno contêm alguma afirmação de que o texto de Oseias perde apenas para Jó, na Bíblia Hebraica, quanto ao número de problemas textuais, idiossincrasias literárias e passagens ininteligíveis. E, geralmente, tendo muitos versículos tão mal preservados que o sentido original dificilmente pode ser determinado com certeza. Tais dificuldades linguísticas incluem elipses, hapax legomena [= palavras usadas uma só vez] e outras construções que vão além da gramática hebraica padrão.

Ao longo dos primeiros três quartos do século XX, os estudiosos de Oseias atribuíram as obscuridades da linguagem do livro à corrupção textual ocorrida no processo de transmissão e, assim, propuseram numerosas emendas baseadas em outros manuscritos e versões disponíveis.

Contudo, o último quarto do século XX testemunhou uma mudança significativa na avaliação das particularidades textuais de Oseias. Em contraste com as explicações anteriores dos estudiosos envolvendo a corrupção do texto durante a transmissão, o consenso mais recente conclui que as dificuldades textuais de Oseias refletem um dialeto peculiar do hebraico do norte, por ser Oseias um profeta do reino de Samaria.

Entretanto, há autores que buscam uma terceira via entre a proposta de corrupção/emenda do texto e a SHERWOOD, Y. The Prostitute and the Prophet: Reading Hosea in the Late Twentieth Century. 2 ed. London: Bloomsbury T&T Clark, 2004proposta de um dialeto do norte, concluindo que muitas das características “problemáticas” de Oseias, como formas verbais incomuns, ortografia arcaica etc, são elementos gramaticais e sintáticos legítimos quando vistos em seu contexto linguístico mais amplo, especialmente em comparação com outros textos do antigo Oriente Médio.

E há autores que recorrem a teorias literárias pós-modernas para explicar as dificuldades do texto de Oseias. Yvonne Sherwood, por exemplo, lê as irregularidades do texto como a elaboração proposital de um “ritmo desarticulado”, que serve para chacoalhar as imagens de Iahweh e do povo de Israel, presentes no texto, e desorientar os leitores para que possam fazer múltiplas leituras. Essa perspectiva nos convida a explorar as particularidades linguísticas de Oseias sob a ótica de uma linguagem de impacto que usa termos sexualmente chamativos para provocar o leitor6.

 

2.6. Oseias pode ser usado como fonte para a história de Israel Norte?

No artigo de Brad E. Kelle sobre Oseias 4-14 uma das perguntas obrigatórias é se o livro pode ser usado como fonte para a história de Israel Norte entre 755 e 725 a.C., época da atuação do profeta. Como a pesquisa do século XX e primeira década do século XXI lidou com isso?

Diz o autor nas páginas 332-334:

Baseando-se na visão comum do século XX de que o livro contém material original do próprio profeta do século VIII a.C., os estudos modernos têm visto Oseias como uma fonte útil e importante para a reconstrução histórica do Israel pré-exílico. Os intérpretes observaram diversos elementos no livro como as aparentes referências a ações políticas e tratados envolvendo Israel, a Assíria e o Egito. Embora muitos desses textos sejam vagos, não oferecendo referências específicas ou nomes de pessoas claramente identificáveis, durante a maior parte do século XX, antes dos anos 80, a visão dominante nos estudos professava um alto nível de confiança em Oseias como uma fonte histórica utilizável e identificava a informação histórica produzida pelo livro como diretamente relevante para o reino do norte de Israel no século VIII a.C. Mais ainda: o livro foi considerado particularmente útil para a história do reino do norte porque Oseias é o único profeta natural do reino de Israel Norte que lá atuou e de quem temos um livro.

Segundo os estudiosos de Oseias, há várias referências históricas no livro, mas o tópico mais comum entre as interpretações históricas de Oseias ao longo do século XX foi a tentativa de relacionar textos específicos do livro com os eventos da guerra siro-efraimita (ca. 734–731 a.C).

Apesar da natureza duradoura das leituras que usam Oseias como fonte histórica para o Israel do século VIII a.C., há uma tendência crescente nos estudos desde a década de 80 que confia muito menos na capacidade de Oseias de fornecer informações históricas utilizáveis. Algumas dessas abordagens são simplesmente mais cautelosas em relação à potencial informação histórica de Oseias7.

Algumas das publicações mais recentes sobre Oseias, no entanto, contribuíram com uma nova formulação da antiga linha de investigação histórica. Esses estudos mostram uma abertura renovada para a possibilidade de que os textos de Oseias possam produzir informações históricas. Mas, de acordo com algumas das novas formulações da crítica da redação, eles afirmam que a informação histórica produzida por Oseias consiste primordialmente, talvez unicamente, naquilo que a forma final do texto revela sobre seus autores, público, circunstâncias e preocupações.

O comentário de Ben Zvi (2005), com sua proposta sobre o livro de Oseias ter sido criado para ser lido e relido pelos eruditos do Yehud pós-exílico, mais uma vez fornece um exemplo claro dessa tendência. Ele conclui que o livro contém apenas referências históricas específicas suficientes para estabelecer uma estrutura geral – por exemplo, uma sequência de reis de Judá -, e que ele não pode ser considerado como uma fonte confiável para uma compreensão da história do Judá monárquico e nem para a história do reino do norte nos dias de Jeroboão II8.

 

2.7. Conclusão sobre Os 4-14 na pesquisa do século XX

Nas páginas 360-361 Brad E. Kelle conclui o artigo sobre Os 4-14 na pesquisa do século XX e primeira década do século XXI da seguinte maneira:

A pesquisa do século XX sobre Oseias 4–14 abordou uma gama excepcionalmente ampla de perguntas e empregou várias abordagens metodológicas que geralmente refletem as tendências em mudança nos estudos bíblicos em geral.

No início do século XXI, várias áreas de estudo de longa data permanecem no centro das discussões em andamento, mas novas vias de pesquisa também surgiram. O cerne da pesquisa sobre Oseias está situado em algum lugar entre as reformulações em andamento das mais sofisticadas formas tradicionais de leitura e as novas linhas de investigação que ampliam a discussão além das estratégias interpretativas convencionais do período moderno.

Entre essas abordagens, é provável que o uso da teoria da metáfora conceptual para explicar a natureza e a função da linguagem do livro continue a ocupar posição de destaque. Tais análises certamente empregarão o estudo das metáforas para uma variedade de fins e sob várias perspectivas, levando em conta os elementos do texto com vistas a considerações religiosas, políticas, socioeconômicas e de gênero.

Esses tipos de análises integrativas e multidimensionais produzirão novas ideias interessantes sobre a dinâmica do texto. Em vez de simplificar o significado de Oseias 4–14, no entanto, estudos futuros nesta direção prometem produzir uma diversidade de interpretações que refletem com precisão a complexidade dos próprios capítulos.

Artigos


1. Cf. Brad Kelle em Academia.edu Este resumo foi publicado em 11 postagens no blog Observatório Bíblico nos meses de maio e junho de 2019. Cf. O livro de Oseias na pesquisa do século XX. Sobre a revista Currents in Biblical Research, cf. aqui. Os dois artigos de Brad E. Kelle podem também ser baixados, em pdf, aqui e aqui. Quem preferir apenas a bibliografia citada nos dois textos, clique aqui e aqui.

2. A Teoria da Metáfora Conceptual foi proposta por George Lakoff e Mark Johnson em seu livro Metaphors We Live By, de 1980. Sua premissa básica é a de que a metáfora não é mero recurso estilístico, mas uma maneira de conceptualizar a própria experiência humana. Para Lakoff e Johnson, a metáfora é o mecanismo fundamental não apenas da linguagem cotidiana, mas também de nosso próprio funcionamento cognitivo. É praticamente impossível falar e, consequentemente, pensar, sem recorrer a mecanismos metafóricos, porque a metáfora é a ferramenta linguística que melhor do que qualquer outra expressa nossa interação corporal com o mundo. Sobre isto, cf. Teoria da metáfora conceptual,  post publicado no Observatório Bíblico em 23 de fevereiro de 2020.

3. KELLE, B. E. Hosea 2: Metaphor and Rhetoric in Historical Perspective. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2005, p. 283-284. Disponível online.

4. Grande instabilidade tomou conta do reino de Israel Norte nos seus últimos 30 anos, pois de 753 a 722 a.C. seis reis se sucederam no trono de Samaria, abalado por as­sassinatos e golpes sangrentos. Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Me­nahem, Pecah e Oseias) e 4 assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah). Confira sobre isto o item “Israel é destruído pela Assíria” no artigo O contexto da Obra Histórica Deuteronomista, publicado na Ayrton’s Biblical Page.

5. Sobre a crítica profética ao culto, cf. Três teorias sobre a crítica profética ao culto, post publicado no Observatório Bíblico em 4 de novembro de 2019.

6. Cf. SHERWOOD, Y. The Prostitute and the Prophet: Reading Hosea in the Late Twentieth Century. 2 ed. London: Bloomsbury T&T Clark, 2004.

7. Observo que isto está em consonância com as tendências mais recentes sobre o uso da Bíblia Hebraica como fonte para a História de Israel. Cf., sobre isso, 4 textos na Ayrton’s Biblical Page: A História de Israel no debate atual; Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita?; Resenha de Philip R. Davies, In Search of ‘Ancient Israel’ e Resenha de Israel Finkelstein ; Neil Asher Silberman, The Bible Unearthed. Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts.

8. Cf. BEN ZVI, E. Hosea. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005.


Deuteronomista

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O contexto da Obra Histórica Deuteronomista

 

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Königsberg, Alemanha, 1943: nesta ocasião, Martin Noth propõe, pela primeira vez, que os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam uma coletânea (Sammelwerk) de tradições, que deverá ser chamada de historiografia deuteronomista. Nome que lhe é atribuído por sua grande semelhança com as leis e os discursos exortativos do Deuteronômio. Livro este, que, por sua vez, em seus discursos iniciais, cumpre a função de introdução à coletânea. Para Noth, a OHDtr (= Obra Histórica Deuteronomista) teria sido redigida por um só autor, possivelmente na Palestina do século VI a.C., com o objetivo de explicar o fim do reino de Judá e o exílio babilônico então em curso como fruto da apostasia do povo1.

Hoje, mais de 70 anos após a “invenção” de Noth, dezenas de hipóteses sobre a OHDtr, espalhadas em milhares de estudos, são propostas pelos especialistas, destacando-se, entre elas, duas correntes: a de Cross e a de Smend.

Frank Moore Cross, em um artigo de 1968, reeditado em 1973, propõe duas edições da OHDtr: a primeira, elaborada na época de Josias (640-609 a.C.), é um escrito otimista que dá suporte e celebra a reforma político-religiosa deste rei de Jerusalém; a segunda, escrita durante o exílio, é marcada pela experiência da catástrofe de 586 a.C. e transforma o anterior escrito de propaganda em explicação teológica das causas da desgraça que atingiu Jerusalém e Judá. Seus discípulos R. D. Nelson e R. E. Friedman, além de muitos outros pesquisadores, seguem-no de perto2.

Saindo de Harvard, nos Estados Unidos, para Göttingen, na Alemanha, encontramos a hipótese de Rudolf Smend, feita em 1971 e retomada em 1978, e de seus discípulos W. Dietrich e T. Veijola. Eles propõem três redações para a OHDtr, todas escritas no tempo do exílio. Para Smend, à semelhança de M. Noth, o objetivo da OHDtr seria o de explicar a catástrofe do exílio. Muitos pesquisadores, sobretudo nos países de língua alemã, aderiram às suas explicações3.

É evidente que a maior parte das questões sobre a OHDtr ainda não foram satisfatoriamente respondidas. Como, por exemplo: quem escreveu esta obra? Quando? Quantas modificações sofreu? Onde começa? Qual o seu objetivo? E até: existe mesmo uma OHDtr? Também: não estaríamos atribuindo ao “deuteronomista” muitas coisas sobre as quais não conhecemos a origem? Existe, de fato, um “pandeuteronomismo”? Uma “invasão” de teologia deuteronomista em vários livros bíblicos, como muitos sugerem, é aceitável?

A proposta deste artigo é apontar, apesar de todas estas questões, o contexto em que a OHDtr foi escrita. Esta tentativa talvez suscite mais questões do que ofereça respostas. Entretanto, um bom ponto para começarmos a pensar a situação é o seguinte: do século XII a.C. (época da chegada dos “Povos do Mar”) até 745 a.C. (época do rei assírio Tiglat-Pileser III), quase nenhuma interferência duradoura de grandes impérios pode ser detectada na região de Canaã, permitindo aos povos da região uma relativa estabilidade e a construção de sua independência4. Mas a partir de 745 a.C…. Assim começaremos a delinear nosso contexto a partir da metade do século VIII a.C.

 

1. Israel é destruído pela Assíria

A Assíria parecia inerte, até que, em 745 a.C.,  subiu ao trono Tiglat-Pileser III (= Teglat-Falasar III), aquele que iria tornar-se um dos maiores reis da Assíria, o verdadeiro fundador de seu império. Desde sua ascensão, Tiglat-Pileser III empreendeu uma série de operações militares. Depois de garantir sua retaguarda e as grandes vias de comunicação com o Irã e o Golfo Pérsico, os exércitos assírios tomaram o caminho do sul. As conquistas de Tiglat-Pileser III são mal documentadas, mas sabe-se que de 743 a 738 a.C. ele desbaratou a coalizão siro-urártia e se impôs aos dinastas aramaicos.

O sucesso da expansão imperialista assíria nesta época se explica, pelo menos em parte, pela agressiva política de Tiglat-Pileser III, que não se limitava apenas a recolher tributos, como seus antecessores, Tiglat-Pileser III (745-727 a.C.)mas submetia permanentemente os territórios conquistados. As rebeliões eram punidas com invasão, destruição, deportação e incorporação do território ao império assírio.

Ou seja, com Tiglat-Pileser III a guerra converteu-se em guerra de conquista: o território ocupado era incluído nos limites da terra de Assur e dividido em províncias dirigidas por governadores (bel pihati) que dispunham de guarnições permanentes. As tropas assírias estavam, portanto, sempre a postos para sufocar as dissidências e empreender novas operações. Por outro lado, o rei deportou numerosas populações para regiões distantes, a fim de separá-las de seu meio natural e impedir quaisquer veleidades de rebelião. Isto criou um amálgama de populações de diferentes origens e culturas, submetidas, entretanto, a uma única jurisdição, pois Tiglat-Pileser III computou-as entre os habitantes da terra de Assur, obrigando-as, como tais, às mesmas contribuições e corveias. Em todo o império praticou-se essa política de conquista e assimilação. Liverani calcula que esta prática assíria de “deportação cruzada” de populações, envolveu, ao longo de três séculos, algo como 4 milhões e meio de pessoas. Quebrava-se, deste modo, a resistência política e se preservava a economia local5.

E esta política envolveu Israel, quando grande instabilidade tomou conta do reino nos seus últimos 30 anos, pois de 753 a 722 a.C. seis reis se sucederam no trono de Samaria, abalado por as­sassinatos e golpes sangrentos. Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Me­nahem, Pecah e Oseias) e 4 assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah). Como estaremos lidando com mais de uma dezena de nomes, um quadro cronológico dos reis de Israel pode ser útil aqui6.

NomeDataDuração
Jeroboão I931-910/9 a.C.21 anos
Nadab910-9092 anos
Baasa909/8-88622 anos
Ela886/5-8852 anos
Zimri885/47 dias
Omri885/4-87411 anos
Acab874/3-85321 anos
Ocozias853-8522 anos
Jorão852-84111 anos
Jeú841-81328 anos
Joacaz813-79716 anos
Joás797-78215 anos
Jeroboão II782/1-75329 anos
Zacarias7536 meses
Salum753/21 mês
Menahem753/2-74211 anos
Pecahia742/1-7402 anos
Pecah740/39-7319 anos
Oseias731-7229 anos

Em 738 a.C. Tiglat-Pileser III já submetera grande parte da Síria e da Fenícia e Israel começou a pagar-lhe tributo quando governava Menahem (2Rs 15,19-20). Contudo, grupos anti-assírios assassinaram Pecahia, filho e sucessor de Menahem, e Pecah, o golpista que subiu ao poder, associou-se a Rason, rei de Damasco, para enfrentar a interferência assíria na região. Desta campanha deveria participar Acaz, rei de Jerusalém, que ao se recusar, teve seu governo ameaçado com uma invasão de Judá por Pecah e Rason (Is 7,1-17; 2Rs 16,5-18). Acreditando não poder se defender sozinho, Acaz, para desgosto do profeta Isaías que o aconselhava, chamou em seu socorro o rei assírio Tiglat-Pileser III, dando-lhe, assim, a oportunidade de que necessitava para ampliar o seu poder na região siro-palestina.

Tiglat-Pileser III destruiu e incorporou ao seu território a Síria e destruiu boa parte do território de Israel a partir de 734 a.C., além de conseguir o assassinato de Pecah e sua substituição por Oseias, um rei submisso à Assíria. Samaria não foi, desta vez, anexada nem destruída, mas, sobre o território restante os assírios constituíram as províncias de Dor (na costa), Meguido (Galileia) e Galaad (Transjordânia). Embora a lista detalhada dos israelitas deportados esteja corrompida nos anais de Tiglat-Pileser III, tanto Liverani quanto Finkelstein/Silberman consideram razoável o número total de 13.520 pessoas. A destruição dos territórios é arqueologicamente documentada em Hasor, Dan, Tel Kinneret, Bet-shean e outras localidades7.

Entretanto, isso não era tudo. Israel só se submetera à Assíria porque não tinha outra opção. Quando Tiglat-Pileser III foi sucedido por Salmanasar V (727/6-722 a.C.), Oseias pensou ser o momento adequado para a revolta. Negou o pagamento do tributo à Assíria e aliou-se ao Egito. Foi um suicídio. O Egito estava todo dividido e muito fraco. Não veio a ajuda esperada. Salmanasar V atacou, prendeu o rei, ocupou o país e cercou Samaria em 724 a.C. (2Rs 17,3-6).

Samaria caiu em 722 a.C. e o irmão de Salmanasar V, Sargão II (721-705 a.C.), foi quem se en­carregou daSargão II (721-705 a.C.) deportação e substituição da população israelita por outros povos que fo­ram ali instalados. A destruição de Samaria pela Assíria é bem documentada pela arqueologia. Segundo os anais de Sargão II, o número de deportados samaritanos foi de 27.290 pessoas8.

Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, explicam, por outro lado, que a interpretação bíblica do trágico destino de Israel é muito mais teológica do que histórica: segundo a OHDtr, a devastação de Israel pelos exércitos estrangeiros fazia parte de um preciso plano divino, que puniu o povo e seus líderes por sua recusa do culto a Iahweh no Templo de Jerusalém e por sua adesão a outros deuses (2Rs 17,7-41). Mas a arqueologia traz uma perspectiva diferente: Israel foi invadido pelos assírios por ter sido um reino bem sucedido que, vivendo à sombra do grande império, suscitou sua cobiça. A Assíria ambicionava a região siro-palestina basicamente por causa de seus recursos naturais, do controle do comércio do Mediterrâneo e, não por último, por causa do Egito, ferrenho adversário dos impérios da Mesopotâmia na luta pela hegemonia geopolítica do Antigo Oriente Médio9.

 

2. Judá na época de Ezequias: reforma e invasão assíria

Pode ser útil observar, neste ponto, um quadro cronológico dos reis de Judá.

NomeDataDuração
Roboão931-914 a.C17 anos
Abian914-9123 anos
Asa912-87141 anos
Josafá871/0-84823 anos
Jorão848-8417 anos
Ocozias8411 ano
Atalia841-8356 anos
Joás835-79640 anos
Amasias796-76729 anos
Ozias767-73928 anos
Joatão739-7345 anos
Acaz734/3-71618 anos
Ezequias716/15-699/817 anos
Manassés698-643/255 anos
Amon643/2-6402 anos
Josias640-60931 anos
Joacaz6093 meses
Joaquim609-59811 anos
Joaquin598/73 meses
Sedecias597-58611 anos

Judá teve a proteção assíria, mas perdeu sua independência. Acaz acabou vassalo da Assíria, pagando-lhe tributo e rendendo homenagem aos deuses assírios. A esperança reapareceu com seu filho Ezequias. Associado ao trono desde criança, em 728/7 a.C., ao ser coroado em 716/15 a.C. este rei começou uma reforma no país para tentar debelar a crise.

Um dos alvos da reforma teria sido a ruptura com práticas cultuais não-javistas dos agricultores. Entre outras coisas, teria abolido os lugares altos (bâmôt), quebrado as estelas (matsêbôt), cortado o poste sagrado (‘asherâh). Até mesmo do Templo de Jerusalém Ezequias teria retirado símbolos dos cultos da fertilidade, como uma serpente de bronze. É o que nos conta 2Rs 18,4, embora aqui a OHDtr tente apresentar uma justificativa para a presença desta serpente de bronze no Templo (“que Moisés havia feito, pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso” – cf. Nm 21,8-9).

Entretanto, há autores, como Finkelstein/Silberman e Liverani, que apresentam uma perspectiva um pouco diferente: a “reforma” de Ezequias não teria sido a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos. A reforma sinaliza na direção da transformação de Iahweh de Deus nacional, convivendo com os deuses regionais, em Deus exclusivo10.

A destruição de Samaria levou refugiados de Israel para Jerusalém, pois novas estruturas foram construídas, como bairros novos, ampliação de muralhas e o túnel que levava as águas da fonte Gihon para o reservatório de Siloé. Sobre este último feito testemunham 2Rs 20,20 e a Inscrição de Siloé, que celebra o encontro das duas turmas de escavadores11.

O fato é que Jerusalém superou seu antigo isolamento e, ancorada na política assíria, cresceu de 5 para 60 hectares e de cerca de 1000 para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII a.C., podem ser contados cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. A fortaleza de Laquis, na Shefelá, se desenvolveu extraordinariamente. Outros fortalezas foram construídas na mesma região. Surge portanto, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado. Todas estas mudanças trazem consigo o fenômeno do profetismo, bem mais antigo no reino de Israel, mas só a partir deste momento tomando forma bem definida em Jerusalém, com Isaías (Is 1-39) e Miqueias, duas vozes formidáveis em defesa do javismo12.

Enquanto isso, na Assíria, Senaquerib subiu ao trono em 705 a.C. e imediatamente teve que enfren­tar Senaquerib (705-681 a.C.)nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do oeste então se levantaram. Acredi­tavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias; Ascalon e Ekron, com algumas ci­dades filisteias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos líderes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se cuidadosamente para esperar a Assí­ria. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701 a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab, Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib. Somente Ascalon e Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Testemunhos arqueológicos da devastação foram encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Laquis encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive – hoje está no British Museum – e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade do reino e protegia a entrada de Judá13.

Entretanto, por motivos ainda hoje desconhecidos, talvez uma peste, Senaquerib levantou o cerco de Jerusalém e retornou à Assíria. A cidade voltou a respirar, no último minuto, mas teve que pagar forte tributo aos assírios. Não se sabe porque Jerusalém se salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaquerib foram ataca­dos por ratos (peste bubônica?). Talvez Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. Ou ainda: há autores que pensam que Jerusalém nem precisou ser sitiada para ser vencida. Nos Anais de Senaquerib se diz o seguinte: “Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (…) Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola…”.

Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na Pa­lestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo: “Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade se­nhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, an­timônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão”14.

Informação que concorda, em geral, com a de 2Rs 18,13-16: “No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, subiu contra todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: ‘Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres’. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talen­tos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iahweh, que… rei de Judá, havia revestido de metal, e o entregou ao rei da Assíria”.

Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a “maldade” de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.

Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) – as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época – e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza. Entretanto, o filho de Manassés, Amon, ao sucedê-lo, foi assassinado, certamente por grupos prejudicados com o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas oito anos, é declarado rei de Judá15.

 

3. A reforma de Josias

A Assíria estava nos seus estertores finais, enfrentando uma violência proveniente de vários pontos do império. Povos dominados e oprimidos pela extrema violência e crueldade assírias levantaram as cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 609 a.C. Foi um momento bom para Judá. Sob a influência de um forte espírito nacionalista, o rei Josias deu início a uma ampla reforma, descrita em pormenores em 2Rs 22,3-23,25 como o obra mestra deste rei. Parece que a reforma começou aí pelo ano de 629 a.C., décimo segundo do reinado de Josias, que contaria então com 20 anos de idade.

Do Templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, “o livro da Lei” (sêfer hattôrâh), como se lê em 2Rs 22,8. Ao ser promulgado por Josias em 622 a.C. como lei oficial do reino de Judá, este “livro da Aliança” (2Rs 23,2) deu vida à reforma, mostrando que era preciso reviver as antigas tradições mosaicas, pois só elas valiam a pena. “Todo o povo aderiu à Aliança”, diz 2Rs 23,3.

Aproveitando a fraqueza assíria, Josias ocupou algumas partes do antigo reino de Israel, aumentando seus tributos e melhorando suas defesas. Houve uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e os vários modos de adivinhação, banidos. Santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, arrasados, com especial destaque, no texto de 2Rs 23,4-20, para a destruição do santuário de Betel.

Mas esta é uma reconstrução fundada na OHDtr. Até que ponto ela é confiável? O que fez Josias e que chamamos hoje de “reforma”?

Apesar de algumas sugestões mais antigas de Padres da Igreja, sabemos que foi o alemão W. M. L. de Wette quem, em 1805, sugeriu que o “livro da Lei”, que impulsionou a reforma de Josias, deveria corresponder ao Deuteronômio, ou, pelo menos, a uma forma mais primitiva deste livro. Mas, mais importante ainda foi a sua conclusão de que este Deuteronômio original foi composto na época de Josias, guardado no Templo e, em seguida, utilizado como documento de propaganda para a reforma deste rei. Além disso, De Wette dividiu o Pentateuco em Tetrateuco e Deuteronômio, considerando este último como o livro mais recente deste conjunto e chamando a atenção para seu parentesco com o livro de Josué16.

De lá para cá esta tem sido a opinião dominante sobre a identidade do “livro da Lei”, embora não exista acordo entre os especialistas sobre a data do escrito original, sobre a identidade de seus autores e nem sobre o número de reedições pelas quais o livro do Deuteronômio passou. Alguns defendem sua origem em Israel, antes da queda de Samaria, nos meios levítico-proféticos, outros sua primeira redação por refugiados (levitas?) do reino do norte vindos para Jerusalém na época de Ezequias, outros, ainda, sua escrita na época de Josias por escribas reais… Só existe relativo consenso quanto ao seu conteúdo: o Deuteronômio original compreenderia os capítulos 12,1-26,15 – um código de leis – ornamentados por uma introdução, os atuais capítulos 4,44-11,32, e uma conclusão, os capítulos 26,16-28,68.

Uma citação de Richard H. Lowery nos dá bem a dimensão do problema: “A procura pelos profissionais da teologia deuteronômica é tão confusa quanto a busca de uma motivação para a reforma de Josias. É certamente estranha uma literatura que leva seus leitores críticos a concluir que é antimonárquica e pró-monárquica, de origem setentrional e meridional, produto de levitas rurais, sacerdotes de Jerusalém, escribas reais, emigrados recentes, pessoas próximas da corte, mestres sapienciais e círculos proféticos. Todas essas propostas foram apresentadas, no entanto, porque cada uma delas tem certa justificação na literatura. Um exame melhor da reforma de Josias estabelece o contexto para classificar algumas dessas características contraditórias da teologia deuteronômica”17.

Quanto à época e finalidade da obra, Finkelstein/Silberman, por exemplo, colocam tanto o Pentateuco quanto a OHDtr na época de Josias. Na Introdução de seu livro de 2001, nas páginas 15-41, sob o título A Arqueologia e a Bíblia, após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia oferece hoje evidência suficiente para que se sustente uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século VII a.C.

E dizem: “Dessa forma, direcionaremos o foco para Judá, no final do século VIII e no século VII a.C., quando esse processo literário começou de verdade, e discutiremos que muito do Pentateuco é criação tardia do final do período monárquico, defendendo a ideologia e as necessidades do reino de Judá e, como tal, intimamente relacionado à história deuteronomista. E nos alinharemos com os estudiosos que argumentam que a história deuteronomista foi compilada, em sua parte principal, na época do rei Josias, com a intenção de prover validação ideológica para ambições políticas específicas e reformas religiosas”18.

