Sociologia 2

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3. As teorias de Mendenhall e de Gottwald

A sacudida que a pesquisa bíblica precisava veio com um artigo de George E. Mendenhall, The Hebrew Conquest of Palestine, de 1962[20]. O artigo já começa com uma constatação, que hoje tornou-se lugar comum em congressos ou salas de aula: “Não existe problema da história bíblica que seja mais difícil do que a reconstrução do processo histórico pelo qual as Doze Tribos do antigo Israel se estabeleceram na Palestina e norte da Transjordânia”[21].

De fato, a narrativa bíblica enfatiza os poderosos atos de Iahweh que liberta o povo do Egito, o conduz pelo deserto e lhe dá a terra, informando-nos, deste modo, sobre a visão e os objetivos teológicos dos narradores de séculos depois, mas ocultando-nos as circunstâncias econômicas, sociais e políticas em que se deu o surgimento de Israel.

Frente a isso, os pesquisadores sempre utilizaram modelos ideais para descrever as origens de Israel, como o fez Martin Noth com a tese da anfictionia, importada do mundo grego. O que George E. Mendenhall propôs com o seu artigo foi apresentar um novo modelo ideal em substituição a modelos que não mais se sustentavam, sugerindo uma linha de pesquisa que levasse em conta elementos que até então não tinham sido considerados.

G. E. Mendenhall começa descrevendo os dois modelos existentes até então para a entrada na terra de Canaã, o da conquista militar e o da infiltração pacífica de seminômades e elenca os três pressupostos presentes em ambos:

. as doze tribos entram na Palestina vindo de outro lugar na época da “conquista”
. as tribos israelitas eram nômades ou seminômades que tomam posse da terra e se sedentarizam
. a solidariedade das doze tribos é do tipo étnico, sendo a relação de parentesco seu traço fundamental, caracterizando-as, inclusive, em contraste com os cananeus.

Ora, continua Mendenhall, o primeiro e o terceiro pressupostos até que podem ser aceitos, mas “a suposição de que os israelitas primitivos eram nômades, entretanto, está inteiramente em contraste com as evidências bíblicas e extrabíblicas, e é aqui que a reconstrução de uma alternativa deve começar”[22].

A seguir, Mendenhall critica a visão romântica do modo de vida dos beduínos, erroneamente vistos como nômades contrastando com os sedentários das cidades, que foi assumida sem criticidade pelos pesquisadores bíblicos e usada como modelo para o Israel primitivo. Mostra que os próprios relatos bíblicos jamais colocam os antepassados de Israel como inteiramente nômades, como, por exemplo, Jacó e Labão, Jacó e seus filhos, onde há sempre uma parte do grupo que é sedentária. Critica igualmente a noção de tribo como um modo de organização social próprio de nômades, mostrando que tribos podem ser parte ou estar em relação com povoados e cidades.

Aproximando o conceito de hebreu ao de Hab/piru, e utilizando as cartas de Tell el-Amarna, Mendenhall procura demonstrar que ninguém podia nascer hebreu já que este termo indica uma situação de ruptura de pessoas e/ou grupos com a fortemente estratificada sociedade das cidades cananeias. E conclui: “Não houve uma real conquista da Palestina. O que aconteceu pode ser sumariado, do ponto de vista de um historiador interessado somente nos processos sociopolíticos, como uma revolta camponesa contra a espessa rede de cidades-estado cananeias”.

Estes camponeses revoltados contra o domínio das cidades cananeias se organizam e conquistam a Palestina, diz Mendenhall, “porque uma motivação e um movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-os capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze”[23]. Esta motivação religiosa é a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos… Por isso a tradição da aliança é tão importante na tradição bíblica, pois esta é o símbolo formal através da qual a solidariedade era tornada funcional.

A ênfase na mesma herança tribal, através dos patriarcas, e na identificação de Iahweh com o “deus dos pais”, pode ser creditada à teologia dos autores da época da monarquia e do pós-exílio que deram motivações políticas a uma unidade que foi criada pelo fator religioso[24].

Niels Peter Lemche, por outro lado, critica Mendenhall, por seu uso arbitrário de macro teorias antropológicas, mas especialmente por seu uso eclético destas teorias, coisa que os teóricos da antropologia não aprovariam de modo algum[25]. Sem dúvida, seu ponto mais crítico é o idealismo que permeia o seu estudo e coloca o “javismo”, um javismo não muito bem explicado, mas principalmente só o javismo e nenhuma outra esfera da vida daquele povo, como a causa da unidade solidária que faz surgir Israel.

Norman K. Gottwald, As tribos de IahwehAlguns anos mais tarde, Norman K. Gottwald publicou seu polêmico livro The Tribes of Yahweh: A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1050 B.C.E. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1979 [em português: As Tribos de Iahweh: Uma Sociologia da Religião de Israel Liberto, 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004], no qual retoma a tese de G. Mendenhall e avança por quase mil páginas em favor de uma revolta camponesa ou processo de retribalização que explicaria as origens de Israel. Mas, em um artigo anterior, de 1975, didaticamente, Gottwald expõe sua tese então em desenvolvimento, e que usarei aqui para sintetizar seus pontos fundamentais[26].

Ele diz que até recentemente a pesquisa sobre o Israel primitivo era dominada por três ideias básicas:

. o pressuposto de mudança social ocorrida no deslocamento de populações, ou seja: um hiato sociopolítico em Canaã teria ocorrido como resultado da substituição demográfica ou étnica de um grupo por outro, seja por imigração seja por conquista militar
. o pressuposto da criatividade do povo do deserto em iniciar mudanças sociais em regiões sedentárias, ou seja, Israel teria ocupado a terra como recurso para realizar a passagem do seminomadismo para a sedentarização, resultando numa aculturação sociopolítica
. o pressuposto de mudança social produzida por características especiais de um grupo ou por elementos culturais de destaque, ou seja, a partir do momento em que o judaísmo é lido a partir da perspectiva do judaísmo tardio e do cristianismo, o javismo é visto como fonte isolada e agente de mudança na emergência de Israel[27].

As forças e pressões que dobraram e quebraram estes pressupostos são muitos, mas basta citarmos umas poucas para que as coisas comecem a clarear: a evidência etnográfica de que o seminomadismo era apenas uma atividade secundária de populações sedentárias que criavam gado e cultivavam o solo; indicações de que mudanças culturais e sociais são frequentemente consequências do lento crescimento de conflitos sociais dentro de uma determinada população mais do que resultado de incursões de povos vindos de fora; a conclusão de que conflitos ocorrem tanto dentro de sociedades controladas por um regime único como entre estados opostos; a percepção de que a tecnologia e a organização social exercem um impacto muito maior sobre as ideias do que pesquisadores humanistas poderiam admitir; evidências da fundamental unidade cultural de Israel com Canaã em uma vasta gama de assuntos, desde a língua até a formação religiosa…

Os conceitos centrais que emergem deste deslocamento de pressupostos, cada vez maior entre os estudiosos, podem ser sintetizados da seguinte maneira:

. o pressuposto da ocorrência normal de mudança social ocorrida por pressão e conflitos sociais internos, como resultado de novos avanços tecnológicos e de ideias em confronto numa interação volátil
. o pressuposto da função secundária do deserto em precipitar a mudança social, sendo que no Antigo Oriente Médio o seminomadismo era econômica e politicamente subordinado a uma região predominante agrícola e que nunca foi ocasião de deslocamentos maciços de populações ou de conquistas políticas provocadas por estes deslocamentos
. o pressuposto de que mudança social ocorre pela interação de elementos culturais de níveis diversos, especialmente o fato de que os fatores ideológicos não podem ser desligados de indivíduos e grupos vivendo em situações específicas, nas quais determinados contextos tecnológicos e sociais adquirem configurações novas[28].

A partir de tais constatações, Gottwald propõe um modelo social para o Israel primitivo que segue as seguintes linhas: “O Israel primitivo era um agrupamento de povos cananeus rebeldes e dissidentes, que lentamente se ajuntavam e se firmavam caracterizando-se por uma forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada. Esse desligar-se da forma de organização social da cidade-estado tomou a forma de um movimento de ‘retribalização’ entre agricultores e pastores organizados em famílias ampliadas economicamente autossuficientes com acesso igual aos recursos básicos. A religião de Israel, que tinha seus fundamentos intelectuais e cultuais na religião do antigo Oriente Médio cananeu, era idiossincrática e mutável, ou seja, um ser divino integrado existia para um integrado e igualitário povo estruturado. Israel tornou-se aquele segmento de Canaã que se separou soberanamente de outro segmento de Canaã envolvendo-se na ‘política de base’ dos habitantes dos povoados organizados de forma tribal contra uma ‘política de elite’ das hierarquizadas cidades estados”[29].

Assim, Gottwald vê o tribalismo israelita como uma forma escolhida por pessoas que rejeitaram conscientemente a centralização do poder cananeu e se organizaram em um sistema descentralizado, onde as funções políticas ou eram partilhadas por vários membros do grupo ou assumiam um caráter temporário. O tribalismo israelita foi uma revolução social consciente, uma guerra civil, se quisermos, que dividiu e opôs grupos que previamente viviam organizados em cidades-estado cananeias. E Gottwald termina seu texto dizendo que o modelo da retribalização levanta uma série de questões para posterior pesquisa e reflexão teórica[30].

Realmente, o livro de Gottwald suscitou uma grande polêmica e polarizou as atenções dos especialistas durante muito tempo. O modelo da retribalização ou da revolta camponesa passou a ser citado como uma alternativa bem mais interessante do que os modelos anteriores e fez surgir outras tentativas de explicação das origens de Israel, como o modelo misto de B. Halpern (1983), o modelo da evolução progressiva de Niels Peter Lemche (1985), o modelo de simbiose de Volkmar Fritz (1987). Muitas críticas também foram formuladas a Gottwald, sendo a de maior consistência a do dinamarquês Niels Peter Lemche, que em Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy, analisa longamente os fundamentos do modelo de Gottwald[31].

Segundo Lemche, Gottwald fundamenta suas teorias no estudo de Morton Fried, The Evolution of Political Society. New York: Random, 1967, mas faz um uso eclético de outras teorias e autores, de uma maneira que dificilmente qualquer um deles aprovaria. Porém, a birra principal de Lemche com estes autores e suas teorias é que, segundo ele, os modelos derivados da corrente antropológica do “evolucionismo cultural” desconsideram a variável chamada Homem (enquanto indivíduo livre e imprevisível em suas ações) por não ser controlável[32].

Entretanto, um dos problemas do ecletismo de Gottwald é que embora se reporte às vezes a Marx, faz uma leitura do Israel pré-monárquico segundo a tradição durkheimiana. Nas palavras de A. D. H. Mayes: “Existem, porém, boas razões, para ver Gottwald neste contexto [durkheimiano] antes do que na tradição de conflito a que pertence Marx. As características distintivas da teoria de conflito, que entende a sociedade dentro do quadro da interação de diversas classes ou grupos de status, estão inteiramente ausentes do estudo de Gottwald: nele Israel surge como unidade harmoniosa e indiferenciada. Gottwald adota enfoque funcionalista da sociedade israelita, que tem certamente raízes na teoria social de Durkheim, e enfatiza sua dimensão estrutural sincrônica, antes que sua dimensão histórica diacrônica”[33].

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[20]. Cf. MENDENHALL, G. E. The Hebrew Conquest of Palestine. Biblical Archaeologist 25, p. 66-87, 1962. O artigo está reproduzido em CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, p. 152-169. Cf. também MENDENHALL, G. E. The Tenth Generation: The Origins of the Biblical Tradition. 2. ed. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University Press, [1973] 1974.

[21]. MENDENHALL, G. E. The Hebrew Conquest of Palestine. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 152.

[22]. MENDENHALL, G. E. o. c., p. 154.

[23]. Idem, ibidem, p. 158-159.

[24]. Cf. Idem, ibidem, p. 167.

[25]. Cf. LEMCHE, N. P. “On the Use of “System Theory”, “Macro Theories”, and Evolutionistic Thinking” in Modern Old Testament Research and Biblical Archaeology. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 279.

[26]. Cf. GOTTWALD, N. K. Domain Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-Monarchic Israel. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 170-181; GOTTWALD, N. K. As Tribos de Iahweh: Uma Sociologia da Religião de Israel Liberto, 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004. Cf. também Revisiting The Tribes of Yahweh (2006). E ainda: BOER, R. Tracking “The Tribes of Yahweh”: On the Trail of a Classic. London: Bloomsbury T & T Clark, 2002.

[27]. Cf. Idem, ibidem, p. 172.

[28]. Cf. Idem, ibidem, p. 173-174.

