Por que milagres?

Por que milagres? O caso da multiplicação do pães

 

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Hoje, quando ouvimos dizer que aconteceu um milagre, o que pensamos? Pensamos logo na excepcionalidade do fato, no extraordinário da ocorrência, no impossível que se tornou possível por alguma força estranha, um mecanismo oculto, além da nossa compreensão, um poder sobrenatural que, por alguma razão, se manifestou. Ou duvidamos da coisa toda.

Nesta costumeira definição de milagre pode o leitor observar que o ponto de referência é a violação do modo natural das coisas acontecerem. Pois o milagre é visto como algo acima ou contra as leis que regem o mundo e as nossas vidas. As oposições em jogo esclarecem o raciocínio: excepcional x normal, extraordinário x ordinário, impossível x possível, estranho x comum, oculto x conhecido, sobrenatural x natural[1].

Para as pessoas que professam alguma crença religiosa, o milagre, estando do lado do sobrenatural, está do lado de Deus ou dos seus intermediários, em oposição ao  mundo natural dos homens. É visto, neste caso, como uma intervenção divina vinda de fora, alterando a ordem natural dos acontecimentos.

E na Bíblia? Será essa a noção de milagre? Será que a visão corrente de mundo na época de Jesus, por exemplo, coincide com a de hoje? Por que será que naquele tempo havia tanto milagre e hoje não? O que é milagre na Bíblia?

O desafio que lanço ao leitor é o seguinte: lermos juntos o milagre da multiplicação dos pães, de Mc 6,30-44, para entendermos o texto e, talvez, respondermos a algumas destas perguntas.

Para isto, creio que devemos fazer cinco coisas:

1. A primeira é uma leitura de Mc 6,30-44. Mas não aquela leitura mal acostumada, onde vemos tudo o que está em nossa cabeça, mas não se enxerga uma linha do próprio texto. E é preciso ler mais de uma vez. Já disse R. Barthes, um especialista no assunto: “Aqueles que não releem são obrigados a ler sempre e em todos os textos a mesma história”[2].

2. Em seguida leremos mais cinco textos, onde aparecem os outros relatos da multiplicação dos pães. No próprio Marcos e nos outros evangelhos. Aí, já estaremos com muitos elementos para abordarmos o texto pela comparação dos vários modos de contar de cada evangelista.

3. Agora é a hora certa de se perguntar a Marcos por que ele contou este episódio neste lugar do Evangelho e não em outro. Afastando-nos um pouco e olhando de longe, verificaremos o plano geral do Evangelho de Marcos e o contexto em que está o milagre em questão.

4. Por falar em milagre, é bem possível que houvesse naquele tempo uma maneira costumeira de contar um fato desse tipo, diferente, por exemplo, do modo de contá-lo hoje em dia. Ver isso pode ser nossa quarta tarefa.

5. Mas agora não podemos mais parar. É preciso perguntar imediatamente: o que se esconde por trás deste modo de contar? Ou, qual é o recado que Marcos quer dar à sua comunidade e ao seu leitor?

Só então é que talvez possamos descobrir o sentido do texto para nós, leitores a quase dois mil anos de distância. Vamos lá?

 

1. Qual é o assunto do texto?

6,30 Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado.

31 Ele disse: “Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco”. Com efeito, os que chegavam e os que partiam eram tantos que não tinham tempo nem de comer.

32 E foram de barco a um lugar deserto, afastado.

33 Muitos, porém os viram partir e, sabendo disso, de todas as cidades, correram para lá a pé e chegaram antes deles.

34 Assim que ele desembarcou, viu uma grande multidão e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas.

35 Sendo a hora já muito avançada, os discípulos aproximaram-se dele e disseram: “O lugar é deserto e a hora já muito avançada.

36 Despede-os para que vão aos campos e povoados vizinhos e comprem para si o que comer”.

37 Jesus lhes respondeu: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Disseram-lhe eles: “Iremos e compraremos duzentos denários de pão para dar-lhes de comer?”

