leitura: 10 min
5.4. Os últimos dias de Judá
Como assírios e egípcios nada conseguiram contra os babilônios, o faraó Necao II procurou consolidar seu poder na Palestina. Chama Joacaz até seu quartel-general na Síria, depõe o rei e deporta-o para o Egito. Coloca no trono de Judá o irmão de Joacaz, Joaquim, que tinha 25 anos de idade. Joacaz reinara três meses. Judá passou então a pagar pesado tributo ao Egito, o que durou até 605 a.C., quando o rei babilônio Nabucodonosor derrotou as forças egípcias e desceu até a Palestina. Joaquim fez com ele um acordo e Judá não foi destruído.
Mas não durou nada. Em 600 a.C. Nabucodonosor tentou invadir o Egito e não conseguiu. Judá rebelou-se, acreditando na libertação. Seu erro foi fatal. Enquanto os babilônios marchavam para Jerusalém, morreu Joaquim (provavelmente assassinado), em dezembro de 598 a.C. e foi substituído por seu filho Joaquin, de 18 anos, que capitulou no dia 16 de março de 597 a.C. O rei foi deportado para a Babilônia com a corte e toda a classe dirigente. Segundo a Crônica Babilônica:
“No sétimo ano, no mês de kismilu [18.12.598-15.1.597], o rei da Babilônia mobilizou suas tropas e marchou para Hattu. Ele se estabeleceu na cidade de Judá e no mês de addar, no segundo dia [16.3.597], ele tomou a cidade; aprisionou o rei e colocou outro, de sua escolha, no lugar dele, e exigiu uma pesada renda que levou para a Babilônia“[15].
No lugar de Joaquin os babilônios deixaram o tio, Sedecias, então com 21 anos de idade. Judá estava mesmo arruinado. Com várias cidades destruídas, sua economia desorganizada e o melhor da nação exilado, pouco restava ao fraco Sedecias que pudesse ser feito. Algumas tentativas de revolta foram abafadas. Finalmente, em 588 a.C., Judá começou uma clara rebelião contra a Babilônia, que o levou à destruição final. Os babilônios destruíram, em 588 mesmo, as cidades fortificadas de Judá, assediando a desesperada Jerusalém em 587 a.C., no mês de janeiro. Na fortaleza de Laquis foram encontrados, em 1935 e 1938, vinte e um óstraca. Testemunhos dramáticos da invasão babilônica de 588 a.C., os óstraca [pedaços de cerâmica sobre os quais se escrevia uma mensagem] falam do cerco, da situação crítica em que se encontram e das medidas tomadas[16].
Durante um breve período, o cerco de Jerusalém foi levantado: havia a esperança egípcia. Que não se concretizou. Finalmente, em 19 de julho de 586 a.C., Jerusalém cedeu. Sedecias fugiu na direção de Amon. Não adiantou. Foi preso e levado diante de Nabucodonosor a Rebla, na Síria, assistiu à execução de seus filhos, foi cegado, acorrentado e levado para a Babilônia, onde morreu. Em agosto, o comandante da guarda de Nabucodonosor entrou em Jerusalém, incendiou tudo, derrubou o Templo, as muralhas, levou as pessoas de maior destaque que executou em Rebla, diante de Nabucodonosor, enquanto deportava outro grupo para a Babilônia. Calcula-se que cerca de 4.600 homens da classe dirigente judaica tenham ido para o exílio. Somadas as mulheres e as crianças, seu número poderia chegar a quase vinte mil pessoas. A população restante, camponesa, foi deixada no país.
Estes dados estão em Jr 52,27-30, que documenta três deportações: a de 597 a.C., sob Joaquin; a de 586 a.C., sob Sedecias; e uma última, de 582 a.C., talvez em represália ao assassinato de Godolias. Porque, de fato, na Judeia, os babilônios colocaram Godolias como governador. Godolias acabou assassinado pelo nacionalista Ismael, em outubro do mesmo ano. Acabara-se Judá. A história do povo, e sua literatura, vão continuar no exílio, que durou mais de 50 anos.
Uma observação sobre esta deportação numericamente modesta: enquanto os assírios deportavam grandes contingentes da população, os babilônios deportavam apenas a classe dirigente. Tanto assírios quanto babilônios obtinham, com esta estratégia, mão de obra especializada e quebravam a resistência política dos vencidos. Mas, enquanto os assírios buscavam uma uniformidade “assíria” nas províncias, com rigoroso controle político-militar, os babilônios deixavam as terras conquistadas nas mãos das populações locais – sem chance de se rebelar porque politicamente desorganizadas – ao mesmo tempo que permitiam às elites deportadas a manutenção de sua identidade. Pode ser que isto explique o destino bem diferente dos israelitas, que nunca mais voltaram, em relação aos judaítas, que irão reconstruir o seu país quando terminar o exílio[17].
Mas como foi o exílio?
Esta é uma questão complexa, porque conhecemos razoavelmente bem o que aconteceu antes da destruição e temos dados que nos permitem tentar reconstruir o que aconteceu depois, na época persa. Mas e durante o exílio? Existe documentação sobre como viviam os exilados e sobre como viviam os remanescentes na terra de Judá?