[29]. Idem, ibidem, p. 174-175.

[30]. Cf. Idem, ibidem, p. 180-181.

[31]. Cf. LEMCHE, N. P. Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985; cf. também MARTIN, J. D. Israel como sociedade tribal. In: CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel: perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 97-118; SICRE, J. L. Los Orígenes de Israel. Cinco Respuestas a un Enigma Histórico, Estudios Biblicos, n. 46, Madrid, p. 421-456, 1988; FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996, p. 104-121, onde os vários modelos são descritos e analisados. Na opinião de Rogerson, J. W., Antropologia e Antigo Testamento. In: CLEMENTS, R. E. (ed.) O mundo do antigo Israel, p. 34, a obra de Lemche é “um modelo de como se poderia estudar a antropologia com referência ao Antigo Testamento”.

[32]. Cf. LEMCHE, N. P. “On the Use of “System Theory”, “Macro Theories”, and Evolutionistic Thinking” in Modern Old Testament Research and Biblical Archaeology. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 280-286.

[33]. MAYES, A. D. H. Sociologia e Antigo Testamento. In: CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel, p. 55; cf. também MAYES, A. D. H. Idealism and Materialism in Weber and Gottwald. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 267-272.


Os instrumentos da helenização 2

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4. Semelhantes a deuses: a educação aristocrática

Outro forte instrumento da helenização é a paideia grega. A paideia, normalmente traduzida por “educação”, não é apenas a técnica que se aplica à criança (país). A paideia é também a cultura, e os latinos traduzem-na por humanitas. Assim, “o que une todos os gregos sem exceção, gregos da própria Grécia, emigrantes aglomerados desde o deserto da Líbia até as estepes da Ásia central, bárbaros, enfim, recentemente helenizados, é o fato de buscarem eles adaptar-se a um mesmo tipo ideal de humanidade, o fato de terem recebido a mesma formação orientada para esse fim comum – a mesma educação”[25]. A paideia tem, enfim, a mesma noção que damos à palavra “civilização”.

De todas as instituições educativas gregas, a mais característica, a mais oficial, a que se implanta por toda a parte onde chegam os gregos e que, por sua vez, é poderoso instrumento de implantação do helenismo, é a efebia. O termo efebia vem de éfêbos, “jovem”, “efebo”. A instituição é introduzida em Atenas no último terço do século IV a.C. após a derrota de Queroneia. A efebia de Atenas começa a funcionar regularmente a partir de 334-333 a.C. e é detalhadamente analisada por Aristóteles na sua “Constituição de Atenas”.

A efebia ática se assemelha ao nosso serviço militar obrigatório. Os demos (= distritos) fazem as listas dos jovens cidadãos que chegam aos 16 anos, que são alistados e cumprem dois anos de serviço: o primeiro nas casernas do Pireu, onde recebem educação física e militar; o segundo é empregado em manobras de campanha, guarda nos postos de fronteira e funções de milícia. Sustentados pelo Estado – recebem 4 óbolos por dia[26] – os efebos usam roupa característica: o pétaso – um chapéu de abas largas – e um manto negro. Aos 18 anos o jovem ateniense atinge a maioridade civil.

Mas a efebia ateniense não é apenas uma instrução militar: é uma iniciação cívica, moral e religiosa aos deveres e direitos do cidadão. É toda ela marcada pela ideologia da pólis. O curioso é que Atenas reage à sua desintegração quando não há mais conserto: a partir de 300 a.C. mais ou menos, a efebia perde o seu sentido militar, transformando-se em uma agremiação escolar onde se ensina a literatura e a filosofia. Observa H.-I. Marrou: “Ela não desaparecerá, mas, por uma evolução paradoxal, esta instituição, concebida para ser posta a serviço do exército e da democracia, transformou-se, nessa Atenas nova onde triunfa a aristocracia, num pacífico colégio em que uma minoria de jovens ricos vem iniciar-se nos refinamentos da vida elegante”[27].

Entretanto, na época helenística pode-se ver a efebia espalhada em mais de uma centena de cidades. E aí também, como em Atenas, a efebia é mais aristocrática do que cívica, mais esportiva do que militar. O que os gregos das colônias querem é que seus filhos sejam iniciados na vida grega e no gosto pelos exercícios atléticos, fator cultural que imediatamente diferencia um grego de um bárbaro. A efebia, nas colônias, é fator de helenismo e, por isso, fator de aristocracia[28].

A efebia funciona normalmente no ginásio. E há, então, magistrados encarregados pela cidade de dirigir a instituição. A função mais conhecida é a do ginasiarca ou “chefe do ginásio”  (gymnasíarchos): é um cidadão importante, influente e normalmente rico que assumirá esta função. Abaixo do ginasiarca há um encarregado da instrução dos efebos, chamado pedótriba (paidotríbôs): é um educador que une os conhecimentos das práticas esportivas às regras de higiene e às técnicas de desenvolvimento do corpo. Abaixo dele há o “chefe dos efebos” (efêbarchos), que comanda diretamente os jovens.

No ginásio o atleta faz seus exercícios totalmente nu, pés nus e cabeça descoberta[29]. Antes e depois dos exercícios, o corpo é friccionado com azeite, para o aquecimento, no primeiro caso, e para relaxamento no segundo caso. Após ser massageado, o atleta se cobre com fina camada de poeira, para proteger a pele da transpiração, do vento e do sol.

Os ginásios são numerosos no mundo helenístico e bastante semelhantes na sua estrutura. Atenas, por exemplo, tem três ginásios. H.-I. Marrou descreve o ginásio inferior de Priene, cidade da Jônia, como um tipo padrão[30]. A palestra (palaístra), área onde se praticam os exercícios, mede de 34 a 35 metros de lado. É um pátio coberto de areia. O vestiário (apodytêrion), a entrada do ginásio e uma êxedra[31] ficam do lado oeste. No lado norte há cinco salas: os lavatórios, uma instalação bastante simples de chafarizes que jogam água num tanque para o banho frio (loutrón); ao seu lado o depósito de azeite (elaiothésion) e, em seguida, a mais importante, o efebeum (efêbeion): é uma bela sala com as paredes revestidas de mármore, uma série de pilastras e a estátua do benfeitor ou mecenas do ginásio. Aí se reúnem os efebos para as conferências. Após o efebeum vem a sala onde se exercita pugilismo com um saco de areia (kôrykeion) e, finalmente, o depósito de areia e salão de massagens (konistêrion).

A pista de corrida se estende em direção nordeste: o estádio (stádion) de Priene tem 191 metros de comprimento e 18 metros de largura. Da mesma extensão do estádio é uma pista coberta, para exercícios sob mau tempo (csytós). As arquibancadas para o público ficam entre o estádio e a pista coberta.

As duas disciplinas características do ensino superior grego, e que são ensinadas no ginásio, são especialmente a retórica e a filosofia. Mas o quadro completo é composto pelas sete “artes liberais”: gramática, retórica, dialética, geometria, aritmética, astronomia e teoria musical. Só que a cultura adquirida pelos efebos é superficial, pois a efebia helenística dura apenas um ano e o ambiente é de uma frivolidade tipicamente aristocrática.

Essencial na educação literária ministrada no ginásio é a leitura dos clássicos. E entre os clássicos, o mais clássico reina supremo: Homero. E em Homero a Ilíada[32]. Quero aqui apenas chamar a atenção para três elementos importantes da obra de Homero, presentes tanto na “Ilíada” quanto na “Odisseia” e que certamente passam a fazer parte da mundivisão dos jovens efebos na época helenística[33].

O primeiro elemento é a significativa presença dos deuses na epopeia homérica. Em ambos os poemas, as ações se desenvolvem sempre em dois planos: o dos homens e o dos deuses. Mas estes planos estão entrelaçados: os deuses, apesar de imortais e sobre-humanos, têm paixões e sentimentos como os homens e participam de seu mundo e de seus conflitos.

Na Ilíada, por exemplo, os deuses participam da guerra entre os aqueus e os troianos: uns lutam do lado dos aqueus, como Hera, Atenas e Poseidon, enquanto outros estão do lado dos troianos, como Apolo. E eles lutam mesmo, segundo o poema, às vezes entre si, outras vezes apoiando os humanos com ardor e obstinação.

Mas não é apenas na guerra que os deuses estão presentes. Também nas várias situações cotidianas vividas pelos heróis homéricos os deuses se manifestam. E, na Odisseia, especialmente, com carinhosa familiaridade, como o encontro de Ulisses e Atenas no canto XIII.

O segundo elemento que é necessário salientar na obra homérica é o modelo de sociedade que aí aparece. O mundo da Ilíada e da Odisseia é um mundo aristocrático. Seus homens são heróis, seus heróis são reis e sua virtude fundamental é a bravura. O herói busca a glória e evita a covardia. Isto acontece tanto na guerra, que é o mundo da Ilíada, quanto na paz, que é o mundo da Odisseia. Outras virtudes praticadas pelos heróis: a hospitalidade, a cortesia e a ternura.

O último elemento para o qual chamo a atenção é a visão da vida em Homero: tudo é belo e grandioso, mesmo na guerra. “Existem belas taças, belas armas cinzeladas, capacetes resplandecentes, tecidos brilhantes, ricas moradas, vastos celeiros, onde o óleo guardado exala um perfume suave, e naus bem ajustadas, que correm sobre o mar. Os personagens, divinos ou humanos, são igualmente belos – pelo menos quando pertencem à aristocracia principesca. Os guerreiros são todos grandes e fortes. Todas as mulheres têm braços alvos”[34]. Enfim, uma visão otimista da vida, uma visão aristocrática que na época helenística é saboroso alimento para os espíritos gregos, conquistadores do Oriente e exploradores de suas riquezas.

Além de Homero, os outros três pilares da cultura helenística são Demóstenes, Eurípedes e Menandro.

Demóstenes, considerado o maior dos oradores gregos, nasce em Atenas em 382 a.C. e morre em 322 a.C. Temos hoje 61 discursos atribuídos a Demóstenes, mas é possível que alguns deles não sejam autênticos. Entre seus discursos destacam-se as quatro “Filípicas” – pronunciadas contra Filipe II – as três “Olínticas” (também contra Filipe II), e a “Oração da Coroa”, pronunciada em 330 a.C. (contra Ésquines), considerado o maior discurso do maior dos oradores[35].

Eurípedes é um grande dramaturgo do século V a.C. Das suas 18 tragédias conservadas, 17 são da época da guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e frequentemente possuem a marca da guerra. Eurípedes, apesar de ter escrito peças patrióticas, nas quais exalta Atenas, tem horror à guerra e prega a paz. Em Helena, que estreia em 412 a.C., canta o coro: “Sois insensatos, vós que buscais a glória nos combates, entre as armas belicosas, crendo, em vossa ignorância, encontrar nelas um remédio para as misérias dos mortais”.

É um mundo bem diferente do homérico. No mundo de Eurípedes os homens sofrem e o seu sofrimento é mostrado de modo realista e intenso em suas tragédias. Mas no mundo desencantado de Eurípedes os homens reagem e debatem tudo, à maneira sofista: todas as ideias, todas as dúvidas, todos os problemas são colocados na boca de seus personagens. E Eurípedes condena aqueles que tratam bárbaros e escravos como seus inferiores. Eurípedes é um desiludido observador crítico de seu tempo e em 408 a.C. deixa Atenas para ir morrer, dois anos depois, na Macedônia. Morre dois anos antes da derrota da cidade na guerra do Peloponeso.

Vamos, finalmente, a Menandro. Este comediógrafo nasce por volta de 342 a.C. e vive até 292 a.C. em Atenas. Escreve cerca de 100 comédias, só que a maioria se perde: de algumas só temos fragmentos, de outras, temos imitações latinas, como as de Plauto e Terêncio. Estreia sua primeira peça exatamente no começo do helenismo, em 320 a.C., apenas dois anos após a morte de Alexandre.

“Sou humano, e nada do que é humano me é estranho”: esta frase, que está na peça “Heauton Timorúmenos” (O atormentador de si mesmo) de Terêncio é com certeza de Menandro, e nos dá a chave para seu pensamento. Os homens precisam uns dos outros. A solidariedade humana é fundamental, acredita Menandro, pois o que os homens possuem de mais característico é exatamente a sua humanidade. “Que criatura agradável é o homem, quando ele é um homem”: este seu belo verso é uma síntese desta pregação. J. de Romilly completa: “Esse sentimento de fraternidade humana corresponde aos novos tempos, nos quais a cidade já não limita o horizonte do homem; o cosmopolitismo dos filósofos se reflete nele”[36].