38 Ele perguntou: “Quantos pães tendes? Ide ver”. Tendo se informado, responderam: “Cinco, e dois peixes”.

39 Ordenou-lhes então que fizessem todos se acomodarem, em grupos de convivas, sobre a grama verde.

40 E sentaram-se no chão, repartindo-se em grupos de cem e de cinquenta.

41 Tomando os cinco pães e os dois peixes elevou ele os olhos ao céu, abençoou, partiu os pães e deu-os aos discípulos para que lhos distribuíssem. E repartiu também os dois peixes entre todos.

42 Todos comeram e ficaram saciados.

43 E ainda recolheram doze cestos cheios dos pedaços de pão e de peixes.

44 E os que comeram dos pães eram cinco mil homens[3].

 

Relendo, com atenção, o texto, você pode verificar que:

A) Os APÓSTOLOS chegam de uma missão, vão com Jesus, de barco, para UM LUGAR DESERTO a fim de descansarem, mas são PRECEDIDOS pela multidão. Jesus tem compaixão daquelas pessoas e começa a ENSINAR-LHES muitas coisas, porque elas são como OVELHAS SEM PASTOR.

B) Sendo já tarde, os discípulos querem despedi-las para que se alimentem. Jesus manda que eles mesmos LHES DEEM DE COMER, ao que retrucam que gastariam duzentos denários para COMPRAR pão para tanta gente. Verificando, porém, que tinham consigo CINCO PÃES e DOIS PEIXES, acomodam a multidão no chão, em grupos de CEM e de CINQUENTA. Jesus toma os pães e os peixes, ELEVA OS OLHOS AO CÉU, ABENÇOA E PARTE os pães. São os discípulos que os DISTRIBUEM à multidão. Os peixes são igualmente repartidos entre todos.

A’) TODOS COMERAM E FICARAM SACIADOS. E ainda recolheram DOZE cestos cheios de pedaços de pão e peixes. Eram, os que comeram, CINCO MIL HOMENS.

Chamam a nossa atenção, neste resumo do texto, duas coisas: as palavras em maiúsculo, que destacam coisas importantes, e a sequência A-B-A’.

A sequência A-B-A’ é uma maneira de o leitor perceber o projeto de construção do texto. É uma tentativa de encontrar aquilo que os biblistas chamam de estrutura do texto.

Parece que temos aqui três blocos, cada um composto de duas cenas, onde a intervenção de Jesus como pastor (A) transforma a fome/escassez (B) em saciedade/abundância (A’). Assim:

A) vv. 30-34: a chegada de Jesus como pastor

1ª cena: os apóstolos chegam, saem com Jesus para um lugar deserto e são precedidos pela multidão.

2ª cena: Jesus desembarca, tem compaixão e ensina à multidão.

B) vv. 35-41: a fome do povo e a escassez de alimento

1ª cena: constatação da fome e da escassez.

2ª cena: distribuição dos poucos pães e peixes.

A’) vv. 42-44: a saciedade da multidão e a abundância de alimento

1ª cena: cinco mil homens comem e ficam saciados.

2ª cena: sobram ainda doze cestos de pão e peixe.

 

2. Os outros relatos de multiplicação dos pães

Agora, após a leitura de nosso texto, podemos confrontá-lo com outros cinco relatos de multiplicação dos pães existentes nos evangelhos.

Mc 8,1-10 traz outra multiplicação dos pães. À primeira vista, é bastante parecida com a que acabamos de ler, mas há algumas diferenças. As maiores são:

— Jesus tem compaixão da multidão porque ela NÃO TEM O QUE COMER;

— os discípulos têm SETE pães e ALGUNS peixinhos;

— são recolhidos SETE cestos;

— os que comeram eram CERCA DE QUATRO MIL.

 

Mt 14,13-21 narra a multiplicação dos pães de modo muito parecido com Mc 6,30-44. São cinco pães e dois peixes, recolhem doze cestos de pedaços etc. Entretanto, observamos:

— Jesus tem compaixão da multidão e CURA SEUS DOENTES;

— os que comeram eram CERCA de cinco mil, sem contar mulheres e crianças.