Também Liverani é de opinião que “chama a atenção o estratagema da descoberta de um manuscrito ‘antigo’ para dar o aval da autoridade tradicional àquela que deveria ser, no entanto, um reforma inovadora”. Mas, para ele, o mais importante é constatar que a reforma acontece justamente quando a autoridade assíria na região está em decadência, pois o que Josias percebeu foi a oportunidade de substituir “uma dependência e fidelidade ao senhor terreno, o imperador, por uma dependência e fidelidade ao senhor divino, Iahweh”19.

Seguindo esta linha de raciocínio, Liverani considera que a centralização do culto em Jerusalém e a ortodoxia javista da reforma pode até ser o seu conceito mais “operacional”, mas o mais importante é o estabelecimento de uma relação de “aliança” entre Iahweh e seu “povo eleito”, fundando-a na Lei de Moisés. É que esta teologia adquire, neste momento, grande importância política. Através da ideia de uma libertação do Egito – embora esta seja, nas palavras do autor, uma memória “deformada pela interpretação migratória” – e do pleno controle sobre o território de Canaã, projeta-se o futuro do país: o mesmo Deus que os livrara da escravidão egípcia os livrará agora de qualquer outra escravidão, seja a egípcia que novamente os ameaça, seja a assíria, duradoura, mas, neste momento, em crise20.

Na mesma direção de elemento legitimador da reforma vai a afirmação sobre a celebração da Páscoa em 2Rs 23,21-22. Mas, quanto ao restante, há muitas incertezas: a arqueologia não tem dados sobre uma reforma do antigo Templo (dito “salomônico”), até hoje inacessível, nem sobre a extensão do território de Israel que teria sido anexado, sendo improvável que o controle de Jerusalém passasse muito ao norte de Betel. Nem mesmo o templo de Betel foi encontrado, as estatuetas da deusa da fertilidade Asherá foram achadas em grande quantidade nas residências… embora os sinetes da época não contenham mais figuras divinas astrais, como antes! Por outro lado, os sinais da expansão territorial de Judá sob Josias são visíveis, a população aumentou, fortalezas, como Laquis, foram restauradas. Talvez Josias tenha conseguido um território semelhante ao de Manassés, embora com outras características.

Ainda sobre as incertezas que cercam a reforma de Josias, não se pode esquecer o profeta Jeremias, que vivia em Jerusalém na época de Josias e que, segundo aparece em seu livro, embora opinasse sobre os acontecimentos políticos e as práticas religiosas de maneira veemente, aparentemente não deixou uma palavra sequer sobre a reforma de Josias, por mais que os comentaristas se esforcem em encontrar a sua avaliação sobre o que teria sido o fato mais importante de sua época21.

Apesar de tudo isto, calculam Finkelstein/Silberman que a população de Judá não tenha ultrapassado os 75 mil habitantes, “com ocupação relativamente densa nas zonas rurais das áreas montanhosas judaicas, com uma rede de assentamentos nas regiões áridas ao leste e ao sul e com um povoamento consideravelmente esparso na Shefelá. De muitas maneiras, era um Estado denso sob o aspecto dos assentamentos, e a capital detinha cerca de 20 por cento da população. A vida urbana em Jerusalém atingiu um pico que só seria igualado no período romano (…) Em termos de seu desenvolvimento religioso e da expressão literária de sua identidade, a era de Josias marcou novo estágio significativo na história de Judá”22.

Contudo, a situação se complicou. É que em 612 a.C. a Assíria teve seu império assaltado e sua capital destruída pelos medos e babilônios. Seu rei fugiu para Harã e resistiu ainda dois anos. Diz a Crônica Babilônica: “No décimo sexto ano de Nabopolassar, no mês de ayyar, o rei da Babilônia mobilizou suas tropas e marchou contra a Assíria (…) No mês de arahsammu os medos vieram em auxílio do rei da Babilônia; eles uniram suas tropas e marcharam para Harã contra Assur-ubalit, que se tinha assentado no trono da Assíria23.

Em 610 a.C. o rei da Assíria é desalojado de Harã. Em 609 a.C. os assírios tentam retomar Harã. Sem sucesso. Os egípcios foram ajudá-los. Josias, rei de Judá, foi encontrar o faraó Necao II em Meguido e acabou morto. 2Cr 35,20-24 fala de um conflito militar, hipótese simpática a muitos historiadores, que a adotam. Contudo, há autores que pensam que Necao II teria simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de Josias.

De qualquer maneira, a OHDtr, que idealizara Josias de maneira quase messiânica, atribuindo-lhe características das figuras de Moisés (que fizera a Aliança), Josué (que ocupara Canaã), Davi (que unificara politicamente o território) e Salomão (que construíra o Templo), não consegue explicar como essa catástrofe histórica pôde acontecer, levando o povo de Israel, mais uma vez, à submissão ao Egito. 2Rs 23,29-30 é lacônico: “No seu tempo, o Faraó Necao, rei do Egito, partiu para junto do rei da Assíria, às margens do rio Eufrates. O rei Josias marchou contra ele, mas Necao matou-o em Meguido, no primeiro encontro. Seus servos transportaram seu corpo de carro desde Meguido, e o conduziram para Jerusalém e o sepultaram no seu túmulo. O povo da terra tomou Joacaz, filho de Josias, ungiu-o e o constituiu rei em lugar de seu pai”.

 

4. Os últimos dias de Judá

Como assírios e egípcios nada conseguiram contra os babilônios, o faraó Necao II procurou consolidar seu poder na Palestina. Chama Joacaz até seu quartel-general na Síria, depõe o rei e deporta-o para o Egito. Coloca no trono de Judá o irmão de Joacaz, Joaquim, que tinha 25 anos de idade. Joacaz reinara três meses. Judá passou então a pagar pesado tributo ao Egito, o que durou até 605 a.C., quando o rei babilônio Nabucodonosor derrotou as forças egípcias e desceu até a Palestina. Joaquim fez com ele um acordo e Judá não foi destruído.

Mas não durou nada. Em 600 a.C. Nabucodonosor tentou invadir o Egito e não conseguiu. Judá rebelou-Crônica Babilônica que menciona a tomada de Jerusalém em 597 a.C.se, acreditando na libertação. Seu erro foi fatal. Enquanto os babilônios marchavam para Jerusalém, morreu Joaquim (provavelmente assassinado), em dezembro de 598 a.C. e foi substituído por seu filho Joaquin, de 18 anos, que capitulou no dia 16 de março de 597 a.C. O rei foi deportado para a Babilônia com a corte e toda a classe dirigente. Segundo a Crônica Babilônica “No sétimo ano, no mês de kismilu [18.12.598-15.1.597], o rei da Babilônia mobilizou suas tropas e marchou para Hattu. Ele se estabeleceu na cidade de Judá e no mês de addar, no segundo dia [16.3.597], ele tomou a cidade; aprisionou o rei e colocou outro, de sua escolha, no lugar dele, e exigiu uma pesada renda que levou para a Babilônia24.

No lugar de Joaquin os babilônios deixaram o tio, Sedecias, então com 21 anos de idade. Judá estava mesmo arruinado. Com várias cidades destruídas, sua economia desorganizada e o melhor da nação exilado, pouco restava ao fraco Sedecias que pudesse ser feito. Algumas tentativas de revolta foram abafadas. Finalmente, em 588 a.C., Judá começou uma clara rebelião contra a Babilônia, que o levou à destruição final. Os babilônios destruíram, em 588 mesmo, as cidades fortificadas de Judá, assediando a desesperada Jerusalém em 587 a.C., no mês de janeiro. Na fortaleza de Laquis foram encontrados, em 1935 e 1938, vinte e um óstraca. Testemunhos dramáticos da invasão babilônica de 588 a.C., os óstraca [pedaços de cerâmica sobre os quais se escrevia uma mensagem] falam do cerco, da situação crítica em que se encontram e das medidas tomadas25.

Durante um breve período, o cerco de Jerusalém foi levantado: havia a esperança egípcia. Que não se concretizou. Finalmente, em 19 de julho de 586 a.C., Jerusalém cedeu. Sedecias fugiu na direção de Amon. Não adiantou. Foi preso e levado diante de Nabucodonosor a Rebla, na Síria, assistiu à execução de seus filhos, foi cegado, acorrentado e levado para a Babilônia, onde morreu. Em agosto, o comandante da guarda de Nabucodonosor entrou em Jerusalém, incendiou tudo, derrubou o Templo, as muralhas, levou as pessoas de maior destaque que executou em Rebla, diante de Nabucodonosor, enquanto deportava outro grupo para a Babilônia. Calcula-se que cerca de 4.600 homens da classe dirigente judaica tenham ido para o exílio. Somadas as mulheres e as crianças, seu número poderia chegar a quase vinte mil pessoas. A população restante, camponesa, foi deixada no país.

Estes dados estão em Jr 52,27-30, que documenta três deportações: a de 597 a.C., sob Joaquin; a de 586Carta IV de Laquis a.C., sob Sedecias; e uma última, de 582 a.C., talvez em represália ao assassinato de Godolias. Porque, de fato, na Judeia, os babilônios colocaram Godolias como governador. Godolias acabou assassinado pelo nacionalista Ismael, em outubro do mesmo ano. Acabara-se Judá. A história do povo, e sua literatura, vão continuar no exílio, que durou mais de 50 anos.

Uma observação sobre esta deportação numericamente modesta: enquanto os assírios deportavam grandes contingentes da população, os babilônios deportavam apenas a classe dirigente. Tanto assírios quanto babilônios obtinham, com esta estratégia, mão de obra especializada e quebravam a resistência política dos vencidos. Mas, enquanto os assírios buscavam uma uniformidade “assíria” nas províncias, com rigoroso controle político-militar, os babilônios deixavam as terras conquistadas nas mãos das populações locais – sem chance de se rebelar porque politicamente desorganizadas – ao mesmo tempo que permitiam às elites deportadas a manutenção de sua identidade. Pode ser que isto explique o destino bem diferente dos israelitas, que nunca mais voltaram, em relação aos judaítas, que irão reconstruir o seu país quando terminar o exílio26.

Mas como foi o exílio? Esta é uma questão complexa, porque conhecemos razoavelmente bem o que aconteceu antes da destruição e temos dados que nos permitem tentar reconstruir o que aconteceu depois, na época persa. Mas e durante o exílio? Existe documentação sobre como viviam os exilados e sobre como viviam os remanescentes na terra de Judá? E isto é importante, pois foi neste contexto que parte ou mesmo toda a OHDtr foi elaborada.

 

5. O exílio babilônico

No Segundo Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, realizado em Lausanne, Suíça, de 27 a 30 de julho de 1997, os pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades que fazem parte do grupo discutiram o tema do exílio babilônico. Os debates foram publicados, em 1998, no livro Conduzindo um Cativo ao Cativeiro. ‘O Exílio’ como História e Ideologia27.

Por que julgaram importante debater o exílio? Porque o exílio é um forte símbolo na Bíblia e na pesquisa veterotestamentária. Quando história de Israel e literatura bíblica são discutidas, as coisas costumam ser classificadas em pré-exílicas e pós-exílicas. O conceito de culpa-exílio (castigo)-restauração teve grande impacto tanto no Antigo Testamento quanto na discussão teológica sobre o Antigo Testamento. Sem dúvida, ‘o exílio’ é um divisor de águas nas discussões sobre o Antigo Testamento. Mas pouco sabemos sobre ele. Até mesmo de sua existência já se duvidou: estamos lidando com um evento histórico ou não? Os judaítas foram de fato para a Babilônia no século VI a.C. e voltaram (seus descendentes) para reconstruir sua capital e seu país? Ou não estaríamos lidando com um conceito teológico e literário que serviu muito bem às necessidades dos judeus oprimidos, dos líderes religiosos, pregadores, teólogos e escritores, mas que teria sido totalmente inventado?

Segundo Lester L. Grabbe, coordenador do grupo, em dois pontos todos concordaram: 1. Ocorreram uma ou mais deportações dos reinos de Israel e Judá; 2. O termo exílio é fortemente marcado por significados teológicos e ideológicos e não é, de modo algum, um termo neutro para se referir a uma época ou a um episódio históricos.

Daí que uma das principais questões debatidas no Seminário foi se o uso do termo exílio deveria ser banido ou não do meio acadêmico, já que sua carga teológica e ideológica é um problema para o estudo deste fenômeno ou época. Alguns sugeriram deportação ou diáspora no lugar de exílio, alegando ser este um termo neutro, enquanto outros discordaram também deste termo, porque isto seria assumir ainda uma agenda bíblica e não histórica. Mas qual é a diferença real entre estes termos, se o hebraico usa a mesma palavra (gôlâh) tanto para exílio quanto para diáspora e deportação? Não houve consenso quanto a este ponto.

Outro ponto de desacordo foi a questão da ‘volta’ do exílio. Alguns acham que não houve continuidade entre os deportados da época babilônica e os que se estabeleceram na Judeia na época persa. Outros acham que se pode falar de uma ‘volta do exílio’. E foi preciso discutir o que significa ‘continuidade’, que não precisa ser necessariamente biológica, pode ser cultural. Discutiu-se aí o significado de etnia. Mas e se foram outros povos que vieram para Judá na época persa, deportados, por sua vez, de suas terras de origem? Ainda: se nem todos os judaítas foram exilados – apesar do mito da ‘terra vazia’ –, por que falar de ‘restauração’, outro conceito extremamente problemático?

Esta é apenas uma pequena amostra do que o exílio babilônico pode provocar no meio acadêmico. Apesar de toda esta incerteza, alguns dados sobre o exílio poderiam ser deduzidos, se usarmos o conhecimento que temos do mundo babilônico comparado com os escassos dados bíblicos.

Por exemplo: o rei Joaquin viveu na Babilônia, onde criou seus filhos, e era respeitado pelo grupo exilado, pois seu neto Zorobabel aparecerá como um dos líderes da reconstrução do Templo por volta de 520 a.C., na época persa. Do mesmo modo, a classe dirigente deportada, incluindo chefes de família, sacerdotes e profetas tinham uma certa liberdade para se organizarem e manter sua identidade na região das cidades em que viviam, como Babilônia e Nippur, e nos povoados que reconstruíram ao longo de rios e canais. É razoável pensar também que os deportados foram usados como colonos na agricultura local, que teve grande crescimento neste período, como atestam tanto a arqueologia da Baixa Mesopotâmia quanto arquivos de templos babilônicos. Não é descartada inclusive uma certa atividade comercial e financeira por parte de algumas famílias judaítas, como aparece nos arquivos familiares dos Murashu de Nippur. Além disso, a língua aramaica já teria começado a ser usada, segundo uma tendência geral no império, e os nomes “cananeus” dos meses vão sendo substituídos por nomes babilônicos28.

 

Conclusão

Uma conclusão? Não há conclusão. A história de Israel está passando atualmente por profundas mudanças e tudo o que se pode fazer hoje são tentativas abertas à discussão. Como faz exemplarmente Mario Liverani que, na obra citada neste artigo, propõe uma história normal seguida por uma história inventada.

É conveniente, porém, lembrarmos aqui que estas mudanças não são de hoje. Começaram, na verdade, em meados da década de 70 do século XX com a crise da teoria documentária do Pentateuco, modelo explicativo para a origem dos cinco primeiros livros da Bíblia vigente desde o século XIX, e atingiram o campo da História de Israel, como era de se prever.

De lá para cá, nem no campo dos estudos do Pentateuco e muito menos na área da História de Israel se chegou a um consenso em relação a dezenas de questões. O mesmo vale para a Obra Histórica Deuteronomista. É aquilo que escreveu o exegeta britânico Philip R. Davies em 1992: para quem se empenha numa pesquisa histórica, a única certeza é que o Israel bíblico é um problema e não um dado29.

 

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> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88, p. 11-27, 2005

>> Bibliografia atualizada em 15.02.2022

Artigos


1 . O livro de M. Noth chama-se Überlieferungsgeschichtliche Studien [Estudos de história das tradições]. Cf. DE PURY, A.; RÖMER, T.; MACCHI, J.-D. (éds.) Israël construit son histoire: l’historiographie deutéronomiste à la lumière des recherches récentes. Genève: Labor et Fides, 1996, p. 18-39.

2 . O artigo de CROSS, F. M. The Themes of the Book of Kings and the Structure of the Deuteronomistic History pode ser lido em seu livro Canaanite Myth and Hebrew Epic: Essays in the History of the Religion of Israel. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1973, p. 274-289 (Reprint Edition: 1997).

3 . Cf. SMEND, R. Die Entstehung des Alten Testaments. Stuttgart: Kohlhammer, 1978 [1990].

4 . Autores tão diferentes como John Bright e Mario Liverani concordam neste ponto. Cf. BRIGHT, J. História de Israel. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 327; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 185.

5 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 193-194. Para saber mais sobre Tiglat-Pileser III e seu governo, cf. GARELLI, P.; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático: impérios Mesopotâmicos-Israel. São Paulo: Pioneira-Edusp, 1982, p. 87-96. Cf. sobre o imperialimso assírio, LIVERANI, M. Antico Oriente: Storia, società, economia. 4. ed. Bari: Laterza, 2011, p. 665-728 [Em português: Antigo Oriente: História, Sociedade e Economia. São Paulo: EDUSP, 2016]; LIVERANI, M. Assiria: La preistoria dell’imperialismo. Bari: Laterza, 2017. Cf. ainda Assíria: a pré-história do imperialismo, post publicado no Observatório Bíblico em 8 de junho de 2017.

6 . Há várias cronologias possíveis para o período dos reis. Estou seguindo a de PAVLOVSKY, V.; VOGT, E. Die Jahre der Könige von Juda und Israel. Biblica, Roma, n. 45, p. 321-347, 1964. Outra muito respeitada é a de GALIL, G. The Chronology of the Kings of Israel and Judah. Leiden: Brill, 1996. Para os problemas da cronologia do Antigo Oriente Médio, cf. MANNING, S. W. et alii Integrated Tree-Ring-Radiocarbon High-Resolution Timeframe to Resolve Earlier Second Millennium BCE Mesopotamian Chronology. PLOS ONE 11(7): e0157144. Published: July 13, 2016; VAN DE MIEROOP , M. A History of the Ancient Near East ca. 3000–323 BC. 3. ed. Chichester, West Sussex, UK: Wiley Blackwell, 2016.

7 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 185-86; FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 295-297. Os anais de Tiglat-Pileser III podem ser consultados em TADMOR, H. The Inscriptions of Tiglath-Pileser III King of Assyria: Critical Edition, with Introductions, Translations and Commentary by Hayim Tadmor. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1994. Para esta e outras fontes assírias, veja esta bibliografia.

8 . PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (= ANET). 3. ed. Princeton: Princeton University Press, 1969, p. 284-285; FUCHS, A. Die Inschriften Sargons II. aus Khorsabad. Göttingen: Cuvillier, 1994, p. 313-314.

9 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 304-307. Cf. também FINKELSTEIN, I. O reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015; KAEFER, J. A. A Bíblia, a arqueologia e a história de Israel e Judá. São Paulo: Paulus, 2015

10 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 318; LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 199-200.

11 . A Inscrição de Siloé, em hebraico arcaico, do século VIII a.C., tem seis linhas. Foi descoberta em 1880 e, alguns anos depois, removida para o Museu de Istambul. Cf. foto, texto, tradução, explicação, bibliografia e links em HANSON, K. C. Siloam Inscription; BiblePlaces.com Hezekiah’s Tunnel. Também em FREEDMAN, D. N. (ed.) The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM. New York: Doubleday & Logos Research Systems, [1992], 1997, verbete Siloam Inscription.

12 . Neste ponto Finkelstein/Silberman e Liverani defendem, na esteira de Morton Smith, o nascimento do movimento só-Iahweh, fenômeno sobre o qual ainda não me convenci. Cf., para isso, DA SILVA, A. J. Resenha de FINKELSTEIN, I; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001 (Tradução brasileira: A Bíblia não tinha razão).

13 . Cf. as ruínas de Laquis ou Tell ed-Duweir em BiblePlaces.com Lachish. Links levam a fotos do relevo assírio da tomada da cidade. Texto e fotos podem ser vistos também em MAZAR, A. Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000-586 a.C. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 408-414. Cf. também os posts sobre a tomada de Laquis por Senaquerib em 701 a.C., publicados no Observatório Bíblico em 27.04.2020: 1, 2 e 3

14 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 76.

15 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 356-369.

16 . A tese de W. M. L. de Wette foi publicada em 1805 em sua Dissertatio criticoexegetica… Em seguida, ele retoma suas idéias em suas Beiträge zur Einleitung in das Alte Testament [Contribuições para a Introdução ao Antigo Testamento] 2 Bde. Halle: Schimmelpfennig, 1806-1807 (reimpressão em 1 volume: Hildesheim: George Olms, 1971). Cf. SKA, J.-L. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2014, p. 120-121.

17 . LOWERY, R. H. Os reis reformadores: culto e sociedade no Judá do Primeiro Templo. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 296. Cf. também DA SILVA, A. J. A descoberta do Livro da Lei na época de Josias e O Código Deuteronômico seria pós-josiânico? posts publicados no Observatório Bíblico, respectivamente, em 27 de janeiro de 2007 e 15 de setembro de 2009.

18 . FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 29.

19 . LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 222.

20 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p.223.

21 . Sobre Jeremias, cf. DA SILVA, A. J. Perguntas mais frequentes sobre o profeta Jeremias. Philip R. Davies, por exemplo, não admite nem a existência de uma reforma na época de Josias. Cf. VV.AA. Recenti tendenze nella ricostruzione della storia antica d’Israele. Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2005. p. 139-155.

22 . FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 388-389.

23 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 81-82. Cf. também DA SILVA, A. J. História de Israel.

24 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 84.

25 . Para fotos e textos dos óstraca, faça uma busca no Google pela expressão “lachish letters”, ou, em português, “cartas de laquis”. Em BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 85-86, há dois textos das cartas de Laquis.

26 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 243-246. Vale lembrar que, na página 241, Liverani mostra como a destruição de Judá é bem documentada pela arqueologia, listando mais de vinte localidades arrasadas pela guerra nesta época.

27 . GRABBE, L.L. (ed.) Leading Captivity Captive: ‘The Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998.

28 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 267-272. Cf. também DA SILVA, A. J. O paradigma bíblico exílio-restauração caducou? e Abordando Yehud, posts publicados no Observatório Bíblico, respectivamente, em 8 e 12 de agosto de 2009.

29 . Cf. DA SILVA, A. J. Resenha de DAVIES, Philip R., In Search of ‘Ancient Israel’. 2. ed. London: T & T Clark, 2015. Cf. também VV.AA. Recenti tendenze nella ricostruzione della storia antica d’Israele, Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2005.


Rute

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Leitura socioantropológica do livro de Rute

 

leitura: 29 min

Ao fazer a proposta de uma leitura socioantropológica, estou sugerindo que estas duas ciências sociais, entre outras, podem contribuir hoje de maneira eficaz para o estudo dos textos bíblicos. Mas também estou pressupondo como necessária a abordagem literária dos mesmos textos bíblicos, para evitar a armadilha da leitura do texto como relato fidedigno da realidade social subjacente.

Qual seria, porém, a contribuição específica da leitura socioantropológica? Penso que pode ser o fato desta abordagem examinar não somente a literatura bíblica, mas também as forças sociais subjacentes à produção desta literatura, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto. O desafio maior, neste caso, será combinar, sem reducionismos, as abordagens socioantropológica e literária[1].

Vou utilizar o livro de Rute para visualizar esta proposta. Este livro é uma história que usa lugares reais e pessoas fictícias situadas em determinado espaço e tempo para construir a sua narrativa. Daí que três níveis conectados pela perspectiva conferida ao texto pelo autor/a da história devem ser considerados:
:. o imaginário do autor/a que gera a narrativa
:. o mundo real fora do livro
:. a construção social e ideológica deste mundo pelo autor/a para atingir um objetivo.

É preciso, portanto, como sugeri, olhar em duas direções:
:. para a sociedade que aparece dentro do texto, observando quem são os personagens, o mundo no qual se movem e quais são suas práticas econômicas, políticas e sociais
:. para a sociedade que aparece por trás do texto, investigando a situação na qual e para a qual o livro foi escrito.

Deste modo deveria ser possível mostrar que o modo como os personagens organizam sua visão de mundo são, na verdade, ferramentas literárias utilizadas pelo autor/a na construção de uma história totalmente fictícia, mas que, sem dúvida, produz uma mensagem que é considerada pelo autor/a de Rute como um caminho a ser buscado, estruturando o livro como uma narrativa orientada por uma proposta séria.

O artigo pode ser desenvolvido da seguinte maneira:
1. Olhando a história com os olhos do autor/a, pergunto: o que diz o livro de Rute?
2. Olhando para além do livro, pergunto: o que é possível saber da época em que foi escrito o livro de Rute?
3. Olhando a história com os olhos do leitor atual, pergunto: qual é a proposta do livro de Rute?

 

1. O que diz o livro de Rute?

O enredo

O autor/a começa a narrativa com uma crise, dizendo que há uma fome no país (‘eretz), mas logo dirige seu olhar, dramaticamente, para uma única família de Belém (bêth lehem = casa do pão) de Judá e situa esta crise na época pré-monárquica, no tempo dos juízes. Esta família – marido, mulher e dois filhos – foge da crise migrando para os campos (sâde) de Moab.

Nos campos de Moab, onde estes judaítas viverão por mais de dez anos, logo morre o chefe da família, e, embora casados com mulheres moabitas, os dois rapazes também morrem sem deixar descendentes. Restam três mulheres, viúvas e sem filhos: uma judaíta, já de certa idade, e duas jovens moabitas. Quando tudo parece se encaminhar para uma tragédia, a volta a Belém se torna possível com o fim da fome que assolava a região. É o que faz a judaíta e uma de suas noras que insiste em acompanhá-la.

Em Belém vivem da cata das sobras da colheita de cereais no campo de um parente, que acaba se casando com a jovem moabita e comprando a terra do falecido judaíta que migrara para os campos de Moab. O filho que nasce deste casamento dá continuidade à família do falecido e se torna herdeiro de sua propriedade. Início dramático, final feliz.

Contada assim, parece até uma história meio sem graça. Porém, esta é uma narrativa muito bem estruturada, com finos detalhes e sutis sugestões que fazem toda a diferença. Por isso, recomendo ao leitor que releia a história prestando atenção a quatro coisas:
:. o significado dos nomes dos personagens
:. as alusões a outras tradições bíblicas
:. o modo como a história está estruturada
:. as ações dominantes em cada fase da história.

 

O significado dos nomes

O significado dos nomes dos personagens é uma das coisas que chama a atenção e dá sentido à história. A família de judaítas é composta por Elimelec (= Meu Deus é Rei), sua mulher Noemi (= Agradável, Amável) e seus dois filhos Maalon (= Doença) e Quelion (= Agonizante). As esposas moabitas de Maalon e Quelion chamam-se Orfa (= Nuca, Costas) e Rute (= Amiga). Booz (= Pela Força) é quem se casa, em Belém, com Rute e o filho do casal chama-se Obed (= Servo). Noemi, quando desgostosa, se autodenomina Mara (= Amarga). Apenas um personagem importante não tem nome: é o “Fulano” de 4,1, que entra e sai da história anônimo porque se recusa a assumir suas responsabilidades[2].

 

As alusões a outras tradições bíblicas

Há coisas que vêm logo à memória como a origem dos moabitas em Gn 19 e outras são explicitamente citadas como Tamar (Gn 38), Raquel e Lia (Gn 35,23-26). Por outro lado, uma expressão como “Iahweh que visita o povo” (Rt 1,6) lembra Ex 3,16 e assim por diante.

Mas, quando terá sido, em Israel, que uma grave crise atingiu o país, que o protetor do povo não pôde mais protegê-lo, que Israel e Judá desapareceram, que não havia mais rei, nem capital, nem autoridade central autônoma? Ora, na época do exílio babilônico. Atacado pelo império babilônico, a população é parcialmente levada para terra estrangeira e distante, outros fogem para países vizinhos, enquanto Deus, que era a garantia do povo, é vencido, segundo a mentalidade da época, pelo deus babilônico. Depois de alguns anos, famílias fragilizadas voltam para a terra e se juntam aos que ali permaneceram, mas muitos desses judaítas, vivendo sob domínio persa, precisam se organizar com seus próprios recursos para sobreviver, fazendo valer suas antigas leis, sem ajuda de nenhuma autoridade.

Quer dizer: há muitas analogias entre a história dessa família e a história do povo de Israel, tal como esta é conhecida por diferentes tradições bíblicas. E isto não deve ser coincidência. Parece que o autor/a focaliza, de propósito, apenas uma família para que o leitor fique atento a uma situação mais ampla.