A época helenística se mostra nas comédias de Menandro também como um tempo que exige solidariedade porque é um tempo de atribulações e tormentos. Em suas peças aparecem constantemente crianças não identificadas que não conhecem o pai: este viajara para longe ou a criança fora abandonada. Mas a solidariedade está presente sob a forma da ternura e da amizade que deve reinar entre as pessoas. E assim termino com outro dito célebre de Menandro: “Viver é isto: não viver somente para si mesmo”.

Sobre o ginásio de Jerusalém não temos testemunhos diretos de seu funcionamento. Mas podemos supor grande semelhança com os ginásios das outras cidades palestinas e fenícias. Sobre sua influência, é emblemático o que diz 2Mc: “Verificou-se desse modo, tal ardor de helenismo e tão ampla difusão de costumes estrangeiros (…) que os próprios sacerdotes já não se mostravam interessados nas liturgias do altar. Antes, desprezando o Santuário e descuidando-se dos sacrifícios, corriam a tomar parte na iníqua distribuição de óleo no estádio, após o sinal do disco. Assim, não davam mais valor algum às honras pátrias, enquanto consideravam sumas as glórias helênicas” (2Mc 4,13a.14-15).

 

Conclusão

Após a divisão do império de Alexandre em vários reinos, sabemos que o sistema administrativo tanto ptolomaico quanto selêucida foi um instrumento extremamente ativo no processo de helenização da Palestina. Mas, cumpre lembrar que, nesta época, apenas a aristocracia judaica tem acesso ao universo social grego. A grande massa da população sofre o processo, mas muitas vezes não se integra nele ativamente.

Porém, os mecanismos da helenização continuam a ser implantados e Roma, herdeira do helenismo, e ela mesmo helenizada, é quem o torna geral, amplo e irreversível. Por isso, para terminar, é sempre valioso dar uma olhada na época em que o idumeu Herodes Magno governa a Palestina, ou seja, de 37 a 4 a.C. Pois é sob Herodes que o processo helenizante se instala solidamente entre os judeus.

Em 37 a.C. Herodes torna-se o senhor da Palestina e governa o povo judeu durante 34 anos. Casa-se com Mariana I, neta de Aristóbulo II e Hircano II, entrando definitivamente para a família asmoneia[37].

Herodes luta com decisão para consolidar o seu poder. Isto significa, antes de mais nada, que ele elimina, através de assassinatos e intrigas várias, adversários seus, inclusive alguns membros de sua família – como esposas, filhos, sogra, sobrinhos. Consolidado o poder, constrói obras grandiosas na Judeia. Templos, teatros, hipódromos, ginásios, termas, cidades, fortalezas, fontes. Reconstrói totalmente o Templo de Jerusalém, a partir do inverno de 20-19 a.C. Valorizando o culto, Herodes Magno ganha para si o povo. Construindo fortalezas, controla possíveis revoltas. Matando seus inimigos, seleciona seus herdeiros. Apoiando a cultura helenística, aparece diante do mundo. Servindo fielmente a Roma, conserva-se no poder.

Entretanto, Herodes não tem legitimidade judaica, pois descende de idumeus e sua mãe é descendente de árabe. Assim, por ser estrangeiro, não tem para com os judeus nenhuma relação de reciprocidade e sua legitimidade se funda na própria estrutura do poder exercido[38]. Por isso, Herodes constrói uma estrutura de poder independente da tradição judaica: nomeia o sumo sacerdote do Templo, destituindo os Asmoneus e nomeando um sacerdote da família sacerdotal babilônica e, mais tarde, da alexandrina; exige de seus súditos um juramento que obriga a pessoa a obedecer às suas ordens em oposição às normas patriarcais e se a pessoa recusar o juramento, é perseguida; interfere na justiça do Sinédrio; manda vender os assaltantes e os revolucionários políticos capturados como escravos no exterior, sem direito a resgate, fazendo da venda à escravidão e da execução pessoal (a morte) normas comuns do arrendamento estatal.

Mas, se ele viola assim a tradição, como consegue legitimidade? A estrutura de poder do Estado sob Herodes é bem diferente da estrutura da época dos Macabeus: o rei é legitimado como pessoa e não por descendência e o poderio não se orienta pela tradição, mas pela aplicação do direito pelo senhor. O direito à terra é transmitido pela distribuição, pois o dominador a dá ao usuário: é a “assignatio“. A base filosófica helenística é que legitima o poder do rei, quando diz que o rei é “lei viva” (émpsychos nómos), em oposição à lei codificada, ou seja: o rei é a fonte da lei, porque ele é regido pelo “nous“. O rei tem função salvadora e, por isso, dá aos seus súditos uma ordem racional, através das normas do Estado. “O rei em sua pessoa é a continuação do seu reino e o salvador de seus súditos”[39].

Além disso, o poder militar de Herodes se baseia em mercenários estrangeiros que ficam em fortalezas ou em terras dadas aos mercenários (cleruquias) por ele (terras no vale de Jezrael), e nas cidades não judaicas por ele fundadas, a cujos cidadãos ele dá como posse o território que as rodeia, com os camponeses dentro!

 

Bibliografia

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>> Bibliografia atualizada em 23.09.2015

Artigos


[25]. MARROU, H.-I. História da educação na antiguidade, p. 159.

[26]. Um óbolo é igual a 1,03 gramas. No século IV a.C. o salário de um operário qualificado é de 2 ou 2,5 dracmas por dia e o de um operário não qualificado é de 1 dracma por dia ou de 6 óbolos, pois 1 dracma = 6,18 gramas.

[27]. MARROU, H.-I. o. c., p. 171.

[28]. Cf. Idem ibidem, p. 175.

[29]. Gymnásion indica um local onde as pessoas se exercitam nuas, de gymnós, “nu”.

[30]. Cf. MARROU, H.-I. o. c., p. 203-207.

[31]. Êxedra é um pórtico com assentos e serve como sala de conferências ou “auditório” (akroatêrion).

[32]. Homero é o maior poeta épico grego, autor da “Ilíada”e da “Odisseia”. Homero é provavelmente do século IX a.C. e sua linguagem o relaciona com os dialetos jônio e eólio da Ásia Menor. A Ilíada, em 24 cantos, conta um episódio do cerco de Troia (também chamada Ílion) pelos gregos, por volta de 1200 a.C., no seu décimo ano. O assunto é a cólera de Aquiles, causada por uma afronta cometida contra ele por Agamêmnon, líder das forças gregas.

[33]. Cf. para o que se segue, DE ROMILLY, J. Fundamentos de literatura grega, p. 17-43; HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, verbetes Ilíada e Odisseia; JAEGGER, W. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

[34]. Idem, ibidem, p. 38.

[35]. Sobre Demóstenes, cf. HARVEY, P. o. c., verbete Demóstenes; DE ROMILLY, J. o. c., p. 155-164. Esta autora observa na p. 161: “Demóstenes era democrata, mas precisamente por essa razão parecia-lhe que o verdadeiro remédio para todos os males possíveis seria o fortalecimento dos costumes democráticos. Para isso ele reclama duas coisas: o respeito à lei, e a vontade, da parte do povo, de aceitar suas responsabilidades”.

[36]. DE ROMILLY, J. o. c., p. 219; cf. também HARVEY, P. o. c., verbete Mênandros.

[37]. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III. De la conquête d’Alexandre à la destruction du temple (331a.C.-135 a.D.).Paris: Du Cerf, 1985, p. 181-197. 

[38]. Cf., para o que se segue, KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, p. 109-116.

[39]. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 114.


Essênios 4

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5. A organização da comunidade

Dissemos antes que os habitantes de Qumran não se autodenominam “essênios”. Então, como é que eles chamam a sua organização?

Nos manuscritos o nome mais utilizado para indicar o grupo é yahad, “comunidade”, que só na 1QS aparece mais de 60 vezes. A Regra leva este título, como aparece em 1QS I,1: “Para [o Instrutor…] … [livro da Regra da Comunidade (serek hayahad) : para buscar a Deus [com todo o coração e com toda a alma…”

A Regra da Comunidade tem dois anexos, um dos quais é chamado de Regra da Congregação, sendo o termo ‘adah, “congregação” outra autodenominação do grupo de Qumran. 1QSa usa-o 21 vezes. Diz 1QSa I,1: “Esta é a Regra para toda a Congregação (haserek lekol ‘adat) de Israel nos últimos dias…”.

Além destes dois termos, os qumranitas se autodesignam também como ‘asah, “conselho” (1QS I,8.10;2,25 etc), sod, yasod, mosad, “assembleia”, “sociedade” e ha­rabbim, “os numerosos”, “os muitos”. Além de “os santos”, “resto”, comunidade da “nova aliança” e outros semelhantes[56].

Na organização interna da comunidade de Qumran observa-se a predominância dos sacerdotes (= filhos de Aarão) sobre os leigos, como exemplifica 1QS IX,7-8 que diz: “Só os filhos de Aarão terão autoridade em matéria de juízo e de bens, e sua palavra determinará a sorte de toda disposição dos homens da comunidade e dos bens dos homens de santidade que caminham na perfeição”.

O órgão supremo de governo da comunidade, com poder judicial e executivo é a “assembleia dos numerosos” (môshab harabbim), descrita em 1QS VI, 8-13. Essa assembleia reúne-se para discutir a Lei, os negócios da comunidade, acolher ou rejeitar novos membros, ouvir as acusações contra os culpados de alguma transgressão etc.

Mais restrito que essa grande assembleia é o “Conselho da Comunidade”, composto por doze leigos e três sacerdotes, como diz 1QS VIII, 1: “No conselho da comunidade haverá doze homens e três sacerdotes, perfeitos em tudo o que tiver sido revelado de toda a lei…”

É possível que estes doze leigos representem as doze tribos de Israel, enquanto os três sacerdotes representariam as três famílias sacerdotais descendentes de Levi, através de Gérson, Cat e Merari (Cf Gn 46,11). Mas a sua função não é bem conhecida. Seriam estes homens uma elite especial na comunidade? Ou um quórum mínimo de liderança do grupo? Se a Regra da Comunidade tem vários níveis redacionais, como creem alguns, este Conselho poderia representar o primeiro estágio de formação da comunidade de Qumran, que teria evoluído para uma organização mais complexa nos decênios seguintes.

Jarro de QumranOs documentos falam também das comunidades-base que são compostas por dez membros, e nas quais deve haver um sacerdote para aconselhar e um especialista na Lei para instruir os companheiros. É o que diz 1QS VI, 3-7, do qual cito trechos: “Em todo lugar em que houver dez homens do conselho da comunidade, que não falte entre eles um sacerdote; cada qual, segundo a sua categoria, sentar-se-á diante dele, e assim se lhe pedirá o seu conselho em todo assunto (…) E que não falte no lugar em que se encontram os dez um homem que interprete a lei dia e noite, sempre, sobre as obrigações de cada um para com seu próximo”.

O responsável por toda a comunidade é o mebaqqer, “inspetor” (1QS VI, 12.14.20), às vezes chamado de paquid, “presidente”. Ele é o administrador dos bens da comunidade, e aquele que ensina e guia. Ele preside a assembleia geral. Há também o maskîl, “instrutor”, dedicado à formação espiritual.

O sistema de admissão na comunidade é bastante rigoroso. Temos as informações da Regra da Comunidade e de Flávio Josefo sobre o assunto[57].

O candidato, que deve ser israelita, passa inicialmente por um rigoroso exame feito pelo líder da comunidade “quanto a seu entendimento e a seus atos”. Se for considerado apto, ele é instruído nas regras da comunidade e viverá como um deles durante um ano, mas fora da comunidade.

Após esse ano, caso seja aprovado pela assembleia, o candidato ingressa na comunidade, mas durante um ano inteiro não participa de suas refeições comuns nem da comunhão de bens. É um tempo de aprendizado, certamente guiado pelo “instrutor”.

Ao término desse segundo ano, inicia o candidato um terceiro ano no qual entrega seus bens ao tesoureiro da congregação e continua sua formação, mas ainda sem participação integral.

No fim desses três anos, se aceito pela assembleia, o candidato passa a participar integralmente da comunidade, com direito às purificações rituais, banquete, voz e voto nas assembleias e comunhão de bens.