 

Mt 15,32-39 apresenta uma segunda multiplicação dos pães, muito parecida com o segundo texto de Marcos (8,1-10): sete pães e alguns peixinhos, são recolhidos sete cestos e eram, os que comeram, quatro mil homens.

Paciência, leitor, pois falta pouco, e dessa aparente confusão vamos tirar alguma conclusão.

O próximo é Lc 9,10-17, onde conseguimos encontrar o texto mais parecido, entre todos, com Mc 6,30-44:

— como em Marcos, os apóstolos chegam da missão (em Mt eles são chamados de discípulos);

— Jesus falou à multidão do Reino de Deus e curou os doentes;

— os discípulos tinham cinco pães e dois peixes;

— a multidão acomoda-se em grupos de cinquenta (Mt não especifica a divisão dos grupos);

— são recolhidos doze cestos de pedaços;

— os que comeram eram quase cinco mil homens.

Finalmente, o último texto, o de Jo 6,1-13, parece conter elementos da 1ª e da 2ª multiplicação dos pães. Menciona os DUZENTOS DENÁRIOS, os CINCO pães e DOIS peixinhos, o recolhimento de DOZE cestos e o número de APROXIMADAMENTE CINCO MIL HOMENS. Mas nada diz, por exemplo, sobre o ensinamento ou as curas, nem menciona os grupos de cem e cinquenta pessoas[4].

Com este panorama, já podemos ver como os seis textos em questão se relacionam em suas semelhanças e diferenças:

1ª multiplicação                                           2ª multiplicação

Mc 6 → Lc 9 → Mt 14                                              Mc 8 → Mt 15

                                                       

síntese da 1ª e 2ª

Jo 6

Os especialistas, hoje são unânimes em afirmar que há um só relato na origem destes textos todos. Sabe-se que era muito comum as comunidades diversificarem os relatos orais de suas confissões de fé em Jesus, de tal modo que o evangelista Marcos, recolhendo a tradição querigmática cerca de quarenta anos após o acontecimento, conta duas vezes o mesmo caso. Atestam-no, pelo menos, as semelhanças entre Mc 6 e Mc 8 e a pergunta dos discípulos em Mc 8,4: “Como poderia alguém, aqui num deserto, saciar com pão a tanta gente?” Que sentido teria ela se isto já tivesse sido feito anteriormente?

As diferenças entre a 1ª e a 2ª são perfeitamente explicáveis pelas ampliações ocorridas no decurso da tradição oral[5].

Já Lucas e Mateus dependem grandemente de Marcos, usado por eles como fonte, enquanto João, o último a escrever, pôde fazer uma síntese dos vários elementos[6].

Olhando ainda um pouquinho para os dois textos de Marcos (Mc 6 e 8), verificaremos que os especialistas arriscam uma hipótese interessante sobre a origem deste duplo relato.

Observaram que Marcos usa, em grego, duas palavras para os cestos onde são recolhidas as sobras:

— Mc 6,43: kófinos: cesto;

— Mc 8,8: spyrís: cesta.

Acontece que os judeus usavam mais o primeiro e os gregos (= gentios, não judeus), o segundo termo.

Outra coisa: Mc 6 fala de doze cestos, enquanto Mc 8 fala de sete cestas e também de sete pães. Pode ser mera coincidência, já que o número sete se presta, na Bíblia, a muitas significações, mas a evangelização dos gentios começou com o grupo dos “sete”, escolhidos pelos discípulos especialmente para isso (At 6,1-6).

Além disso, o acontecimento de Mc 8 foi colocado em território gentio, na região da Decápole, como indica Mc 7,31, enquanto o de Mc 6 se passa em território judeu.

Outra contribuição interessante vem dos textos sobre a Última Ceia. Há relatos da Ceia em Paulo (1Cor 11), Lucas, Marcos e Mateus. Estes 4 textos são relacionados dois a dois: Mc 14,22-25 e Mt 26,26-29 são semelhantes, o mesmo acontecendo com Paulo (1Cor 11,23-25) e Lc 22,14-20.