 

A estrutura do livro

O leitor atento vê nos quatro capítulos do livro quatro atos, etapas ou passos:
:. Quadro inicial: 1,1-5
falta: pão, terra, filho

:. Primeiro ato: 1,6-22
a) 1,6-7: introdução: o motivo da volta
b) 1,8-14: lamento de Noemi
c) 1,15-18: Rute + Noemi voltam a Belém
b’) 1,19-21: lamento de Noemi
a’) 1,22: conclusão: termina a volta

:. Segundo ato: 2,1-23
a) 2,1: introdução
b) 2,2: Rute e Noemi planejam a ação
c) 2,3: Rute respiga no campo
d) 2,4-7: diálogo de Booz com seus empregados sobre Rute
e) 2,8-14: conversa entre Booz e Rute
d’) 2,15-16: diálogo de Booz com seus empregados sobre Rute
c’) 2,17: Rute respiga no campo
b’) 2,18-22: Rute e Noemi revisam a ação
a’) 2,23: conclusão

:. Terceiro ato: 3,1-18
a) 3,1-6: Rute e Noemi planejam a ação
b) 3,7-8: Booz e Rute na eira
c) 3,9-13: conversa entre Booz e Rute
b’) 3,14-15: Booz e Rute na eira
a’) 3,16-18: Rute e Noemi revisam a ação

:. Quarto ato: 4,1-12
a)4,1-2: constituição do tribunal
b)4,3-4: Booz informa ao goel e este aceita o seu dever
c) 4,5-8: ge’ulla + levirato: o goel se recusa
b’) 4,9-10: Booz informa ao tribunal e aceita seu dever como goel
a’) 4,11-12: o tribunal ratifica a decisão de Booz

:. Quadro final: 4,13-17a
há: pão, terra, filho

Como se vê, estes quatro atos estão emoldurados por um quadro inicial de crise, no qual se descreve a falta de pão, terra e filho (1,1-5) e por um quadro final de solução da crise, onde se consegue pão, terra e filho (4,13-17a).

Como é possível, em quatro atos, inverter a situação do dramático início para o final feliz? Através da ação pensada e executada por duas viúvas em situação precária – uma já envelhecida, outra estrangeira: Noemi, a judaíta, mais experiente, que planeja cada passo; e Rute, a moabita, jovem e disponível para novo casamento, que executa com habilidade cada passo.

Certamente o leitor observou que cada ato está construído em ações paralelas, como a=a’, b=b’, c=c’, e que no centro de cada ato está o momento decisivo, sem paralelo, para o encaminhamento da história. Mas, observou também o leitor que, após os importantes terceiro e quarto atos, Rute e Noemi revisam o que acabou de acontecer e se preparam para o próximo ato? O autor/a do livro tem uma didática magnífica!

 

As ações dominantes em cada ato

Nos quatro atos que compõem o texto observamos outra coisa interessante: em cada um há uma ação dominante, descrita por um verbo que se repete em número preciso de vezes, o que nos leva a pensar em seu uso simbólico: 7 (3+4), 12 (3×4) e 14 (7×2).
Primeiro ato: 1,6-22: voltar (12 x) para a terra
Segundo ato: 2,1-23: respigar (12 x)
Terceiro ato: 3,1-18: resgatar (7 x)
Quarto ato: 4,1-12: resgatar (14 x) e perpetuar o nome (+ quadro final: 7 x)[3].

Ora, na Bíblia, o número 7 é cheio de significados. É a soma de 3 (céu) + 4 (terra), indicando perfeição, totalidade, tempo ou ação concluída. E o simbolismo, por derivação, alcança os múltiplos de 7, como o 14. Já o número 12, por ser múltiplo de 3 e 4 (3 x 4) tem igualmente grande importância. Para se ver o uso intensivo do simbolismo do número 7, é só ler, com atenção, Gn 1,1-2,4a.

 

2. O que é possível saber sobre a época em que foi escrito o livro de Rute?

A data

A data em que o livro foi escrito não é uma questão totalmente resolvida, mas há muitos argumentos em favor da época pós-exílica, quando Judá estava sob domínio persa. E não é só isso: além de ter sido escrito na época persa, o livro estaria tratando de problemas típicos da comunidade judaíta na época persa. Vários especialistas colocam o livro por volta de 450 a.C. Vamos observar alguns de seus argumentos[4]:

:. o início do livro, colocando a história na época dos juízes, é um artifício usado pelo autor/a para que o leitor entenda que se está falando de um tempo em que não existe uma monarquia em Judá. Se a história fosse situada “nos dias em que julgavam os juízes”, onde estão estes juízes no quarto ato do livro (4,1-12)? Nem mesmo se usa o verbo “julgar” (shâphat), na reunião em que se decide quem vai comprar a propriedade de Noemi e se casar com Rute

:. a migração da família de Elimelec para Moab e a volta de Noemi e Rute a Belém podem estar oferecendo ao leitor uma inteligente analogia com a situação de exílio babilônico e volta para Judá e cabem melhor na época persa do que em qualquer outra época

:. a lei do resgate da terra por um parente está em Lv 25, é a geu’lla. Já a lei do casamento do cunhado com a viúva sem filhos está em Dt 25,5-10 e é o levirato. Ora, no livro de Rute, as duas leis estariam interligadas, devendo ser executadas em conjunto (4,5). Isto é curioso, pois os textos das leis não falam nada disso. Tal ligação está parecendo muito mais uma proposta do autor/a do livro – para alcançar seu objetivo – do que a descrição de uma prática jurídica. Caberia esta exigência no pré-exílio? Dificilmente, segundo alguns comentaristas. Parece que estamos diante de uma releitura pós-exílica, muito particular, de leis tradicionais[5]

:. a temática central do livro de Rute – os muitos problemas que envolvem a construção da identidade judaica – é bastante semelhante à de Jonas e de Ester, típicos livros da época persa

:. embora alguns renomados autores, como André LaCocque[6], defendam a genealogia de Davi em 4,17b-22 como parte original do livro – mas historicamente fictícia – e sublinhem sua importância para o enredo, dificilmente isto é sustentável. Tudo indica ser este um acréscimo deliberado para ocultar a perspectiva feminina que percorre todo o livro. Isto fica ainda mais evidente quando se fala do nascimento de Obed. Ali, todo o referencial é o espaço das mulheres, como Rute, Noemi, as mulheres, as vizinhas (4,13-17a). Ora, a genealogia (na verdade, duas: uma curta, v. 17b, e uma longa, vv. 18-22) refere-se exclusivamente a um mundo masculino. Além de ser uma genealogia no final do livro e não no início, como de costume, se colocássemos Rute como antepassada de Davi e esse apêndice como o objetivo final do livro, como iríamos combinar isso com o restante da história? As razões deste acréscimo deliberado são discutidas, mas é possível que tenha ocorrido em função da “canonização” de Rute[7].

A partir destes e de outros argumentos possíveis, vamos pensar o livro de Rute como um escrito da época persa, situado por volta de 450 a.C. Do que decorre que o background a ser considerado aqui é a situação de Yehud na época de Esdras e Neemias. Yehud é o nome aramaico do Judá pós-monárquico.

 

O papel do clã na estrutura social tradicional

Analisando a situação de Yehud e a política imperial persa, Philip R. Davies diz que parece ter ocorrido um repovoamento de Judá na época do domínio persa (539-332 a.C.): pesquisas arqueológicas feitas em 1967 e 1968 revelam que os territórios circunjacentes das montanhas do norte e a Arabah mostram um incremento no número de assentamentos nesta época, enquanto que o próprio Judá apresenta um crescimento em torno de 25%. E perto destes assentamentos existem pequenos povoados sem muralhas. Estes resultados sugerem uma política persa de ruralização deliberada da província: na mesma linha de seus predecessores, as populações eram transportadas dentro do império, visando o desenvolvimento econômico, seja para a agricultura ou para a construção. Além disso, os persas teriam construído, nesta época, uma cadeia de fortalezas na região, indo do Mediterrâneo até o Jordão e em direção ao Negev, acompanhando as maiores rotas de comércio, o que sugere uma intensificação da presença militar persa em resposta à ameaça da Grécia à costa mediterrânea e às rotas comerciais. A missão de Neemias em Yehud no século V a.C. poderia ser melhor compreendida à luz desta realidade[8].

Mais informações sobre a organização social de Yehud no período persa viria da assim chamada comunidade do “Segundo Templo”, também apelidada pelos estudiosos, em alemão, de Bürger-Tempel-Gemeinde. Esta é basicamente uma unidade social que surge da união do pessoal do templo com os proprietários de terra, criando um sistema econômico autônomo. Esta Bürger-Tempel-Gemeinde cria uma sociedade dentro da sociedade, um restrito grupo privilegiado não coextensivo com a sociedade mais ampla da província. O problema é que existe muita discussão em torno desta tese e uma boa dose de incerteza se este tipo de organização realmente existiu em Yehud a partir da metade do século V a.C.[9].

Por outro lado, a sociedade israelita tradicional sempre se fundamentara no clã (mishpâhâ). O clã é constituído por um agrupamento de famílias ampliadas (bêth-‘abhôth) que moram na mesma região e se auxiliam tanto no setor social quanto no econômico, constituindo uma comunidade jurídica local.

Como características da mishpâhâ, podem se citadas:
:. é um grupo de descendência patrilinear
:. confere direitos corporativos de propriedade da terra
:. é unidade de convocação do exército (‘eleph= milhares…)
:. caracteriza-se pela residência comum (mesmo local) de seus membros
:. onde o direito de posse é transmitido por herança (nahalâ)
:. é formada de bêth-‘abhôth, famílias ampliadas
:. seus membros têm responsabilidade mútua (levirato, ge’ulla)
:. tem regras específicas de casamento (preferência pelo casamento entre primos patrilineares, dote)
:. é a responsável pelas festas cultuais e pela memória coletiva
:. integra uma tribo.

A característica básica é o casamento patrilinear entre primos primeiros. É o parentesco agnático (= relacionamento dos varões dentro do parentesco consanguíneo), que aparece:
:. na transferência da posse da terra por herança
:. no levirato
:. na ge’ulla (resgate da terra).

A casa e o clã unem-se através da relação agnática de parentesco, implicando reciprocidade e comportamento solidário[10].

 

Famílias com maior autonomia na época persa

O que acontece a partir da época persa é que a família (bêth-‘abh) vai tornar-se a unidade econômica fundamental, deixando o clã em segundo plano. Mas, por que isto acontece? Teria surgido algum progresso econômico que ameaçou as relações de parentesco da sociedade judaica?[11]

Yehud, com cerca de 2 mil km2 apenas, ocupa quase que só a região montanhosa da Judeia. Somente no nordeste é que o território se estende um pouco pela planície do Jordão. Ora, esta condição geográfica vai determinar a produção de alimentos, e de maneira pouco feliz para os seus habitantes. Pois na região montanhosa o cultivo depende das chuvas, sendo a irrigação possível apenas na planície. Daí estar comprometida a rentabilidade da lavoura, numa região de poucas chuvas. As encostas íngremes das montanhas do leste praticamente impossibilitam o aproveitamento da terra, enquanto que a região que desce para a planície costeira é mais favorável para o cultivo da oliveira, da videira e da figueira do que para o cultivo de cereais.

Ora, o cultivo da oliveira é menos trabalhoso do que o do trigo, exige menos mão de obra, e pode ser feito em terrenos ruins para o trigo, sendo, portanto, o mais vantajoso. Só que aí há um problema: este tipo de cultivo exige uma maior capacidade econômica do agricultor, já que a oliveira começa a dar lucro só vários anos depois de plantada. Do que resulta que o cultivo da oliveira depende da existência de uma aristocracia que disponha de recursos para investir na produção agrícola e da possibilidade de troca de derivados da azeitona pelo trigo.

Outra coisa que caracteriza esta época persa é a propagação da moeda em Yehud. As primeiras moedas citadas no AT são as dracmas persas de ouro, os dáricos, cunhadas por Dario I após 517 a.C. (Esd 2,69; Ne 7,70-71). A região usa também as moedas de prata de Atenas e da Pérsia e as moedas yehud, de prata, cunhadas localmente.

Por que Dario manda cunhar moedas?

Heródoto nos informa que no tempo de Ciro e de Cambises não havia determinações fixas sobre o tributo devido pelas províncias do Império Persa, mas que sob Dario há um sistema que permite calcular receitas e despesas e regularizar os tributos com a criação da moeda. Sabemos também que, dado a enorme extensão do Império Persa, não há soldados suficientes para guarnecer todas as províncias e, especialmente, para serem mandados para as batalhas. É necessário a contratação de grande quantidade de mercenários, de múltiplas nacionalidades. Para pagá-los o Estado precisa de dinheiro. E esse pagamento parece ter sido feito especialmente em prata, embora, neste caso, não haja unanimidade entre os pesquisadores[12].

Acontece que os moradores de Yehud não têm minas de prata. Assim, devem vender seus produtos agrícolas, excedentes ou não, e adquirir prata para pagar o tributo persa. É o que apresenta Ne 5,4, quando os agricultores se queixam da situação ao governador: “Tivemos que tomar dinheiro emprestado penhorando nossos campos e vinhas para pagarmos o tributo do rei”.

Esta situação econômica gera graves consequências sociais: os agricultores precisam diminuir o número de familiares que vivem da renda da terra e investir em produtos que deem mais lucro. Vendem cevada e derivados da oliveira e da videira, além do gado. Não havendo grande produção de cevada em Yehud, o que compensa é o cultivo de oliveiras e videiras. Para vender o excedente, entretanto, dependem de negociantes que tenham mais recursos. Isto é ruim para a solidariedade clânica, mas é bom para o império persa, que criou um mercado globalizado de uma amplitude nunca antes vivida pelos povos do Antigo Oriente Médio.

 

Conflito social na época de Neemias

Ne 5,1-5 testemunha o conflito social que explode em Yehud no século V a.C. Neste texto observamos três grupos de queixosos:[13]

:. o primeiro grupo penhora seus filhos para receber alimentos

:. o segundo hipoteca suas terras na época da fome

:. o terceiro grupo, por não ter pago os impostos, tem que vender seus filhos como escravos.

Há determinada sequência na formação da dependência: primeiro penhoram-se os filhos (escravidão), depois a terra. A penhora dos filhos está prevista nas leis de Ex 21,2-4 e Dt 15,12-18.

O caso do segundo grupo é o daqueles que possuem campos, vinhas, casas e oliveiras e têm que empenhá-los numa situação de penúria. Trata-se de uma penhora que transfere ao credor o usufruto da terra e não a sua propriedade. Ou seja: o credor tem direito aos produtos excedentes, ao dinheiro, ao trigo, ao vinho e ao óleo, como nos diz Ne 5,11. Mas, se os produtores começam a passar fome, correm o risco de serem vendidos como escravos permanentes.

É o mesmo caso denunciado por Mq 2,1 quando o profeta diz que os credores podem se apropriar com facilidade dos campos e das casas dos outros e, de fato, o fazem. Se o camponês que penhora sua produção não produzir o suficiente, acaba na escravidão. A penhora permite o ataque direto do credor à propriedade e à família do devedor. E o que é denunciado em Ne 5,6-12 é que os credores dos quais os judaítas dependem são seus irmãos de sangue e são pessoas de posses e classe alta.

Chamo a atenção para o fato de que a queixa dos agricultores é baseada no conceito de fraternidade/solidariedade, fundamentado na relação de parentesco (Ne 5,5: “ora, temos a mesma carne que nossos irmãos”. Desapropriação e escravidão não são compatíveis com esta ordem jurídica. O conceito de ‘âh = “irmão” não é puramente intelectual, mas designa os membros de uma sociedade solidária.

Neemias exige uma anistia, segundo a qual os credores devem renunciar às rendas das terras hipotecadas, excluindo, como consequência, a escravidão do judaíta ao estrangeiro. Isto se a lei tiver funcionado, o que não sabemos, pois o texto é muito condescendente com Neemias. Não houve, por exemplo, distribuição de terra para os sem-terra. Na verdade, a medida paliativa tomada por ele era necessária para que se mantivesse no poder, ameaçado por grave crise social.

 

3. Qual é a proposta do livro de Rute?

Propostas rejeitadas e/ou ignoradas pelo livro de Rute

A proposta do livro de Rute para a construção da identidade judaica na época persa não é a única transmitida pelas tradições bíblicas. Há pelo menos outras três que precisam ser consideradas:
:. Proposta de Zorobabel e Josué: reconstruir o Templo e o altar – narrada em Ag 1,1-15a; Zc 4,1-6a;10b-14; Esd 3,1-13
:. Proposta de Esdras: manter a pureza da raça e observar a Lei – narrada em Esd 9,1-10,44; Ne 8,1-18
:. Proposta de Neemias: reconstruir Jerusalém, devolver terras alienadas e perdoar dívidas de agricultores empobrecidos – Ne 5,1-19.

Ora, a primeira proposta, como narrada em Ageu, que vê Zorobabel (descendente de Davi, linhagem real) e Josué (descendente de Sadoc, linhagem sacerdotal) como aqueles que darão a Yehud prosperidade e autonomia, através da reconstrução do Templo como um centro que una a comunidade, não deu certo. Zorobabel desaparece, como pode ser visto em Zc 3,1-7 (teria sua função sido extinta ou foi substituído por oficiais persas?), e os sacerdotes sadoquitas, reconstruído o Templo por volta de 515 a.C. – que é, lembro, apenas uma das datas possíveis – farão o jogo de intermediários do domínio persa.

A proposta de Esdras de desfazer os casamentos de judaítas com mulheres estrangeiras é bastante polêmica, já que pode excluir da comunidade uma grande quantidade de pessoas ou causar um significativo transtorno social com a desestruturação de famílias inteiras. Quanto à observância da Lei, existe ainda hoje vivo debate sobre o conteúdo e extensão desta Lei imposta por Esdras e sobre seu uso como forma de controle persa. Mas estas são questões abertas, aguardando, por enquanto, respostas mais consistentes.

Já a proposta de Neemias é extremamente útil para consolidar o controle persa sobre a região. Creio ser bastante evidente que interessa ao governo persa, que conquistou também o Egito, ter uma região tão estratégica como a desta faixa de terra fortalecida e pacificada. Por outro lado, a solução de Neemias para o endividamento de agricultores parece ser, como vimos, apenas paliativa, muito mais voltada para uma resposta imediata para a crise social que ameaça a estrutura de poder do que para a consolidação a médio e longo prazos dos direitos dos empobrecidos.

Estas três propostas são rejeitadas ou, no mínimo, ignoradas pelo autor/a do livro de Rute. Jerusalém, o Templo, o culto, as autoridades centrais enviadas pela Pérsia nem são mencionadas no livro. Aqui, a camuflagem da data fictícia, ou seja, dizer que se está falando da “época dos juízes”, funciona bem.

A proibição de casamentos com estrangeiras decretado por Esdras é claramente desafiada. Rute não é apenas uma estrangeira: é uma moabita (Dt 23,4-7). E assim é insistentemente chamada no livro: “Rute, a moabita”! Uma moabita que jamais é designada na história como estrangeira residente (ger), merecedora de ajuda, pessoa com direitos (Dt 24,19–21), mas que é uma nokriyyâ, uma estrangeira sem nenhum direito (Rt 2,10).

 

Propostas possíveis

Como já assinalava Jack M. Sasson em artigo publicado em 1978, quem lida com o livro de Rute enfrenta o grande problema de decidir se a solução proposta pelo autor/a envolve além do resgate da terra, a ge’ulla, também o casamento com o cunhado, o levirato, e qual seria a relação entre estas duas leis. Esta questão divide os especialistas[14].

Observe: Rute não é judaíta, Booz não é seu cunhado, não há contrato de casamento (contrariando normas legais documentadas nos papiros de Elefantina[15]), o texto fala o tempo todo apenas de “resgate”, a exigência de casamento com Rute feita por Booz ao parente anônimo que tem direito de resgate da terra parece extraordinária…

Entre os defensores do levirato há propostas tão diferentes como: estaríamos lidando com uma lei anterior a Dt 25,5-10, que poderia ser chamada de “casamento redentor”, mais amplo que o levirato em sentido estrito; estaríamos, dizem outros, lidando com uma interpretação bem mais recente de Dt 25,5-10, uma espécie de midrash da antiga lei, aplicada aqui de maneira muito mais livre… Bem, há de tudo, menos consenso.

Pessoalmente, tenho dificuldades em ver no texto a aplicação da lei do levirato, independente da adaptação que o autor/a possa ter lhe dado. Porém, vou considerar a hipótese. E então, vejo na ação de Booz no capítulo 4, ao exigir o cumprimento simultâneo das leis do resgate e do levirato, um modo de proteger os judaítas socialmente marginalizados da exploração que a execução isolada da lei do resgate da terra estaria produzindo. Neste caso, a proposta do livro de Rute, ao unificar as duas leis, seria a de fortalecer o clã, contra a tendência global, gerada pela política imperial persa e por seus agentes de Jerusalém, de dar maior autonomia às famílias em detrimento da tradicional solidariedade clânica.

Por outro lado, vejo que há um elemento que ainda não foi considerado aqui de maneira adequada: ao longo da história, repetidas vezes, a atitude de hesed (= solidariedade, benevolência, misericórdia) se faz presente, sendo explicitamente citada em 3,10.

Quer dizer, parecem ter razão aqueles que insistem ser Rute um livro que se desvia da norma dominante – embora inserido na tradição bíblica – por ser ginocêntrico, por invocar Iahweh especialmente através das ações de solidariedade dos pobres que se organizam à margem do poderoso sistema imperial persa e por não impor restrições na busca da construção da identidade judaica, insistindo em fortalecer os desorganizados agricultores com a assimilação de estrangeiros/as, como a moabita Rute. Rute que, por sinal, só é aceita pela comunidade quando entra na “casa” de Booz (4,11). Em 4,13 Rute, finalmente, não é mais chamada de “moabita”.

Mas o objetivo do livro não é o louvor do personagem. Acredito que nem a habilidade de Rute, nem sua assimilação à comunidade judaíta sejam a meta do autor/a. Rute é um elemento estranho – a moabita, a estrangeira – que vem de fora, de modo extraordinário, para servir de espelho no qual os judaítas devem se mirar para enxergar sua própria condição, como já sugeriu um autor[16]. Diante das ações de Rute os judaítas tomam consciência de sua própria identidade, de suas necessidades, de suas limitações. Quando isto acontece, tendo cumprido seu papel, Rute desaparece. Na verdade, o estrangeiro/a, diz o autor/a da história, não destrói a identidade judaíta, como pensam os líderes de Jerusalém, mas a revela. Porém, isto só é possível porque Rute não existe, nunca existiu. Rute não é real. Rute é um personagem inventado. Rute é uma proposta. Rute é um paradigma.

 

Bibliografia

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>> Bibliografia atualizada em 27.10.2017

Artigos


[1]. Cf. estas propostas em DA SILVA, A. J. Leitura socioantropológica da Bíblia Hebraica. Para o surgimento da sociologia e da antropologia, cf. DA SILVA, A. J. O discurso socioantropológico: origem e desenvolvimento.

[2]. Os nomes dos personagens estão deste modo na Bíblia de Jerusalém (2002), que segue aqui a Bíblia Grega. Na Bíblia Hebraica temos Naomi, Mahlon, Quilion, Orpá, Boaz. Por isso, o significado dos nomes também não é muito preciso, variando conforme as raízes hebraicas das quais podem ter derivado.

[3]. Estas observações estão em vários estudos do livro de Rute. Posso citar, para fácil consulta, MESTERS, C. Como ler o livro de Rute: pão, terra, família. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1997 ou ZENGER, E. et al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 184-194.

[4]. Cf. ZENGER, E. et al. Introdução ao Antigo Testamento, p. 189-190.

[5]. Observo, entretanto, que vários autores não veem aqui a lei do levirato. Daí o condicional usado (estariam interligadas). Tratarei desta questão na terceira parte do artigo.

[6]. Cf. LACOCQUE, A. Le Livre de Ruth. Genève: Labor et Fides, 2004; versão inglesa: Ruth. Minneapolis: Fortress, 2004. E há autores, como BOVELL, C. Symmetry, Ruth and Canon. JSOT, Sheffield, Vol. 28, n. 2, p. 175-191, 2003, que insistem em ler todo o livro, não apenas por causa da genealogia, como uma defesa da restauração da dinastia davídica no pós-exílio, o que também deve ser recusado.

[7]. Cf. BAUCKHAM, R. The Book of Ruth and the Possibility of a Feminist Canonical Hermeneutic. BibInt, Leiden, Vol. 5, n. 1, p. 29-45, 1997; ZENGER, E. et al. o. c., p. 188-189.

[8] . Cf DAVIES, P. R. In Search of ‘Ancient Israel’. 2. ed. London: Bloomsbury T & T Clark, [1992] 2015, p. 77-80; FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 470-471.

[9]. Cf. GRABBE, L. L. A History of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: Vol 1, A History of the Persian Province of Judah. London: Bloomsbury T & T Clark, 2006, p. 143-145; GERSTENBERGER, E. S. Israel in der Perserzeit: 5. und 4. Jahrhundert v. Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 2005, p. 91-92 [em português: Israel no tempo dos persas: séculos V e IV antes de Cristo. São Paulo: Loyola, 2014].

[10]. GOTTWALD, N. K. As Tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, parte VI; KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, p. 22-28.

[11]. Uma boa exposição pode ser vista em KIPPENBERG, H. G., o. c. p. 40-50.

[12]. Cf. HERÓDOTO História III, 89-91. Brasília: Editora da UnB, 1985, p. 179-180.

[13]. Cf., para o que se segue, KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 53-72; GOTTWALD, N. K. The Expropriated and the Expropriators in Nehemiah 5. In: Concepts of Class in Ancient Israel. Atlanta: Scholars Press, 1999, p. 1-19.

[14]. Cf. SASSON, J. M. The Issue of Geu’lla in Ruth. JSOT, Sheffield, Vol. 3, n. 5, p. 52-64, 1978; HUBBARD, R. resenha de LACOCQUE, A. Ruth, RBL, 14/05/2005.

[15]. Cf. PERDUE, L. G. et al. Families in Ancient Israel. Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 1997, p. 104-162.

[16]. Cf. VAN WOLDE, E. Texts in Dialogue With Texts: Intertextuality in the Ruth and Tamar Narratives. BibInt, Leiden, Vol. 5, n. 1, p. 1-28, 1997.


Cosmogonias

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Histórias de criação e dilúvio na antiga Mesopotâmia

 

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RESUMO

Milhares de tabuinhas de argila com escrita cuneiforme foram recuperadas nas escavações arqueológicas da antiga Mesopotâmia. Algumas delas narram histórias de criação e dilúvio. Neste artigo vamos olhar mais de perto três dessas histórias: o Enuma Elish, a Epopeia de Gilgámesh e a Epopeia de Atrahasis. Algumas dessas histórias são chamadas hoje de cosmogonias.

ABSTRACT

Thousands of clay tablets with cuneiform writing were recovered in the archaeological excavations of ancient Mesopotamia. Some of them tell stories of creation and flood. In this paper I will look more closely at three of these stories: Enuma Elish, Gilgámesh, and Atrahasis. Some of these stories are now called cosmogonies.

 

Introdução

A planície situada nos vales dos rios Tigre e Eufrates, no Oriente Médio, é a antiga Mesopotâmia, nome que vem do grego e significa “terra entre rios”. Esta região foi habitada, em tempos remotos, por povos como os sumérios, os acádios, os assírios e os babilônios.

Os sumérios construíram sua civilização no sul da Mesopotâmia a partir do IV milênio a.C. Foram sucedidos pelos acádios e estes pelos assírios e babilônios. As escavações arqueológicas revelaram o uso da escrita cuneiforme desde o fim do IV milênio, por volta de 3200 a.C. Foram os sumérios os inventores da escrita. Além de toda a Mesopotâmia, a escrita cuneiforme foi empregada também em partes da Síria, da Ásia Menor e do Irã. Ela é chamada de “cuneiforme” porque os sinais gravados na pedra ou na argila têm a forma de cunha.

A assiriologia é o estudo das línguas, história e cultura das pessoas que usaram a escrita cuneiforme. As fontes para a assiriologia são todas arqueológicas, e incluem artefatos com ou sem textos. A maioria dos assiriologistas estuda os textos do Antigo Oriente Médio, gravados principalmente em tabuinhas de argila.

