Sociologia 2

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3. As teorias de Mendenhall e de Gottwald

A sacudida que a pesquisa bíblica precisava veio com um artigo de George E. Mendenhall, The Hebrew Conquest of Palestine, de 1962[20]. O artigo já começa com uma constatação, que hoje tornou-se lugar comum em congressos ou salas de aula: “Não existe problema da história bíblica que seja mais difícil do que a reconstrução do processo histórico pelo qual as Doze Tribos do antigo Israel se estabeleceram na Palestina e norte da Transjordânia”[21].

De fato, a narrativa bíblica enfatiza os poderosos atos de Iahweh que liberta o povo do Egito, o conduz pelo deserto e lhe dá a terra, informando-nos, deste modo, sobre a visão e os objetivos teológicos dos narradores de séculos depois, mas ocultando-nos as circunstâncias econômicas, sociais e políticas em que se deu o surgimento de Israel.

Frente a isso, os pesquisadores sempre utilizaram modelos ideais para descrever as origens de Israel, como o fez Martin Noth com a tese da anfictionia, importada do mundo grego. O que George E. Mendenhall propôs com o seu artigo foi apresentar um novo modelo ideal em substituição a modelos que não mais se sustentavam, sugerindo uma linha de pesquisa que levasse em conta elementos que até então não tinham sido considerados.

G. E. Mendenhall começa descrevendo os dois modelos existentes até então para a entrada na terra de Canaã, o da conquista militar e o da infiltração pacífica de seminômades e elenca os três pressupostos presentes em ambos:

. as doze tribos entram na Palestina vindo de outro lugar na época da “conquista”
. as tribos israelitas eram nômades ou seminômades que tomam posse da terra e se sedentarizam
. a solidariedade das doze tribos é do tipo étnico, sendo a relação de parentesco seu traço fundamental, caracterizando-as, inclusive, em contraste com os cananeus.

Ora, continua Mendenhall, o primeiro e o terceiro pressupostos até que podem ser aceitos, mas “a suposição de que os israelitas primitivos eram nômades, entretanto, está inteiramente em contraste com as evidências bíblicas e extrabíblicas, e é aqui que a reconstrução de uma alternativa deve começar”[22].

A seguir, Mendenhall critica a visão romântica do modo de vida dos beduínos, erroneamente vistos como nômades contrastando com os sedentários das cidades, que foi assumida sem criticidade pelos pesquisadores bíblicos e usada como modelo para o Israel primitivo. Mostra que os próprios relatos bíblicos jamais colocam os antepassados de Israel como inteiramente nômades, como, por exemplo, Jacó e Labão, Jacó e seus filhos, onde há sempre uma parte do grupo que é sedentária. Critica igualmente a noção de tribo como um modo de organização social próprio de nômades, mostrando que tribos podem ser parte ou estar em relação com povoados e cidades.

Aproximando o conceito de hebreu ao de Hab/piru, e utilizando as cartas de Tell el-Amarna, Mendenhall procura demonstrar que ninguém podia nascer hebreu já que este termo indica uma situação de ruptura de pessoas e/ou grupos com a fortemente estratificada sociedade das cidades cananeias. E conclui: “Não houve uma real conquista da Palestina. O que aconteceu pode ser sumariado, do ponto de vista de um historiador interessado somente nos processos sociopolíticos, como uma revolta camponesa contra a espessa rede de cidades-estado cananeias”.

Estes camponeses revoltados contra o domínio das cidades cananeias se organizam e conquistam a Palestina, diz Mendenhall, “porque uma motivação e um movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-os capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze”[23]. Esta motivação religiosa é a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos… Por isso a tradição da aliança é tão importante na tradição bíblica, pois esta é o símbolo formal através da qual a solidariedade era tornada funcional.

A ênfase na mesma herança tribal, através dos patriarcas, e na identificação de Iahweh com o “deus dos pais”, pode ser creditada à teologia dos autores da época da monarquia e do pós-exílio que deram motivações políticas a uma unidade que foi criada pelo fator religioso[24].

Niels Peter Lemche, por outro lado, critica Mendenhall, por seu uso arbitrário de macro teorias antropológicas, mas especialmente por seu uso eclético destas teorias, coisa que os teóricos da antropologia não aprovariam de modo algum[25]. Sem dúvida, seu ponto mais crítico é o idealismo que permeia o seu estudo e coloca o “javismo”, um javismo não muito bem explicado, mas principalmente só o javismo e nenhuma outra esfera da vida daquele povo, como a causa da unidade solidária que faz surgir Israel.