Ora, em Marcos e Mateus, o gesto de Jesus, ao tomar o pão, durante a Ceia, é descrito com o verbo eulogein, “abençoar”, enquanto em Paulo e Lucas é usado o verbo eucharistein, “dar graças”[7].

Voltando à multiplicação dos pães, o que verificamos? Na primeira, em Mc 6,41, Jesus, erguendo os os olhos para o céu, abençoou (eulógesen), enquanto em Mc 8,6, na segunda, Jesus, dando graças (eucharistêsas), partiu os sete pães.

Sabendo também que estes verbos designam o rito judaico de bênção à mesa, observamos que eulogein é uma tradução literal da bênção judaica, enquanto eucharistein é uma adaptação do rito ao vocabulário e ao ambiente gregos.

É, afinal, como explica J. Delorme: “Vemos assim que o mesmo rito judaico foi designado tanto de modo literal (eulogein) como de modo adaptado, à língua grega (eucharistein). Semelhante adaptação só se poderia realizar em ambiente grego”[8].

De tudo isso é que decorre a hipótese de que falávamos: a primeira multiplicação representa uma tradição amadurecida em ambiente judaico-cristão, enquanto a segunda desenvolveu-se em um ambiente gentílico-cristão, ou seja, em comunidades de língua grega. Marcos recolheu as duas tradições e as apresentou como fatos sucessivos[9].

 

3. Quem é Jesus?

Chegou a hora de perguntarmos a Marcos por que ele colocou este episódio da multiplicação dos pães neste ponto de seu evangelho, no capítulo 6. Só assim saberemos o que ele pretendia com isso.

Olhando o evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a nossa atenção. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram encantados com o seu ensina­mento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.

E o que é que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir por todo o evangelho (por exemplo, em Mc 2,13; 4,1; 6,2.6.34). Só a partir de 8,31 é que se indica o conteúdo deste ensinamento, mesmo assim só para os discípulos.

O que significa isto?

É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de “palavras” ou de “discursos” de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Pa­ra Marcos o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.

Então, para entendermos Marcos é bom que nos preocupemos com as atitudes de Jesus e com a reação daqueles que se movimentam ao seu redor.

As ações de Jesus vão suscitando, em seus ouvintes (a multidão, os discípulos e os inimigos), três perguntas fundamentais:

— Quem é Jesus?

— Com que autoridade ele faz estas coisas?

— Será que chegou o momento da intervenção definitiva de Deus na história?

E aí podemos perceber como todo o evangelho é construído na forma de uma escada, onde cada degrau vai respondendo, pouco a pouco, a duas grandes questões, que dividem o texto em dois lanços:

1º) Quem é Jesus?

— Mc 8,29: “Tu és o Messias (o Cristo)”

2º) Que tipo de Messias ele é?

— Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34: um Messias que sofre e morre na cruz, mas ressuscita.

O evangelho de Marcos pode ser esquematizado assim:

3.1. 1º lanço da escada: Quem é Jesus?

1,1: título do livro: evangelho de Jesus Cristo.

1,2-15: o caminho de Jesus: Galileia-Judeia-Galileia.

1,16-45: um dia de Jesus na Galileia.

2,1-3,6: Jesus versus escribas e fariseus: rejeição da ideologia judaica.

3,7-8,30: os discípulos compreendem que Jesus é o Messias.

3.2. 2º lanço da escada: Que tipo de Messias ele é?

8,31-10,52: a subida a Jerusalém: um Messias diferente.

11,1-13,37: Jesus prega, em Jerusalém, o fim do judaísmo.

14,1-16,8: Jesus é condenado como subversivo morre na cruz e ressuscita.

3.3. Junção dos dois lanços da escada

8,29: o Messias.

Agora podemos entender a função da multiplicação dos pães neste lugar do evangelho: Jesus quer fazer os discípulos compreenderem que ele é o Messias.