A assiriologia começou como uma disciplina acadêmica com a recuperação dos monumentos da antiga Assíria e a decifração da escrita cuneiforme, lá pela metade do século XIX. Hoje a assiriologia é estudada em muitas universidades mundo afora. O conhecimento das culturas do Antigo Oriente Médio é importante para estudantes de várias disciplinas, como, por exemplo, a Arqueologia, a História, os Estudos Clássicos e os Estudos Bíblicos.

O ano de 1842 marca o início da pesquisa arqueológica no Antigo Oriente Médio, pois foi nesta data que Paul Émile Botta, cônsul francês em Mossul, iniciou as primeiras escavações na região. Logo em seguida entrou em cena o inglês Austen Henry Layard. Ele descobriu a cidade de Nínive, capital assíria, e em 1850 encontrou mais de 20 mil tabuinhas cuneiformes da biblioteca do rei assírio Assurbanípal, que correspondem a cerca de 5 mil textos. Narrativas hoje consideradas importantes, como a Epopeia de Gilgámesh, o Enuma Elish e a Epopeia de Atrahasis, foram encontradas nestas escavações feitas por Layard e seu assistente Hormuzd Rassam. Nesta época os museus da Europa começaram a ser abastecidos com o material que para lá foi transportado. Em 1847, o Museu do Louvre, em Paris, inaugurou sua seção assíria, sendo seguido pelo Museu Britânico, em Londres, em 1853. Importantes nesta empreitada foram igualmente pesquisadores alemães e norte-americanos.

Duas forças motrizes levaram às primeiras escavações no Oriente Médio no século XIX: o colonialismo e a Bíblia.

A primeira foi o colonialismo, em seu esforço para manter o controle sobre a produção do conhecimento nas colônias e para se apropriar de recursos de todos os tipos em benefício dos colonizadores. No caso da arqueologia, o impacto do colonialismo é evidente na corrida para abastecer os museus da Europa com tesouros incomuns e exóticos e nas expedições que buscam catalogar e sistematizar o conhecimento de tudo o que for possível, como a fauna, a flora e os monumentos antigos. Assim, quando falamos da antiga Mesopotâmia, a ideia da pesquisa arqueológica que reconstrói o “berço da civilização [ocidental]” precisa ser problematizada. Sabemos hoje que o mito da “terra vazia” ou dos “recursos não utilizados” pelos nativos é um expediente típico do colonialismo: se houver espaços, recursos e patrimônio que os nativos não estejam usando por falta de interesse, ignorância ou atraso técnico, então o colonizador está autorizado a “descobrir” e se apropriar destas riquezas, que, de outro modo, acabariam perdidas ou desperdiçadas. Isto vale tanto para as riquezas materiais quanto para os recursos culturais. O processo de apropriação colonial do Oriente Médio que culminou no colapso do Império Otomano foi preparado por operações mercantis, financeiras e culturais, com destaque, entre estas últimas, para a arqueologia.

A segunda inspiração para a pesquisa arqueológica no Oriente Médio foi a Bíblia. Numerosos pesquisadores ocidentais viajaram para a região em busca dos lugares mencionados na Bíblia, buscando autenticar as histórias bíblicas. Deste modo, amparados pelo direito que lhes dava a herança religiosa judaico-cristã, legitimaram a apropriação dos recursos do território pela pesquisa arqueológica.

Entre os textos recuperados na antiga Mesopotâmia há algumas histórias que falam de criação e dilúvio. Neste artigo vamos olhar mais de perto três dessas histórias: o Enuma Elish, a Epopeia de Gilgámesh e a Epopeia de Atrahasis. Algumas dessas histórias são chamadas hoje de cosmogonias[1].

 

1. Cosmogonias mesopotâmicas

A palavra “cosmogonia” vem do grego kósmos = “organização”, “ornamento”, “o Universo”, e génesis = “origem”, “nascimento”, “geração”, e significa “a origem do mundo organizado”. Assim, cosmogonia tem a ver com mitos, histórias ou teorias sobre o nascimento ou a criação do Universo como algo organizado. Ou com a descrição da ordem original do Universo. O oposto do “mundo organizado”, ou seja, do cosmos, é o caos, a desordem, a catástrofe. O caos existe antes da criação e pode, eventualmente, voltar a existir com a destruição da criação. O dilúvio é um caso típico de caos. É comum caos e cosmos aparecerem na mesma narrativa, como duas faces da mesma moeda. Por isso falamos de “criação e dilúvio”.

Mas quando se fala em criação, os especialistas procuram definir os vários tipos encontrados na literatura do Antigo Oriente Médio, pois apenas dizer que os deuses provocam o aparecimento de seres é genérico demais. Há várias classificações possíveis, como a seguinte:

  • criação a partir do nada
  • criação a partir do caos
  • criação a partir de um ovo cósmico
  • criação a partir da separação dos deuses primordiais (como céu e terra, nos mitos sumérios)
  • criação a partir da emergência [ou aparecimento] (por ex., a terra como mãe, sem preocupação com o pai)
  • criação a partir de uma descida (como alguém que desce às profundezas à procura de um pedaço de terra).

Por isso precisamos distinguir entre as concepções de criação existentes nas cosmogonias do Antigo Oriente Médio e as modernas teorias sobre a origem do Universo, as cosmologias. Quatro são as diferenças principais, segundo R. J. Clifford: o processo, o produto, a maneira de narrar e o critério de verdade.

. o processo: as cosmogonias do Antigo Oriente Médio veem a criação segundo o padrão da atividade humana ou dos processos da natureza, não fazendo distinção entre natureza e humanidade, oferecendo, por isso, explicações psíquicas e sociais para fenômenos não humanos; as cosmologias modernas, entretanto, veem a criação como uma interação impessoal de forças físicas ao longo de bilhões de anos-luz, rejeitando, assim, a psicologização do processo.

. o produto: no Antigo Oriente Médio, do processo criativo resulta uma sociedade humana organizada para servir aos deuses, enquanto nas cosmologias modernas a criação diz respeito ao mundo físico, mesmo quando trata da vida, deixando de lado considerações de ordem cultural e comunitária.

. a maneira de narrar: no Antigo Oriente Médio, o processo de criação é narrado como um drama, com vontades em conflito que implicam uma estratégia, detalhes psicológicos que envolvem os personagens e levam a história a uma solução dramática, enquanto as cosmologias modernas explicam as origens de modo impessoal através da formulação de leis científicas.

. o critério de verdade: no Antigo Oriente Médio, as cosmogonias selecionam alguns aspectos do drama da criação e se concentram neles, de modo a tornar a história plausível: assim, o Enuma Elish está interessado na fundamentação divina da sociedade babilônica, enquanto a Epopeia de Atrahasis se concentra no equilíbrio das forças elementares necessárias para a sobrevivência dos seres humanos; as cosmologias modernas utilizam referências empíricas que são testadas cientificamente para verificar se explicam todos os dados observáveis, sendo rejeitadas como hipóteses suspeitas ou errôneas caso falhem neste teste.

Vamos olhar uma lista, deliberadamente parcial, de cosmogonias mesopotâmicas.

Textos sumérios

Enki e a ordem do mundoMarduk com seu dragão Mušḫuššu
Enki e Ninhursag (ou Mito do Dilmun)
Enki e Ninmah
Gilgámesh, Enkídu e o Mundo Inferior
História do dilúvio
Louvor à enxada
O debate entre a árvore e o junco
O debate entre a ovelha e o trigo
O debate entre o pássaro e o peixe
O debate entre o verão e o inverno
O tempo antes da criação

 

Textos acádicos

A história do dilúvio na Epopeia de Gilgámesh
A teogonia Dunnu
Atrahasis
Cosmogonia caldeia ou Fundação de Eridu
Debate entre dois insetos
Debate entre o boi e o cavalo
Debate entre o tamarindo e a palmeira
Dois encantamentos contra a ferrugem
Encantamento contra dor de dente
Enuma Elish
Refundação de um templo na Babilônia

Por que estes textos foram escritos e copiados?

Muitos destes textos eram controlados, mantidos e salvos por gerações de escribas profissionais. Além da escrita exercida como aprendizado, os escribas copiavam os textos para arquivos de templos e palácios. As cosmogonias preservadas por esta corrente da tradição são, neste sentido, “canônicas”.

Mas é importante observar que a descrição ou explicação da origem do cosmos não é o objetivo principal destes textos. Os relatos de criação e suas reproduções rituais são metáforas que descrevem e fundamentam a ordem política e religiosa da sociedade da época da produção e reprodução dos textos. Não basta ao rei assírio, por exemplo, ter o controle político e militar sobre o território e suas populações. O controle de um grande território exige um sistema ideológico que possa fundamentar a ordem monárquica em estruturas ideais e tradições religiosas. Ou seja, é necessário ter uma legitimação religiosa da ordem estabelecida e os relatos de criação servem para isso. A ordem estabelecida nas origens é a ordem mantida na atualidade do reino e vice-versa.

Os modos de narrar uma cosmogonia são variados.

Alguns textos têm uma temática cósmica, baseada na percepção de que céu e terra não são entidades separadas, mas interdependentes. A interdependência é explicada por uma cosmogonia, na qual o universo aparece através de um casamento cósmico em que o Céu fertiliza a Terra e de sua união nascem deuses, seres humanos, animais e vegetação. O cenário é o seguinte: há um período anterior à criação seguido por um dia de criação que inclui o surgimento de seres humanos e a difusão da civilização. Já outros textos têm uma temática ligada à terra, na qual a divindade dá vida à terra através de sua inundação ou inseminação com as águas subterrâneas que fluem pelos rios e canais. Os seres humanos são criados, neste caso, da argila da terra.

Como se vê na lista de cosmogonias mesopotâmicas acima, há alguns textos na forma de debate. O debate é um duelo de palavras entre dois protagonistas, personificando, geralmente, um par contrastante de animais, plantas, minerais, ocupações, estações do ano e até instrumentos e ferramentas feitos pelo homem. A discussão consiste principalmente em elogiar o valor e a importância de si mesmo e em rebaixar o oponente. O debate era frequentemente iniciado com a descrição da criação dos protagonistas, por isso estão em nossa lista de cosmogonias. É o caso do “Debate entre a árvore e o junco”. O texto descreve a origem dos dois debatedores e depois seu crescimento. Sendo as plantas enraizadas na terra e vivendo de sua fertilidade, o texto salienta a grande beleza da Terra e sua receptividade ao sêmen do Céu. Além disso, é interessante observar que como os sumérios não conheciam a abstração conceitual, o texto liga os debatedores às suas origens e, determinando seus destinos, faz da primeira ocorrência de um fato o substituto de sua definição abstrata. Por isso o debate não é entre uma árvore e um junco, mas entre a árvore e o junco. Quer dizer: é um duelo entre a primeira árvore e o primeiro junco, através do qual as características de todas as árvores e de todos os juncos aparecem.

Outro modo de narrar é através do encantamento. No “Encantamento contra dor de dente”, por exemplo, o texto era usado por um mágico que ia à casa da pessoa afetada. Ele examinava o paciente e através de um ritual descrevia o poder necessário para controlar o mal. Nesta ocasião o mágico lembrava que quando o mundo foi criado, ao verme coube comer a fruta podre, manifestando, assim, a esperança de que a divindade puna o verme que se desviou de seu destino original danificando o dente. É bom lembrar que um encantamento pode terminar com uma prece aos deuses para que restaurem a ordem da criação[2].

 

2. O Enuma Elish

2.1. Os personagens

  • Ánshar + Kíshar: representam, respectivamente, “a totalidade do mundo celeste” e “a totalidade doEságil: templo de Marduk em Babilônia. Pergamonmuseum, Berlin mundo terrestre”
  • Ánu (ou Ánum): é o deus do “céu”
  • Apsu + Tiámat: Apsu representa a água doce, subterrânea, da qual nascem fontes e rios; Tiámat é a água salgada do mar
  • Ea (ou Nudímmud) + Damkina: pais de Marduk
  • Énlil: antigo chefe do panteão mesopotâmico
  • Lahmu + Lahamu: entes monstruosos?
  • Marduk: o herói da narrativa, também chamado de Bel (= senhor)
  • Mummu: ministro e conselheiro de Apsu
  • Nannar: o deus lua
  • Qingu: esposo de Tiámat, líder de um grupo de monstros que combatem por Tiámat
  • Shámash: o deus sol

 

Os personagens principais organizados de outra forma:

  • Apsu + Tiámat
  • Lahmu + Lahamu
  • Ánshar + Kíshar
  • Ánu
  • Nudímmud (= Ea)
  • Marduk

 

2.2. Descoberta e publicação

O Enuma Elish foi recuperado na metade do século XIX pelo inglês Austen Henry Layard e seu assistente Hormuzd Rassam quando a biblioteca do rei assírio Assurbanípal foi descoberta em Nínive. Além de Nínive, cópias do Enuma Elish foram encontradas nas cidades assírias de Assur, Nimrud e Sultantepe e nas cidades babilônicas de Borsippa, Kish, Sippar, Úruk e na própria Babilônia. Quase uma centena de manuscritos gravados em tabuinhas de argila, em escrita cuneiforme e língua acádica foram preservados e hoje estão no Museu Britânico, em Londres. Não temos nenhuma narrativa completa, os textos estão fragmentados, mas é possível reconstruir a narrativa usando as cópias duplicadas.

A publicação do Enuma Elish foi feita por George Smith em 1876. O texto considerado padrão hoje, com transliteração do acádico e tradução em inglês, é o de Wilfred George Lambert[3].

 

2.3. A data da composição

O Enuma Elish está escrito em sete tabuinhas e contém cerca de 1100 linhas. As cópias mais antigas que temos podem ser datadas por volta de 900 a.C. E quando foi escrito? A data mais provável: durante o reinado de Nabucodonosor I (1125-1104 a.C.). Mas, sobre isso não há acordo. Estudiosos competentes já opinaram por datas que vão de 1700 a 750 a.C. Já se acreditou que o Enuma Elish pertencia ao período mais antigo da Babilônia, mas isto foi revisto. Uma das razões é que a supremacia de Marduk sobre os outros deuses, como aparece no Enuma Elish, não é testemunhada na época babilônica antiga. Como no conhecido Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.), por exemplo, onde Marduk aparece como supremo sobre a terra e não sobre os deuses. Somente no reinado de Nabucodonosor I da Babilônia é que a antiga tríade composta por Ánu, Énlil e Ea se submete completamente a Marduk. Além disso foi este rei que recuperou a estátua de Marduk que havia sido levada pelos elamitas quando Babilônia fora por eles saqueada uns 50 anos antes.

O nome Enuma Elish corresponde às primeiras palavras do texto e significa “Quando acima” ou “Quando no alto”. O Enuma Elish é considerado, às vezes, em uma ou outra publicação, como o texto padrão da criação da Mesopotâmia, mas o assunto central do texto não é a criação e sim a ascensão de Marduk como chefe do panteão babilônico. Por isto o título de “O poema babilônico da criação” não é adequado. Apesar disso, esta é a mais bem elaborada cosmogonia da antiga Mesopotâmia e são vários os elementos criados por Marduk e por seu pai Ea.

O Enuma Elish era recitado na Festa do Ano Novo na cidade de Babilônia. Esta festa, o Akitu, tem forte componente político[4].

 

2.4. Resumo do poema

O poema começa falando de um tempo antes da existência dos deuses quando as águas primordiais, Apsu e Tiámat, constituíam uma massa indiferenciada e nem céus, terra e deuses existiam. Então nasceram os deuses: os casais Lahmu e Lahamu, Ánshar e Kíshar; depois, este último casal gera o deus Ánu, que gera o deus Ea (= Nudímmud).

A atividade dos deuses provoca a hostilidade de Apsu, mas, antes que ele faça algo, Ea o mata com uma magia enquanto ele dorme e constrói um palácio sobre seu cadáver. Neste palácio Ea e Damkina geram Marduk, que se manifesta como mais poderoso do que qualquer um de seus antecessores. Por sua vez, o barulho dos jovens deuses não deixa Tiámat repousar e ela encarrega seu companheiro Qingu, no comando de um grupo de monstros, de destruir os deuses, dando-lhe a Tabuinha dos Destinos. Ánshar, o rei dos jovens deuses, convida Ánu e depois Ea para comandar a resistência dos deuses, mas ambos, amedrontados, se recusam. Ea propõe, então, a Marduk que combata Qingu. Ele aceita com a condição de que a assembleia dos deuses transfira para ele o poder de determinar os destinos. Isto feito, Marduk vence e mata Tiámat em combate singular, fazendo de seu corpo dividido as duas partes do universo, os céus e a terra. Marduk torna-se o chefe dos deuses e anuncia que Babilônia será sua morada, ordenando a Ea que faça do sangue do vencido Qingu uma nova criatura, o homem. Os deuses constroem para Marduk uma cidade e um templo e o honram com 50 nomes.

 

2.5. As sete tabuinhas explicadas

O texto do Enuma Elish pode ser lido em cinco etapas ou seções. O número romano indica a tabuinha e os números arábicos as linhas do poema[5].

a. I.1-20: teogonia ou nascimento dos deuses

As oito primeiras linhas falam de um tempo anterior ao surgimento dos deuses, quando céus, terra e deuses ainda não existiam. Não ter nome ou não ser nomeado significa não existir. Mas dois elementos já estão aí: Apsu e Tiámat. Eles são diferentes dos outros casais de deuses: seus nomes não trazem o d, de dingir, que vem ligado ao nome das divindades nos textos originais. Eles não aparecem em nenhuma outra lista de deuses e nem como chefes de nenhum panteão mesopotâmico. Eles são elementos primordiais. Apsu representa a água doce, subterrânea, da qual nascem fontes e rios; Tiámat é a água salgada do mar. Entretanto, dessa massa indiferenciada de águas, desse caos, começam a nascer os deuses. O poder é exercido primeiro por Apsu e, após a morte de Apsu, por Tiámat e Qingu. Este grupo está em contraste com o outro grupo divino constituído por Lahmu e Lahamu, Ánshar e Kíshar, Ánu, Ea e Marduk. Esta genealogia dos deuses, esta teogonia, tem um propósito: providenciar uma linhagem adequada para Marduk, o herói do poema.Enuma Elish (ca. 911-612 a.C.) - CDLI Literary 002718

1. Quando, no alto, os céus não haviam sido nomeados,
2. E embaixo, a terra por nome não fora chamada,
3. Existia já Apsu, o progenitor,
4. E também Tiámat, aquela que gerou a todos eles.
5. Quando suas águas eles misturavam,
6. Pastos não havia, pântanos não eram encontrados,
7. Quando nenhum dos deuses ainda existia,
8. Ninguém chamado pelo nome, nenhum destino determinado.

b. I.21-78: o primeiro confronto entre Apsu e Ea, sua solução pela vitória de Ea sobre Apsu e a construção de seu santuário

Diz o texto que a atividade dos novos deuses irrita o casal primordial e Apsu toma a decisão de destruí-los. Os jovens deuses, quando souberam dos planos de Apsu, ficaram consternados e sem ação. Mas Ea, o mais hábil dos deuses, mata Apsu com uma magia e constrói seu santuário sobre seu cadáver. Além de se apossar de sua coroa e de sua faixa, adquirindo o seu poder. Esta seção antecipa o grande conflito entre Marduk e Tiámat e prepara o terreno para a ascensão de Marduk a deus supremo do panteão babilônico. Marduk, entretanto, só vai aparecer na linha 80. Talvez a demora em mencionar Marduk tenha a função de criar um clima de suspense.

35. Apsu abriu sua boca,
36. E disse a Tiámat:
37. “O comportamento deles me perturbou profundamente,
38. Não consigo descansar de dia ou dormir de noite,
39. Vou destruir e quebrar o seu modo de vida,
40. Que reine o silêncio para que possamos dormir”.

59. Então aquele que sobressai em sabedoria, genial, cheio de recursos,
60. Ea, que tudo sabe, descobriu seus planos.
61. Ele elaborou e estabeleceu um plano de mestre,
62. E o executou de forma magistral, com sua magia

69. Ele amarrou Apsu, ele o matou.

71. Ele fez sua morada sobre o Apsu.

77. Ele estabeleceu lá a sua residência,
78. Ea e Damkina, sua esposa, habitaram lá em esplendor.

c. I.79-VI.120: o segundo confronto, entre Marduk, o filho de Ea, e Tiámat, a companheira de Apsu, e sua solução

Marduk, que nasce nesta residência no Apsu, filho de Ea e Damkina, é caracterizado como o mais sábio e forte dos deuses, poderoso desde criança, vestido com a aura de dez deuses. Um deus em tudo superior aos outros deuses.

87. Seu corpo era magnífico, seu olhar poderoso,
88. Nasceu viril, era poderoso desde o começo.
89. Quando Ánu, seu avô, o viu,
90. Ele se alegrou e sorriu, seu coração se encheu de alegria.
91. Ánu tornou-o perfeito, sua divindade era notável,
92. Era muito alto, mais alto do que qualquer um,
93. Seus membros eram incompreensivelmente maravilhosos,
94. Impossível entender, difícil até de olhar.

Entretanto, o jovem Marduk brincando com os quatro ventos, presente de seu avô Ánu, e com a poeira que ele mesmo [ou o avô?] criou, perturbava Tiámat com tempestades. Após ouvir as queixas dos deuses ancestrais, Tiámat decide reagir e quer vingar a morte de seu antigo companheiro Apsu. Cria um grupo de 11 deuses monstruosos munidos de armas poderosas e coloca seu segundo companheiro, o monstro Qingu, no comando deste temível exército para enfrentar os jovens deuses. A Tabuinha dos Destinos é dada a Qingu e suas ordens não podem mais ser revogadas. Observo que a ideia de monstros saindo de Tiámat é esperada, pois o mar, que ela representa, era, no imaginário da época do Enuma Elish, povoado por criaturas fantásticas e monstruosas.

133. Mãe Hubur, que forma tudo,
134. Forneceu armas invencíveis e deu à luz serpentes gigantes.
135. Tinham dentes afiados, eram implacáveis. . . ,
136. Com veneno em vez de sangue, ela encheu seus corpos.

141. Ela criou a Serpente, o Dragão, o Herói Peludo
142. O Grande Demônio, o Cão Selvagem e o Homem Escorpião.
143. Demônios ferozes, o Homem Peixe e o Touro Poderoso,
144. Portadores de armas implacáveis, sem medo diante da batalha.
145. Seus comandos eram tremendos, para não resistir.
146. No total, ela fez onze desse tipo.
147. Entre os deuses, seus descendentes, reunidos em assembleia,
148. Ela exaltou Qingu e enalteceu-o entre eles.

157. Ela lhe deu a Tabuinha dos Destinos e a prendeu em seu peito,
158. (dizendo:) “Sua ordem não pode ser alterada; que o comando que sai de tua boca seja firme”.

A assembleia dos deuses – Ánshar e Kíshar, Ánu e Ea e outros deuses não especificados – é incapaz de enfrentar Tiámat como antes tinha enfrentado Apsu. Quando Ea e Ánu se mostram incapazes, Marduk é indicado. A assembleia proclama sua supremacia durante a vigência da emergência. Os deuses lhe dão o poder de destruir e criar, prerrogativas reservadas somente aos grandes deuses. As demoradas deliberações feitas pelos deuses sobre como enfrentar Tiámat tomam as tabuinhas 2 e 3. Somente na tabuinha 4 Marduk é confirmado como líder dos deuses. Ali se diz:

1. Eles prepararam um assento principesco para ele,
2. E ele se sentou diante de seus pais para receber a realeza.
3. (Eles disseram:) “Você é o mais honrado entre os grandes deuses,
4. Seu destino é inigualável, seu comando é como o de Ánu.

7. Doravante sua palavra não será anulada,
8. Está em suas mãos engrandecer e rebaixar.

10. Nenhum deus ultrapassará os limites que você traçar.

13. Você é Marduk, nosso vingador,
14. Nós lhe demos a realeza sobre todo o universo.

16. Que tua arma não falhe, que destrua teus inimigos”.

31. (Eles disseram:) “Vá, corte a garganta de Tiámat,
32. E deixe os ventos espalhar seu sangue para dar a notícia”.
33. Os deuses, seus pais, decretaram o destino de Bel,
34. E o colocaram na estrada, no caminho da prosperidade e do sucesso.

Marduk prepara suas armas para a batalha: arco, rede, clava, ventos destruidores, relâmpagos e um carro puxado por quatro temíveis animais.

61. Em seus lábios trazia um feitiço,
62. Em sua mão uma planta para combater o veneno.

Na descrição da batalha entre Marduk e Tiámat se diz, entre outras coisas:

93. Tiámat e Marduk, o sábio entre os deuses, se enfrentaram,
94. Eles se envolveram na batalha, eles se agarraram no combate.
95. Bel jogou sua rede e capturou-a,
96. Ele jogou no rosto dela o vento destruidor que trazia consigo,
97. Tiámat abriu a boca para o engolir,
98. (Porém Marduk) manejou o vento destruidor de modo que ela não pode fechar os lábios.
99. Ventos ferozes encheram sua barriga,
100. Suas entranhas incharam e ela abriu a boca.
101. Ele disparou uma flecha e perfurou sua barriga,
102. Ele rasgou sua barriga e partiu seu coração,
103. A amarrou e acabou com sua vida.
104. Derrubou seu cadáver e ficou de pé sobre ele.
105. Depois de ter matado Tiámat, a líder,
106. (Marduk) dispersou a assembleia, dissolveu suas tropas.

119. Quanto a Qingu, que havia subido ao poder entre eles,
120. Ele o amarrou e o contou entre os deuses mortos.
121. Ele retirou dele a Tabuinha dos Destinos, imprópria para ele,
122. Ele a selou com um selo e a fixou em seu próprio peito.

Após sua vitória, Marduk, que tem sua supremacia garantida para sempre, corta em dois o cadáver de Tiámat e dele faz o universo. Diz o texto:

137. Ele a dividiu em duas partes como um peixe seco:
138. Com uma metade ele fez os céus,
139. Ele esticou sua pele e colocou guardas,
140. E lhes ordenou que não deixassem escapar as águas.

Agora as moradas dos deuses estão assim distribuídas: Ánu no céu, Énlil na terra e Ea no Apsu.

146. Ele instalou em seus santuários Ánu, Énlil e Ea.

Em seguida, já na tabuinha 5, diz o texto que Marduk cria constelações, estabelece os limites do ano, configura doze meses, modela sua própria estrela Neberu, faz a lua e confia-lhe a noite e determina suas fases e ciclos. Observo que o autor do Enuma Elish está mais preocupado em fixar o calendário do que expor princípios astronômicos: com as estrelas ele regulamenta o ano; com a lua, o mês; com o sol, o dia.

Marduk cria também os fenômenos atmosféricos da saliva de Tiámat: nuvens, vento, chuva e névoa. Abre fontes subterrâneas e faz o Tigre e o Eufrates fluírem dos olhos de Tiámat. Dos seios de Tiámat faz montanhas e faz a amarração que mantém unidos as três partes do universo, ou seja, o céu, a terra e o Apsu. O texto é de difícil compreensão, mas parece que esta amarração é feita com a cauda de Tiámat. E, em curta descrição, se diz que Marduk faz, com a outra metade de Tiámat, a terra. Depois de dar a seu avô Ánu a Tabuinha dos Destinos, Marduk pega os 11 monstros por ele capturados, esmaga suas armas, amarra as criaturas e delas faz estátuas que coloca no Portão do Apsu como um sinal.

1. Ele formou estações celestiais para os grandes deuses,
2. E criou constelações, as imagens das estrelas.
3. Ele nomeou o ano, marcou divisões,
4. E designou três estrelas para cada um dos doze meses.

12. Ele criou Nannar, confiando-lhe a noite.

Na sequência, Marduk unge seu corpo com óleo de cedro, veste um traje principesco, usa uma coroa, é descrito como possuindo atributos reais. Doravante sua supremacia está garantida. Ele é proclamado rei pelos deuses. Lugaldimmerankia, como o chamam agora, é um título sumério e significa “o rei dos deuses do céu e da terra”.

107. Lahmu e Lahamu…,
108. Abriram a boca e disseram aos deuses Igigi:
109. “Antes Marduk era nosso filho amado,
110. Agora ele é seu rei, fiquem atentos às suas ordens.
111. Em seguida, todos falaram juntos:
112. “Seu nome é Lugaldimmerankia, confiem nele”.