Norman K. Gottwald, As tribos de IahwehAlguns anos mais tarde, Norman K. Gottwald publicou seu polêmico livro The Tribes of Yahweh: A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1050 B.C.E. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1979 [em português: As Tribos de Iahweh: Uma Sociologia da Religião de Israel Liberto, 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004], no qual retoma a tese de G. Mendenhall e avança por quase mil páginas em favor de uma revolta camponesa ou processo de retribalização que explicaria as origens de Israel. Mas, em um artigo anterior, de 1975, didaticamente, Gottwald expõe sua tese então em desenvolvimento, e que usarei aqui para sintetizar seus pontos fundamentais[26].

Ele diz que até recentemente a pesquisa sobre o Israel primitivo era dominada por três ideias básicas:

. o pressuposto de mudança social ocorrida no deslocamento de populações, ou seja: um hiato sociopolítico em Canaã teria ocorrido como resultado da substituição demográfica ou étnica de um grupo por outro, seja por imigração seja por conquista militar
. o pressuposto da criatividade do povo do deserto em iniciar mudanças sociais em regiões sedentárias, ou seja, Israel teria ocupado a terra como recurso para realizar a passagem do seminomadismo para a sedentarização, resultando numa aculturação sociopolítica
. o pressuposto de mudança social produzida por características especiais de um grupo ou por elementos culturais de destaque, ou seja, a partir do momento em que o judaísmo é lido a partir da perspectiva do judaísmo tardio e do cristianismo, o javismo é visto como fonte isolada e agente de mudança na emergência de Israel[27].

As forças e pressões que dobraram e quebraram estes pressupostos são muitos, mas basta citarmos umas poucas para que as coisas comecem a clarear: a evidência etnográfica de que o seminomadismo era apenas uma atividade secundária de populações sedentárias que criavam gado e cultivavam o solo; indicações de que mudanças culturais e sociais são frequentemente consequências do lento crescimento de conflitos sociais dentro de uma determinada população mais do que resultado de incursões de povos vindos de fora; a conclusão de que conflitos ocorrem tanto dentro de sociedades controladas por um regime único como entre estados opostos; a percepção de que a tecnologia e a organização social exercem um impacto muito maior sobre as ideias do que pesquisadores humanistas poderiam admitir; evidências da fundamental unidade cultural de Israel com Canaã em uma vasta gama de assuntos, desde a língua até a formação religiosa…

Os conceitos centrais que emergem deste deslocamento de pressupostos, cada vez maior entre os estudiosos, podem ser sintetizados da seguinte maneira:

. o pressuposto da ocorrência normal de mudança social ocorrida por pressão e conflitos sociais internos, como resultado de novos avanços tecnológicos e de ideias em confronto numa interação volátil
. o pressuposto da função secundária do deserto em precipitar a mudança social, sendo que no Antigo Oriente Médio o seminomadismo era econômica e politicamente subordinado a uma região predominante agrícola e que nunca foi ocasião de deslocamentos maciços de populações ou de conquistas políticas provocadas por estes deslocamentos
. o pressuposto de que mudança social ocorre pela interação de elementos culturais de níveis diversos, especialmente o fato de que os fatores ideológicos não podem ser desligados de indivíduos e grupos vivendo em situações específicas, nas quais determinados contextos tecnológicos e sociais adquirem configurações novas[28].

A partir de tais constatações, Gottwald propõe um modelo social para o Israel primitivo que segue as seguintes linhas: “O Israel primitivo era um agrupamento de povos cananeus rebeldes e dissidentes, que lentamente se ajuntavam e se firmavam caracterizando-se por uma forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada. Esse desligar-se da forma de organização social da cidade-estado tomou a forma de um movimento de ‘retribalização’ entre agricultores e pastores organizados em famílias ampliadas economicamente autossuficientes com acesso igual aos recursos básicos. A religião de Israel, que tinha seus fundamentos intelectuais e cultuais na religião do antigo Oriente Médio cananeu, era idiossincrática e mutável, ou seja, um ser divino integrado existia para um integrado e igualitário povo estruturado. Israel tornou-se aquele segmento de Canaã que se separou soberanamente de outro segmento de Canaã envolvendo-se na ‘política de base’ dos habitantes dos povoados organizados de forma tribal contra uma ‘política de elite’ das hierarquizadas cidades estados”[29].

Assim, Gottwald vê o tribalismo israelita como uma forma escolhida por pessoas que rejeitaram conscientemente a centralização do poder cananeu e se organizaram em um sistema descentralizado, onde as funções políticas ou eram partilhadas por vários membros do grupo ou assumiam um caráter temporário. O tribalismo israelita foi uma revolução social consciente, uma guerra civil, se quisermos, que dividiu e opôs grupos que previamente viviam organizados em cidades-estado cananeias. E Gottwald termina seu texto dizendo que o modelo da retribalização levanta uma série de questões para posterior pesquisa e reflexão teórica[30].