Mas, como é que a comunidade se vê, qual é seu ideal? 1QS I, 1- 11 diz que “os santos” ingressam no grupo e vivem de acordo com a Regra da Comunidade “Para buscar a Deus [com todo o coração e com toda a alma; para] fazer o que é bom e o que é reto em sua presença, como ordenou pela mão de Moisés e pela mão de todos os seus servos os Profetas; para amar tudo o que ele escolhe e odiar tudo o que ele rejeita; para manter-se distante de todo mal, e apegar-se a todas as boas obras; para operar a verdade, a justiça e o direito na terra, e não caminhar na obstinação de um coração culpável e de olhos luxuriosos fazendo todo mal; para admitir na aliança da graça todos os que se oferecem voluntariamente para praticar os preceitos de Deus, a fim de que se unam no conselho de Deus e caminhem perfeitamente em sua presença, de acordo com todas as coisas reveladas sobre os tempos fixados de seus testemunhos; para amar a todos os filhos da luz, cada um segundo o seu lote no plano de Deus, e odiar a todos os filhos das trevas, cada um segundo a sua culpa na vingança de Deus”.

Segundo os arqueólogos, vivem em Qumran entre 150 e 200 pessoas. Em dois séculos de existência da comunidade deve viver ali cerca de 1.200 pessoas. A partir das ferramentas encontradas e das instalações escavadas sabe-se que eles cultivam a terra – no estabelecimento agrícola de Ain Feshka, ao sul das ruínas – fazem cerâmica, curtem peles e copiam manuscritos. Além disso, 1Q VI,2-3 diz que eles comem juntos, rezam juntos e deliberam juntos.

A quebra da ordem interna, pela desobediência às regras da comunidade, é duramente punida. As penalidades vão desde 10 dias de punição – com simples exclusão de rituais da vida comum – até a expulsão definitiva da comunidade. Os crimes mais graves são a transgressão de qualquer ponto da Lei mosaica, o uso do nome de Deus, a calúnia contra a congregação e a obstinação continuada de alguém no erro, mesmo após muitos anos de vida comunitária[58].

Os essênios não vivem apenas em Qumran. Muitos habitam cidades e aldeias da Palestina, espalhando-se por todo o país em “acampamentos”, como diz o Documento de Damasco. É possível que o movimento essênio seja anterior ao surgimento da comunidade de Qumran, que talvez represente apenas um de seus ramos.

Flávio Josefo já nos diz que eles “Não têm uma cidade única, mas em cada cidade compõem com alguns outros uma colônia”[59].

E Fílon traz a seguinte informação: “Eles habitam numerosas cidades da Judeia e também diversas aldeolas e agrupamentos com grandes efetivos”[60].

Em Qumran os essênios vivem em regime de celibato, mas as outras comunidades não, pois diz o Documento de Damasco: “E se habitam nosManuscrito de Isaías encontrado na gruta 1 de Qumran acampamentos de acordo com a regra da terra e tomam mulheres e engendram filhos, caminharão de acordo com a lei e segundo a norma das instruções, segundo a regra da lei que diz: ‘Entre um homem e sua mulher, e entre um pai e seu filho'” (CD VII, 6-9).

Diz a Regra da Congregação que o membro da comunidade deve se casar aos 20 anos de idade: “À idade de vinte a[nos passará] [entre] os alistados para entrar no lote em meio à sua família para unir-se à congregação santa. Não se [aproximará] de uma mulher para conhecê-la por ajuntamento carnal até que tenha cumprido os vinte anos, quando conheça [o bem e] o mal. Então ele será recebido para dar testemunho sobre os preceitos da lei e para ocupar o seu lugar na proclamação dos preceitos” (1QSa I,8-11).

Além disso, no Documento de Damasco nunca se fala da mesa comum nem do banquete sagrado, tão importantes em Qumran. Por outro lado, admite a propriedade privada (CD IX, 10-16), sendo entregue ao “inspetor” apenas o ganho de dois dias por mês. Em Qumran há total ruptura com o Templo de Jerusalém, enquanto que o Documento de Damasco regulamenta o envio de oferendas e sacrifícios ao Templo e dá normas sobre como se comportar durante a permanência em Jerusalém (CD XI, 19-XII, 2).

Para entrar na comunidade de “Damasco” basta a entrevista com o inspetor geral e um juramento (CD XIV,11; XV,5-7). E além dos sacerdotes e leigos, como em Qumran, o Documento de Damasco fala em prosélitos.

 

6. A teologia dos essênios

Explicitar a teologia dos essênios não é tarefa fácil, pois os manuscritos não trazem uma exposição teológica sistemática. Além do que, corre-se o risco de se fazer teologia segundo os modelos clássicos da dogmática cristã (Deus, criação, messianismo, escatologia etc), o que não corresponde exatamente aos padrões judaicos[61].

De modo simples, abordarei apenas três aspectos da mundivisão essênia:
a) como a comunidade essênia avalia a realidade atual?
b) quais são as práticas da comunidade?
c) quais são as expectativas da comunidade em relação ao futuro?

Os essênios se veem como a comunidade da nova aliança, como o resto de Israel, os santos que permanecem fiéis a Deus, certamente inspirados em Jr 31,31-34 , que propõe uma nova aliança, porque o projeto original faliu[62].

Isto é bem claro no Documento de Damasco, que trata das normas a serem seguidas pelos “membros da nova aliança na terra de Damasco” (CD VI,19) ou dos “homens que ingressam na nova aliança na terra de Damasco” (CD VIII,21).

Na Regra da Comunidade, quando se fala do ingresso no grupo e de seus ide­ais, é marcante o fato de que os essênios se vejam como os justos, os santos, guiados por Deus, que seguem os preceitos da Lei mosaica. Em contraposição, os outros são os ímpios, guiados por Satanás, que pervertem a Lei (1QS I-II).

Mas um dos textos mais reveladores de sua visão de mundo é o trecho da Regra da Comunidade que trata dos dois espíritos.

Segundo o documento, Deus cria o homem com dois espíritos, com os quais ele deve conviver: o espírito da verdade que nasce de uma fonte de luz e o espírito da falsidade, que nasce de uma fonte de trevas. “Ele criou o homem para governar o mundo e designou-lhe dois espíritos com os quais deverá caminhar até o advento de seu juízo final: o espírito da verdade e o espírito da falsidade. Os nascidos na verdade brotam de uma fonte de luz, mas os que nascem da falsidade brotam de uma fonte de trevas. O príncipe da luz governa todos os filhos da justiça que andam pelos caminhos da luz, mas o anjo das trevas governa os filhos da falsidade que caminham pelos caminhos das trevas” (1QS III,17-21).

Os filhos da justiça, que andam pelos caminhos da luz, têm um espírito de humildade, paciência, amor fraterno, bondade, compreensão, inteligência, discernimento, zelo pelas leis, pureza etc. Os filhos das falsidade, que andam pelos caminhos das trevas, têm um espírito de ganância, negligência, maldade, arrogância, orgulho, hipocrisia, crueldade, luxúria, insolência, engano etc (1QS IV, 2-14).

Para os filhos da justiça o julgamento divino será de saúde, vida longa, abundância, bênçãos, alegria; enquanto que para os filhos da falsidade será de flagelos, maldição, tormentos, desgraça etc.

O texto diz também que “A natureza de todos os filhos dos homens é regida por estes (dois espíritos), e no decorrer de suas vidas todas as hostes dos homens possuem uma porção de cada um deles, e andam por (ambos) os caminhos. E por eras eternas, toda a retribuição pelos seus atos será conforme a porção grande ou pequena que cada um tem destas duas divisões” (1QS IV,15-16).

“Até agora os espíritos da verdade e da falsidade lutam no coração dos homens e eles caminham tanto na sabedoria quanto na insensatez. De acordo com a porção de verdade que tem em si, o homem odeia a falsidade; e de acordo com sua herança do reino da falsidade, ele é iníquo e abomina a verdade” (1QS IV,24).

Não é preciso dizer que, naturalmente, os essênios se julgam portadores de uma porção maior de verdade que de falsidade, exatamente o contrário de seus inimigos, segundo seu julgamento.

Este dualismo teológico do texto sobre os dois espíritos – um dos mais densos de toda a literatura de Qumran – oculta/revela o conflito social que se vive na Palestina da época, e do qual os essênios participam como atores extremamente ativos. Não é à toa que seu manual da guerra, 1QM, chama-se “Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”.

O bem e o mal, simbolizados como luz e trevas, não são apenas dois princípios éticos ou metafísicos abstratos e estáticos: são forças vivas atuantes dentro do homem e da sociedade[63].

A comunidade dos essênios se inspira no tema bíblico do deserto para justificar a sua opção de se retirar para a inóspita região de Qumran[64]. Claro que, além da razão teológica, há forte motivação política e estratégica para se viver em Qumran: o Mestre da Justiça tem que se retirar de Jerusalém com seus seguidores porque rompe com o governo macabeu, enfrenta-o e é perseguido. Isto inclusive terá outras consequências, como observa W. J. Tyloch: “As condições locais os obrigaram a introduzir uma economia coletiva e o conceito de bens comuns. Somente dessa forma puderam garantir para si próprios o mínimo necessário à sobrevivência”[65].

Mas o tema bíblico do deserto, carregado de reminiscências do projeto original da sociedade israelita, é que simbolicamente explica aos essênios as suas opções.

Diz a Regra da Comunidade, falando do cumprimento das leis que regem a sociedade essênia: “E quando estes se tornarem membros da comunidade de Israel, dentro de todas estas regras, separar-se-ão da morada dos homens sem Deus e retirar-se-ão para o deserto a fim de preparar seu caminho tal qual está escrito: ‘Preparai no deserto o caminho de…, aplainai no deserto uma vereda para o nosso Deus'” (1QS VIII,12-14).

No deserto, a comunidade se aplica a ler e a interpretar a Lei. A condição mínima para alguém entrar na comunidade é a vontade de seguir todos os preceitos da Lei mosaica. O superior admitirá no grupo “todos aqueles que livremente se dedicaram à observância dos mandamentos de Deus” (1QS I,7). E qualquer desobediência aos mandamentos leva o essênio a cumprir pesadas penas: “Todo homem que ingressar no conselho da santidade (o conselho daqueles que caminham na senda da perfeição conforme o ordenado por Deus) e que por vontade própria ou por negligência transgredir uma única palavra da Lei de Moisés, em qualquer  ponto que seja, será expulso do Conselho da Comunidade e não mais retornará; nenhum homem de santidade se associará à sua propriedade ou conselho em nenhum assunto” (1QS VIII, 21-23).

O estudo da Lei é permanente, segundo a Regra da Comunidade: “E onde estiverem os dez, nunca deverá faltar um homem entre eles que estudará a Lei, dia e noite, no que concerne à conduta correta de um homem para com seu companheiro. E a congregação fará vigília em comunidade durante um terço de cada noite do ano, para ler o livro, estudar a Lei e orar junto” (1QS VI,6-8).

Os essênios entendem que a “vereda” de Is 40,3 (“aplainai no deserto uma vereda para o nosso Deus“) é a Lei mosaica que a comunidade, voltando às origens, ao deserto, tem o dever de preservar: “Esta (vereda) é o estudo da Lei que ele ordenou por intermédio de Moisés, para que eles possam agir de acordo com tudo o que foi revelado de época em época, e conforme o que os profetas re­velaram pelo seu espírito santo” (1QS VIII,15).

Esta fidelidade absoluta à Lei – que é, por sinal, reinterpretada pela comunidade em vários pontos com mais rigor ainda do que no farisaísmo – é, sociologicamente falando, um recurso usado pelos essênios para distingui-los do resto de Israel e dar-lhes uma identidade.

Flávio Josefo, observando-os de fora e de longe, reconhece esta identidade projetada: “Deve-se admirar neles, se os compararmos a todos os outros adeptos da virtude, a sua prática da justiça, que não deve ter existido, de modo algum, em nenhum grupo grego nem em nenhum bárbaro, ainda que por pouco tempo, mas que se encontra entre eles desde uma data remota”[66].

Ou ainda: “São justos árbitros da cólera, homens que dominam seu arrebatamento, modelos de lealdade, artesãos da paz”[67].

A Lei é lida e interpretada através dos profetas. Estes têm grande importância na teologia da comunidade, pois, segundo as tendências apocalípticas da comunidade, eles anunciaram tudo o que está acontecendo agora e ainda acontecerá no futuro.

Mas a leitura dos profetas exige o discernimento dos iniciados nos segredos escatológicos. Daí ser o Mestre da Justiça o seu mais habilitado intérprete.

Ao Mestre da Justiça Deus revela “todos os mistérios das palavras de seus servos os profetas” (1QpHab VII, 5); ele é “o sacerdote [em cujo coração] Deus colocou [discernimento] para que ele interpretasse todas as palavras de seus servos os profetas, através de quem ele profetizou tudo o que aconteceria a seu povo e [à sua terra]” (1QpHab II,8-10); ele “revelou às gerações posteriores aquilo que Deus fizera à última geração, a congregação de traidores, aqueles que abandonaram o caminho” (CD I, 12-13).