Há, em Mc 8,14-21, um episódio que confirma esta ideia: utilizando a metáfora do fermento para falar do perigo da ideologia dos fariseus e de Herodes, e não sendo compreendido pelos discípulos, Jesus procura analisar, com eles, a multiplicação dos pães. E os repreende, pois eles não tinham entendido que quem tem o poder de alimentar tanta gente e ainda faz sobrar grande quantidade só pode ser o Messias.

 

4. Jesus fez mesmo o milagre?

Uma ideia que já deve estar passeando pela cabeça do leitor, nesta altura dos acontecimentos, é a de que estamos falando muito do texto, do que Marcos fez ou não fez, mas não foi dita uma palavra sequer sobre o milagre em si mesmo: Jesus multiplicou mesmo os pães e os peixes?

Lamento decepcioná-lo, caro leitor, mas a sua dúvida, colocada de forma assim tão direta, não tem solução. É preciso ir devagar.

Chamo a sua atenção para uma coisa inquietante, presente nos textos, em todos os seis, sobre a multiplicação dos pães: em momento algum, nenhum deles fala de uma multiplicação dos pães. Fala, isto sim, de uma superabundância de alimento tirada da escassez reinante.

E não é sem motivo. Na mentalidade dos primeiros cristãos, assim como na dos judeus em geral, milagre não é algo acima ou contra as leis da natureza, como costumamos pensar. Milagre não é aquele fato definitivo e assustador que prova alguma coisa. Por sinal, este tipo de “prova” é rejeitado por Jesus em Mc 8,11-13 e em Mc 13,21-22. Milagre não prova nada. Pode até ser o contrário, ser sinal do mal, como suspeitam os escribas, de Jesus, em Mc 3,22.

Através de todos os evangelhos, verifica-se que o milagre é um sinal. É como um semáforo: o que está em primeiro plano não é a cor em si, é o seu significado previamente combinado e codificado nas leis de trânsito. Ou então: o milagre é uma seta que aponta para algo. Deve-se caminhar não para a seta, mas na direção em que aponta.

Talvez isso fique mais claro se o leitor prestar atenção a uma área dos estudos bíblicos conhecida como crítica das formas.

É um método de exegese que estuda especialmente os gêneros literários da comunicação oral e escrita. E aí o que se verifica é que não basta procurarmos o sentido de um texto. É preciso descobrirmos o modo como se conta algo e determinarmos a intenção da linguagem utilizada, além de verificarmos seu contexto vital (a palavra técnica, em alemão, é Sitz im Leben). Deste modo, o sentido de um texto começa a aparecer[10].

Ora, a intenção do Evangelho, como diz o próprio nome, é anunciar uma novidade boa, longamente esperada e aspirada pelos judeus: a chegada do Messias que traz a salvação.

Assim é que os milagres devem ser lidos como sinais messiânicos que apontam para uma nova realidade e inauguram um novo tempo. Por isso há tantos milagres nos evangelhos.

Mas e a excepcionalidade do fato, onde é que fica? Quem nos dá uma boa pista é, de novo, A. Weiser. Ele nos alerta que é um tremendo erro saltarmos de pés juntos do conceito moderno de milagre (que coloca o extraordinário em primeiro plano) para o conceito bíblico de milagre (que não coloca o extraordinário em primeiro plano). Há aí um abismo enorme entre as duas concepções; mas não intransponível: a ponte é o próprio texto. Como usá-la?

É preciso, em primeiro lugar, não se limitar ao aspecto histórico do acontecimento, as procurar saber, antes de tudo, qual é o sentido e a intenção da narrativa de um milagre.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que a intenção de um relato de milagre não é a de oferecer informações de natureza científica a futuros e distantes leitores.

E, por fim, é necessário constatar que os texto sobre milagre querem mesmo é abrir o olhar do leitor par a ação salvífica de Deus e levá-lo a um compromisso com o projeto evangélico[11].