No Segundo Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, realizado em Lausanne, Suíça, de 27 a 30 de julho de 1997, os pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades que fazem parte do grupo discutiram o tema do exílio babilônico. Os debates foram publicados, em 1998, no livro Conduzindo um Cativo ao Cativeiro. ‘O Exílio’ como História e Ideologia[18].
Por que julgaram importante debater o exílio? Porque o exílio é um forte símbolo na Bíblia e na pesquisa veterotestamentária. Quando história de Israel e literatura bíblica são discutidas, as coisas costumam ser classificadas em pré-exílicas e pós-exílicas. O conceito de culpa-exílio (castigo)-restauração teve grande impacto tanto no Antigo Testamento quanto na discussão teológica sobre o Antigo Testamento. Sem dúvida, ‘o exílio’ é um divisor de águas nas discussões sobre o Antigo Testamento. Mas pouco sabemos sobre ele. Até mesmo de sua existência já se duvidou: estamos lidando com um evento histórico ou não? Os judaítas foram de fato para a Babilônia no século VI a.C. e voltaram (seus descendentes) para reconstruir sua capital e seu país? Ou não estaríamos lidando com um conceito teológico e literário que serviu muito bem às necessidades dos judeus oprimidos, dos líderes religiosos, pregadores, teólogos e escritores, mas que teria sido totalmente inventado?
Segundo Lester L. Grabbe, coordenador do grupo, em dois pontos todos concordaram: 1. Ocorreram uma ou mais deportações dos reinos de Israel e Judá; 2. O termo exílio é fortemente marcado por significados teológicos e ideológicos e não é, de modo algum, um termo neutro para se referir a uma época ou a um episódio históricos.
Daí que uma das principais questões debatidas no Seminário foi se o uso do termo exílio deveria ser banido ou não do meio acadêmico, já que sua carga teológica e ideológica é um problema para o estudo deste fenômeno ou época. Alguns sugeriram deportação ou diáspora no lugar de exílio, alegando ser este um termo neutro, enquanto outros discordaram também deste termo, porque isto seria assumir ainda uma agenda bíblica e não histórica. Mas qual é a diferença real entre estes termos, se o hebraico usa a mesma palavra (gôlâh) tanto para exílio quanto para diáspora e deportação? Não houve consenso quanto a este ponto.
Outro ponto de desacordo foi a questão da ‘volta’ do exílio. Alguns acham que não houve continuidade entre os deportados da época babilônica e os que se estabeleceram na Judeia na época persa. Outros acham que se pode falar de uma ‘volta do exílio’. E foi preciso discutir o que significa ‘continuidade’, que não precisa ser necessariamente biológica, pode ser cultural. Discutiu-se aí o significado de etnia. Mas e se foram outros povos que vieram para Judá na época persa, deportados, por sua vez, de suas terras de origem? Ainda: se nem todos os judaítas foram exilados – apesar do mito da ‘terra vazia’ –, por que falar de ‘restauração’, outro conceito extremamente problemático?
Esta é apenas uma pequena amostra do que o exílio babilônico pode provocar no meio acadêmico. Apesar de toda esta incerteza, alguns dados sobre o exílio poderiam ser deduzidos, se usarmos o conhecimento que temos do mundo babilônico comparado com os escassos dados bíblicos.
Por exemplo: o rei Joaquin viveu na Babilônia, onde criou seus filhos, e era respeitado pelo grupo exilado, pois seu neto Zorobabel aparecerá como um dos líderes da reconstrução do Templo por volta de 520 a.C., na época persa. Do mesmo modo, a classe dirigente deportada, incluindo chefes de família, sacerdotes e profetas tinham uma certa liberdade para se organizarem e manter sua identidade na região das cidades em que viviam, como Babilônia e Nippur, e nos povoados que reconstruíram ao longo de rios e canais. É razoável pensar também que os deportados foram usados como colonos na agricultura local, que teve grande crescimento neste período, como atestam tanto a arqueologia da Baixa Mesopotâmia quanto arquivos de templos babilônicos. Não é descartada inclusive uma certa atividade comercial e financeira por parte de algumas famílias judaítas, como aparece nos arquivos familiares dos Murashu de Nippur. Além disso, a língua aramaica já teria começado a ser usada, segundo uma tendência geral no império, e os nomes “cananeus” dos meses vão sendo substituídos por nomes babilônicos[19].
[15]. BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 84.
[16]. Para fotos e textos dos óstraca, faça uma busca no Google, pela expressão “lachish letters”, ou, em português, “cartas de laquis”. Em BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 85-86, há dois textos das cartas de Laquis.
[17]. Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 243-246. Vale lembrar que, na página 241, Liverani mostra como a destruição de Judá é bem documentada pela arqueologia, listando mais de vinte localidades arrasadas pela guerra nesta época.
[18]. GRABBE, L.L. (ed.) Leading Captivity Captive: ‘The Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998. Visite a cidade de Babilônia, reconstruída em 3D.
[19]. Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 267-272. Cf. também DA SILVA, A. J. O paradigma bíblico exílio-restauração caducou? e Abordando Yehud, postagens publicadas no Observatório Bíblico, respectivamente, em 8 e 12 de agosto de 2009.
Última atualização: 27.04.2019 – 12h09