É assim que a comunidade se sente segura, correta, fiel, o verdadeiro e único Israel, como reafirma a Regra da Comunidade: “Haverá uma plantação eterna, uma casa de santidade para Israel, uma assembleia de santidade suprema para Aarão. Deverão ser eles testemunhas da verdade no julgamento, e serão os eleitos da boa vontade que farão o resgate da terra e pagarão aos iníquos sua recompensa. Será a muralha já tão testada, aquela preciosa pedra angular, cujos alicerces não balançarão nem oscilarão. Será a santíssima morada para Aarão, com o eterno conhecimento da aliança da justiça e exalará um doce aroma. Será a casa da perfeição e da verdade em Israel, para que eles possam estabelecer uma aliança de acordo com os preceitos eternos”(1QS VIII,4-10).

Se a comunidade é o verdadeiro povo eleito, os outros são os “filhos das trevas”, que vivem sob o “domínio de Satanás”. São os “malditos”, os “homens da falsidade”, “os que transgridem os mandamentos”, os “homens do inferno”, segundo a Regra da Comunidade.

São os que “profanam o Templo”, “blasfemam contra as leis da aliança de Deus”, “praticam a vingança e a maldade contra seu irmão”; os que “saqueiam os pobres”, “fazem das viúvas suas presas”, “tornam órfãs suas vítimas”, segundo o Documento de Damasco.

São os “homens violentos que romperam a aliança”, guiados pelo “mentiroso”, o “sacerdote ímpio”, cuja “ignomínia era maior que sua glória”, e que “viveu de maneira abominável em meio a toda deturpação impura”, segundo o Comentário de Habacuc.

Como uma comunidade separada, os essênios de Qumran seguem seu próprio ritmo das festas, seus rituais de renovação da aliança, abluções e refeição comum.

Seu calendário é solar, enquanto o calendário judaico da época, usado pelo Templo, é o luni-solar; e seus sacrifícios são simbólicos, sendo a própria comunidade uma oferenda permanente a Deus, já que o Templo de Jerusalém está profanado pela usurpação macabeia[68].

Regra da Guerra - 1QM Os essênios, que acreditam estar vivendo os momentos decisivos da História, elaboram também uma doutrina – e até um manual – da guerra final. Será a guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas, codificada na Regra da Guerra. Nesta guerra os essênios vencerão os israelitas desencaminhados da Lei e os estrangeiros que dominam o país[69].

“No dia em que os kittin caírem, haverá terríveis batalhas e massacres diante do Deus de Israel, pois este será o dia designado desde os tempos antigos para a batalha da destruição dos filhos das trevas. Nesta ocasião, a assembleia dos deuses e das hostes dos homens combaterá, causando um enorme massacre; no dia da calamidade, os filhos da luz combaterão a companhia das trevas em meio a gritos de uma enorme multidão, e haverá clamor de deuses e homens para [tornar manifesto] o poder de Deus. será realmente um tempo de [grande] tribulação para o povo redimido de Deus, mas ao contrário de todas as suas tribulações anteriores,esta terminará rapidamente em uma redenção que durará para sempre” (1QM I,9-12).

Como se pode ver, não é apenas uma batalha de homens; os deuses também participam. E acreditam os essênios que “este será um tempo de salvação para os povos de Deus, uma era de domínio para todos os membros de sua companhia e de destruição eterna para toda a companhia de Satanás” (1QM I,5).

A esperança messiânica dos essênios é um pouco complexa. Parece que eles aguardam a vinda de dois Messias – segundo alguns até mesmo três -, um rei e um sacerdote, com o predomínio da figura sacerdotal sobre a real. O que não é de se estranhar em uma comunidade dirigida por sacerdotes.

E pode ser que o Mestre da Justiça, após a sua morte, tenha sido elevado por seus seguidores a uma espécie de “profeta messiânico” ou “Messias-profeta” que ensina a verdade à comunidade da nova aliança, na hora em que o estabelecimento definitivo do reino já desponta no horizonte[70].

Para finalizar, é bom lembrarmos que as ideias apocalípticas, que tão fortemente colorem a teologia essênia, pregam mesmo é a mudança da ordem social em vigor. Segundo os padrões apocalípticos, essa mudança social tem alcance mundial: “a revolução cósmica provocaria uma revolta social”[71].

Só que os essênios têm consciência de que os indivíduos isolados jamais poderiam desencadear a mudança social, daí a necessidade da ação comunitária; e de que o homem só é ainda incompetente para tal revolução cósmica, donde a necessidade das forças divinas.

Os essênios têm esperança de alcançar benefícios concretos dessa mudança, por isso rompem com a ordem social dominante e se organizam segundo princípios alternativos[72].

A antiga solidariedade israelita baseada nas relações de parentesco é inviável na sociedade helenizada que agora domina a Palestina. Mas a solidariedade torna-se independente e é racionalizada em normas éticas, cuja validade fica assegurada através de um pacto rigoroso que insiste na construção de relações pessoais e recíprocas. Esse é o projeto dos essênios.

 

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>> Bibliografia atualizada em 10.06.2018

Artigos


[56]. Cf. LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto, p. 126.

[57]. Cf. 1QS VI, 13-23; JOSEFO, F. Bellum Iudaicum II, VIII, 137-142.

[58]. As penalidades estão elencadas em 1QS VI-VII.  As penalidades mais rigorosas certamente surgem com o crescimento da comunidade na época da perseguição de João Hircano I aos fariseus. Este crescimento deve ter dificultado a fidelidade aos objetivos originais. 

[59]. JOSEFO, F. Bellum Iudaicum II, VIII, 124.

[60]. FÍLON DE ALEXANDRIA Apologia pro Iudeis, § 1.

[61] Tais estruturas podem distorcer os conceitos religiosos do judaísmo e, às vezes, o fazem de fato. Por exemplo, o interesse da Igreja no papel messiânico de Jesus é capaz de atribuir uma importância maior ao messianismo na religião judaica do que o justifica a evidência histórica. Este alerta vem, com maior frequência, de estudiosos de origem judaica, como, por exemplo, VERMES, G. The Complete Dead Sea Scrolls in English. 7. ed. London: Penguin, 2012.

[62]. O contexto em que Jeremias fala é o da expectativa criada pelas conquistas de Josias no século VII a.C., que reintegra o antigo reino do norte de Israel ao território governado por Jerusalém. Jeremias vê a necessidade de um novo pacto javista, pacto que deve ser sincero, profundo, definitivo e não apenas formal.

[63]. As cinco contraposições básicas do texto são luz x trevas, verdade x falsidade, filhos da luz x filhos das trevas, príncipe da luz x anjo das trevas, espírito da verdade x espírito da falsidade.

[64]. Os edifícios de Qumran estão a cerca de mil metros da costa do Mar Morto e a 70 metros acima de seu nível, porém, a mais de 300 metros abaixo do Mediterrâneo. Ain Feshka fica a 3 km ao sul de Qumran e as construções que servem ao empreendimento agrícola essênio ficam a 200 metros da fonte e a 300 metros do Mar Morto. Do lado oeste, a uma distância que varia de 200 a 400 metros de Qumran e de Ain Feshka, estão as rochas calcárias que seguem de norte a sul ao longo do Mar Morto, terminando em Ras al-Feshka. Estas rochas estão a cerca de 200 metros acima das duas localidades, isolando todo o terreno abaixo e impedindo a passagem dos ventos ocidentais que trariam umidade e frescor. Assim, as chuvas alcançam apenas 100 milímetros anuais (em Jerusalém, por exemplo, chove 600 milímetros por ano), a temperatura média oscila entre 1 e 48º C e a umidade relativa do ar oscila entre 40 e 67%. Na primavera e no outono sopra do leste o “hamsin”, terrível vento quente do deserto. Cf. TYLOCH, W. J. O socialismo religioso dos essênios. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 125-127.

[65]. Idem, ibidem, p. 137.

[66]. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XVIII, I, 20.

[67]. Idem, Bellum Iudaicum II, VIII, 135.

[68]. Cf. LAMADRID, A. G., Los descubrimientos del mar Muerto, p. 149-160.

[69]. Os invasores são os kittin. Assim são designados originariamente os habitantes de Kittion, importante cidade de Chipre. Depois o nome passa a indicar todos os habitantes de Chipre e os da região oriental do Mediterrâneo (Nm 24,24; Ez 27,6; Jr 2,10). Já em 1Macabeus e no Livro dos Jubileus a expressão designa os gregos, e em Daniel, os romanos. Os especialistas divergem, mas muitos pensam que para os essênios os kittin sejam os romanos.

[70]. O que acontecerá nesta era messiânica não fica muito claro nos manuscritos, assim como confusas são as ideias sobre ressurreição e imortalidade da alma.

[71]. TYLOCH, W. J. O socialismo religioso dos essênios, p. 167.

[72]. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, p. 145-150.


Essênios 3

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4. Os essênios e Qumran

É preciso assinalar que em nenhum dos manuscritos até agora publicados aparece a palavra “essênio”. Este termo vem, provavelmente, do hebraico hassidim (= os piedosos), em aramaico hassayya, em grego essaioi ou essênoi, daí “essênios”.

Embora a quase totalidade dos estudiosos identifique a comunidade de Qumran com os essênios, são, às vezes, sugeridas outras possibilidades. Há hipóteses caraíta, judaico-cristã, zelota, saduceia, farisaica e outras[31].

O grupo caraíta é fundado em Bagdá no séc. VIII d.C. pelo rabino Anan ben Davi, que proclama uma volta à Escritura. O termo vem de caraim, “leitores (da Escritura)”, pois em hebraico qara é “ler”. Etimologicamente, os caraítas são, pois, os “biblistas” ou “especialistas da Escritura”[32].

Graças à afinidade existente entre a teologia da comunidade de Qumran e os caraítas é que se levanta a hipótese caraíta. Mas é uma ideia sem fundamento histórico algum.

Assim como os cristãos primitivos, a comunidade de Qumran se autodenomina, às vezes, os “pobres” (=ebionim). Daí alguns acharem que ali vivem os ebionitas, seita judaico-cristã. Só que os dados da arqueologia e da paleografia contradizem tal hipótese.

Em Massada os arqueólogos descobrem uma cópia de uma obra de Qumran, o que levanta a possibilidade, segundo alguns, de serem zelotas os habitantes de Qumran. Entretanto, é bem mais viável pensar que alguns essênios tenham se reunido aos zelotas que resistem aos romanos em Massada até 73 d.C. Daí a obra ter ido parar lá.

A hipótese saduceia quase não encontra apoio, pois em relação à helenização saduceus e qumranitas estão em posições opostas. Sem mencionar as profundas divergências teológicas.

Vista aérea das ruínas de QumranPor último, a hipótese farisaica é colocada a partir das muitas semelhanças da comunidade de Qumran com o grupo dos fariseus. Mas isto se explica pela provável entrada maciça de fariseus na comunidade por ocasião das perseguições de João Hircano I.

Dois arqueólogos israelenses, Yitzhak Magen and Yuval Peleg, após 10 temporadas de escavações em Qumran, declararam, em julho de 2004, contra o consenso acadêmico dominante, que os essênios que viveram naquela localidade não eram nem ascetas, nem estavam isolados, mas eram prósperos agricultores ligados ao comércio internacional e que não escreveram os Manuscritos do Mar Morto, pois estes foram escritos por sacerdotes de Jerusalém, que os esconderam das legiões romanas no século I da EC nas grutas da região de Qumran.

Patrocinados pela Administração Civil da Judeia e Samaria, Yitzhak Magen e Yuval Peleg sustentam que o israelense Eliezer Sukenik, Reitor da Universidade Hebraica de Jerusalém e o francês Roland de Vaux, Diretor da Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, estavam enganados, quando, na década de 50 do século XX, definiram os essênios como pobres e eremitas vivendo em região inóspita e quando lhes atribuíram a escrita dos mais de 800 manuscritos bíblicos e não bíblicos, cujos fragmentos foram encontrados nas vizinhanças das ruínas de Qumran.

Após encontrarem produtos preciosos importados da Fenícia e definirem que os essênios obtinham suas riquezas do cultivo e exportação do bálsamo, eles concluíram que os habitantes de Qumran tinham um estilo de vida muito confortável, vivendo muito mais preocupados com seu bem-estar material do que com um ascetismo apocalíptico, e que isto nem combina com o conteúdo dos Manuscritos a eles atribuídos.

Alguns arqueólogos como Yizhar Hirschfeld concordam com as conclusões de Magen e Peleg, enquanto muitos outros, como Magen Broshi e Gabriel Barkai discordam veementemente. Os artigos preciosos encontrados pertenceriam, por exemplo, aos romanos que ocuparam a região após o ano 68 da EC, sustentam estes últimos.