Assim, voltamos a Marcos. Mais uma vez é ele quem nos esclarece: você percebeu que os relatos de milagres estão quase todos na primeira parte do evangelho? Pois confira. Só há dois milagres após 8,29, quando Pedro confessa que Jesus é o Messias. São os textos de Mc 9,14-29 e Mc 10,46-52. Mesmo assim, ambos têm relação óbvia com a confissão de fé dos discípulos.

A primeira parte, porém, nos transmite dezessete milagres. Se você está pensando nos acontecimentos de Jerusalém como miraculosos, desista. Em Jerusalém não acontece milagre algum, pois a figueira seca e o encontro do jumentinho são de outra categoria, são atos proféticos. E, finalmente, os fenômenos que acompanham a morte de Jesus não pertencem ao gênero literário dos milagres[12].

Ora, os milagres em Marcos servem para provocar a questão básica: quem é Jesus? E esta leva à confissão de Pedro em 8,29: “Tu és o Messias”. Depois disso, eles não são mais necessários.

 

5. O recado de Marcos

Pois bem, se Marcos não quer nos mostrar “uma coisa do outro mundo”, qual é então o seu recado? Vamos tratar disso agora.

O ponto é este: Jesus é o Messias. Mas, ainda fica obscuro: o que tem a ver o Messias com a transformação da escassez em abundância, da fome do povo em saciedade?

Neste instante, somos convidados a dar um passeio pelo Antigo Testamento e pelo judaísmo, para tirar essa dúvida.

A esperança messiânica compreendia que a intervenção definitiva de Deus na história resolveria de uma vez por todas os problemas enfrentados pelo povo israelita em sua atribulada caminhada. O Messias seria o libertador da opressão, da miséria, da fome, da doença, da desgraça, da pobreza, da morte[13].

O judaísmo o descrevia como um novo Moisés, aquele que repetiria o milagre do maná, aquele que transformaria, no deserto, a fome em saciedade. Quanta semelhança com o nosso texto, não?

E há realmente muitos elementos em Mc 6 que apontam nesta direção:

— O lugar deserto lembra o ambiente do êxodo e do maná.

— Jesus teve compaixão, porque o povo estava como ovelhas sem pastor: no AT os li­deres de Israel são chamados habitualmente de pastores do povo e são duramente criticados pelos profetas por pastorearem a si mesmos e abandonarem seu rebanho. Marcos apresenta Jesus como o verdadeiro pastor do povo abandonado (lembro a você que, em Marcos, o poder político é sempre apresentado como repressivo e sanguinário, portador da morte: cf. Mc 6,14-29; 14,1-2.55-65; 15,1-15.23-41).

— Os discípulos falam em comprar, Jesus fala em dar: o Messias opera uma verdadeira subversão do sistema econômico corrente, uma radical negação do sistema de mercado através do dinheiro e uma defesa do sistema de partilha. Puxa o tapete do sistema de classes daquela sociedade, onde muitos passam fome, mas só alguns detêm toda a riqueza e o poder[14]. Essa distribuição entre todos, esse compartilhar do alimento, operado pelo Messias, se relaciona com a memória histórica do tempo do êxodo, com um povo em processo de libertação, com a lembrança de uma sociedade sem um sistema social tão estratificado, onde todos produzem e todos consomem, como era a sociedade tribal pré-monárquica.

— A divisão dos homens em grupos de cem e cinquenta (antiga divisão militar israelita: por isso Marcos só fala em homens) era considerada no judaísmo como a que seria feita no momento da intervenção do Messias em Israel.

Mas há ainda outra questão: normalmente este texto é lido em relação com a celebração da eucaristia. Esta leitura é correta?

O v. 41 é o elemento central dessa leitura: Jesus “elevou os olhos ao céu, abençoou e partiu os pães e deu-os aos discípulos para que os distribuíssem”.

Essa sequência de gestos era, no judaísmo, a que realizava o pai de família à mesa: orava, elevando os olhos ao céu, abençoava, partia o pão e o distribuía aos comensais. Gestos usados por Jesus na última ceia.