Dirigindo-se a seus progenitores, Marduk anuncia seus planos. A primeira coisa que fará é construir um templo para si mesmo. Um templo situado acima do Apsu e abaixo do céu. O templo será construído na cidade de Babilônia. Ora, sabemos que na geografia cósmica de Babilônia, a cidade e o templo de Marduk nela construído, o Eságil, estão no centro do universo. O poema faz uma reinterpretação do nome Babilônia, que significa “porta do deus”, como “as casas dos grandes deuses”.

129. Eu quero pronunciar seu nome: Babilônia, “As casas dos grandes deuses”.

No começo da tabuinha 6 é apresentada outra brilhante ideia de Marduk: a criação da humanidade para que as pessoas trabalhem e os deuses possam descansar. A criação da humanidade é uma obra realizada por seu pai Ea, que a executa com o sangue de Qingu. Em agradecimento os deuses constroem Babilônia e o Eságil, o santuário de Marduk, como uma replica do Apsu.

5. Vou recolher sangue e formar ossos,
6. Vou fazer Lullu, cujo nome será “homem”,
7. Vou criar Lullu, o homem,
8. Para que sobre ele recaia o trabalho dos deuses e eles possam descansar”.

33. De seu [Qingu] sangue, ele [Ea] criou a humanidade,
34. Sobre ela impôs as obrigações dos deuses, e delas os libertou.

d. VI.121-VII.144: Os deuses proclamam Marduk como deus supremo atribuindo-lhe 50 nomes

Pela localização e extensão, os nomes dados a Marduk constituem o clímax da epopeia, embora o leitor moderno possa até achar mais interessante a vitória de Marduk sobre Tiámat e a criação da humanidade. Obviamente nenhum deus precisava de 50 nomes para ser identificado. O que conta são os significados teológicos dos nomes. Especialmente importante é Énlil dando-lhe o próprio título de “senhor das terras” (VII.136) e Ea atribuindo-lhe o seu nome, Ea (VII.140).

121. Recitemos seus cinquenta nomes,
122. Que se conheça seu caráter, assim como seus atos.

143. Com a palavra “Cinquenta”, os grandes deuses (o chamaram)
144. Pronunciaram seus cinquenta nomes e lhe deram uma condição incomum.

e. VII.145-162: epílogo ou exortação para que se estudem os nomes e se honre Marduk

145. Que sejam lembrados e que as pessoas importantes os expliquem,
146. Os sábios e os eruditos devem falar sobre eles,
147. Um pai deve repeti-los e ensiná-los a seu filho,
148. É preciso explicá-los ao pastor e ao vaqueiro,
149. Se alguém não for negligente com Marduk, o Énlil dos deuses,
150. Possa sua terra florescer e ele mesmo prosperar.

161. Este é o poema de Marduk,
162. Aquele que derrotou Tiámat e assumiu a realeza.

Andrea Seri observa que o Enuma Elish é um texto que pode ser lido em diferentes níveis. Tem um enredo de uma história de sucesso: uma teogonia, uma batalha épica com magia, monstros, criaturas terríveis, um deus heroico, a criação do universo, assim como a narrativa da origem de Babilônia e do templo de Marduk. O tom dramático do poema torna fascinante sua leitura no Festival do Ano Novo na Babilônia.

Mas é necessário sublinhar que o Enuma Elish contém várias criações que servem a diferentes propósitos e que são introduzidas progressivamente ao longo do texto. O surgimento dos deuses no começo do poema prepara o palco para o nascimento de Marduk. Seu pai Ea realiza a primeira criação artificial ao matar Apsu e construir nele sua morada. Para lutar contra Tiámat, Marduk faz, com habilidade, armas poderosas. Ele cria o mundo matando Tiámat e usando seu corpo como matéria-prima, assim como dá a Ea a ideia de criar a humanidade. Enfim, as várias criações no Enuma Elish permitem que Marduk, agora com cinquenta nomes, assuma o lugar mais alto no panteão babilônico que antes era de Énlil. Em uma palavra: Marduk se torna Énlil[6].

 

3. A Epopeia de Gilgámesh

O texto mais completo da Epopeia de Gilgámesh foi recuperado a partir da metade do século XIX na biblioteca do rei assírio Assurbanípal, mas outras cópias foram encontradas em acádico e sumério em Assur, Nimrud, Sultantepe, Sippar, Ur, Úruk e outras localidades do Antigo Oriente Médio. Em 1872 a leitura da narrativa do dilúvio na Epopeia de Gilgámesh feita por George Smith, em Londres, causou impacto.

Esta versão clássica da Epopeia de Gilgámesh, com o nome de “Ele que o abismo viu”, suas primeiras palavras, foi composta por Sin-léqi-unnínni por volta de 1200 a.C. e está gravada em 12 tabuinhas, sendo a última apenas uma cópia de parte de outra composição bem conhecida, Gilgámesh, Enkídu e o Mundo Inferior.

A atribuição do texto a Sin-léqi-unnínni encontra-se em catálogo redigido no primeiro terço do primeiro milênio a.C. e achado em Nínive, no qual se lê: “Série de Gilgámesh: da boca de Sin-léqi-unnínni”. O autor trabalhou com uma tradição muito antiga e muito difundida na antiga Mesopotâmia, pois há fragmentos de uma versão babilônica de 1700 a.C. e poemas em sumério sobre Gilgámesh do fim do III milênio a.C.

Atualmente o texto acadêmico padrão da Epopeia de Gilgámesh é o de Andrew R. George, publicado em 2003[7].

 

3.1. Resumo do poema

A Epopeia de Gilgámesh tem dois prefácios: o primeiro (1,1-28) é o mais recente. O segundo (1,29-62), incorporado na mais recente, é da versão babilônica antiga.

1. Ele que o abismo viu, o fundamento da terra,Gilgámesh (ca. 911-612 a.C.) - CDLI Literary 002873.05
2. Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo,
3. Gilgámesh que o abismo viu, o fundamento da terra,
4. Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo,
5. Explorou de todo os tronos,
6. De todo o saber, tudo aprendeu,
7. O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu,
8. Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era.
9. De distante rota volveu, cansado e apaziguado,
10. Numa estela se pôs então o seu labor por inteiro.
11. Fez a muralha de Úruk, o redil,
12. E o sagrado Eanna, tesouro purificado.

29. Proeminente entre os reis, herói de imponente físico,
30. Valente rebento de Úruk, touro selvagem indomável:
31. Vai à frente, é o primeiro,
32. Atrás vai e protege os irmãos.
33. Margem firme, abrigo da tropa,
34. Corrente furiosa que destroça baluartes de pedra.
35. Amado touro de Lugalbanda, Gilgámesh perfeito em força,
36. Cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun.
37. Alto é Gilgámesh, perfeito, terrível:
38. Abriu passagens nas montanhas,
39. Cavou cisternas nas encostas do monte,
40. Atravessou o mar, o vasto oceano, até onde nasce Shámash,
41. Palmilhou os quatro cantos, em busca da vida,
42. Chegou, por sua força, ao remoto Uta-napíshti,
43. Repôs os templos arrasados pelo dilúvio,
44. Instituiu ritos para toda a humanidade.
45. Quem há que a ele se iguale em realeza
46. E como Gilgámesh diga: este sou eu, o rei?
47. A Gilgámesh, quando nasceu, renome lhe deram:
48. Dois terços ele é um deus, um terço é humano.

J. L. Brandão assinala que a narrativa se desenvolve, a partir de 1,63, ao longo das 11 tabuinhas, em 4 movimentos[8]:

a. Os excessos de Gilgámesh e a criação de Enkídu

O arrogante e poderoso Gilgámesh, rei de Úruk, dois terços divino e um terço humano, filho de um rei, Lugalbanda, e de uma deusa, Nínsun, não deixa em paz os jovens pois vive a desafiá-los para feitos esportivos, e, por outro lado, atormenta as famílias com seu insaciável apetite sexual por todas as jovens da cidade. Para rivalizar com Gilgámesh, Enkídu é criado da argila pela deusa mãe Bélet-Íli. Enkídu, criado selvagem e vivendo entre os animais, será humanizado e civilizado pelas ações da prostituta Shámhat, através do sexo, da culinária e da vida em sociedade, passando a viver em Úruk. Após uma feroz luta que acaba sem vencedores, Gilgámesh e Enkídu tornam-se grandes amigos, sendo esta amizade narrada com significativos tons eróticos.

b. Os feitos de Gilgámesh e Enkídu

Os dois amigos saem em busca de glória. Em uma expedição à floresta de cedros enfrentam o monstruoso guardião da mata, Húmbaba e levam madeira para a cidade. Após este feito glorioso, Gilgámesh desperta o desejo da deusa do amor Ishtar, que se lhe oferece como amante. Porém ele a recusa e dela desdenha como alguém que só traz infelicidade a quem dela se aproxima. Essa recusa leva a deusa a mandar contra Úruk o touro do céu para devastá-la. Mas, sempre em consequência da cooperação dos dois amigos, o touro é trucidado.

c. Enfermidade e morte de Enkídu. Gilgámesh busca a imortalidade

Os deuses decretam a morte de Enkídu em razão da morte do touro do céu. No leito de morte, Enkídu se lamenta e lança maldições. Após a morte de Enkídu, entretanto, o lamento é de Gilgámesh que não se conforma com a morte do amigo, pois reconhecendo sua própria mortalidade através da morte de Enkídu, passa a questionar o sentido da vida e o valor das realizações humanas em face do fim. E Gilgámesh parte para regiões remotas, para além do mundo dos homens, onde vive Uta-napíshti, sobrevivente do dilúvio, em busca do sentido da vida e, se possível, da imortalidade. Enfrentando vários perigos, encontra uma taberneira que lhe indica como chegar até Uta-napíshti. Após narrar como se deu o dilúvio, Uta-napíshti submete Gilgámesh a uma prova, na qual ele falha, mas também lhe indica onde achar uma planta que dá a quem a possui a eterna juventude. Entretanto uma serpente rouba-lhe a planta. Com as esperanças destruídas, Gilgámesh percebe que sua jornada foi em vão.

d. O retorno do herói a Úruk

Uta-napíshti o manda de volta para Úruk, com o barqueiro Ur-shánabi, onde ele admira as grandes muralhas que construíra. No final de sua jornada Gilgámesh não consegue a imortalidade, mas adquire sabedoria ao reconhecer os limites da condição humana. Na versão antiga encontra-se uma bela resposta da taberneira Shidúri à dor de Gilgámesh, que não foi aproveitada no poema de Sin-léqi-unnínni, mas que vale a pena considerar:

Gilgámesh, por onde vagueias?
A vida que buscas não a encontrarás:
Quando os deuses criaram o homem,
A morte impuseram ao homem,
A vida em suas mãos guardaram.

E Shidúri aconselha a Gilgámesh que aproveite a vida presente e seus prazeres enquanto pode. Mas há uma coisa interessante: como dito acima, este texto não está na versão clássica do poema, pois para Sin-léqi-unnínni o consolo de viver a alegria presente não é suficiente para vencer a fatalidade da morte. A verdadeira sabedoria é revelada, mais do que vivida. É a sabedoria de um “segredo” antigo, um “mistério” dos deuses, de tempos antigos, anterior ao dilúvio. A sabedoria adquirida por Gilgámesh na versão clássica não é a recomendada por Shidúri, mas a revelada por Uta-napíshti e gravada para a posteridade. É uma sabedoria transmitida pela palavra escrita, gravada na pedra (estela) por Gilgámesh, gravada nas tabuinhas de argila por Sin-léqi-unnínni.

 

3.2. A narrativa do dilúvio

Na tabuinha XI temos a narrativa do dilúvio feita por Uta-napíshti. Os especialistas concordam que o texto é uma adaptação de narrativa mais antiga, a Epopeia de Atrahasis. O texto pode ser lido em seis etapas:

a. Os deuses decidem em segredo mandar o dilúvio mas Ea o revela a Uta-napíshti

Uta-napíshti começa o seu relato dizendo que os deuses Ánu, Énlil, Ninurta, Énnugi e Ea, juraram segredo sobre  seu plano de mandar o dilúvio. Mas Ea revelou o plano deles para Uta-napíshti.

9. Descobrir-te-ei, Gilgámesh, palavras secretas
10. E um mistério dos deuses a ti falarei:
11. Shurúppak, cidade que tu conheces,
12. Cidade que às margens do Eufrates está
13. A cidade, ela é antiga e deuses dentro tem.
14. Ao proporem o dilúvio comandar a seu coração os grandes deuses,
15. Jurou seu pai Ánu,
16. Seu conselheiro, o guerreiro Énlil,
17. Seu mordomo, Ninurta,
18. Seu inspetor dos canais, Énnugi.
19. O príncipe Ea com eles sob jura estava,
20. Mas suas palavras repetiu à cerca de caniços:
21. Cerca! cerca! parede! parede!
22. Cerca, escuta! parede, resguarda!

Ea  diz a Uta-napíshti para construir um barco e explica:

23. Homem de Shurúppak, filho de Ubara-Tútu,
24. Derruba a casa, constrói um barco,
25. Abandona a riqueza e escolhe a vida,
26. As posses despreza e tua vida leva,
27. Conserva a semente de tudo que vive no coração do barco!
28. O barco que construirás tu:
29. Seja proporcional seu talhe,
30. Seja igual sua largura ao comprimento,
31. Como o Apsu seja sua cobertura!

Uta-napíshti executa as ordens de Ea. Ao povo de Shurúppak ele diz que Énlil o odeia e ele não pode mais morar na cidade ou pisar no território de Énlil e que por isso irá para o Apsu para viver com Ea, seu senhor, que lhes dará chuva abundante, muitas aves e peixes e uma rica colheita de trigo e pão.

b. Construindo e lançando o barco

Os trabalhadores reuniram-se no portão de Atrahasis, construíram e abasteceram o barco. Então Uta-napíshti embarcou tudo o que tinha e, como determinara o deus Shámash, a porta foi selada:

81. Quanto eu tinha embarquei nele,
82. Quanto tinha embarquei de prata,
83. Quanto tinha embarquei de ouro,
84. Quanto tinha embarquei da semente de tudo que existe:
85. Fiz subir ao coração do barco toda minha família e meu clã,
86. O rebanho da estepe, os animais da estepe, os filhos dos artesãos.

95. Ao que calafetou o barco, Púzur-Énlil, o marinheiro.

c. A tempestade

Ao amanhecer uma nuvem negra surgiu no horizonte e, dentro dela, estava Ádad, senhor da tempestade, enquanto os arautos da tempestade Shúllat e Hánish iam à sua frente por montanhas e planícies. Tudo virou escuridão, os diques transbordaram, o vento soprou violento e as pessoas já não se reconheciam na torrente. Até os deuses ficaram apavorados com o dilúvio e se encolheram num canto como cães assustados. A inundação e o vento duraram seis dias e sete noites. A terra foi destruída como um jarro de barro. As pessoas, como peixes, boiavam nas águas.

128. Seis dias e sete noites
129. Veio vento, tempestade, vendaval, dilúvio.

d. Calma após a tempestade

No sétimo dia a tempestade passou, tudo ficou silencioso e Uta-napíshti viu que a humanidade se transformara em barro. Então ele chorou. Mas o barco encalhou no monte Nímush e ali ficou por vários dias. No sétimo dia, Uta-napíshti soltou uma pomba que voou, mas não achando onde pousar, voltou. Ele soltou uma andorinha, que também voltou. Então ele soltou um corvo, e ele não voltou ao barco.

130. O sétimo dia ao romper,
131. Amainou o vendaval, amainou o dilúvio sua guerra.
132. O que lutou como em trabalho de parto descansou, o mar.
133. Calou-se a tormenta. O dilúvio estancou.
134. Olhei o dia: posto em silêncio
135. E a totalidade dos homens tornara-se barro.

e. O sacrifício

Uta-napíshti oferece, em seguida, um sacrifício aos deuses que, atraídos por seu perfume, se reúnem como moscas ao seu redor. Os deuses conversam, então, sobre a responsabilidade do dilúvio e o extermínio dos humanos.

161. Os deuses sentiram o aroma,
162. Os deuses sentiram o doce aroma,
163. Os deuses, como moscas, sobre o chefe da oferenda amontoaram-se.

f. Uta-napíshti e sua esposa recebem a imortalidade e são levados para longe

Énlil, inicialmente indignado pela sobrevivência de um ser humano, acaba concordando em dar a Uta-napíshti e sua esposa a imortalidade e em estabelecê-los em terras longínquas. Énlil os abençoa, dizendo:

203. Antes Uta-napíshti era parte da humanidade,
204. Agora Uta-napíshti e sua mulher se tornem como nós, os deuses!
205. Resida Uta-napíshti ao longe, na boca dos rios!
206. Levaram-nos para longe, na boca dos rios puseram-nos.

 

4. A Epopeia de Atrahasis

4.1. O que é?

A Epopeia de Atrahasis (Supersábio) foi preservada em acádico em três tabuinhas, numa versão escrita pelo escriba Kasap-Aya no reinado de Ammi-Saduqa (1646-1626 a.C.), bisneto de Hammurabi. Atrahasis tem 1245 linhas. Outros manuscritos do mesmo período ou posteriores, dos períodos babilônicos médio e recente, assim como do assírio recente, concordam com esta versão de Kasap-Aya, embora existam algumas diferenças.

As tabuinhas, que estão no Museu Britânico, só foram totalmente publicadas em 1969 por W. G. Lambert e A. R. Millard. Ainda existem lacunas e muitos dados controvertidos são tema constante de debate entre os assiriólogos[9].

 

4.2. Resumo do poema

A Epopeia de Atrahasis começa falando de um tempo antes de existir a humanidade, quando o universo é dividido entre os três deuses maiores: Ánu, controla o céu; Énlil, a terra; Enki, o Apsu ou abismo. Há também uma série de divindades menores, os Igigi, que têm que trabalhar para os deuses mais antigos e superiores, os Anunnaki, ficando responsáveis ​​pela manutenção da terra, escavando cursos de água, canais e os rios Tigre e Eufrates. Na tabuinha I se lê:

1. Quando os deuses eram homens,
2. Eles fizeram trabalho forçado, eles suportaram trabalho penoso,
3. Grande, na verdade, foi a labuta dos deuses,
4. O trabalho forçado era pesado, a miséria demais:
5. Os sete grandes Anunnaki sobrecarregaram os deuses Igigi com trabalho forçado.

23. Os deuses Igigi escavaram cursos de água,
24. Canais eles abriram, a vida da terra.
25. Os Igigi escavaram o rio Tigre,
26. E, em seguida, o Eufrates.
27. Nascentes abriram das profundezas,
28. Poços … eles estabeleceram.

Insatisfeitos com o trabalho pesado, os Igigi rebelam-se e sugerem criar seres humanos para cuidar da terra para eles, bem como para fornecer os deuses com o sustento através das oferendas de grãos, vinho e sacrifícios animais. A deusa mãe Bélet-Íli concorda em fazer o ser humano com a argila fornecida por Enki e o sangue de um deus abatido. Este deus, Aw-ila, pode ter sido um dos líderes da revolta dos Igigi, mas, mais importante, é que o “espírito” deste deus torna-se parte do ser humano.

189. Bélet-Íli, progenitora, está presente,Tabuinha com a Epopeia de Atrahasis - British Museum
190. Deixe a deusa mãe criar um ser humano,
191. Que o homem assuma o trabalho dos deuses.

223. Abateram Aw-ila, que tinha o espírito,
224. Na assembleia,
225. Nintu misturou a argila com sua carne e sangue.
226. Esse mesmo deus e homem foram completamente misturados no barro.
227. No tempo restante eles ouviram o tambor.
228. Da carne do deus o espírito permaneceu.
229. Faria os vivos saberem o seu sinal,
230. Para que não seja esquecido, o espírito permanece.
231. Depois de misturar a argila,
232. Ela convocou os Anunnaki, os grandes deuses,
233. Os Igigi e os grandes deuses,
234. Eles cuspiram na argila.
235. Mami abriu a boca,
236. E disse aos grandes deuses:
237. “Vocês me ordenaram a tarefa
238. E eu a conclui.
239. Vocês abateram o deus, juntamente com seu espírito.
240. Eu afastei o vosso trabalho forçado pesado,
241. Eu transferi o vosso trabalho penoso para o homem.
242. Depositastes o clamor sobre a humanidade.
243. Eu liberei o jugo, eu fiz a restauração”.
244. Eles ouviram este discurso dela,
245. Eles correram, aliviados, e beijaram os seus pés, dizendo:
246. “Antes nós costumávamos chamá-la Mami,
247. Agora deixe o seu nome ser Senhora de todos os deuses (Bélet-kala-íli)”.

Este plano funciona bem no início, mas, eventualmente, os seres humanos multiplicam-se, e começam a fazer muito barulho como consequência do aumento da população. Énlil não suporta o distúrbio e decide eliminar a fonte do ruído, destruindo toda a humanidade.

Em primeiro lugar, Énlil envia uma praga, mas seu plano é frustrado pelo mais inteligente do povo, Atrahasis. Este é assistido por Enki, que é favorável à humanidade. Atrahasis mostra às pessoas como derrotar a praga – sacrificando ao deus específico que Énlil encarregou da propagação da doença mortal. De forma semelhante, ele leva as pessoas a derrotar as tentativas de Énlil para matar a humanidade pela seca e pela fome.

Finalmente, Énlil propõe inundar o mundo e afogar a barulhenta humanidade. Desta vez, ele obriga todos os deuses a jurar que vão aderir ao plano, a não advertirem Atrahasis, e não se deixarem influenciar por oferendas ou sacrifícios. Enki consegue avisar Atrahasis sem tecnicamente quebrar o seu juramento: ele envia a mensagem para as paredes da casa de Atrahasis, onde Atrahasis não pode deixar de ouvir. Atrahasis constrói, seguindo conselhos de Enki, um barco para ele, sua família e os animais. Toda a terra é inundada por sete dias e noites e todos morrem. Somente aqueles a bordo do barco sobrevivem.

Embora Énlil resolva o problema do barulho da humanidade, o dilúvio não é uma experiência positiva para os deuses. Privados de seus servos humanos, percebem, então, quanto estão dependentes de seus trabalhadores. Por isso, eles providenciam o repovoamento do mundo, tomando, entretanto, medidas contra a superpopulação, como a mortalidade, e limites para a reprodução, através da infertilidade das mulheres, de demônios que atacam os bebês, de grupos de mulheres celibatárias e, talvez, de outras medidas que desconhecemos. Mortalidade e reprodução limitada são, portanto, condições necessárias para que os humanos possam viver em paz com os deuses na era pós-diluviana.

 

Bibliografia

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Para uma bibliografia mais ampla e comentada, cf. Histórias do Antigo Oriente Médio: uma bibliografia, post publicado no Observatório Bíblico em 27 de maio de 2017.

> Bibliografia atualizada em 26.10.2023.

> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 140, p. 397-424, 2018.

Artigos


[1]. Cf. POLLOCK, S.; BERBECK, R. (eds.) Archaeologies of the Middle East: Critical Perspectives. Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 2005, p. 6; MALLEY, S. Layard enterprise: victorian archaeology and informal imperialism in Mesopotamia. International Journal of Middle East Studies, Cambridge, 40(4), p. 623-646, 2008; LIVERANI, M. Imagining Babylon: The Modern Story of an Ancient City. Berlin: Walter de Gruyter, 2016, p. 23-31; POTTS, D. T. (ed.) A Companion to the Archaeology of the Ancient Near East. 2 vols. Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 2012, p. 48-69; FOSTER, B. R. Before the Muses: An Anthology of Akkadian Literature. 3. ed. Bethesda, Md.: CDL Press, 2005, p. 1-12; DA SILVA. A. J.  Projeto Biblioteca de Assurbanípal, post publicado no Observatório Bíblico em 3 de fevereiro de 2022. Para recursos online, cf. Histórias do Antigo Oriente Médio: alguns recursos online, post publicado no Observatório Bíblico em 14 de agosto de 2017.

[2]. Cf. CLIFFORD, R. J. Creation Accounts in the Ancient Near East and in the Bible. Washington: The Catholic Biblical Association of America, 1994, p. 7-98; PONGRATZ-LEISTEN, B. Religion and Ideology in Assyria. Berlin: Walter de Gruyter, 2015, p. 10-41; LIVERANI, M. Assiria: La preistoria dell’imperialismo. Bari: Laterza, 2017.

[3]. Cf. LAMBERT, W. G. Babylonian Creation Myths. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 2013. Recomendo também FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta, 2014. Saiba mais no Observatório Bíblico em O Enuma Elish e outras histórias; O Enuma Elish e outras histórias: notas de leitura e Enuma Elish e outras histórias de criação.

[4]. Cf. uma descrição da festa em Akitu – Festival do Ano Novo na Babilônia, post publicado no Observatório Bíblico em 19 de outubro de 2017.

[5]. Quando, neste artigo, um bloco de texto for transcrito será apenas a partir de traduções do inglês ou outra língua e não uma tradução do original acádico. Não recomendo sua reprodução. Para os textos, recomendo: Lambert (2013) e Brandão (2022) para o Enuma Elish, George (2003) e Brandão (2017) para a Epopeia de Gilgámesh e Foster (2005) mais Bottéro/Kramer (1993) para a Epopeia de Atrahasis. Cf., sobre isso, Algumas observações sobre a reunião dos biblistas mineiros em 2017, post publicado no Observatório Bíblico em 17 de julho de 2017.

[6]. Cf. SERI, A. The Role of Creation in Enuma Elish. Journal of Ancient Near Eastern Religions, v. 12, 2012, p. 25-26. Saiba mais em A importância das várias criações no Enuma Elish, post publicado no Observatório Bíblico em 4 de outubro de 2017.

[7]. Cf. GEORGE, A. R. The Babylonian Gilgamesh Epic: Introduction, Critical Edition and Cuneiform Texts. 2 vols. Oxford: Oxford University Press, 2003; GEORGE, A. R. The Epic of Gilgamesh: The Babylonian Epic Poem and Other Texts in Akkadian and Sumerian. Rev. ed. Harmondsworth: Penguin, 2016;  AL-RAWI, F. N. H. ; GEORGE, A. R. Back to the Cedar Forest: The Beginning and End of Tablet V of the Standard Babylonian Epic of Gilgamesh. Journal of Cuneiform Studies, v. 66, p. 69-90, 2014. Cf. também BRANDÃO, J. L. Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

[8]. Os textos aqui reproduzidos são da tradução de Brandão (2017). Cf. BRANDÃO, J. L. Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh. Belo Horizonte: Autêntica, 2017; BRANDÃO, J. L. Como se faz um herói: as linhas de força do poema de Gilgámesh. E-Hum, Belo Horizonte, v. 8, n. 1, p. 104-121, 2015; BRANDÃO, J. L. Sin-leqi-unninni, Ele o abismo viu (Série de Gilgámesh 1). Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. X, n. 2, jul.-dez., p. 125-159, 2014; ; ABUSCH, T. Male and Female in the Epic of Gilgamesh: Encounters, Literary History, and Interpretation. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2015. Saiba mais em Histórias do Antigo Oriente Médio: uma bibliografia, post publicado no Observatório Bíblico em 27 de maio de 2017.

[9]. Cf. LAMBERT, W. G. ; MILLARD, A. R. Atra-Hasis: The Babylonian Story of the Flood. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1999; FOSTER, B. R. Before the Muses: An Anthology of Akkadian Literature. 3. ed. Bethesda, Md.: CDL Press, 2005, p. 227-280; BOTTÉRO, J. ; KRAMER, S. N. Lorsque les dieux faisaient l’homme: Mythologie Mésopotamienne. Paris: Gallimard, 1993, p. 526-601; CLIFFORD, R. J. Creation Accounts in the Ancient Near East and in the Bible. Washington: The Catholic Biblical Association of America, 1994, p. 74-82.


Jeremias

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O discurso de Jeremias contra o Templo

 

 

leitura: 24 min

ABSTRACT
This article discusses an intervention of the prophet Jeremiah in the Temple of Jerusalem, narrated in his book in two different versions: Jer 7:1-15, and Jer 26:1-24. The prophet Jeremiah points out that Yahweh-Israel covenant is only a pretense maintained through ritualism celebrated in the Temple. He makes a strong defense of the Yahwist faith as orthopraxis, as a practice of social justice. Moreover, he makes a violent critique of orthodoxy as camouflage of anti-Yahwist practices.