De qualquer maneira, continua acesa a polêmica sobre os essênios e a origem dos Manuscritos do Mar Morto.

O testemunho dos autores antigos sobre os essênios é importante para a identificação da comunidade de Qumran. Localização geográfica, valores, modo de vida etc dos essênios são descritos pelos judeus Flávio Josefo e Fílon de Alexandria e pelos romanos Plínio, o Velho, e Solino.

É Flávio Josefo quem nos diz que: “Existem, com efeito, entre os judeus, três escolas filosóficas: os adeptos da primeira são os fariseus; os da segunda, os saduceus; os da terceira, que apreciam justamente praticar uma vida venerável, são denominados essênios: são judeus pela raça, mas, além disso, estão unidos entre si por uma afeição mútua maior que a dos outros”[33].

Na mesma direção vai Fílon de Alexandria, que diz: “A Síria Palestina, que ocupa uma parte importante da populosa nação dos judeus, não é, também ela, estéril em virtude. Alguns deles, que somam mais de quatro mil, são denominados essênios”[34].

Plínio, o Velho nos oferece precioso dado para a localização dos essênios em Qumran: “Na parte ocidental do mar Morto os essênios se afastam das margens por toda a extensão em que estas são perigosas. Trata-se de um povo único em seu gênero e admirável no mundo inteiro, mais queVista aérea de Qumran. Em Virtual Qumran qualquer outro: sem nenhuma mulher e tendo renunciado inteiramente ao amor; sem dinheiro e tendo por única companhia as palmeiras. Dia após dia esse povo renasce em igual número, graças à grande quantidade dos que chegam; com efeito, afluem aqui em grande número aqueles que a vida leva, cansados das oscilações da sorte, a adotar seus costumes (…) Abaixo desses ficava a cidade de Engaddi, cuja importância só era inferior à de Jericó por sua fertilidade e seus palmeirais, mas que se tornou hoje um montão de ruínas. Depois vem a fortaleza de Massada, situada num rochedo, não muito distante do mar Morto”[35].

A. G. Lamadrid observa que “a descrição de Plínio corresponde perfeitamente às ruínas de Qumran, que se encontram a uns dois quilômetros a ocidente do mar Morto e também alguns quilômetros ao norte da antiga cidade de Engaddi”[36].

Solino, do séc. III d.C., que tira parte de seu material de Plínio, diz o seguinte: “O interior da Judeia que se estende para o ocidente é ocupado pelos essênios. Estes, seguidores de rígida disciplina, se separaram dos costumes de todos as outras nações, tendo sido destinados a este modo de vida pela divina providência. Nenhuma mulher se encontra entre eles e eles renunciaram ao sexo completamente. Eles desconhecem o dinheiro e vivem entre palmeiras. Ninguém nasce entre eles, entretanto seu número não diminui. O local é destinado à castidade. Ali reúnem-se pessoas de várias nações; entretanto, ninguém que não tenha uma reputação de castidade e inocência é ali admitido. Aquele que cometer a menor falta, embora faça o maior esforço para ser admitido, é mantido afastado por ordem divina. Assim, ao longo de tantas eras (é difícil de se crer), uma raça onde não há nascimentos vive para sempre. Logo abaixo dos essênios existia a cidade de Engaddi, mas ela foi arrasada”[37].

Tanto Flávio Josefo quanto Fílon de Alexandria noticiam a opção celibatária e a vida comunitária dos essênios, o que os manuscritos de Qumran confirmam – pelo menos para uma parte da organização – como veremos adiante: “Os essênios repudiam os prazeres como um mal e consideram como virtude a continência e a resistência às paixões. Eles desprezam, para si mesmos, o casamento; mas adotam os filhos dos outros numa idade ainda bastante tenra para receberem seus ensinamentos: eles os consideram como se fossem de sua família e os moldam de acordo com os seus costumes”[38].

Fílon diz que na comunidade dos essênios “existem apenas homens de idade madura e inclinados já para a velhice, que não são mais dominados pelo fluxo do corpo nem arrastados pelas paixões, mas que gozam da liberdade verdadeira e realmente única”[39].

Fílon acredita que os essênios não se casam porque isto ameaçaria a sua vida comunitária, dado, segundo sua opinião, o caráter de semeadora de discórdias que predomina nas mulheres: “Por outro lado, prevendo com perspicácia o obstáculo que ameaçaria, seja por si só, seja de modo mais grave, dissolver os laços da vida comunitária, eles baniram o casamento, ao mesmo tempo em que prescreveram a prática de uma perfeita continência”[40].

Qumran, segundo Virtual QumranSobre a vida comunitária dos essênios diz Flávio Josefo que os seus bens são igualmente divididos, evitando que haja pobres e ricos, o que é confirmado pelos documentos da comunidade: “Com efeito, trata-se de uma lei: aqueles que entram para o grupo entregam seus bens à comunidade, de tal forma que entre eles não se vê absolutamente nem a humilhação da pobreza nem o orgulho da riqueza, já que as posses se encontram reunidas, não existindo para todos senão um único haver, como ocorre entre irmãos”[41].

Há ainda muitos outros testemunhos interessantes sobre os essênios, especialmente de Flávio Josefo, que veremos oportunamente.

Se a comunidade que vive em Qumran é composta pelos essênios, é possível reconstruir a sua história, que se situa entre os séculos II a.C. e I d.C. Além dos testemunhos antigos contamos com os manuscritos da comunidade e os resultados das es­cavações de Khirbet Qumran[42].

Tudo indica que quando o macabeu Jônatas assume o sumo sacerdócio em Jerusalém começa a crise. Como sabemos, os assideus lutam lado a lado com os Macabeus contra a aristocracia filo-helênica, a partir de 167 a.C.[43].

Mas quando estes, que não são sadoquitas, se apossam do sumo sacerdócio, um sacerdote sadoquita do Templo, conhecido nos manuscritos apenas como Mestre da Justiça (Môreh hasedeq) rompe com os Macabeus e lidera um grupo de sacerdotes e assideus que se afasta de Jerusalém[44].

O Documento de Damasco comenta esta aliança e consequente ruptura: “E no tempo da ira, aos trezentos e noventa anos após tê-los entregue nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia, visitou-os e fez brotar de Israel e de Aarão um broto da plantação para possuir a sua terra e para engordar com os bens de seu solo. E eles compreenderam sua iniquidade e souberam que eram homens culpáveis; porém eram como cegos e como quem às apalpadelas busca o caminho durante vinte anos. E Deus considerou suas obras porque o buscavam com coração perfeito, e suscitou para eles um Mestre de Justiça para guiá-los no caminho de seu coração” (CD I, 5-11).

Trezentos e noventa anos após a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor ocorrida em 586 a.C., nos colocaria no ano 196 a.C. e não combina com a época dos Macabeus, quando teria surgido o grupo essênio. Mas somando-se aos 390 anos mais 20 anos, durante os quais a comunidade anda às cegas, depois mais 40 anos, que representam o tempo simbólico entre a morte do Mestre da Justiça e a chegada da era messiânica, chega-se a 450 anos. Some-se a isto os simbólicos 40 anos de atividade do Mestre e temos 490 anos ou 70 x 7 anos que, segundo o livro de Daniel, representam o tempo decorrido entre a intervenção destruidora de Nabucodonosor e o advento salva­dor do Messias[45]. Ou seja: 390 anos (ou 490) é uma quantia simbólica, uma afirmação teológica apenas e não serve para datar coisa alguma.

Mas há outros dados neste texto que nos oferecem algum ponto de apoio histórico. O “tempo da ira” só pode ser a crise da época de Antíoco IV Epífanes[46].

A “raiz que brota de Israel e Aarão” é uma referência aos leigos e sacerdotes que compõem a comunidade essênia, e os “vinte anos” nos quais se comportam como cegos pode ser uma avaliação do período de aliança dos assideus com os Macabeus, anteriores ao surgimento do Mestre da Justiça.

De uma passagem da Regra da Comunidade se deduz que os líderes deste grupo são sacerdotes sadoquitas: “Esta é a regra para os homens da comunidade que se oferecem voluntariamente para converter-se de todo mal e para manter-se firmes em tudo o que ordena segundo a sua vontade. Que se separem a congregação dos homens da iniquidade para formar uma comunidade na lei e nos bens, e submetendo-se à autoridade dos filhos de Sadoc, os sacerdotes que guardam a aliança, e à autoridade da multidão dos homens da comunidade, os que se mantêm firmes na aliança” (1QS V, 1-3).

Também os fragmentos de uma antologia de bênçãos (1QSb), originalmente anexadas à Regra da Comunidade, falam da liderança dos sacerdotes sadoquitas entre os essênios: “Palavras de Bênção. Do Instrutor. Para abençoar] os filhos de Sadoc, os sacerdotes que Deus escolheu para si para reforçar sua aliança para [sempre, para distribuir todos os seus juízos em meio ao seu povo, para instruí-los conforme o seu mandato. Eles estabeleceram na verdade [sua aliança] e inspecionaram na justiça todos os seus preceitos, e andaram de acordo com o que ele escolhe” (11QSbIII, 22-25)[47].

Além do Documento de Damasco, alguns comentários bíblicos de Qumran falam do Mestre da Justiça. O enquadramento histórico do Mestre da Justiça é importante para se reconstruir a história da comunidade, pois ele é apresentado como a figura mais importante entre os essênios e quase certamente é o seu fundador.

Explicando o Sl 37,23-24 diz um escrito de Qumran: “Pois por YHWH são assegurados [os passos do homem;] ele se deleita em seu caminho: embora tropece [não] cairá, pois YHWH [sustenta sua mão]. Sua interpretação se refere ao Sacerdote, o Mestre de [Justiça, a quem] Deus escolheu para estar [diante dele, pois] o estabeleceu para construir por ele a congregação [de seus eleitos] [e endireitou o seu caminho, em verdade” (4QpSlaIII, 14-17).

No Comentário de Habacuc se lê interessante aplicação de Hab 1,13b: “Por que contemplais, traidores, e guardais silêncio quando devora um ímpio alguém mais justo que ele? Sua interpretação se refere à Casa de Absalão e aos membros de seu conselho, que se calaram quando da repreensão do Mestre de Justiça e não o ajudaram contra o Homem de Mentira, que rejeitou a Lei em meio a toda a sua comunidade]” (1QpHab V,8-12).

Ainda no mesmo Comentário de Habacuc aparecem outros dados interessantes na explicação de Hab 2,8b: “Pelo sangue humano [derramado] e a violência feita ao país, à cidade e a todos os seus habitantes. Sua interpretação se refere ao Sacerdote Ímpio, posto que pela iniquidade contra o Mestre de Justiça e os membros de seu conselho o entregou Deus nas mãos de seus inimigos para humilhá-lo com um castigo, para aniquilá-lo com a amargura da alma por ter agido impiamente contra os seus eleitos” (1QpHab IX, 8-12).

Quem é o “Homem da Mentira” que despreza a Lei, o “Sacerdote Ímpio” que persegue o Mestre da Justiça e seu grupo, a “Casa de Absalão” que omite necessário socorro ao perseguido?

Em 1QpHab VIII, 8-13 se diz ainda que o Sacerdote Ímpio no começo foi chama­do por seu verdadeiro nome mas que “quando dominou sobre Israel se envaideceu seu coração, abandonou a Deus e traiu as leis por causa das riquezas. E roubou e amontoou as riquezas dos homens violentos que se haviam rebelado contra Deus. E tomou as riquezas públicas, acrescentando sobre si um pecado grave. E cometeu atos abomináveis em toda espécie de impureza imunda”.

Com todas estas características o candidato mais provável a “Sacerdote Ímpio” é o macabeu Jônatas que, além de ser líder político e militar do povo judeu, apossa-se do sumo sacerdócio. E morre prisioneiro do general Trifão (1Mc 12,48-53), o que o Comentário de Habacuc interpreta como castigo por ter perseguido o Mestre da Justiça[48].

Parece possível, assim, colocar o surgimento dos essênios durante o governo de Jônatas (160-143 a.C.).

Ao romper com Jônatas, o Mestre da Justiça parte para o exílio, como diz um texto dos Cânticos de Louvor, obra atribuída ao fundador da comunidade: “Pois me expulsam de minha terra como a um pássaro do ninho; todos os meus amigos e meus conhecidos foram distanciados de mim, e me consideram como um cântaro quebrado” (1QHa XII, 8-9).

Aqui não se sabe se o Mestre da Justiça e seu grupo refugia-se imediatamente em Qumran ou se vai para o exterior, para Damasco. É que o Documento de Damasco refere-se a uma permanência dos homens de Aarão (sacerdotes) e de Israel (leigos) que permanecem fiéis à Lei na “terra de Damasco” (CD VI,5); ou se diz que eles “escaparam para a terra do norte” (CD VII, 14).