O que parece ter acontecido com a tradição sobre a multiplicação dos pães foi o seguinte: a comunidade primitiva transmitia o episódio no contexto de uma catequese eucarística, como recurso para recordar a sua missão. São os “apóstolos” (= enviados) que estão com Jesus e são eles que distribuem o alimento. A comunidade prossegue a sua tarefa.

“Assim a comunidade que se reúne para participar do pão, recorda o milagre de Jesus alimentando a multidão e encontra nisso a definição do que ela é chamada a ser: o povo de Deus do fim dos tempos, reunido em torno do novo Moisés, pelo ministério apostólico”[15].

Por isso, a leitura deste texto, em nossas comunidades cristãs, é atual e urgente.

> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p.43-53, 1989. Revisto e atualizado em 2020.

Uma primeira versão deste texto foi publicada em Vida Pastoral, São Paulo, n. 120, p. 2-8, 1985. Veja o artigo, na íntegra, aqui. Esta versão na Estudos Bíblicos amplia a da Vida Pastoral.

Artigos


  1. WEISER, A. O que é milagre na Bíblia: Para você entender os relatos dos Evangelhos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 12-13, resume muito bem este aspecto, quando diz: “A característica básica a partir da qual se designa alguma coisa por milagre é o elemento excepcionalidade. Mas as opiniões divergem quando se trata de definir em que consiste esta excepcionalidade: para alguns basta somente que o fato aconteça de modo inesperado, enquanto para outros o grau de excepcionalidade exigido para que haja milagres só se verifica quando o fato não pode ser explicado pela ciência. O que se observa, portanto, em primeiro plano, é que se toma a lei natural de modo mais ou menos consciente como ponto de referência”
  2. BARTHES, R. S/Z. Torino: Einaudi, 1973, p. 20.
  3. Tradução da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
  4. Entretanto, é João quem evoca mais claramente os temas do êxodo, cuja memória histórica mostra um povo em processo de libertação e construção de uma nova sociedade. Como os seguintes: a passagem do mar (v.1), o monte (v. 3), a proximidade da Páscoa (v. 4), a tentação (v. 6) e o pão, equivalente ao maná (v. 9.11.13). Além disso, João inspira-se em 2Rs 4,42-44, onde o profeta Eliseu alimenta cem pessoas com apenas vinte pães de cevada (um pão de cevada bastava para uma pessoa apenas). Cf. o excelente comentário de MATEOS, J. ; BARRETO, J. O Evangelho de João: análise linguística e comentário exegético. São Paulo: Paulus, 1989, p. 282-299.
  5. Cf., por exemplo, o clássico TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, p. 756-758.
  6. Cf. um interessante questionário sobre as semelhanças e diferenças entre Mc 6 e Mc 8 em WEISER, A. O que é milagre na Bíblia, p. 57. O leitor pode, por exemplo, exercitar-se na comparação de textos sinóticos com as narrativas da cura dos cegos em Mc 10,46-52 e Mt 20,29-34, onde o único cego de Marcos transforma-se nos dois cegos de Mateus.
  7. Sobre os relatos da Última Ceia, cf. o excelente estudo de LÉON-DUFOUR, X. O partir do Pão Eucarístico segundo o Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1984 ou VV. AA. A Eucaristia na Bíblia. São Paulo: Paulus, 1985.