RESUMO
Este artigo trata de uma intervenção do profeta Jeremias no Templo de Jerusalém, narrada em seu livro em duas diferentes versões: Jr 7,1-15, com destaque para o conteúdo de sua fala, e Jr 26,1-24 que conta as circunstâncias do acontecimento. Jeremias denuncia a redução da aliança Iahweh-Israel a uma aparência mantida através do ritualismo celebrado no Templo. A ética profética que aí aparece é uma apaixonada defesa da fé javista como ortopráxis, como vivência da justiça social. E, por outro lado, uma violenta denúncia da ortodoxia como camuflagem de práticas antijavistas.

 

1. Jerusalém de Josias a Joaquin

Jeremias viveu em Jerusalém em uma época que talvez tenha sido uma das mais importantes de sua história durante a monarquia judaíta.

Uma cidade que pareceria extremamente modesta aos olhos de um observador moderno, com seus cerca de 15 mil habitantes, com bazares e casas amontoadas a oeste e sul de um modesto palácio real e de seu Templo. Entretanto, no século VII a.C., esta cidade fervilhava com uma agitada população de oficiais reais, sacerdotes, profetas, refugiados e camponeses privados de suas terras. Uma cidade consciente de sua história, identidade, destino e relação direta com Iahweh.

A situação internacional favorecia Jerusalém. A Assíria, depois de mais de um século de domínio sobre a região, estava em rápido declínio. Povos dominados e oprimidos por sua extrema violência e crueldade a enfrentavam. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 609 a.C.

Foi um momento bom para Judá. Sob a influência de um forte espírito nacionalista, o rei Josias deu início a uma ampla reforma, descrita em 2Rs 22,3-23,25. Parece que a reforma começou aí pelo ano de 629 a.C., décimo segundo do reinado de Josias, que estava então com 20 anos de idade.

Das mãos de alguns dos melhores teólogos da época saiu um código de leis, “o livro da Lei” (sêfer hattôrâh), dito como tendo sido recuperado no Templo[1], como se lê em 2Rs 22,8. Ao ser promulgado por Josias em 622 a.C. como lei oficial do reino de Judá, este “livro da Aliança” (2Rs 23,2) deu vida à reforma, mostrando que era preciso reviver as antigas tradições mosaicas, pois só elas valiam a pena.

Apesar de algumas sugestões mais antigas de Padres da Igreja, sabemos que foi o alemão W. M. L. de Wette quem, em 1805, sugeriu que o “livro da Lei”, que impulsionou a reforma de Josias, deveria corresponder ao atual Deuteronômio, ou, pelo menos, a uma forma mais primitiva deste livro[2].

Mario Liverani diz que “chama a atenção o estratagema da descoberta de um manuscrito ‘antigo’ para dar o aval da autoridade tradicional àquela que deveria ser, no entanto, um reforma inovadora”. Mas, para ele, o mais importante é constatar que a reforma acontece justamente quando a autoridade assíria na região está em decadência, pois o que Josias percebeu foi a oportunidade de substituir “uma dependência e fidelidade ao senhor terreno, o imperador, por uma dependência e fidelidade ao senhor divino, Iahweh”[3].

Aproveitando a fraqueza assíria, Josias ocupou algumas partes do antigo reino de Israel, aumentando seus tributos e melhorando suas defesas. Houve uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e os vários modos de adivinhação, banidos. Santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, arrasados, com especial destaque, no texto de 2Rs 23,4-20, para a destruição do santuário de Betel.

Calculam Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman que a população de Judá teria alcançado cerca de 75 mil habitantes, “com ocupação relativamente densa nas zonas rurais das áreas montanhosas judaicas, com uma rede de assentamentos nas regiões áridas ao leste e ao sul e com um povoamento consideravelmente esparso na Shefelá. De muitas maneiras, era um Estado denso sob o aspecto dos assentamentos, e a capital detinha cerca de 20 por cento da população. A vida urbana em Jerusalém atingiu um pico que só seria igualado no período romano (…) Em termos de seu desenvolvimento religioso e da expressão literária de sua identidade, a era de Josias marcou novo estágio significativo na história de Judá[4].

Entretanto, a situação se complicou. É que em 612 a.C. a Assíria teve seu império assaltado e sua capital destruída pelos medos e babilônios. Seu rei fugiu para Harã e resistiu ainda dois anos. Em 610 a.C. o rei da Assíria é desalojado de Harã. Em 609 a.C. os assírios tentam retomar Harã. Sem sucesso. Os egípcios foram ajudá-los. Josias, rei de Judá, foi encontrar o faraó Necao II em Meguido e acabou morto. 2Cr 35,20-24 fala de um conflito militar, hipótese simpática a muitos historiadores, que a adotam. Contudo, há autores que pensam que Necao II teria simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de Josias.

Como assírios e egípcios nada conseguiram contra os babilônios, o faraó Necao II procurou consolidar seu poder na Palestina. Depõe Joacaz, filho e sucessor de Josias em Jerusalém, deportando-o para o Egito. Coloca no trono de Judá o irmão de Joacaz, Joaquim, que tinha 25 anos de idade. Joacaz reinara três meses. Judá passou então a pagar pesado tributo ao Egito, o que durou até 605 a.C., quando o rei babilônio Nabucodonosor derrotou as forças egípcias e desceu até a Palestina. Joaquim fez com ele um acordo e Judá não foi destruído.

Mas isto não durou. Em 600 a.C. Nabucodonosor tentou invadir o Egito e não conseguiu. Judá rebelou-se, acreditando na libertação. Seu erro foi fatal. Enquanto os babilônios marchavam para Jerusalém, morreu Joaquim – provavelmente assassinado -, em dezembro de 598 a.C. e foi substituído por seu filho Joaquin, de 18 anos, que capitulou no dia 16 de março de 597 a.C. O rei foi deportado para a Babilônia com a corte e toda a classe dirigente.

Durante o governo de Joaquim (609-598 a.C.), o profeta Jeremias, que não dissera, se crermos em seu livro, uma palavra sequer sobre a reforma de Josias, rompeu, de vez, com as instituições do Estado. Jeremias tornou-se, então, um ferrenho adversário da classe sacerdotal de Jerusalém, já que sob os desmandos do governo de Joaquim a reforma de seu pai Josias se perdeu totalmente, restando um culto superestimado como garantia da nação, consequência da centralização de todas as atividades religiosas no Templo de Jerusalém e na mão de seus sacerdotes. Culto agora usado para mascarar os males sociais e os crimes contra o povo.

 

2. Eles cuidam da ferida de meu povo superficialmente

Entre setembro de 609 e abril de 608 a.C., talvez durante uma festa, Jeremias coloca-se no pátio do Templo e denuncia a confiança da população judaíta no Templo de Iahweh como falsa, prometendo a destruição do santuário, tal qual outrora acontecera com Silo. Vamos conferir Jr 7,1-15 e, depois, Jr 26,1-24.

A morte de Josias no confronto com o faraó, o curto governo de seu filho Joacaz, seu exílio, a dependência do Egito sob Joaquim: tudo isso criara um clima de incerteza e insegurança geral. O que faz a população? Refugia-se na crença de que a presença de Iahweh no Templo garante a cidade e a sua liberdade.

Jeremias de Aleijadinho - Congonhas do Campo, MG (entre 1794 e 1804)Jeremias denuncia esta crença porque, segundo ele, só a aliança Iahweh-Israel poderia garantir o povo. Mas esta não funcionava, pois nos tribunais não se praticava o direito, oprimiam-se o estrangeiro residente, o órfão e a viúva, condenava-se o inocente e, além disso, seguiam-se deuses estrangeiros (7,5-6).

E o v. 9 completa a lista de crimes: “roubar, matar, cometer adultério, jurar falso, queimar incenso a Baal, correr atrás de deuses estrangeiros…”[5].

O que Jeremias está denunciando é muito grave. A aliança Iahweh-Israel é apenas uma aparência mantida através do ritualismo celebrado no Templo. E quem quebra assim um pacto tão importante, e, ainda por cima, comparece diante de seu senhor como se nada tivesse acontecido, é duplamente culpado. Primeiro, por desobedecer às normas do pacto. E, segundo, por simular obediência perfeita e ainda pedir ajuda àquele com quem rompeu. Um súdito que fizesse isso certamente seria morto por seu soberano, segundo as regras da época.

Este tipo de denúncia à prática cultual já fora feita por Am 5,21-27, Is 1,10-20 e Mq 6,1-8. A ética profética que aí aparece é uma apaixonada defesa da fé javista como ortopráxis, como vivência da justiça social. E, por outro lado, uma violenta denúncia da ortodoxia como camuflagem de práticas antijavistas.

Conta-nos Jr 26,1-24 que o profeta quase morre por fazer tal denúncia. Aos olhos do pessoal do Templo, como sacerdotes e profetas, Jeremias cometera duas blasfêmias: falara em nome de Iahweh e falara contra a casa de Iahweh. Perante o tribunal a que é levado, ele, porém, confirma suas palavras e só não morre porque alguém se lembrou do profeta Miqueias, que, um século antes, pregara destino parecido para o Templo e para a cidade e nada sofrera. Urias, um profeta contemporâneo seu, não terá a mesma sorte (26,20-34).

Schökel e Sicre assim resumem a atitude reprovada por Jeremias: “O culto nos permite expiar ritualmente os pecados, depois nos permite continuar cometendo-os; possuímos uma instância periódica institucional que nos garante o ajuste de contas sem exigir de nós a emenda. É assim que se gera um círculo perfeitamente vicioso de injustiça; a visita periódica ao templo serve e é suficiente para restabelecer as boas relações, tanto pessoais como coletivas, com o Senhor”[6].

Lembro aqui que o culto, em hebraico ‘abhodhâh (= serviço), é a forma tradicional segundo a qual o crente procura se relacionar com a divindade através de rituais, em geral, prefixados. O culto normalmente é uma expressão comunitária e possui seus agentes especializados, os sacerdotes; além de tender a se estabelecer em locais específicos dedicados à divindade, os templos.

O culto israelita é uma celebração de acontecimentos e tradições mais importantes ocorridos na vida do povo, vistos, sob a ótica da fé, como as obras de Iahweh em benefício de Israel. Segundo o conceito da aliança Iahweh-Israel, o culto só tem sentido quando é, de fato, a celebração daquilo que é vivido no cotidiano e ordenado pela ética javista.

É preciso esclarecer que os profetas não eram contra o culto em si, mas contra o uso mistificado que dele se fazia. Dizem os profetas que de nada resolve a prática ritual dos sacrifícios quando não existe vivência real da ética javista. O culto, por si mesmo, não garante a relação benéfica de Iahweh com Israel, mas o que a garante é a observância das normas da aliança (berîth), pois o javismo é uma prática, não uma doutrina ou um ritual. No lugar do culto os profetas exigem, enfaticamente, a prática do direito (mishpât), da justiça (tsedhâqâh), da solidariedade (hesedh).

 

3. Eles fortalecem as mãos dos perversos

Por essa época, Jeremias denuncia o governo de Joaquim como ganancioso, assassino e violento, segundo Jr 22,13-19. Este é um dos mais duros oráculos proféticos já pronunciados contra um rei. Jeremias compara Joaquim a seu pai Josias e o denuncia como antijavista, pois não cumpre sua função real de exercer a justiça e o direito e de proteger os mais fracos.

No começo de seu governo, Joaquim preocupa-se em construir um novo palácio – ou um anexo ao antigo – exatamente no momento em que a crise econômica se agravava. Dependente do Egito, a quem pagava tributo[7], colocou a população para trabalhar de graça na construção. Jeremias vai dizer ao rei que ele, quando morrer, nem merece ser sepultado, mas como um jumento deverá ser jogado para fora das muralhas de Jerusalém, pois, ao contrário de seu pai, Joaquim “não conhece Iahweh”.

Lembrando que “conhecimento de Deus” (da’at ‘elohîm) não é conhecimento intelectual, místico ou cultual. É a experiência ou vivência do javismo em todos os atos e fatos da vida.

O que mais ameaça Judá, nesta época, segundo Jeremias, é um “inimigo que vem do norte” (Jr 4,5-6,30 e Jr 8,13-17). Embora haja várias possibilidades de identificação desse inimigo, muitos comentaristas pensam que Jeremias está falando de Nabucodonosor, o rei babilônico, que invade regiões da Palestina em 605/604 a.C., trazendo o terror da guerra para as fronteiras de Judá. Muitos dos versos de Jeremias, nestes poemas, são de uma dramaticidade impressionante, como Jr 5,15-17, sobre a nação que vem de longe para atacar Judá: nação antiga, nação duradoura, cujos homens são heróis. Nação que devorará os filhos, os animais e todo o alimento de Judá, destruindo pela espada suas fortalezas. Segundo Jeremias, é Iahweh quem aplicará a Judá tal castigo.

É como comenta Bob Becking: aos nossos olhos os textos do livro de Jeremias brotam do passado no contexto da irrupção do império babilônico e podem ser lidos como estratégias para lidar com a inevitabilidade do poder imperial e a experiência do exílio[8].

Mas o que motiva tão cruel castigo de Judá?

A ruptura da aliança. Em Judá, Jeremias só vê rebeldia contra Iahweh, levando o povo a maldades e crimes sem conta. Não há o mínimo “conhecimento de Deus”, que só é possível através da prática do direito, da justiça, da solidariedade. Os poderosos tramam sistematicamente contra o povo, todos buscam desesperadamente a riqueza e não há paz. A mentira domina, desde o ensinamento dos profetas à lei dos sacerdotes, levando o país ao caos. Todos se tornam inimigos de todos. Impera a idolatria. O fim será trágico, segundo os capítulos 8 e 9 de Jeremias.

Percorrendo as ruas de Jerusalém, Jeremias constata a ausência do direito e da verdade entre as pessoas comuns (Jr 5,1), mas maior corrupção encontra entre os grandes e poderosos, que não agem mal por ignorância, senão por determinação consciente e persistente (Jr 5,4-5). Quanto mais a crise nacional se aprofunda, mais os líderes se recusam a encontrar soluções. Só procuram satisfazer seus interesses imediatos e deixam o país afundar: “Eles cuidam da ferida do meu povo superficialmente, dizendo: ‘Paz! Paz!’, quando não há paz”, diz Jr 6,14.

Com extremo realismo – válido para todas as épocas – em Jr 5,26-28 são descritos os poderosos e suas armadilhas de apanhar o povo e escravizá-lo impunemente.

Mas nem todos os profetas pensavam como Jeremias. Acreditam alguns especialistas que talvez o fato mais desorientador para Jeremias nesta época era a análise errada da situação feita por pessoas que se apresentavam para falar em nome de Iahweh como seus profetas.

Por isso, em Jr 14,13-16 e Jr 23,13-40 podemos ver como Jeremias luta para desmascarar os falsos profetas que, Jeremias de Portinari - MASP (1943)falando em seu próprio interesse, “fortalecem as mãos dos perversos, para que ninguém se converta de sua maldade” (23,14), que seduzem o povo com suas mentiras e seus enganos, roubando um do outro a palavra de Iahweh. Jeremias conclui que dos profetas de Jerusalém saiu a impiedade para todo o país.

É importante abordarmos a questão da falsa profecia através da categoria de ideologia, entendida como visão social de mundo, segundo a definição de Michael Löwy, para quem as ideologias não são apenas ideias isoladas, ilusões, mentiras, mas um conjunto muito mais vasto e orgânico de valores, crenças, doutrinas, convicções, teorias, orientações cognitivas, representações. Quanto este conjunto é unificado por uma certa perspectiva social, por uma perspectiva de classe, torna-se uma visão social de mundo[9].

Segundo o clássico estudo de Karl Mannheim, Ideologia e Utopia, esta visão social de mundo pode ser ideológica, quando legitima, justifica, defende, mantém a ordem social existente; como pode ser utópica, quando critica, nega, subverte e aponta para uma ordem social diferente[10].

A partir destes conceitos devemos perceber que a profecia não é só historicamente situada: ela é também socialmente situada. O que determina a maior ou menor objetividade (ou verdade) de um profeta é a sua posição social. Profetas que defendiam o sistema explorador do Estado tributário jamais poderiam ser “verdadeiros”.

Daí que, no caso dos profetas, não se deve perguntar qual é o verdadeiro e qual é o falso, mas qual tem maior coerência histórico-social. Não é um abstrato conceito de “verdade” ou “falsidade” que deve ser usado como critério. Mas sim a verdade/falsidade histórico-social. Que deve ser decidida caso a caso.

E isso nos leva a outro ponto: foi durante este período de sua vida, enquanto governava Joaquim, que Jeremias mais sentiu o peso de sua missão. Obrigado a ser do contra, a pregar a desgraça para o seu povo, a remar contra a corrente, ameaçado, rejeitado, caluniado, desprezado, ele se lamenta, amaldiçoando até mesmo o dia em que nasceu. Esta condição profética aparece nos 5 textos que tradicionalmente chamamos de “confissões” de Jeremias (11,18-12,6; 15,10-11.15-21; 17,14-18; 18,18-23; 20,7-10.14-18).

São textos difíceis de ser datados com precisão. É possível que tenham sido escritos em 605 a.C. como um desabafo, não como oráculos previamente ditos ao povo. Talvez possam ser lidos como uma síntese das crises vividas pelo profeta desde o começo de sua atividade.

 

4. Tornaram-se grandes e ricos, gordos e reluzentes

Como acabamos de ver, o governo de Joaquim se caracterizou por um despotismo e por uma corrupção exacerbados. E o que precisamos agora nos perguntar é: por que tal arbítrio e tal corrupção foram possíveis?[11]

Para começar, devemos rejeitar a noção corrente de corrupção como fruto de uma “crise moral”. Na verdade, esta noção fica na aparência da realidade social, porque pressupõe uma visão harmônica de sociedade, que não seria constituída por classes sociais, mas apenas conteria divisões sociais. Daí bastar uma “reforma moral” para resolver a crise[12].

A noção de crise moral não põe em xeque a estrutura social. Ela permite representar a sociedade como invadida por contradições e, simultaneamente, tomá-las como um acidente, um desarranjo, pois a harmonia é pressuposta como sendo de direito, reduzindo a crise a uma desordem fatual, provocada por enganos, voluntários ou involuntários, dos agentes sociais, ou por mau funcionamento de certas partes do todo. Na verdade, a crise nomeia os conflitos para melhor ocultá-los[13].

Discursos autoritários de governos reacionários e ditatoriais sempre privilegiam a noção de crise. Por um lado, ela justifica a desordem social e, por outro lado, mobiliza a sociedade temerosa de perder sua identidade coletiva, reagindo contra a mudança revolucionária, salvando, assim, a ordem constituída dos riscos a que estava submetida.

Donde ser necessária uma abordagem da questão da corrupção que considere a complexidade e as contradições da sociedade israelita. Por isso, para se analisar o arbítrio e a corrupção do governo de Joaquim, denunciados por Jeremias, é preciso olhar mais fundo na formação social israelita.

Como sabemos a estrutura social israelita sofreu profundas modificações, sendo a mais radical a formação de um Estado, que parece já estar consolidado lá pelos séculos IX ou VIII a.C.

Dizem especialistas de tendência marxista, que analisam as sociedades de tipo tributário, que a sociedade tribal de tipo patriarcal já representa uma forma típica de transição da comunidade primitiva para a sociedade de classes. As contradições da sociedade tribal aumentam progressivamente até provocarem o aparecimento do Estado, que inicialmente é uma função (de defesa, de grandes obras etc.), mas que passa a ser uma exploração.

Da economia de autossubsistência, através do desenvolvimento das forças produtivas, passa-se a uma economia tribo patriarcal baseada em certa hierarquização que permite a acumulação para determinadas camadas: há os privilégios dos homens sobre as mulheres, do primogênito sobre seus irmãos, das tribos líderes sobre as outras tribos etc. É um embrião de divisão de classes, anterior ao Estado, detectável em Israel já no período conhecido biblicamente como “dos juízes”.

Da economia tribo patriarcal passa-se à economia do Estado tributário, através da necessidade de obras conjuntas (defesa contra inimigos, trabalhos de irrigação, construção de muralhas, por exemplo) e da dominação de uma linhagem superior que se impõe sobre as outras (família do líder, como Davi e seus descendentes em Judá) e que passa a controlar também o comércio intertribal. Aliás, na sociedade tributária o comércio é possível só a partir da acumulação do excedente feita pelo Estado.

Neste tipo de sociedade a escravidão só existe de maneira secundária: o peso da produção não cai sobre os escravos, pois a propriedade coletiva da terra, que continua como na época tribal, torna-os desnecessários. A mão de obra é familiar.

Assim, o Estado tributário que inicialmente nascera com funções públicas (defesa, organização etc.) passa, pouco a pouco, a ser um autêntico poder de classe (a classe que se constitui nele) para manter e aumentar a exploração. O Estado é consequência da exploração de classe, ele não é a sua causa. O despotismo do governo é também uma consequência da formação de classes.

A grande contradição interna desta organização: coexistência de estruturas comunitárias e de estruturas de classe. Se ela não evolui, as sociedades tributárias ficam estagnadas no seu nível social. Em Israel a terra pertence a Iahweh, mas o Estado detém o poder religioso através dos templos, controlando a vontade da divindade através dos sacerdotes, profetas e juízes pagos pelo governo. O indivíduo passa assim, na sociedade tributária, por duas mediações: da comunidade tribal a que pertence e do Estado tributário[14].

 

5. Não vos fieis em palavra mentirosas

Neste Estado tributário o papel da religião é muito importante. O rei governa como privilegiado representante de Iahweh. Confirmam-no vários textos, entre os quais se destacam os chamados “Salmos do rei” ou “Salmos reais”. Que são onze: 2, 18, 20, 21, 45, 72, 89, 101, 110, 132, 144.

O rei legitima seus atos através do culto celebrado no Templo de Jerusalém e dos oráculos pronunciados pelos profetas oficiais sustentados pela corte. A teologia em voga é elaborada por representantes desta ordem e, sem dúvida, defende seus interesses.

Jeremias de Michelangelo - Capela Sistina, Vaticano (1511)Em outras palavras, podemos dizer que na monarquia israelita as categorias ideológicas refletem o econômico de maneira invertida. Embora as relações econômicas não sejam mais de solidariedade e ajuda mútua, mas de exploração, através da apropriação do excedente pela corte, o discurso teológico gerado no Templo e na corte permanece javista, ocultando o processo real. Daí ser usado como máscara para encobrir os desmandos de governos como o de Joaquim. Por isso as denúncias de Jeremias.

Como já mencionado, outros profetas haviam abordado, antes de Jeremias, esta questão. Em fortes palavras Am 5,21-27 e Is 1,10-20 rejeitam o fausto dos sacrifícios e a riqueza das cerimônias praticadas no Templo. Denunciam-nos como farsas bem montadas para enganar o povo que é explorado e espoliado. Exigem, por outro lado, como verdadeira vivência da fé javista, a prática do direito, da justiça e da solidariedade.

Mas o texto mais interessante sobre a relação culto e prática da justiça é o de Mq 6,1-8, escrito cerca de cem anos antes de Jeremias. Ali o profeta anuncia que Iahweh iniciará um processo contra Israel. Convoca as montanhas, as colinas e os “fundamentos da terra” como testemunhas. Iahweh enumera os benefícios feitos por ele a Israel: acontecimentos que vão desde o êxodo do Egito até a chegada a Canaã. Israel tenta, porém, reparar a sua culpa através de um faustoso e exagerado sacrifício de animais e de cereais, chegando ao ponto de pensar no sacrifício do primogênito. Contudo, o v. 8, célebre passagem, joga toda a teologia israelita por terra quando o profeta exige:

“Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom,
e o que Iahweh exige de ti:
nada mais do que praticar o direito (mishpât)
gostar da solidariedade (hesedh)
e caminhar humildemente com o teu Deus”.

Este versículo resume o pensamento dos outros três grandes profetas do século VIII a.C.: Amós, na sua exigência de direito e justiça; Oseias, na sua exigência de solidariedade e Isaías, na sua exigência de fé e obediência. E prepara as denúncias de Jeremias, tais como as que vimos em Jr 7,1-15 e Jr 26,1-24, o célebre discurso contra o Templo.

 

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>> Bibliografia atualizada em 28.07.2016

> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 129, p. 85-96, 2016

Artigos


[1]. Cf. DA SILVA, A. J. A descoberta do Livro da Lei na época de Josias, postagem publicada no Observatório Bíblico em 27 de janeiro de 2007.

[2]. Cf. SKA, J.-L. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2003 [3. ed.: 2014], p. 120-121.

[3]. LIVERANI, M. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 222.

[4]. FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 388-389.

[5]. Cf. DA SILVA, A. J. Perguntas mais frequentes sobre o profeta Jeremias.

[6]. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I: Isaías, Jeremias. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 470.

[7]. Segundo 2Rs 23,33b.35, Joaquim devia pagar ao Egito, em 609 a.C., um tributo de cem talentos de prata (cerca de 3.427 kg.) e (?) de ouro. Diz o v. 35: “Joaquim pagou ao Faraó a prata e o ouro, mas teve de criar impostos na terra, para pagar a quantia exigida pelo Faraó; exigiu de cada um, segundo suas posses, a prata e o ouro que era preciso dar ao Faraó Necao”.

[8]. Cf. Bob Becking, resenha de Steed Vernyl Davidson, Empire and Exile: Postcolonial Readings of the Book of Jeremiah. London: Bloomsbury T & T Clark, 2011, publicada na RBL em 20.01.2013.

[9]. Cf. LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. 19. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

[10]. Cf. MANNHEIM, K. Collected Works. London: Routledge, 1997.

[11]. Cf. DA SILVA, A. J. Nascido profeta: a vocação de Jeremias. São Paulo: Paulus, 1992, p. 88-90.

[12]. Retomo aqui alguns aspectos de meu, já antigo, entretanto atual, artigo: A denúncia profética da corrupção (Salmo 12). Vida Pastoral, São Paulo, n. 141, p. 2-6, 1988.

[13]. Cf. CHAUÍ, M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

[14]. Cf. GEBRAN, Ph. (ed.), Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991; CARDOSO, C. F. S. (org.) Modo de produção asiático: nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990; DA SILVA, A. J. A origem dos antigos Estados israelitas. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 78, p. 18-31, 2003.


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 15. Observações finais

Por último, quero lembrar que uma das maiores dificuldades da leitura socioantropológica vem de seu interior mesmo, das opções de seus teóricos. A partir da II Guerra Mundial aconteceu a burocratização do trabalho do sociólogo e o comprometimento cada vez maior de seus teóricos com a defesa da sociedade capitalista contra a expansão do socialismo. Passou-se a confundir a sociologia crítica, não conservadora e não funcionalista, com um comunismo a ser combatido a todo o custo. Na sociedade norte-americana, a sociologia, vinculada ao meio universitário, caracterizou-se por um acentuado reformismo, investigando temas relacionados com a desorganização social, com as questões urbanas, com a integração das minorias etc, mas perdeu de vista a totalidade social.

A avalanche empirista que tomou conta das ciências sociais nos Estados Unidos chegou também aos países periféricos, como o Brasil, representando uma profunda ruptura com as tendências de clássicos como Weber e Marx. O fenômeno da pós-modernidade, com a suposta falência das grandes teorias explicativas da história, agravou mais ainda o fenômeno.

Não é difícil perceber também como o funcionalismo é a referência mais comum dos estudos bíblicos analisados nestas páginas. A postura conservadora, inerente ao funcionalismo, preocupado com a ordem social é que, apesar das características de cada um, talvez tenha unido pensadores tais como Durkheim, Malinowski, Radcliffe-Brown, Talcott Parsons e tantos outros.

No Brasil a coisa se agrava mais ainda, pois numa sociedade em transição do rural para o urbano como a nossa persiste em muitos meios uma ordem patrimonial que sufoca o pensamento racional livre, considerado incompatível com seus interesses. A justificação moral existente emanava, ainda há pouco, do poder dos costumes, e a “explicação racional do comportamento humano e da origem ou do funcionamento das instituições, como a sociológica, encontrava natural resistência”, já dizia Florestan Fernandes[61].

Mas, como nos lembrava Carlos B. Martins na década de 80, “ao lado de uma sociologia que estendeu suas mãos ao poder, não se pode deixar de mencionar as importantes contribuições proporcionadas por uma sociologia orientada por uma perspectiva crítica [como a da Escola de Frankfurt e a de seus seguidores]. Em boa medida, esta sociologia tem permitido a compreensão da sociedade capitalista atual, das suas políticas de dominação e dos processos históricos que buscam alterar a sua ordem existente”[62]. Cabe aos especialistas investigar as atuais condições do pensamento socioantropológico e aos biblistas retomar este veio crítico dos grandes clássicos que nunca secou de verdade. Recomendo, neste sentido, especialmente as obras de Robert Kurz[63].