Alguns autores acham que o movimento essênio começa quando os partos invadem a Babilônia em 141-140 a.C. e muitos judeus emigram para algum lugar próximo a Damasco. O grupo do Mestre da Justiça ter-se-ia reunido a estes judeus na região de Damasco para fugir dos Macabeus que controlam a Judeia. Só mais tarde teriam passado a morar em Qumran[49].

Outros acreditam que a “terra de Damasco” seja apenas um jeito simbólico para falar de Qumran. É que o CD VII, 14-21, que fala de Damasco, se inspira em Am 5,26-27 onde, de uma ameaça no texto original, os essênios desenvolvem uma promessa de salvação, modificando o texto bíblico[50].

O Homem da Mentira mencionado nos manuscritos, pode ser alguém do grupo que se opõe, em determinado momento, ao Mestre da Justiça, e que se retira levando consigo certo número de adeptos.

Segundo F. García Martínez, elaborador da “Hipótese de Groningen”, “tanto o fundador da comunidade qumrânica, o Mestre da Justiça, como o seu oponente neste conflito, o Mentiroso, foram anteriormente membros de uma mesma comunidade, e que na disputa entre ambos apenas uma pequena minoria tomará partido pelo Mestre da Justiça. Em minha opinião, a melhor maneira de compreender a indubitável relação que existe entre o movimento essênio e a comunidade qumrânica é aceitar que o grupo de Qumran se origina precisamente mediante uma ruptura ocasionada dentro do movimento essênio do qual seus membros fundadores tomavam parte”[51].

Neste primeiro momento, seja antes de se estabelecer em Qumran, seja depois, o Mestre da Justiça é perseguido pelo “Sacerdote Ímpio”, pois diz 1QpHab XI, 2-8 explicando Hab 2,15: “Ai do que embriaga o seu próximo, do que transtorna o seu furor! Inclusive o embriaga para observar suas festas! Sua interpretação se refere ao Sacerdote Ímpio, que perseguiu o Mestre de Justiça para devorá-lo com o furor de sua ira no lugar de seu desterro, no tempo da festa, no descanso do dia das Expiações. Apresentou-se diante deles para devorá-los e fazê-los cair no dia do jejum, o sábado de seu descanso”.

A pesquisa arqueológica de Khirbet Qumran revela, enfim, que o primeiro período da ocupação essênia começa por volta de 135 a.C. e vai até o ano Qumran31 a.C. A ocupação parece ter sido lenta até por volta de 110 a.C. quando há um avanço considerável.

Inicialmente os essênios se estabelecem sobre as ruínas da chamada “cidade do sal” (Js 15,62) que fora construída por Josafá (871/0-848 a.C.) ou por Ozias (767-739 a.C.).

O macabeu João Hircano I (134-104 a.C.) entra em conflito com os fariseus e se alia aos saduceus mais para o fim de seu governo. Acredita-se que os fariseus tenham se refugiado em grande número entre os essênios de Qumran, pois a sede da comunidade é notavelmente aumentada[52].

A partir do ano 31 a.C., e durante uns 30 anos, Qumran é abandonado. Um terremoto devasta a região e os arqueólogos encontram seus sinais nos edifícios da comunidade[53]. É possível que seja esta a causa da retirada dos essênios, não se sabe para onde, embora alguns estudiosos pensem que a causa seja uma possível perseguição de Herodes Magno à comunidade.

A atitude de Herodes Magno (37-4 a.C.) em relação aos essênios é interpretada de modo diverso pelos especialistas. Alguns acreditam que ele lhes seja favorável, pois Flávio Josefo diz que o rei idumeu fora legitimado por um essênio[54]. Deste modo, durante o seu governo ele lhes teria garantido sua reintegração nas cidades judaicas, razão pela qual eles teriam abandonado Qumran.

Outros pensam que o abandono de Qumran pode ter sido motivado por algum conflito entre Herodes e os essênios, pois o rei passa longas temporadas em seu palácio de Jericó, cidade que fica bem próxima da sede da comunidade.

De qualquer modo, sempre a partir dos dados arqueológicos, sabe-se que o segundo período de ocupação de Qumran pelos essênios começa durante o reinado de Arquelau (4 a.C. – 6 d.C.) e termina violentamente em junho de 68 d.C. Nesta data, as tropas de Vespasiano se apossam de Qumran, destruindo tudo. Os arqueólogos encontram flechas no edifício e cinzas de um grande incêndio que devora a sede da comunidade.

Acredita-se que tenha sido nesta ocasião, em fins de maio e começo de junho, que os essênios escondem seus preciosos manuscritos nas grutas vizinhas. O que evita a sua perda total, pois os essênios desaparecem, então, definitivamente[55].

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[31]. Cf. o interessante estudo de GOLB, N. Quem escreveu os Manuscritos do Mar Morto? A busca do segredo de Qumran. Rio de Janeiro: Imago, 2004. Golb discorda da hipótese essênia e defende que os manuscritos pertenciam a vários grupos do judaísmo do século I d.C. Por causa da guerra dos anos 70, teriam sido escondidos naquelas grutas de Qumran. Já BOCCACCINI, G. Além da hipótese essênia: a separação entre Qumran e o judaísmo enóquico. São Paulo: Paulus, 2010, sustenta uma hipótese enóquica/essênia para a identificação dos autores dos manuscritos.

[32]. Cf. mais informações aqui.

[33]. JOSEFO, F. Bellum Iudaicum II, VIII, 119. Ao falar das facções político-religiosas do judaísmo como “escolas filosóficas”, Flávio Josefo está adaptando seu vocabulário à realidade greco-romana.

[34]. FÍLON DE ALEXANDRIA Quod omnis probus liber sit, § 75. Quanto ao número de essênios, Flávio Josefo nas Antiquitates Iudaicae XVIII, I, 20 confirma: “São mais de quatro mil homens a se comportarem dessa maneira”. Os textos de Flávio Josefo, de Fílon de Alexandria (Philo, em inglês) e de outros autores antigos estão online.

[35]. PLÍNIO, O VELHO Naturalis Historia V, 73. Plínio nasce em 23/24 e morre em 79 d.C., asfixiado pela fumaça da grande erupção do Vesúvio. Nasce em Como, na Itália, de uma família de cavaleiros, e vive em Roma. Exerce aí a advocacia e mais tarde torna-se procurador romano na Gália, na África e na Espanha. Escreve a Naturalis Historia em trinta e sete livros em 77 d.C. e a dedica a Tito, futuro imperador de Roma. Cf. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976, p. 465-501.

[36]. LAMADRID, A. G., Los descubrimientos del mar Muerto, p. 112. 

[37]. SOLINUS, C. I. Collectanea rerum memorabilium 35,9-12. Cf. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism II. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1980, p. 420-421.

[38]. JOSEFO, F. Bellum Iudaicum II, VIII, 120. Nas Antiquitates Iudaicae XVIII, I, 21, ele diz que os essênios “não tomam esposas e não adquirem escravos; consideram, com efeito, que tal coisa constituiria uma injustiça e que levaria à discórdia. Vivem, por conseguinte, entre si e realizam, um para com o outro, as tarefas do servo”. Mas em Bellum Iudaicum II, VIII, 160-161 Flávio Josefo diz que há outro grupo de essênios “que concordam com os demais no que se refere ao tipo de vida e aos usos e costumes, mas que deles diferem no tocante à questão do casamento”.

[39]. FÍLON DE ALEXANDRIA, Apologia pro Iudeis, § 3.

[40]. FÍLON DE ALEXANDRIA, Apologia pro Iudeis, § 14. A opinião de Fílon sobre as mulheres é fortemente preconceituosa. Ele considera a mulher egoísta, excessivamente ciumenta, hábil na sedução, aduladora, usando o fingimento para ganhar e desencaminhar o marido, arrogante quando tem filhos etc. E que faz do homem um escravo, mesmo contra a vontade dele…

[41]. JOSEFO, F. Bellum Iudaicum II, VIII, 122.

[42]. Cf. CARGILL, R. R. The Fortress at Qumran: A History of Interpretation. In: The Bible and Interpretation, May 2009; MAGNES, J. The Archaeology of Qumran and the Dead Sea Scrolls. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003; BOCCACCINI, G. Além da hipótese essênia: a separação entre Qumran e o judaísmo enóquico. São Paulo: Paulus, 2010; STACEY, D. ; DOUDNA, G. Qumran Revisited: A Reassessment of the Archaeology of the Site and Its Texts. Oxford: Archeopress, 2013.

[43]. Cf. a história dessa luta aqui.

[44]. É possível que uma das razões pelas quais os assideus tenham entrado na luta contra os Selêucidas e o partido helenizante seja a defesa do sumo sacerdócio na linha sadoquita. Menelau (171-161 a.C.), que dirige o processo de helenização não é sacerdote sadoquita. O “Mestre da Justiça” é mencionado 8 vezes em 1QpHab, 1 vez em 1QpMq, 2 vezes em 4QpSl37 e 6 vezes no CD. Também é possível que o “Mestre da Justiça” seja o próprio sacerdote que está exercendo o cargo supremo durante a vacância de 7 anos ocorrida após a queda de Alcimo.

[45]. Confira uma interessante discussão sobre a identidade do Mestre da Justiça em  BOCCACCINI, G. Além da hipótese essênia: a separação entre Qumran e o judaísmo enóquico, p. 159 e seguintes.

[46]. 1Mc 1,64 refere-se aos acontecimentos desta época nos seguintes termos: “Foi sobremaneira grande a ira que se abateu sobre Israel”.

[47]. Aqui e em quaisquer outros textos de Qumran que forem citados, os  [ ] delimitam palavras que são reconstruídas pelos especialistas em documentos corrompidos. São hipotéticas, mas prováveis. Utilizo a tradução de GARCÍA MARTÍNEZ, F. Textos de Qumran: edição fiel e completa dos Documentos do Mar Morto. Petrópolis: Vozes, 1995.

[48]. Apesar da maioria dos especialistas identificarem o “Sacerdote Ímpio” com Jônatas, outros candidatos são propostos: Menelau, Alcimo, Simão, João Hircano I, Alexandre Janeu etc. Cinco personagens ocupam o sumo sacerdócio durante a crise do séc. II a.C.: os aliados dos gregos Jasão (174-171 a.C.), Menelau (171-161 a.C.) e Alcimo (161-159 a.C.); e os dois irmãos macabeus Jônatas (160-143 a.C.) e Simão (143-134 a.C.). Os 3 aliados dos gregos podem ser descartados, pois nenhum deles tem boa reputação no começo de sua atuação e nenhum deles morre nas mãos de um inimigo. Os irmãos Macabeus são os únicos candidatos. A “casa de Absalão” pode ser uma referência a certo Absalão, embaixador de Judas Macabeu (2Mc 11,17) que tem um filho, Matatias, como oficial de Jônatas (1Mc 11,70) e outro, Jônatas, que é general de Simão (1Mc 13,11). 

[49]. Esta é a posição de W. F. Albright, por exemplo, citada por LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto, p. 124.

[50]. O texto bíblico diz: “Carregareis Sacut, vosso rei, e a estrela de vosso deus, Caivã, imagens que fabricastes para vós. Eu vos deportarei para além de Damasco”. Mas os essênios leem o seguinte: “Eu exilarei o tabernáculo de vosso rei e as bases de vossas estátuas da minha tenda até Damasco”, onde “rei” = comunidade, “tenda” = Lei e “bases das estátuas” = profetas.

[51]. GARCÍA MARTÍNEZ, F. Textos de Qumran, p. 9.

[52]. LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto, p. 122, observa que “na realidade, a comunidade essênia de Qumran e os fariseus descendiam todos do mesmo tronco comum dos assideus. A presença de elementos fariseus na comunidade de Qumran explicaria a tendência legalista que se observa em alguns escritos de sua literatura”.

[53]. JOSEFO, F. Bellum Iudaicum I,19,3-4, fala deste terremoto.

