Sociologia 4

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9. Robert R. Wilson e Thomas Overholt: e o profetismo?

Na área dos estudos sobre as instituições israelitas, constituiu-se uma ampla discussão em torno dos estudos de Robert R. Wilson e de Thomas Overholt que aplicaram modelos transculturais no estudo da profecia israelita.

Robert Wilson trabalha questões relativas ao profeta visto como intermediário e as forças sociais que o sustentam, distinguindo duas vertentes naRobert R. Wilson, Profecia e sociedade no antigo Israel profecia israelita: a vertente efraimita e a vertente judaíta.

Os profetas efraimitas, apoiados socialmente pelo grupo levítico, sempre atuaram na periferia da sociedade, denunciando o poder monárquico como destruidor das estruturas sociais javistas. Sua visão é a de que o profeta é o único intermediário legíti­mo entre Iahweh e Israel. Visão esta bem assentada na teologia do Deuteronômio, de origem levítica (cf. Dt 18). O seu modelo de profeta: Moisés.

Já a profecia judaíta tinha função de manutenção da ordem social central. Quan­do Isaías, por exemplo, profeta judaíta da ordem social central, prega a conversão e a reforma é para preservar a ordem davídica que se fragmentava sob governos incompe­tentes ou corruptos. Daí que sua articulação teológica se fundava em Davi e em Sião[39].

Thomas Overholt trabalha um modelo de profecia orientado pela cultura nativa norte-americana e enfatiza a relação entre o profeta, a divindade e a comunidade para a qual o profeta fala, mostrando que o “feedback” dado pela comunidade é fundamental para a constituição da autoridade profética[40].

 

10. Paul Hanson e a aurora da apocalíptica

Paul Hanson, na tradição do conflito, vai buscar as raízes da apocalíptica dentro da profecia, mostrando que no Trito-Isaías (Is 56-66) há um confronto entre grupos visionários herdeiros do profetismo e grupos sacerdotais sadoquitas conservadores, na definição dos papéis sociais que se reconstroem na comunidade pós-exílica.

Ele diz: “A literatura apocalíptica do século segundo e posteriores é o resultado de um longo desenvolvimento que começa no pré-exílio, e não um recém-nascido filho de pais estrangeiros do século segundo. Não somente suas origens, mas também a própria natureza das obras apocalípticas mais recentes só podem ser compreendidas através da reconstrução de seu longo desenvolvimento através dos séculos, no qual a escatologia apocalíptica nasce da profecia e até mesmo de outras raízes mais arcaicas”[41].

 

11. H. G. Kippenberg: religião e formação de classes na antiga Judeia

O alemão Hans G. Kippenberg publicou em 1978 um estudo interessantíssimo sobre a formação do judaísmo pós-exílico chamado Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social, “uma tentativa de interpretar social e antropologicamente os temas da história religiosa da antiga Judeia”, tarefa possível graças aos “consideráveis progressos da antropologia social anglo-saxônica e da etnologia francesa”[42].

Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga JudeiaO objetivo da obra: relacionar o conteúdo das tradições religiosas judaicas com a vida social dos judeus. O motivo da obra: os movimentos judaicos de resistência contra gregos e romanos tiveram interpretações divergentes por parte dos autores.

Por exemplo: M. Hengel (1961) defende que o movimento zelota de resistência tem, como dominantes, razões religiosas, afirmando, assim, a independência e a prioridade do religioso sobre o político-social, enquanto H. Kreissig (1970) defende que foram as contradições sociais, criadas por condições socioeconômicas, que possibilitaram o processo de resistência contra Roma, sendo os camponeses e sacerdotes das camadas mais baixas os seus motores principais. Percebe-se que Hengel e Kreissig trabalham dentro da dicotomia Religião e Sociedade: para um, são as motivações religiosas que dominam a história; para outro, são as motivações sociais que contam.

Mas, neste meio tempo, avançou a sociologia etnológica em três áreas: etnologia do parentesco, antropologia econômica e antropologia política. Daí o presente livro: ele interpreta a antiga literatura judaica em relação aos conceitos e métodos da etnologia – ou antropologia social. A etnologia tenta reconstruir o tipo de ordem social da Judeia antiga, comparando-o com os de outras sociedades do Antigo Oriente Médio.

Os movimentos judaicos de resistência levantam a seguinte questão: existia uma relação intrínseca entre determinados conteúdos da tradição religiosa e as lutas de resistência, ou a relação era extrínseca ou, até mesmo, casual?

A hipótese do autor é a seguinte: a tradição se uniu com duas tendências antagônicas: a tendência à formação de classes e a tendência à solidariedade, formando, assim, dois complexos divergentes de tradição que fundamentam os conteúdos religiosos dos movimentos judaicos de resistência.

Publiquei um resumo deste livro na revista Estudos Bíblicos, em 2013, e, antes disso, no blog Observatório Bíblico, em 2007. Confira aqui e aqui.

 

12. Leitura socioantropológica do livro de Rute

Ouso citar aqui minha contribuição: Leitura socioantropológica do Livro de Rute. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 98, p. 107-120, 2008.