Realmente, o livro de Gottwald suscitou uma grande polêmica e polarizou as atenções dos especialistas durante muito tempo. O modelo da retribalização ou da revolta camponesa passou a ser citado como uma alternativa bem mais interessante do que os modelos anteriores e fez surgir outras tentativas de explicação das origens de Israel, como o modelo misto de B. Halpern (1983), o modelo da evolução progressiva de Niels Peter Lemche (1985), o modelo de simbiose de Volkmar Fritz (1987). Muitas críticas também foram formuladas a Gottwald, sendo a de maior consistência a do dinamarquês Niels Peter Lemche, que em Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy, analisa longamente os fundamentos do modelo de Gottwald[31].

Segundo Lemche, Gottwald fundamenta suas teorias no estudo de Morton Fried, The Evolution of Political Society. New York: Random, 1967, mas faz um uso eclético de outras teorias e autores, de uma maneira que dificilmente qualquer um deles aprovaria. Porém, a birra principal de Lemche com estes autores e suas teorias é que, segundo ele, os modelos derivados da corrente antropológica do “evolucionismo cultural” desconsideram a variável chamada Homem (enquanto indivíduo livre e imprevisível em suas ações) por não ser controlável[32].

Entretanto, um dos problemas do ecletismo de Gottwald é que embora se reporte às vezes a Marx, faz uma leitura do Israel pré-monárquico segundo a tradição durkheimiana. Nas palavras de A. D. H. Mayes: “Existem, porém, boas razões, para ver Gottwald neste contexto [durkheimiano] antes do que na tradição de conflito a que pertence Marx. As características distintivas da teoria de conflito, que entende a sociedade dentro do quadro da interação de diversas classes ou grupos de status, estão inteiramente ausentes do estudo de Gottwald: nele Israel surge como unidade harmoniosa e indiferenciada. Gottwald adota enfoque funcionalista da sociedade israelita, que tem certamente raízes na teoria social de Durkheim, e enfatiza sua dimensão estrutural sincrônica, antes que sua dimensão histórica diacrônica”[33].

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[20]. Cf. MENDENHALL, G. E. The Hebrew Conquest of Palestine. Biblical Archaeologist 25, p. 66-87, 1962. O artigo está reproduzido em CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, p. 152-169. Cf. também MENDENHALL, G. E. The Tenth Generation: The Origins of the Biblical Tradition. 2. ed. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University Press, [1973] 1974.

[21]. MENDENHALL, G. E. The Hebrew Conquest of Palestine. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 152.

[22]. MENDENHALL, G. E. o. c., p. 154.

[23]. Idem, ibidem, p. 158-159.

[24]. Cf. Idem, ibidem, p. 167.

[25]. Cf. LEMCHE, N. P. “On the Use of “System Theory”, “Macro Theories”, and Evolutionistic Thinking” in Modern Old Testament Research and Biblical Archaeology. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 279.

[26]. Cf. GOTTWALD, N. K. Domain Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-Monarchic Israel. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 170-181; GOTTWALD, N. K. As Tribos de Iahweh: Uma Sociologia da Religião de Israel Liberto, 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. Cf. também Revisiting The Tribes of Yahweh (2006). E ainda: BOER, R. Tracking “The Tribes of Yahweh”: On the Trail of a Classic. London: Bloomsbury T & T Clark, 2002.

[27]. Cf. Idem, ibidem, p. 172.

[28]. Cf. Idem, ibidem, p. 173-174.

[29]. Idem, ibidem, p. 174-175.

[30]. Cf. Idem, ibidem, p. 180-181.

[31]. Cf. LEMCHE, N. P. Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985; cf. também MARTIN, J. D. Israel como sociedade tribal. In: CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel: perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 97-118; SICRE, J. L. Los Orígenes de Israel. Cinco Respuestas a un Enigma Histórico, Estudios Biblicos, n. 46, Madrid, p. 421-456, 1988; FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996, p. 104-121, onde os vários modelos são descritos e analisados. Na opinião de Rogerson, J. W., Antropologia e Antigo Testamento. In: CLEMENTS, R. E. (ed.) O mundo do antigo Israel, p. 34, a obra de Lemche é “um modelo de como se poderia estudar a antropologia com referência ao Antigo Testamento”.

[32]. Cf. LEMCHE, N. P. “On the Use of “System Theory”, “Macro Theories”, and Evolutionistic Thinking” in Modern Old Testament Research and Biblical Archaeology. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 280-286.

[33]. MAYES, A. D. H. Sociologia e Antigo Testamento. In: CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel, p. 55; cf. também MAYES, A. D. H. Idealism and Materialism in Weber and Gottwald. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 267-272.

Última atualização: 27.04.2019 – 13h24