  8. DELORME, J. Leitura do Evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulus, 1982, p. 77. O rito familiar judaico do partir o pão à mesa compreende três coisas: 1) o chefe de família, sentado, toma o pão e pronuncia a bênção: “Bendito sê Tu, ó Senhor, nosso Deus, Rei do universo, que tiras o pão da terra” (em hebraico, soa assim: Baruch Ata Adonai, Elohenu Melech ha-olam, hamotzi lechem min ha-aretz); 2) em seguida, parte o pão (feito de farinha de cevada ou trigo, de forma arredondada e chata) com as mãos; 3) por fim, distribui os pedaços aos convivas. Observa LÉON-DUFOUR, X. o. c., p. 29: “Pela partilha dos pedaços constituía-se efetivamente a comunidade de mesa: a partir de então, os convivas formavam uma só coisa e Deus, doador, era considerado presente”. Como guia interessante sobre os ritos judaicos , cf. ASHERI, M. O judaísmo vivo: as tradições e as leis dos judeus praticantes. Rio de Janeiro: Imago, 1987. As bênçãos judaicas mais usadas estão nas páginas 338-345.
  9. Cf. DELORME, J. o. c., p. 76-81.
  10. Cf., sobre isso, LOHFINK, G. Agora entendo a Bíblia: para você entender a crítica das formas. São Paulo: Paulus, 1978, p. 29-54.
  11. Cf. WEISER, A. o. c., p. 28-29. Quanto ao significado de “leis da natureza”, geralmente pensadas como imutáveis, é bom que fique atento o leitor: este um conceito decorrente de uma visão positivista de ciência, dominante no século XIX, e, ainda hoje, muito espalhada entre nós. Lembro ao leitor que o desenvolvimento de novas teorias científicas, realizado no século XX, entre elas a física relativista (Einstein) e a física quântica (Planck, Einstein, Bohr, Heisenberg e outros), abalou seriamente a visão positivista da realidade.
  12. Cf. VV. AA. Os milagres do Evangelho. São Paulo: Paulus, 1982, p. 45-57.
  13. No livro apócrifo conhecido como Apocalipse siríaco de Baruc, escrito entre 75 e 100 d.C. por um autor do meio fariseu, lemos sobre a era messiânica: “Então a saúde descerá como o orvalho e a enfermidade se afastará para longe. Desaparecerão as preocupações, as angústias e os gemidos entre os homens, e a paz se estenderá por toda a terra, e ninguém morrerá antes do tempo”. No Targum palestino de Gn 49,10-12 (targum é uma tradução aramaica parafraseada dos textos bíblicos, usada nas sinagogas na época de Jesus) lemos sobre o Messias: “Seus lábios são mais brancos do que o leite, porque com eles não se alimenta nem de rapinas nem de furtos. As suas montanhas se tornarão vermelhas pelas uvas e seus lagares,pelo vinho; as suas colinas se tornarão brancas pela abundância do trigo e pelos rebanhos de ovelhas”. Também os Salmos de Salomão, escrito apócrifo apocalíptico situado entre os anos 63-40 a.C., dizem: “Ele é poderoso em suas obras e forte pelo temor de Deus; apascenta o rebanho do Senhor na fé e na justiça, e não deixará, entre eles, doentes nas suas pastagens; conduzi-los-á a todos na igualdade, e entre eles não haverá orgulho para oprimir os outros”. Textos como estes podem ser lidos em PAUL, A. O que o Intertestamento. São Paulo: Paulus, 1981.
  14. A situação da Palestina na época de Jesus é bastante crítica. Em um processo que começa ainda na época persa, 500 anos antes, os camponeses eram duramente explorados por uma aristocracia instalada no poder e amparada pelos interesses dos dominadores estrangeiros. Herodes Magno (37-4 a.C.) aprofundou dramaticamente o processo de exploração. Seus filhos, mas especialmente os procuradores romanos da Judeia, levaram o país a uma situação insustentável. O resultado foi uma guerra total dos judeus contra Roma, que culminou na destruição de 70 d.C. e na dispersão dos sobreviventes. Cf., sobre esta época, https://airtonjo.com/site1/historia-31.htm e https://airtonjo.com/site1/kippenberg.htm
  15. DELORME, J. o. c., p. 75. Servi-me, também, para comparar vários elementos deste caso e hipóteses de especialistas, de um texto mimeografado de DE LA POTTERIE, I. Exegesis synopticorum. Sectio panum in Evangelio Marci (6,6-8,23). Roma: Curso do Pontifício Instituto Bíblico, 1971-72.

Última atualização: 03.12.2020 – 08h31