O meu artigo, que está disponível online, começa assim:

Ao fazer a proposta de uma leitura socioantropológica, estou sugerindo que estas duas ciências sociais, entre outras, podem contribuir hoje de maneira eficaz para o estudo dos textos bíblicos. Mas também estou pressupondo como necessária a abordagem literária dos mesmos textos bíblicos, para evitar a armadilha da leitura do texto como relato fidedigno da realidade social subjacente.

Qual seria, porém, a contribuição específica da leitura socioantropológica? Penso que pode ser o fato desta abordagem examinar não somente a literatura bíblica, mas também as forças sociais subjacentes à produção desta literatura, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto. O desafio maior, neste caso, será combinar, sem reducionismos, as abordagens socioantropológica e literária.

Vou utilizar o livro de Rute para visualizar esta proposta. Este livro é uma história que usa lugares reais e pessoas fictícias situadas em determinado espaço e tempo para construir a sua narrativa. Daí que três níveis conectados pela perspectiva conferida ao texto pelo autor/a da história devem ser considerados:
· o imaginário do autor/a que gera a narrativa
· o mundo real fora do livro
· a construção social e ideológica deste mundo pelo autor/a para atingir um objetivo.

É preciso, portanto, como sugeri, olhar em duas direções:
· para a sociedade que aparece dentro do texto, observando quem são os personagens, o mundo no qual se movem e quais são suas práticas econômicas, políticas e sociais
· para a sociedade que aparece por trás do texto, investigando a situação na qual e para a qual o livro foi escrito.

Deste modo deveria ser possível mostrar que o modo como os personagens organizam sua visão de mundo são, na verdade, ferramentas literárias utilizadas pelo autor/a na construção de uma história totalmente fictícia, mas que, sem dúvida, produz uma mensagem que é considerada pelo autor/a de Rute como um caminho a ser buscado, estruturando o livro como uma narrativa orientada por uma proposta séria.

O artigo pode ser desenvolvido da seguinte maneira:
1. Olhando a história com os olhos do autor/a, pergunto: o que diz o livro de Rute?
2. Olhando para além do livro, pergunto: o que é possível saber da época em que foi escrito o livro de Rute?
3. Olhando a história com os olhos do leitor atual, pergunto: qual é a proposta do livro de Rute?[43].


Finalmente sou obrigado a admitir que o artigo vai ficar com muitas lacunas. Atualmente (2015) há centenas de importantes estudos socioantropológicos sobre a Bíblia Hebraica. O que apresentei aqui é apenas uma pequena amostra. E ainda há mais. Temas nos quais nem toquei, como os estudos feministas, as abordagens pós-coloniais e tantos outros[44].

Lembro, para terminar, que o leitor pode conferir, com proveito, recente estudo de Roland Boer sobre a economia do antigo Israel, do qual acabei de tomar conhecimento: BOER, R. The Sacred Economy of Ancient Israel. Louisville: Westminster John Knox Press, 2015. Confira minha apresentação aqui.

 

Bibliografia

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>> Bibliografia atualizada em 02.06.2022

Artigos


 [39]. Cf. WILSON, R. R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. 2. ed. revista. São Paulo: Targumim/Paulus, 2006. O original inglês é Prophecy and Society in Ancient Israel. Minneapolis, MN: Fortress Press, 1980.

[40].  Cf. OVERHOLT, T. Prophecy: The Problem of Cross-Cultural Comparison. In: CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, p. 423-447. O estudo original é de 1982.

[41]. HANSON, P. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological Roots of Jewish Apocalyptic Eschatology. Revised Edition. Minneapolis, MN: Fortress Press, 1983, p. 6. A obra foi publicada pela primeira vez em 1975. Cf. também meu artigo Apocalíptica: busca de um tempo sem fronteiras.

[42]. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, [1988] 1997, p. 7. A obra original em alemão, fruto de uma tese de livre-docência apresentada na Faculdade de Filosofia e Sociologia da Universidade Livre de Berlim, Alemanha, em 1975, chama-se Religion und Klassenbildung im antiken Judäa: eine religionswissenschaftliche Studie zum Verhältnis von Tradition und gesellschaftlicher Entwicklung. 2. ed., erw. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, [1978] 1982.

[43]. Cf. o post Leitura socioantropológica do livro de Rute no blog Observatório Bíblico. E, a partir dele, siga os links para os outros posts sobre Rute.

[44]. Sobre a leitura bíblica pós-colonial, conferir PERDUE, L. G.; CARTER, W. Israel and Empire: A Postcolonial History of Israel and Early Judaism. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015; PUNT, J. Postcolonial biblical interpretation: Reframing Paul. Leiden: Brill, 2015; BOER, R. (ed.) Postcolonialism and the Hebrew Bible: The Next Step. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2013; SUGIRTHARAJAH, R. S. Exploring Postcolonial Biblical Criticism: History, Method, Practice. Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 2012. Sobre a teologia pós-colonial, veja meu post Teologia pós-colonial na Concilium.

Última atualização: 02.06.2022 – 11h55