 

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>> Bibliografia atualizada em 02.06.2022

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11. Arens e a Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João: 1995

Eduardo Arens escreveu, em 1995, sobre a Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João. O autor, nascido na Alemanha e vivendo no Peru, reconstrói o contexto social, econômico, político e religioso necessário para compreender o nascimento, o desenvolvimento e a expansão das comunidades cristãs pela Ásia Menor no primeiro século da nossa era.

“Quais foram as condições de vida e os diversos estratos sociais nas comunidades de Paulo, Teófilo e João (todas elas na Ásia Menor)?”, pergunta o autor, para dizer, em seguida: “O objetivo desse estudo é responder a essa e outras perguntas conexas, esboçando as condições sociais e econômicas da Ásia Menor durante a segunda metade do século I d.C., com o fito de ajudar a compreender melhor certos aspectos dos escritos de Lucas e João, assim como das cartas de Paulo (e deuteropaulinas)”[45].

Arens fundamenta-se, para isso, em duas convicções básicas: “Os textos bíblicos originaram-se em época e situações históricas concretas, e seus escritores dirigiram-se a comunidades que viviam dentro de coordenadas socioeconômicas, políticas e religiosas determinadas (…) Assim, por exemplo, se se quiser compreender o que um autor como Lucas quis comunicar a seu auditório (a comunidade para a qual escreveu) acerca de pobreza e riqueza, será necessário tomar consciência de que não tratou em seu evangelho desses temas por lhe terem ocorrido espontaneamente ou por tê-los considerado de interesse teológico. Fê-lo antes porque correspondiam a uma situação concreta: havia nessa comunidade um conflito relacionado com as diferenças socioeconômicas entre seus membros. Para começar a compreender, portanto, a mensagem de Lucas sobre a relação do homem com os bens materiais, será necessário familiarizar-se com as condições socioeconômicas do mundo em que viviam os membros da comunidade de Teófilo, para os quais Lucas escreveu sua obra”[46].

 

12. The Context Group: vários estudos a partir de 1989

The Context Group, grupo de pesquisa do qual já falamos acima, vem trabalhando desde 1989, com reuniões anuais de seus membros para avaliação dos resultados obtidos com o emprego das ciências sociais na leitura do Novo Testamento. Seus resultados podem ser elencados, rapidamente, com a menção de alguns estudos mais importantes, como os de John Pilch sobre a lepra, a doença e o sistema de saúde na antiguidade; os de Jerome Neyrey sobre o simbolismo do corpo na primeira carta aos Coríntios, o sistema judaico de pureza e sua crítica nos escritos do NT, a “ideologia da revolta” no Evangelho de João e sua leitura de Paulo; os de Douglas Oakman sobre a dimensão do ensinamento de Jesus; os de Richard Rohrbaugh sobre o conceito de classe no estudo do cristianismo primitivo, o uso de modelos na análise socioantropológica; as contribuições de J. H. Elliott sobre o fenômeno da relação patrão-cliente no cristianismo primitivo, sobre o “olho mau”, sobre a função da casa, do templo e da refeição em Lucas e nos Atos; os de K. C. Hanson sobre o parentesco e os herodianos; os estudos de Bruce Malina, já citados; o trabalho conjunto editado, em 1991, por Jerome Neyrey sob o título de The Social World of Luke-Acts: Models of Interpretation, com treze capítulos sobre temas como uma teoria da leitura dos textos bíblicos, a honra e a vergonha como valores fundamentais no mundo mediterrâneo, os modelos para interpretar os conflitos e tensões entre o campo e a cidade etc.[47].

 

13. Classificando os estudos: cinco categorias

Estes e outros estudos, que têm o “social” como pressuposto, são classificados por J. H. Elliott em cinco categorias, conforme a abordagem assumida[48]:

1. Alguns são investigações de realidades sociais, tais como grupos, ocupações, instituições e semelhantes, que ilustram aspectos da realidade da época bíblica, mas não analisam, sintetizam e explicam os fatos sociais de maneira científica. Tais são estudos como os de Joachim Jeremias, Frederick C. Grant, Stephen Benko e J. J. O’Rourke, Abraham J. Malherbe e John E. Stambaugh e David L. Balch[49].

2. Outros estudos são abordagens sócio-históricas de um determinado período, movimento ou grupo. Exemplos típicos são Martin Hengel, Robert M. Grant, Luise Schottroff e Wolfgang Stegemann[50].

3. Um terceiro tipo usa a abordagem sociológica para estudar as forças e instituições sociais do cristianismo primitivo, tais como os já citados Gerd Theissen, John Gager e Wayne Meeks.

4. Estudos do Novo Testamento que utilizam as ferramentas da antropologia cultural são os de Bruce Malina, Jerome Neyrey e outros membros do The Context Group, também já citados acima.

5. E, finalmente, há aqueles que fazem uma análise sociológica dos textos bíblicos, como os já citados Fernando Belo, John H. Elliott, Philip Esler e Halvor Moxnes.

John H. Elliott aceita que estes estudos sejam complementares nas suas abordagens, mas diz que é preciso distinguir entre duas atitudes básicas: uma é a abordagem sócio-histórica que se preocupa em descrever os dados sociais relevantes, enquanto a outra é a abordagem sociológica que procura explicar os fatos sociais[51].

 

14. Algumas dificuldades da leitura socioantropológica

14.1. A avaliação da Pontifícia Comissão Bíblica: 1993

Do ponto de vista das instituições eclesiásticas, as leituras que fazem uso das ciências sociais são vistas como necessárias, mas comportam alguns riscos, como diz o documento da Pontifícia Comissão Bíblica, A Interpretação da Bíblia na Igreja, de 15 de abril de 1993, do qual vale a pena transcrever alguns trechos[52].

Após lembrar que o problema da interpretação da Bíblia não é uma invenção moderna, como alguns querem fazer crer, o documento mostra que, no entanto, ele se acentuou com o desenrolar do tempo, e uma das razões é o uso dos métodos científicos usados para interpretar os textos bíblicos: “Em que proporção esses métodos podem ser considerados apropriados à interpretação da Sagrada Escritura?”

E logo responde: “A esta questão a prudência pastoral da Igreja durante muito tempo respondeu de maneira muito reticente, pois muitas vezes os métodos, apesar de seus elementos positivos, encontravam-se ligados a opções opostas à fé cristã. Mas uma evolução positiva se produziu, marcada por uma série de documentos pontifícios, desde a encíclica Providentissimus Deus de Leão XIII (18 de novembro de 1893) até a encíclica Divino afflante Spiritu de Pio XII (30 de setembro de 1943), e ela foi confirmada pela declaração Sancta Mater Ecclesia (21 abril de 1964) da Pontifícia Comissão Bíblica e sobretudo pela Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II (18 de novembro de 1965)”.

E o documento continua: “A fecundidade desta atitude construtiva manifestou-se de maneira inegável. Os estudos bíblicos tiveram um progresso notável na Igreja Católica e o valor científico deles foi cada vez mais reconhecido no mundo dos estudiosos e entre os fiéis. O diálogo ecumênico foi consideravelmente facilitado. A influência da Bíblia sobre a teologia se aprofundou e contribuiu para a renovação teológica. O interesse da Bíblia aumentou entre os católicos e favoreceu o progresso da vida cristã. Todos aqueles que adquiriram uma formação séria nesse campo estimam doravante impossível retornar a um estado de interpretação pré-crítica, pois o julgam, com razão, claramente insuficiente”[53].

E é com este mesmo espírito que o documento fala, mais adiante, da leitura sociológica: “Geralmente a abordagem sociológica dá uma abertura maior ao trabalho exegético e comporta muitos aspectos positivos. O conhecimento dos dados sociológicos que contribuem a fazer compreender o funcionamento econômico, cultural e religioso do mundo bíblico é indispensável à crítica histórica. A tarefa da exegese, de bem compreender o testemunho de fé da Igreja apostólica, não pode ser levada a termo de maneira rigorosa sem uma pesquisa científica que estude os estreitos relacionamentos dos textos do Novo Testamento com a vivência social da Igreja primitiva. A utilização dos modelos fornecidos pela ciência sociológica assegura às pesquisas dos historiadores das épocas bíblicas uma notável capacidade de renovação, mas é preciso, naturalmente, que os modelos sejam modificados em função da realidade estudada”[54].

E é aí que o documento fala dos riscos dessa abordagem: “É o caso aqui de assinalar alguns riscos que a abordagem sociológica faz correr à exegese. Efetivamente, se o trabalho da sociologia consiste em estudar as sociedades vivas, é previsível encontrar algumas dificuldades logo que se quer aplicar seus métodos a ambientes históricos que pertençam a um passado longínquo. Os textos bíblicos e extrabíblicos não fornecem forçosamente uma documentação suficiente para dar uma visão de conjunto da sociedade da época. Aliás, o método sociológico tende a dar mais atenção aos aspectos econômicos e institucionais da existência humana do que às suas dimensões pessoais e religiosas”[55].

A postura do documento sobre a abordagem dos textos bíblicos com o recurso da antropologia cultural é praticamente a mesma da leitura sociológica. Após falar da utilidade do método para o estudo do Antigo e do Novo Testamentos, o documento afirma: “Esta abordagem permite distinguir melhor os elementos permanentes da mensagem bíblica cujo fundamento está na natureza humana, e as determinações contingentes segundo culturas particulares. Todavia, não mais que outras abordagens particulares, ela não está em si à altura de levar em conta as contribuições específicas da revelação. Convém estar ciente disso no momento de apreciar o alcance de seus resultados”[56].

Parece-me bastante equilibrada a perspectiva do documento quando fala dos métodos científicos de leitura da Bíblia, especialmente se lido integralmente. Apesar de, ambiguamente, deixar mais ou menos explícito que são os documentos do Magistério que fazem avançar a pesquisa exegética, quando o oposto é que seria mais realista.

 

14.2. Posturas de exegetas católicos: J. Fitzmyer e J. M. Terra

Já os comentários do documento e as posturas assumidas pelos exegetas católicos frente ao método socioantropológico são mais diversificadas e me parece que, às vezes, mais conservadoras do que o texto da Pontifícia Comissão Bíblica permitiria. Citarei como exemplo o comentário de J. A. Fitzmyer, ele mesmo um membro da referida comissão. Ao comentar a abordagem sociológica ele diz que ela “está realmente mais interessada em ler nas entrelinhas do texto bíblico para descobrir os fatores históricos positivos que moldaram a vida humana e comunitária nos tempos bíblicos do que em determinar o significado religioso da própria Palavra de Deus. Em outras palavras, apesar de toda a importante contribuição que deu recentemente ao estudo da Bíblia, esta abordagem raramente contribui de fato para o significado da própria Palavra de Deus escrita”[57].

E ao falar da abordagem da antropologia cultural, logo em seguida, após elencar seus aspectos positivos, Fitzmyer afirma: “Entretanto, como no caso de outras derivadas de ciências humanas, esta abordagem não está qualificada para determinar qual é, especificamente, o conteúdo da revelação. Como acontece com a abordagem sociológica, esta tende a ler nas entrelinhas do texto bíblico e não as linhas propriamente ditas. Em outras palavras, os aspectos antropológicos da Bíblia não aproximam necessariamente o leitor do significado religioso ou espiritual da Palavra de Deus”[58].

Postura mais radical ainda é a daqueles que dizem que ao pretender estudar racionalmente a religião, os seus textos fundadores ou as instituições religiosas, a sociologia crítica é vista como materialista, ímpia e desagregadora dos valores cristãos.

Acusa-se, ainda hoje, a leitura sociológica de fechar as portas ao transcendente e ao sobrenatural, na medida em que ela se reduz ao horizonte empírico da Bíblia. A leitura sociológica seria reducionista, porque reduz fenômenos religiosos a fatores não religiosos e também porque determina fenômenos religiosos por fatores não religiosos.

Diz-se também que a leitura sociológica sujeita a Bíblia a contínua reinterpretação dependente de estruturas sociopolíticas instáveis, e isto elimina o magistério da Igreja e atropela as verdades eternas do cristianismo[59].

Naturalmente tais críticas partem de um pressuposto epistemológico específico, que costuma colocar do lado do “natural” uma série de conceitos relativos ao mundo e à história, e do lado do “sobrenatural” tudo o que é relativo ao sagrado.

Este dualismo não pode ser sustentado, já que assim opomos como duas grandezas iguais Deus e o homem, revelação e razão, graça e pecado. Ora, teologicamente, o sobrenatural nada mais é do que o mesmo natural elevado ao nível de sua destinação divina, pelo olhar da fé.

Entretanto, a persistência dessa visão dualista transforma a Salvação no seu conhecimento. Conhecimento que é enunciado num conjunto doutrinal, celebrado num rito e organizado numa instituição. Finalmente, esta visão opõe Igreja e mundo, levando a prática dos cristãos ao sectarismo, ao clericalismo e ao apolitismo[60].

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[45]. ARENS, E. Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João: aspectos sociais e econômicos para a compreensão do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1998, p. 6. O original espanhol é Asia Menor en tiempos de Pablo, Lucas y Juan – Aspectos sociales y económicos para la comprensión del Nuevo Testamento. Eduardo Arens, 1995.

[46]. Idem, ibidem, p. 5.

[47]. Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 29-30 e p. 138-174 para uma compreensiva bibliografia; ROHRBAUGH, R. (ed.) The Social Sciences and New Testament Interpretation, volume produzido totalmente pelo The Context Group, com destaque, a meu ver para os estudos de Bruce Malina sobre os indivíduos no mundo mediterrâneo, de K. C. Hanson sobre o parentesco, de Douglas E. Oakman sobre a economia antiga, de J. H. Elliott sobre a clientela e de D. C. Duling sobre o milenarismo.

[48]. Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 18-20.

[49]. JEREMIAS, J. Jerusalem zur Zeit Jesu. 3. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht 1962 (em português: Jerusalém no tempo de Jesus: Pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2010); GRANT, F. C. The Economic Background of the Gospels. London: Oxford University Press, 1926; BENKO, S. ; O’ROURKE, J. J. (eds.) The Catacombs and the Colosseum: The Roman Empire as the Setting of Primitive Christianity. Valley Forge, PA: Judson Press, 1971; MALHERBE, A. J. Social Aspects of Early Christianity. 2. ed. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, (1977) 2003; STAMBAUGH, J. E. ; STAMBAUGH, J. E.; BALCH, D. L. The New Testament in Its Social Environment. Louisville: Westminster John Knox Press, 1986.

[50]. HENGEL, M. Judentum und Hellenismus: Studien zu ihrer Begegnung unter besonderer Berücksichtigung Palästinas bis zur Mitte des 2. Jahrhunderts vor Christus 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 1988 (versão inglesa: HENGEL, M. Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period. London: SCM Press, 2012); GRANT, R. M. Early Christianity and Society, New York: Harper & Row, 1977; SCHOTTROFF, L.; STEGEMANN, W. Jesus von Nazareth, Hoffnung der Armen. 3. ed. Stuttgart: Kohlhammer, [1978] 1990.

[51]. Cf. ELLIOTT, J. H., What is Social-Scientific Criticism?, p. 20. É preciso, porém, lembrarmos que esta é uma distinção que só se pode fazer a partir de (e dentro de) uma teoria funcionalista da sociedade. O marxismo reivindica o direito de explicar os fatos sociais e executa uma análise histórica com pressupostos e categorias que desvenda os fundamentos de uma determinada realidade social. Veja-se, como exemplo teórico e prático, o volumoso estudo de DE STE. CROIX, G. E. M. The Class Struggle in the Ancient Greek World from the Archaic Age to the Arab Conquests. London: Duckworth, 1997.

[52]. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A Interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994.  Disponível online no site do Vaticano. Cf. também o comentário ao documento feito por FITZMYER, J. A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997.

[53]. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A Interpretação da Bíblia na Igreja, p. 32-33.

[54]. Idem, ibidem, p. 68-69.

[55]. Idem, ibidem, p. 69.

[56]. Idem, ibidem, p. 71.

[57]. FITZMYER, J. A. A Bíblia na Igreja, p. 58-59.

[58]. Idem, ibidem, p. 59. Este “ler nas entrelinhas do texto bíblico e não as linhas propriamente ditas” serve para desqualificar o valor dos métodos citados.

[59]. Cf. TERRA, J. E. M. Como se lê a Bíblia na América Latina. Revista de Cultura Bíblica, São Paulo, n. 45 e 46, p. 40-56, 1988.

[60]. Cf. BOFF, C. Teologia e Prática: Teologia do Político e suas Mediações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 175-237.


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6. Bruce Malina e a antropologia do mundo mediterrâneo: 1981

Os vários estudos de Bruce J. Malina, professor na Creighton University, Nebraska, começando com uma publicação feita em 1981, são significativos para a leitura socioantropológica do Novo Testamento, especialmente no âmbito da exegese norte-americana. Abaixo, um elenco de seus principais livros (omiti aqui os artigos, mas muitos deles foram relançados em alguns destes livros):

MALINA, B. J. The New Testament World: Insights from Cultural Anthropology. 3. ed. Louisville: Westminster John Knox Press, [1981] 2001.

MALINA, B. J. The Gospel of John in Sociolinguistic Perspective. Berkeley: Center for Hermeneutical Studies, 1985.

MALINA, B. J. Christian Origins and Cultural Anthropology: Practical Models for Biblical Interpretation. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, [1986] 2010.

MALINA, B. J.; NEYREY, J. H. Calling Jesus Names: The Social Value of Labels in Matthew. Sonoma, Calif.: Polebridge Press, 1988.

MALINA, B. J.; ROHRBAUGH, R. L. Social-Science Commentary on the Synoptic Gospels. 2. ed. Minneapolis: Fortress Press, [1992] 2003.

MALINA, B. J. Windows on the World of Jesus: Time Travel to Ancient Judea. Louisville: Westminster John Knox Press, 1993.

MALINA, B. J. On the Genre and Message of Revelation: Star Visions and Sky Journeys. Grand Rapids: Baker Academic, 1995.

MALINA, B. J.; NEYREY, J. H. Portraits of Paul: An Archaeology of Ancient Personality. Louisville: Westminster John Knox Press, 1996.

MALINA, B. J. The Social World of Jesus and the Gospels. London: Routledge, 1996.

MALINA, B. J.; ROHRBAUGH, R. L. Social-Science Commentary on the Gospel of John. Minneapolis: Fortress Press, 1998.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Book of Revelation. Minneapolis: Fortress Press, 2000.

MALINA, B. J. The Social Gospel of Jesus: The Kingdom of God in Mediterranean Perspective. Minneapolis: Fortress Press, 2000. Em português: O evangelho social de Jesus. O reino de Deus em perspectiva mediterrânea. São Paulo: Paulus, 2004.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Letters of Paul. Minneapolis: Fortress Press, 2006.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Book of Acts. Minneapolis: Fortress Press, 2008.

MALINA, B. J.; PILCH, J. J. Social-Science Commentary on the Deutero-Pauline Letters. Minneapolis: Fortress Press, 2013.

Bruce Malina fundamenta-se em teorias antropológicas atuais para entender a cultura do mundo mediterrâneo antigo onde o Novo Testamento foi gerado. Seu enfoque privilegia o estudo dos ambientes sociais, dos modos de pensar e dos padrões de comportamento das comunidades bíblicas em contraste com o mundo do intérprete moderno da Bíblia, tentando construir uma ponte entre estes dois mundos que nos permita resgatar o sentido dos textos do Novo Testamento. É assim que Malina estuda Paulo e a lei numa perspectiva socioantropológica, Jesus mais como um personagem de consagrada reputação do que uma figura carismática[25], o grupo de contracultura que produziu o evangelho de João, a pobreza como ausência de laços sociais e não apenas como falta de bens materiais, os códigos de hospitalidade pressupostos na terceira carta de João, a relação patrão-cliente modelando a relação Deus-homem e as orações de Jesus[26], a percepção característica do tempo na antiguidade modelando as noções de escatologia e apocalíptica…[27].

Diz Bruce Malina, na introdução de um de seus livros, que o objetivo da interpretação do Novo Testamento é “descobrir o que um grupo específico do século primeiro do Mediterrâneo oriental entendia quando documentos contidos em o Novo Testamento eram lidos para eles. Por isso, minha tarefa é descobrir o que os documentos têm a dizer e o que eles significavam para os seus destinatários originais. Eu considero que o sentido, tanto lá como aqui, reside, em última instância, no sistema social compartilhado por pessoas que regularmente interagem umas com as outras”[28].

 

7. J. H. Elliott e a sociologia da 1a Carta de Pedro: 1981/1990

Em 1981 J. H. Elliott publicou uma análise da primeira carta de Pedro com o título de A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis of 1 Peter; Its Situation and Strategy, na qual, utilizando uma teoria de Robbin Scroggs de que o cristianismo primitivo constituiu uma seita messiânica surgida dentro do judaísmo, o autor aplica o modelo de seita desenvolvido por Bryan Wilson para retratar a precária situação do cristianismo da Ásia Menor e a estratégia de resposta da carta a tal situação[29].

Avaliando o resultado de seu estudo do ponto de vista metodológico, J. H. Elliott diz que “analisar 1 Pedro em termos de um modelo sectário forneceu um recurso heurístico para visualizar a dinâmica social implícita neste escrito e esclarecer a maneira na qual os vários conteúdos, temas e metáforas organizadoras foram integrados para formar uma comunicação coerente e persuasiva para motivar sua audiência para uma forma efetiva de ação social”[30].

 

8. Wayne Meeks e os primeiros cristãos urbanos: 1983

Em 1983 Wayne A. Meeks, da Universidade de Yale, publicou The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul. Usando a abordagem do funcionalismo estrutural,  estudou a origem, posse e status social dos indivíduos das comunidades paulinas, e também os programas, a organização e o comportamento dos grupos mencionados no conjunto dos textos paulinos, para chegar à conclusão de que o típico cristão paulino era o artesão livre e o pequeno comerciante, gente dotada de alta mobilidade social nas grandes cidades do Império Romano. Não teriam pertencido às comunidades paulinas nem o topo da pirâmide social da época (aristocratas donos de terras, senadores, cavaleiros etc.) e nem a base da pirâmide, constituída, então, pelos agricultores pobres, escravos agrícolas, trabalhadores braçais da roça, entre outros[31].

Em 1986, na Grã-Bretanha, Francis Watson leu com o recurso da sociologia a visão de Paulo a respeito do judaísmo, da lei, e dos gentios em Gálatas e Romanos, focalizando as raízes sociais de seu pensamento. Em 1987, Philip Francis Esler estudou Lucas e Atos e seu programa teológico como um processo de legitimação ideológica. Em 1988 Margaret MacDonald estudou as estratégias, os processos e estágios da institucionalização do cristianismo primitivo nas cartas paulinas e dêutero-paulinas. Também em 1988 o norueguês Halvor Moxnes, da Universidade de Oslo, publicou The Economy of the Kingdom: Social Conflict and Economic Relations in Luke’s Gospel, analisando o evangelho de Lucas à luz das relações econômicas antigas, “abrindo, assim, uma nova perspectiva para a sustentação da visão de Lucas sobre os fariseus como ‘amigos do dinheiro’ e a base social da ‘economia do Reino’ de Lucas”[32].

 

9. Ched Myers e a leitura política de Marcos: 1988

Ched Myers, em 1988, publicou um comentário ao evangelho de Marcos que tem como título Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus (“Amarrando o homem forte. Uma leitura política da história de Jesus de Marcos”) [33].

A obra compõe-se de quatro partes: a primeira trata do texto e do contexto sócio-histórico do evangelho de Marcos, a segunda e a terceira leem o texto e a quarta traz as conclusões do trabalho. Um posfácio e um apêndice consideram as várias leituras sociopolíticas atuais da narrativa de Jesus.

O autor adota o modelo centro-periferia, que ele (norte-americano, escrevendo do centro imperial) considera adequado tanto para a produção do texto de Marcos quanto para a sua leitura atual.

“O mundo mediterrâneo antigo era dominado pela lei da Roma imperial. No entanto, se eu leio situando-me no centro [USA], Marcos escreveu da periferia palestina [na Galileia, entre 66 e 70 d.C. quando Roma destruía a Palestina]. Seu principal auditório era constituído por aqueles cujas vidas diárias suportavam o peso explorador do colonialismo, ao passo que os meus ouvintes são os que se acham em posição que lhes possibilita usufruir os privilégios do colonizador”[34].

Assim, citando Dorothee Sölle, o autor reflete: “Nós que nos achamos no centro (…) não temos outra opção senão a de ‘fazer teologia na casa do faraó’, ou seja, ficar do lado dos hebreus mesmo sendo cidadãos do Egito”[35]. Privilegiada, para ler Marcos, é a situação de quem se situa na periferia e pode enfocar adequadamente temas de libertação, como o fazem os teólogos latino-americanos, emenda o autor.

Deste modo, mesmo situado no centro, o autor defende uma leitura libertadora de Marcos, considerando a chave apocalíptica a mais adequada para a leitura do texto, a partir de sua definição dos escritos apocalípticos, tais como Daniel e Apocalipse, como “manifestos políticos de movimentos não violentos de resistência à tirania”. “Meu comentário” acrescenta Myers “demonstra que o mesmo pode ser dito a propósito de Marcos”[36].

Ched Myers procura extrair três fios narrativos ou subtramas do evangelho de Marcos. “A primeira subtrama envolve tentativas de Jesus para criar e consolidar uma comunidade messiânica, tendo como sujeito evidentemente seus discípulos. Seu mandamento a eles dirigido deve levar avante a obra do reino (…) A segunda subtrama é o ministério de Jesus de cura, de exorcismo e de proclamação da libertação, tendo como sujeito os pobres e oprimidos, encarnados pela ‘multidão’ no Evangelho. O mandamento aparece no primeiro exorcismo da sinagoga, em que a multidão reconhece que a autoridade de Jesus supera a dos supersenhores, os escribas (…) A terceira subtrama é o confronto de Jesus com a ordem sociossimbólica dominante, tendo como sujeito os defensores desta ordem: os escribas, os fariseus, os herodianos e o clero dirigente de Jerusalém. Jesus confia seu mandamento a eles diversas vezes na primeira campanha de ação direta, afirmando sua autoridade sobre o sistema de pureza e de débito (2,10.28) e desafiando as autoridades a optarem pela justiça e pela compaixão em vez da dominação”[37].

Estas três subtramas levam Jesus à prisão e execução, com a deserção dos discípulos, a decepção da multidão e a hostilidade das autoridades. Jesus segue sozinho o caminho da cruz. “Essa tragédia, porém, é revertida pela promessa de que, como Jesus vive, a aventura do discipulado pode continuar (16,6s)”[38].

Deste modo, o evangelho de Marcos é visto como um manifesto escrito para súditos do poder imperial romano “aprenderem a dura verdade sobre o seu mundo e sobre eles mesmos”. Para Ched Myers o relato de Marcos “é história feita pelos comprometidos, que versa sobre os comprometidos e que se dirige aos comprometidos com a obra de Deus, obra de justiça, de compaixão e de libertação no mundo”.

Aos teólogos modernos Marcos não “oferece sinais do céu” (Mc 8,11-12), como não os oferece aos fariseus; aos exegetas que recusam um compromisso ideológico Jesus não dá resposta alguma, como não a deu aos sumos sacerdotes (Mc 11,30-33)… “Mas aos que querem provocar a ira do império, Marcos apresenta uma forma de “discipulado (8,34ss)”[39]. Um discipulado radical.

 

10. Andrew Overman e o mundo social da comunidade de Mateus: 1990

Andrew Overman publicou, em 1990, um estudo sobre o mundo social da comunidade de Mateus. Na Introdução da obra, ele expõe, apoiado em M. Weber, Berger, Luckmann e outros, seus pressupostos e sua proposta: “Este é um estudo da vida e do mundo da comunidade representada pelo Evangelho de Mateus (…) A comunidade de Mateus, como qualquer outra, defrontava-se com a tarefa de explicar suas experiências e convicções para os membros seguintes e desenvolver estruturas e procedimentos que ajudassem a protegê-la de forças e crenças estranhas. Este estudo centra-se nesses aspectos”[40].

Depois de mostrar como a natureza e a forma de uma comunidade são moldadas pelas forças e dinâmicas sociais que a cercam e de como os papéis, padrões de comportamento e instituições que surgem são uma resposta às questões e problemas que a comunidade precisa enfrentar regularmente, Overman diz que “Este é o caso da comunidade de Mateus. Boa parte da vida e da realidade refletidas no Evangelho de Mateus foi socialmente construída. Isto quer dizer que os desenvolvimentos e questões evidentes nesse Evangelho são respostas ao ambiente, à situação e ao mundo social dessa comunidade. Nenhum texto é autônomo, isolado dos eventos que ocorrem à sua volta. O que se lê em um texto como o Evangelho de Mateus é, inevitavelmente, produto do mundo do qual ele participa e de onde surgiu. Ao longo desse estudo, estaremos focalizando o mundo ou contexto e horizonte mais amplos nos quais as circunstâncias da comunidade de Mateus podem ser mais bem compreendidas e explicadas”[41].

E qual foi o fator que influenciou mais profundamente o desenvolvimento da comunidade de Mateus?, pergunta Overman. “Foi a competição e o conflito com o chamado judaísmo formativo – um grupo que, como a comunidade de Mateus, estava envolvido em um processo de construção e definição social”[42]. Nos anos que se seguiram à destruição do Templo em 70 d.C., tanto a comunidade de Mateus como o judaísmo formativo – que não deve ser visto como um movimento amplo que representa a totalidade do judaísmo, mas como um dos vários movimentos que lutavam para ganhar mais influência e controle no período pós-70 – se organizaram e definiram mais ativamente sua vida e suas crenças, continua o autor, que sugere em seguida: “Na época da escritura do Evangelho de Mateus, os dois grupos, o judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus, estavam evidentemente em competição e, ao que parece, o judaísmo formativo estava ganhando terreno. Isso tem um impacto significativo na forma e no conteúdo do Evangelho de Mateus. Muitos dos desenvolvimentos na vida da comunidade de Mateus ocorriam em resposta ao impacto que um judaísmo formativo em organização e consolidação estava tendo sobre as pessoas da comunidade e sobre seu mundo”[43].

O judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus desenvolveram-se e cresceram em caminhos paralelos, mas em determinado ponto, possivelmente na época da escrita do Evangelho, os dois grupos começaram a divergir. Por isso, “o Evangelho de Mateus não pode ser compreendido isolado da concorrência e do conflito com o judaísmo formativo”, e mais: “O Evangelho de Mateus não é apenas um registro, então, de um momento crítico na história desses dois movimentos incipientes; ele também constitui um capítulo inestimável na história mais ampla das relações judaico-cristãs, sua definição e seu conflito”. Assim, Overman espera que o estudo atento do Evangelho de Mateus possa “ajudar a proporcionar um maior entendimento e apreciação mútuos entre essas duas religiões fraternas”[44].

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[25]. Cf. MALINA, B. J. The Social World of Jesus and the Gospels. London: Routledge, 1996, p. 123-142.

[26]. Idem, ibidem, p. 143-175.

[27]. Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 24-27.

[28]. MALINA, B. J. The Social World of Jesus and the Gospels, p. XI.

[29]. Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 24-25. O estudo de Elliott, lançado em 1981, foi reeditado em 1990 com nova introdução. Cf.  ELLIOTT, J. H. A Home for the Homeless: A Sociological Exegesis of 1 Peter, Its Situation and Strategy. With a New Introduction. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, [1981] 2005. Em português; Um lar para quem não tem casa: Interpretação sociológica da primeira carta de Pedro. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2011. O estudo de Robbin Scroggs é The Earliest Christian Communities as Sectarian Movement. In: NEUSNER, J. (ed.), Christianity, Judaism and Other Greco-Roman Cults. Leiden: Brill, 1975. 

[30]. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 86.

[31]. Cf. MEEKS, W. A. The First Urban Christians: The Social World of the Apostle Paul. 2. ed. New Haven: Yale University Press, [1983] 2003. Em português: Os primeiros cristãos urbanos: O mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2011.; cf. também DA SILVA, A. J. Do campo para a cidade: o Evangelho de Paulo. Vida Pastoral, São Paulo, n. 152, p. 13-18, 1990. Disponível online. Naturalmente as conclusões de W. A. Meeks não foram unanimemente aceitas, pois os dados dos quais se inferem os resultados são em geral bastante vagos.

[32]. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 28; WATSON, F. Paul, Judaism and the Gentiles: Beyond the New Perspective. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007; ESLER, Ph. F. Community and Gospel in Luke-Acts: The Social and Political Motivations of Lucan Theology. New York: Cambridge University Press, 1989; MACDONALD, M. Y. The Pauline Churches: A Socio-Historical Study of Institutionalization in the Pauline and Deutrero-Pauline Writings. New York: Cambridge University Press, 2004; MOXNES, H. The Economy of the Kingdom: Social Conflict and Economic Relations in Luke’s Gospel. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, 2004. Em português: A economia do Reino: Conflito social e relações econômicas no Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 1997.

[33]. Cf. MYERS, C. Binding the Strong Man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus. Maryknoll, NY: Orbis Books, [1988] 2008. Em português: O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulus, 1992.

[34]. MYERS, C. O evangelho de São Marcos, p. 29.

[35]. Idem, ibidem, p. 30.

[36]. Idem, ibidem, p. 491.

[37]. Idem, ibidem, p. 158-159.

[38]. Idem, ibidem, p. 158.

[39]. Idem, ibidem, p. 34.

[40]. OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo: O Mundo Social da Comunidade de Mateus. São Paulo: Loyola, 1997, p. 13. O original inglês é Matthew’s Gospel and Formative Judaism: The Social World of the Matthean Community. Minneapolis: Fortress Press, 1990.

[41]. Idem, ibidem, p. 13-14.

[42]. Idem, ibidem, p. 14.

[43]. Idem, ibidem, p. 14.

[44]. Idem, ibidem, p. 17.


Sociologia 4

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9. Robert R. Wilson e Thomas Overholt: e o profetismo?

Na área dos estudos sobre as instituições israelitas, constituiu-se uma ampla discussão em torno dos estudos de Robert R. Wilson e de Thomas Overholt que aplicaram modelos transculturais no estudo da profecia israelita.

Robert Wilson trabalha questões relativas ao profeta visto como intermediário e as forças sociais que o sustentam, distinguindo duas vertentes naRobert R. Wilson, Profecia e sociedade no antigo Israel profecia israelita: a vertente efraimita e a vertente judaíta.

Os profetas efraimitas, apoiados socialmente pelo grupo levítico, sempre atuaram na periferia da sociedade, denunciando o poder monárquico como destruidor das estruturas sociais javistas. Sua visão é a de que o profeta é o único intermediário legíti­mo entre Iahweh e Israel. Visão esta bem assentada na teologia do Deuteronômio, de origem levítica (cf. Dt 18). O seu modelo de profeta: Moisés.

Já a profecia judaíta tinha função de manutenção da ordem social central. Quan­do Isaías, por exemplo, profeta judaíta da ordem social central, prega a conversão e a reforma é para preservar a ordem davídica que se fragmentava sob governos incompe­tentes ou corruptos. Daí que sua articulação teológica se fundava em Davi e em Sião[39].

Thomas Overholt trabalha um modelo de profecia orientado pela cultura nativa norte-americana e enfatiza a relação entre o profeta, a divindade e a comunidade para a qual o profeta fala, mostrando que o “feedback” dado pela comunidade é fundamental para a constituição da autoridade profética[40].

 

10. Paul Hanson e a aurora da apocalíptica

Paul Hanson, na tradição do conflito, vai buscar as raízes da apocalíptica dentro da profecia, mostrando que no Trito-Isaías (Is 56-66) há um confronto entre grupos visionários herdeiros do profetismo e grupos sacerdotais sadoquitas conservadores, na definição dos papéis sociais que se reconstroem na comunidade pós-exílica.

Ele diz: “A literatura apocalíptica do século segundo e posteriores é o resultado de um longo desenvolvimento que começa no pré-exílio, e não um recém-nascido filho de pais estrangeiros do século segundo. Não somente suas origens, mas também a própria natureza das obras apocalípticas mais recentes só podem ser compreendidas através da reconstrução de seu longo desenvolvimento através dos séculos, no qual a escatologia apocalíptica nasce da profecia e até mesmo de outras raízes mais arcaicas”[41].

 

11. H. G. Kippenberg: religião e formação de classes na antiga Judeia

O alemão Hans G. Kippenberg publicou em 1978 um estudo interessantíssimo sobre a formação do judaísmo pós-exílico chamado Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social, “uma tentativa de interpretar social e antropologicamente os temas da história religiosa da antiga Judeia”, tarefa possível graças aos “consideráveis progressos da antropologia social anglo-saxônica e da etnologia francesa”[42].

Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga JudeiaO objetivo da obra: relacionar o conteúdo das tradições religiosas judaicas com a vida social dos judeus. O motivo da obra: os movimentos judaicos de resistência contra gregos e romanos tiveram interpretações divergentes por parte dos autores.

Por exemplo: M. Hengel (1961) defende que o movimento zelota de resistência tem, como dominantes, razões religiosas, afirmando, assim, a independência e a prioridade do religioso sobre o político-social, enquanto H. Kreissig (1970) defende que foram as contradições sociais, criadas por condições socioeconômicas, que possibilitaram o processo de resistência contra Roma, sendo os camponeses e sacerdotes das camadas mais baixas os seus motores principais. Percebe-se que Hengel e Kreissig trabalham dentro da dicotomia Religião e Sociedade: para um, são as motivações religiosas que dominam a história; para outro, são as motivações sociais que contam.

Mas, neste meio tempo, avançou a sociologia etnológica em três áreas: etnologia do parentesco, antropologia econômica e antropologia política. Daí o presente livro: ele interpreta a antiga literatura judaica em relação aos conceitos e métodos da etnologia – ou antropologia social. A etnologia tenta reconstruir o tipo de ordem social da Judeia antiga, comparando-o com os de outras sociedades do Antigo Oriente Médio.

Os movimentos judaicos de resistência levantam a seguinte questão: existia uma relação intrínseca entre determinados conteúdos da tradição religiosa e as lutas de resistência, ou a relação era extrínseca ou, até mesmo, casual?

A hipótese do autor é a seguinte: a tradição se uniu com duas tendências antagônicas: a tendência à formação de classes e a tendência à solidariedade, formando, assim, dois complexos divergentes de tradição que fundamentam os conteúdos religiosos dos movimentos judaicos de resistência.

Publiquei um resumo deste livro na revista Estudos Bíblicos, em 2013, e, antes disso, no blog Observatório Bíblico, em 2007. Confira aqui e aqui.

 

12. Leitura socioantropológica do livro de Rute

Ouso citar aqui minha contribuição: Leitura socioantropológica do Livro de Rute. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 98, p. 107-120, 2008.

O meu artigo, que está disponível online, começa assim:

Ao fazer a proposta de uma leitura socioantropológica, estou sugerindo que estas duas ciências sociais, entre outras, podem contribuir hoje de maneira eficaz para o estudo dos textos bíblicos. Mas também estou pressupondo como necessária a abordagem literária dos mesmos textos bíblicos, para evitar a armadilha da leitura do texto como relato fidedigno da realidade social subjacente.

Qual seria, porém, a contribuição específica da leitura socioantropológica? Penso que pode ser o fato desta abordagem examinar não somente a literatura bíblica, mas também as forças sociais subjacentes à produção desta literatura, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto. O desafio maior, neste caso, será combinar, sem reducionismos, as abordagens socioantropológica e literária.

Vou utilizar o livro de Rute para visualizar esta proposta. Este livro é uma história que usa lugares reais e pessoas fictícias situadas em determinado espaço e tempo para construir a sua narrativa. Daí que três níveis conectados pela perspectiva conferida ao texto pelo autor/a da história devem ser considerados:
· o imaginário do autor/a que gera a narrativa
· o mundo real fora do livro
· a construção social e ideológica deste mundo pelo autor/a para atingir um objetivo.

É preciso, portanto, como sugeri, olhar em duas direções:
· para a sociedade que aparece dentro do texto, observando quem são os personagens, o mundo no qual se movem e quais são suas práticas econômicas, políticas e sociais
· para a sociedade que aparece por trás do texto, investigando a situação na qual e para a qual o livro foi escrito.

Deste modo deveria ser possível mostrar que o modo como os personagens organizam sua visão de mundo são, na verdade, ferramentas literárias utilizadas pelo autor/a na construção de uma história totalmente fictícia, mas que, sem dúvida, produz uma mensagem que é considerada pelo autor/a de Rute como um caminho a ser buscado, estruturando o livro como uma narrativa orientada por uma proposta séria.

O artigo pode ser desenvolvido da seguinte maneira:
1. Olhando a história com os olhos do autor/a, pergunto: o que diz o livro de Rute?
2. Olhando para além do livro, pergunto: o que é possível saber da época em que foi escrito o livro de Rute?
3. Olhando a história com os olhos do leitor atual, pergunto: qual é a proposta do livro de Rute?[43].


Finalmente sou obrigado a admitir que o artigo vai ficar com muitas lacunas. Atualmente (2015) há centenas de importantes estudos socioantropológicos sobre a Bíblia Hebraica. O que apresentei aqui é apenas uma pequena amostra. E ainda há mais. Temas nos quais nem toquei, como os estudos feministas, as abordagens pós-coloniais e tantos outros[44].

Lembro, para terminar, que o leitor pode conferir, com proveito, recente estudo de Roland Boer sobre a economia do antigo Israel, do qual acabei de tomar conhecimento: BOER, R. The Sacred Economy of Ancient Israel. Louisville: Westminster John Knox Press, 2015. Confira minha apresentação aqui.

 

Bibliografia

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BOER, R. The Sacred Economy of Ancient Israel. Louisville: Westminster John Knox Press, 2015.

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>> Bibliografia atualizada em 02.06.2022

Artigos


 [39]. Cf. WILSON, R. R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. 2. ed. revista. São Paulo: Targumim/Paulus, 2006. O original inglês é Prophecy and Society in Ancient Israel. Minneapolis, MN: Fortress Press, 1980.

[40].  Cf. OVERHOLT, T. Prophecy: The Problem of Cross-Cultural Comparison. In: CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, p. 423-447. O estudo original é de 1982.

[41]. HANSON, P. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological Roots of Jewish Apocalyptic Eschatology. Revised Edition. Minneapolis, MN: Fortress Press, 1983, p. 6. A obra foi publicada pela primeira vez em 1975. Cf. também meu artigo Apocalíptica: busca de um tempo sem fronteiras.

[42]. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, [1988] 1997, p. 7. A obra original em alemão, fruto de uma tese de livre-docência apresentada na Faculdade de Filosofia e Sociologia da Universidade Livre de Berlim, Alemanha, em 1975, chama-se Religion und Klassenbildung im antiken Judäa: eine religionswissenschaftliche Studie zum Verhältnis von Tradition und gesellschaftlicher Entwicklung. 2. ed., erw. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, [1978] 1982.

[43]. Cf. o post Leitura socioantropológica do livro de Rute no blog Observatório Bíblico. E, a partir dele, siga os links para os outros posts sobre Rute.

[44]. Sobre a leitura bíblica pós-colonial, conferir PERDUE, L. G.; CARTER, W. Israel and Empire: A Postcolonial History of Israel and Early Judaism. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015; PUNT, J. Postcolonial biblical interpretation: Reframing Paul. Leiden: Brill, 2015; BOER, R. (ed.) Postcolonialism and the Hebrew Bible: The Next Step. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2013; SUGIRTHARAJAH, R. S. Exploring Postcolonial Biblical Criticism: History, Method, Practice. Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 2012. Sobre a teologia pós-colonial, veja meu post Teologia pós-colonial na Concilium.


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4. Novas narrativas sobre as origens de Israel

Sobre as origens de Israel vários autores, sobretudo nas décadas de 80 e 90 do século XX, mas não somente, procuraram avançar a partir e além de Mendenhall e Gottwald. Como nos lembra R. K. Gnuse, as descobertas arqueológicas dos últimos anos encorajaram os pesquisadores na elaboração de novas maneiras de compreender as origens de Israel. As escavações de localidades tais como Ai, Khirbert Raddana, Shiloh, Tel Quiri, Bet Gala, Izbet Sarta, Tel Qasileh, Tel Isdar, Dan, Arad, Tel Masos, Beer-Sheba, Har Adir, Horvart Harashim, Tel Beit Mirsim, Sasa, Giloh, Horvat ‘Avot, Tel en-Nasbeh, Beth-Zur e Tel el-Fûl, deixaram os arqueólogos impressionados com a continuidade existente entre as cidades cananeias das planícies e os povoados israelitas das colinas. A continuidade está presente sobretudo na cerâmica, nas técnicas agrícolas, nas construções e nas ferramentas.

Lester L. Grabbe, Ancient Israel: What Do We Know and How Do We Know It?O crescente consenso entre os arqueólogos é de que a distinção entre cananeus e israelitas no primeiro período do assentamento na terra é cada vez mais difícil de ser feito, pois estes parecem constituir um só povo. As diferenças entre os dois aparecem apenas mais tarde. Por isso, os arqueólogos começam a falar cada vez mais do processo de formação de Israel como um processo pacífico e gradual, a partir da transformação de parte da sociedade cananeia. De alguma maneira, cananeus gradualmente tornaram-se israelitas, acompanhando transformações políticas e sociais no começo da Idade do Ferro.

Os defensores deste ponto de vista argumentam com o declínio cultural ocorrido no Bronze Recente, com a deterioração da vida urbana causada pelas campanhas militares egípcias, com a crescente tributação, e, talvez, com mudanças climáticas. Mas o processo de evolução pacífica de onde surgiu Israel é descrito de maneira diferente pelos especialistas, de modo que R. K. Gnuse prefere classificar as teorias em quatro categorias, que são:

. Retirada pacífica
. Nomadismo interno
. Transição ou transformação pacífica
. Amálgama pacífico[34].

 

5. Philip R. Davies vai em busca do antigo Israel

Em 1992, Philip R. Davies, à época professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Reino Unido, publicou um provocador livro sobre o ‘antigo Israel’, In Search of ‘Ancient Israel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1992 [2. ed. em 1995  e reedição, por T. & T. Clark, em 2005]. argumentando que este é um construto erudito elaborado pelos estudiosos a partir do Israel bíblico e de uns poucos dados arqueológicos e não o Israel histórico, real.

A tese de Philip R. Davies é de que uma busca do ‘antigo Israel’ é hoje necessária, pois o ‘antigo Israel’ do mundo acadêmico não é uma construçãoPhilip R. Davies, In Search of 'Ancient Israel': A Study in Biblical Origins histórica, além de ter desalojado da pesquisa algo que é histórico.

Para Philip Davies, o Israel bíblico é um problema e não um dado. Nós não podemos identificar automaticamente a população da Palestina na Idade do Ferro (a partir de 1200 a.C.) e de certo modo também a do período persa, com o ‘Israel’ bíblico. Nós não podemos transferir automaticamente nenhuma das características do ‘Israel’ bíblico para as páginas da história da Palestina. Ora, se nós temos que extrair nossa definição do povo da Palestina das relíquias sobreviventes de seu passado, isto significa excluir a literatura bíblica, conclui o autor[35].

 

6. O império davídico-salomônico encolheu e sumiu

Em 1996 foi publicado um livro editado por Volkmar Fritz & Philip R. Davies sobre As Origens dos Antigos Estados Israelitas, no qual é apresentada a recente controvérsia sobre a existência ou não de uma monarquia unida em Israel e, especialmente, de um império davídico-salomônico.

O livro traz dez conferências de renomados especialistas apresentadas em um Colóquio Internacional realizado em Jerusalém sob os auspícios do Instituto Protestante Alemão de Arqueologia, dirigido por Volkmar Fritz. O Colóquio teve como tema A Formação de um Estado. Problemas Históricos, Arqueológicos e Sociológicos no Período da Monarquia Unida em Israel. Do colóquio participaram pesquisadores israelenses, europeus e norte-americanos.

Na Introdução Philip Davies começa lembrando que o debate sobre a formação dos estados israelita e judaico, que já vinha sendo feito, esquentou bastante com a descoberta, em 1993, da inscrição de Tel Dan.

The Origins of the Ancient Israelite StatesNesta polêmica inscrição, alguns especialistas leem um par de palavras como uma referência a um rei da “casa de Davi” – o que faria desta inscrição a primeira e, até agora, única referência extrabíblica a Davi e a seu reino -, enquanto outros preferem outras leituras, negando, deste modo, qualquer apoio deste texto à existência de um reino davídico na região da Palestina.

Voltemos a Philip R. Davies, que emenda com os temas tratados neste livro: O que teria sido este primeiro ‘estado Israelita’? Um reino unido, composto pelas tribos de Israel e Judá, dominando todo o território da Palestina e, posteriormente, sendo dividido em reinos do ‘norte’ e do ‘sul’? Ou seria tudo isto mera ficção, não tendo Israel e Judá jamais sido unidos? O que teria acontecido na região central da Palestina nos séculos X e IX AEC?[36].

Já Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, no capítulo sobre a monarquia davídico-salomônica de seu livro The Bible Unearthed [em português: A Bíblia não tinha razão], p. 123-145, nos lembram como, para os leitores da Bíblia, Davi e Salomão representam uma idade de ouro, enquanto que para os estudiosos representavam, até recentemente, o primeiro período bíblico realmente histórico. Hoje, a crise se abateu sobre o “império” davídico-salomônico. E se perguntam: Davi e Salomão existiram? Mostram como os minimalistas dizem: “não”, os argumentos pró e contra a postura dos minimalistas, e colocam aquela que é para eles a questão chave: o que diz a arqueologia sobre Davi/Salomão?

Dizem os autores: “Não há razões para duvidarmos da historicidade de Davi e Salomão. Há, sim, muitos motivos para questionarmos as dimensões e o esplendor de seus reinos. Mas, e se não existiu um grande império, nem monumentos, nem uma magnífica capital, qual era a natureza do reino de Davi?” (p. 142).

O quadro é o seguinte: região rural… nenhum documento escrito… nenhum sinal de uma estrutura cultural necessária em uma monarquia… do ponto de visto demográfico, de Jerusalém para o norte, povoamento mais denso; de Jerusalém para o sul, mais escasso… estimativa populacional: dos 45 mil habitantes da região montanhosa, cerca de 40 mil habitariam os povoados do norte e apenas 5 mil se distribuíam entre Jerusalém, Hebron e mais uns 20 pequenos povoados de Judá, com grupos continuando o pastoreio…

Davi e seus descendentes? “No século décimo, pelo menos, seu governo não possuía nenhum império, nem cidades com palácios, nem uma espetacular capital. Arqueologicamente, de Davi e Salomão só podemos dizer que eles existiram – e que sua lenda perdurou” (p. 143).

Entretanto, quando o Deuteronomista escreveu sua obra no século VII a.C., Jerusalém tinha todas as estruturas de uma sofisticada capital monárquica. Então, o ambiente desta época é que serviu de pano de fundo para a narrativa de um mítica idade de ouro. Uma bem elaborada teologia ligava Josias e o destino de todo o povo de Israel à herança davídica: ele unificara o território, acabara com o ciclo idolátrico da época dos Juízes e concretizara a promessa feita a Abraão de um vasto e poderoso reino. Josias era o novo Davi e Iahweh cumprira suas promessas “O que o historiador deuteronomista queria dizer é simples e forte: existe ainda uma maneira de reconquistar a glória do passado” (p. 144)[37].

 

7. O Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica

Na década de 90 [do século XX] um grupo de 21 pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades iniciou o Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica. Este grupo surgiu com o objetivo de abordar as questões centrais da ‘História de Israel’ de maneira sistemática e de determinar as reais posições e problemas da área. O seu coordenador foi Lester L. Grabbe, Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Antigo e, à época da criação do grupo, Coordenador do Departamento de Teologia da Universidade de Hull, Reino Unido.

Explica Lester L. Grabbe que o debate sobre o modo como a ‘História de Israel’ tem sido escrita veio se acirrando cada vez mais nos últimos anos, e muitos pesquisadores têm sofrido ataques radicais. Surgiram protestos, por exemplo, dizendo que as tendências atuais da ‘História de Israel’ são perigosas e que, por isso, devem ser combatidas ou ignoradas ou, até mesmo, as duas coisas ao mesmo tempo.

Lester L. Grabbe está se referindo à controvérsia existente entre a postura maximalista que defende que tudo nas fontes que não pode ser provado como falso deve ser aceito como histórico e a postura minimalista que defende que tudo que não é corroborado por evidências contemporâneas aos eventos a serem reconstruídos deve ser descartado.

Os autores ‘minimalistas’ são também conhecidos como membros da Escola de Copenhague, pois alguns dos mais importantes entre eles, comoCan a 'History of Israel' Be Written? Niels Peter Lemche e Thomas L. Thompson, trabalham na capital dinamarquesa. Entretanto, nem todos os participantes do Seminário se consideram ‘minimalistas’, categoria que, aliás, gera polêmica, como se pode ver em artigo de 2002 de DAVIES, P. R. Minimalism, “Ancient Israel,” and Anti-Semitism. “Minimalism” is an invention. None of the “minimalist” scholars is aware of being part of a school, or a group, em The Bible and Interpretation.

O grupo fez 17 seminários, de 1996 a 2012. Em julho de 1996 foi realizado em Dublin, Irlanda, o Primeiro Seminário, dedicado a tomadas de posição. Todos as conferências abordaram de um modo ou de outro as duas questões seguintes: Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita e, caso possa, como? Que papel exerce neste empreendimento o texto do Antigo Testamento/da Bíblia Hebraica?[38].

 

8. Desenterrando a Bíblia com Finkelstein e Silberman

Foi citado mais acima um livro que causou grande impacto nos estudos bíblicos, especialmente na História de Israel, nos últimos anos:  FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed. Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001. O livro já foi traduzido para mais de uma dezena de línguas, inclusive para o português, com o (infeliz) título de A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003. Esgotada esta edição, o livro foi relançado em nova tradução e com o título mais adequado de A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.

Este envolvente livro contém 12 capítulos agrupados em três partes, um epílogo, 7 apêndices – que retomam e aprofundam temas tratados ao longo do texto – uma bibliografia, um índice de nomes e lugares, além dos tradicionais prólogo e introdução. Donos de prosa refinada, os autores tomam cuidadosamente o leitor pela mão e o conduzem em aventura fascinante através do mundo do Antigo Israel.

The Bible UnearthedFinkelstein e Silberman observam que, nestes últimos anos, a controvérsia arqueológica sobre a questão bíblica cresceu muito, inclusive com acusações pessoais de motivações políticas inconfessáveis [os autores devem estar se referindo às possíveis implicações da pesquisa acadêmica para as reivindicações atuais de determinados grupos em Israel sobre o território palestino].

Houve um êxodo? Existiu uma conquista de Canaã? Davi e Salomão governaram um grande império? Questões como estas atraíram jornalistas, chegaram ao grande público e, ao ultrapassarem os círculos acadêmicos da arqueologia e da exegese bíblica, criaram polêmicos debates teológicos, resultando até em discussões sobre a crença religiosa deste ou daquele estudioso.

Por tudo isso é que declaram os autores: “Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior” (p. V-VI). Sua proposta no livro: apresentar evidências que sustentam esta afirmação e reconstruir uma história do antigo Israel bem diferente das habituais.

Os autores, diante de controvertidas questões, sempre perguntam: o que diz a arqueologia sobre isto?

Continue lendo aqui.  Sobre Israel Finkelstein, leia também aqui.

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[34]. Cf. GNUSE, R. K. No Other Gods: Emergent Monotheism in Israel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, p. 32-61. Aqui remeto o leitor para o meu texto com explicações detalhadas sobre o assunto e respectiva bibliografia na “Historia de Israel”. Aqui.

[35]. Cf. DAVIES, P. R. In Search of ‘Ancient Israel’: A Study in Biblical Origins. 2. ed. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015. Continue a exposição aqui. Confira uma exposição mais detalhada do livro na resenha que está aqui.

[36]. Cf. FRITZ, V. ; DAVIES, P. R. (eds.) The Origins of the Ancient Israelite States. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996. Continue a leitura em “Existiu um império davídico-salomônico?” Este tema foi tratado também aqui.

[37]. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed. Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, p. 123-145 [em português: A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003]. Há uma resenha do livro aqui. Cf. também FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. David and Solomon: In Search of the Bible’s Sacred Kings and the Roots of the Western Tradition. New York: The Free Press, 2007;  FINKELSTEIN, I. O reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015; KAEFER, J. A. A Bíblia, a arqueologia e a história de Israel e Judá. São Paulo: Paulus, 2015. Leia mais aqui e aqui.

[38]. Continue a leitura aqui, ou, se preferir mais detalhes, aqui.