[54]. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XV, 4ss, diz: “Um essênio, de nome Menahem, que levava vida mui virtuosa e era louvado por todos e tinha recebido de Deus o dom de predizer as coisas futuras, vendo Herodes, ainda bastante jovem, estudar com crianças de sua idade, disse-lhe que ele reinaria sobre os judeus. Herodes julgou que ele não o conhecia ou que estava zombando dele, e por isso respondeu-lhe que ele via bem que ele desconhecia sua origem e seu nascimento, que não eram tão ilustres para fazê-lo esperar tal honra. Menahem retrucou-lhe sorrindo e dando-lhe uma palmadinha nas costas: ‘Eu vo-lo disse e vo-lo digo ainda, que sereis rei e reinareis felizmente, porque Deus o quer assim. Lembrai-vos então desta pancadinha que vos acabo de dar, para indicar-lhe as diversas mudanças da sorte, e nunca vos esqueçais de que um rei deve ter continuamente diante dos olhos a piedade que Deus lhe pede, a justiça que ele deve ministrar a todos e o amor que ele é obrigado a ter por seus súditos…'”

[55]. Já foi sugerido que os essênios teriam sobrevivido a 68 d.C. Ou teriam se convertido ao cristianismo, dando origem às seitas judaico-cristãs que viviam na Transjordânia; ou teriam formado grupos gnósticos dentro do judaísmo, pois no séc. II d.C. seitas gnósticas judaicas começam a aparecer e suas práticas são de tipo essênio. Cf. as opiniões em LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto, p. 123, nota 17.


Essênios 2

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Comentários bíblicos

Os comentários bíblicos de Qumran são do gênero pesher, palavra hebraica que quer dizer “explicação”, “significado”. O método pesher consiste em comentar o texto bíblico versículo por versículo, procurando aplicá-lo às circunstâncias vividas pela comunidade, como se os textos bíblicos, especialmente os proféticos, estivessem falando diretamente da realidade atual. Os livros resultantes são conhecidos como pesharim, “comentários”.

Após citar um versículo ou mesmo trechos menores, o comentarista diz: “A explicação (pesher) disto diz respeito a…”.

Estes livros são classificados como 1QpHab, 1QpMq, 4QpOs etc, respectivamente, Comentário (= pesher) de Habacuc, Comentário de Miqueias, Comentário de Oseias e assim por diante. Estão identificados cerca de uma dúzia destes comentários entre os manuscritos de Qumran[23].

Os pesharim, além de exemplificarem um método exegético só usado pela comunidade de Qumran e pelos cristãos, são importantes igualmente como testemunhos históricos da organização e vicissitudes da comunidade.

O pesher mais importante de Qumran é o 1QpHab, Comentário de Habacuc, escrito provavelmente no começo do séc. I a.C., por suas constantes referências à história da comunidade.

Outro tipo de trabalho exegético encontrado em Qumran é o targum. Targum significa “tradução” e indica as traduções aramaicas dos livros bíblicos (= targumim) que se fazem nas sinagogas da época. Só que o targum não é uma tradução literal, mas uma paráfrase explicativa e atualizada do texto hebraico. É ótimo para se saber como os judeus interpretam o texto bíblico.

Na gruta número 11 de Qumran os arqueólogos encontram vários fragmentos de origem targúmica, entre eles um Targum de Jó. É o mais antigo dos targumim conhecidos, sendo do final do séc. II a.C[24].

Outro tipo de exegese é o que os editores dos manuscritos chamam de Florilégio: consiste em agrupar vários trechos bíblicos, que possuam alguma homogeneidade, para que eles se completem e sejam explicados. O fragmento 4Q174, por exemplo, reúne trechos de 2Sm 7 com Sl 1 e 2 que são interpretados, em seguida, segundo o padrão do pesher.

 

Regras da comunidade

De extrema importância são os livros que trazem as normas de constituição e atividades da comunidade de Qumran.

1QS: Serek hayahad - Regra da ComunidadeA Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, em hebraico, Serek hayahad (1QS), é o principal livro da comunidade de Qumran. É o manuscrito que contém as normas que governam a comunidade. Provavelmente seu autor é o próprio fundador da comunidade, conhecido nos textos como o Mestre da Justiça. Sua composição pode ser situada entre 150 e 125 a.C., enquanto que o manuscrito completo é dos anos 100-75 a.C.

Além da cópia completa encontrada em 1Q, fragmentos de outras 11 cópias es­tão entre os textos de 4Q e 5Q.

A Regra pode ser dividida em três seções:
. Normas para o ingresso na Comunidade (I-IV)
. Estatutos referentes ao Conselho da Comunidade (V-IX)
. Diretrizes para o Mestre e o Hino do Mestre (IX-XI).

A Regra da Congregação, em hebraico, Serek ha’edat (1QSa), e a Coleção de Bênçãos (1QSb) são dois anexos à Regra da Comunidade. A primeira é da metade do séc. I a.C. e a segunda pode ser datada por volta de 100 a.C. A Regra da Congregação é um escrito de tipo escatológico que descreve a vida e o banquete da comunidade no fim dos tempos. A Coleção de Bênçãos é uma antologia de fórmulas para abençoar os membros da comunidade.

Os Cânticos de Louvor, em hebraico, Hôdayôt (1QH), são cânticos de ação de graças ou hinos de louvor, parecidos com o “Magnificat” e o “Benedictus” de Lucas. Inspiram-se principalmente nos Salmos e em Isaías. Devem ter sido compostos entre 150 e 125 a.C., e, pelo menos em parte, pelo Mestre da Justiça. O manuscrito de 1Q provém dos anos 1 a 50 d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais 6 cópias.

A Regra da Guerra, em hebraico, Serek hamilhamah, também conhecida como “A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”, compreende uma espécie de compêndio da ciência bélica e das celebrações cultuais que deveriam ser observadas por ocasião de uma guerra com vistas à luta final que precederia a era da salvação[25] . Os filhos da luz contam com a ajuda dos anjos Miguel, Rafael e Sariel, enquanto que os filhos das trevas contam com Belial. A vitória, é claro, é dos filhos da luz. O original é composto entre os anos 50 a.C. e 25 d.C., enquanto que o manuscrito encontrado em 1Q é do séc. I d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais cinco cópias deste livro.

O Documento de Damasco (CD) é uma obra conhecida desde 1896-97, quando dois manuscritos são encontrados num depósito de rolos velhos (genizá) de uma antiga sinagoga do Cairo. Um dos manuscritos é do século X d.C. e o outro do séc. XII d.C. Publicados em 1910, continuam, então, um enigma: não se sabe a que grupo judeu o texto se refere e que certamente compôs a obra. Os estudiosos sugerem os saduceus, os fariseus, os ebionitas, os caraítas… e apenas um diz que é dos essênios!

Agora, acontece que fragmentos de nove cópias do Documento de Damasco são encontrados nas grutas de Qumran (7 fragmentos em 4Q, 1 em 5Q, 1 em 6Q): sem dúvida é uma obra criada na comunidade essênia.

Muitos especialistas defendem que “Damasco” deve ser entendido em sentido literal e que representaria uma primeira fase da comunidade, anterior ao seu estabelecimento em Qumran. Outros pensam que “Damasco” seja apenas um modo velado de se falar de Qumran, a partir de Am 5,26-27. E o Documento pode ser também a regra de outra ala da organização, que viveria fora de Qumran. Mas discutirei isso mais para a frente.

A obra compõe-se de uma exortação e de uma lista de estatutos. Na exortação o pregador (talvez uma autoridade da comunidade) tem por objetivo encorajar os sectários a permanecer fiéis e, com este fim em vista, ele se empenha em demonstrar, por meio da história de Israel e da comunidade, que a fidelidade é sempre recompensada e a apostasia castigada[26].

Os estatutos reinterpretam as leis bíblicas relativas a votos e juramentos, tribunais, purificação, sábado, pureza ritual etc. Trazem também os estatutos da comunidade. O Documento de Damasco deve ter sido escrito por volta de 100 a.C.

O Rolo do Templo, encontrado na gruta 11, (11QT), só aparece em junho de 1967, durante a “Guerra dos Seis Dias”, quando o Estado de Israel o retira das mãos de um antiquário da parte árabe de Jerusalém, a quem os ta’amireh o vendera.

É o maior dos manuscritos de Qumran, com mais de oito metros e meio de comprimento e 66 colunas. Trata do Templo e do culto, e embora se trate de uma reinterpretação da legislação bíblica do Êxodo, Levítico e Deuteronômio, o autor apresenta sua mensagem como fruto de revelação divina direta. O Rolo do Templo é do séc. II a.C. São encontrados fragmentos deste livro nas grutas 4Q e 11Q.

O Rolo de Cobre (3Q15) – que tem de ser cortado para ser aberto, de tão oxidado que está – fala de um tesouro escondido em 64 lugares diferentes da Palestina, em ouro, prata, perfumes etc. O montante alcançaria a fabulosa quantia de 65 toneladas de prata e 26 toneladas de ouro.

Seria um tesouro de fato ou só uma ficção? Até hoje nada foi achado deste pretenso tesouro. Os estudiosos se dividem na suas opiniões: seria um tesouro da comunidade de Qumran? Ou pertenceria ao Templo de Jerusalém? Neste último caso, quando e porquê o documento vai parar em Qumran?[27].

4QMMT pode parecer meio esotérico, mas é apenas a sigla de Miqsat Ma’aseh ha-Torah ou “Alguns dos Preceitos da Torá”, também conhecida como “Carta Halákica”. Seis cópias deste escrito são encontradas na gruta 4.

Os editores sugeriram que se trata de uma carta do grupo de Qumran, talvez redigida pelo Mestre da Justiça e seus companheiros, dirigida a seus oponentes em Jerusalém, incluindo o sumo sacerdote (= o Sacerdote Ímpio). O propósito da carta era esmiuçar as diferenças entre os dois partidos e convocar os oponentes para uma retificação da vida[28].

A carta é de grande importância para a compreensão dos essênios, pois apresenta 22 pontos da Lei em que os dois partidos divergem. A carta termina do seguinte modo: “E também nós te escrevemos alguns dos preceitos da Torá que pensamos bons para ti e para o teu povo, pois vimos em ti inteligência e conhecimento da Torá. Considera todas estas coisas e busca diante dele que ele confirme o teu conselho e afaste de ti a maquinação malvada e o conselho de Belial, de maneira que possas alegrar-te no final do tempo no descobrimento de que algumas de nossas palavras são verdadeiras. E te será contado em justiça quando fizeres o que é reto e bom diante dele, para o teu bem e o de Israel” (4QMMT 112-118).

 

3. A publicação

A leitura, tradução e publicação dos manuscritos mais ou menos completos não é um grande problema para os especialistas. Mesmo os fragmentos das grutas menores são publicados até os anos 70.

O problema está nos milhares de fragmentos de mais de 500 manuscritos da gruta 4. A maioria está muito deteriorada: corroídos, curvados, enrugados, retorcidos, cobertos por mofo e elementos químicos.

John Strugnell (1930-2007)Para trabalhar nestes fragmentos é constituída em 1952 uma equipe internacional no Museu Arqueológico da Palestina, em Jerusalém Oriental, pertencente à Jordânia.

O chefe da equipe é o dominicano Roland de Vaux. Com ele trabalham Frank Moore Cross, americano, presbiteriano; J. T. Milik, polonês, católico; John Allegro, inglês, agnóstico; Jean Starcky, francês, católico; Patrick Skehan, americano, católico; John Strugnell, inglês, presbiteriano, depois católico; Claus-Hunno Hunziger, alemão, luterano. Predominam especialistas de Harvard (USA), École Biblique (Jerusalém) e Oxford (Inglaterra). Nota-se, nesta lista, a ausência de pesquisadores judeus. Dizem os especialistas que foi uma exigência do governo jordaniano.

Os trabalhos avançam em bom ritmo, já que são financiados por J. D. Rockfeller Jr., magnata americano. Mas, dois fatos intervêm: morre Rockfeller e Israel, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, anexa Jerusalém Oriental e toma o Museu Arqueológico da Palestina onde estão os manuscritos da gruta 4. O projeto de publicação perde o compasso.

Com a morte de Roland de Vaux em setembro de 1971, a função de editor-geral passa para seu colega dominicano Pierre Benoit, que por sua vez, ao morrer em 1987, passa o cargo para John Strugnell [os preparativos para esta sucessão vinham desde 1984]. Durante todos estes anos, a equipe continua pequena. Quando um pesquisador morre ou se retira, é substituído por outro e pronto. Strugnell, porém, lutará por duas coisas: pela expansão do pequeno grupo original encarregado dos manuscritos e pela inclusão nesta equipe de pesquisadores judeus[29].

Entretanto, cresce no meio acadêmico mundial a insatisfação com a demora na publicação dos documentos. Alguns nomes se destacam neste protesto: Robert Eisenman, da Universidade do Estado da Califórnia e Philip R. Davies da Universidade de Sheffield, Reino Unido. Eles tentam o acesso aos manuscritos, mas são barrados por J. Strugnell. É então que entra em cena Hershel Shanks, fundador da Biblical Archaeology Society. Através da Biblical Archaeology Review, ele inicia, a partir de 1985, poderosa campanha em favor do livre acesso dos pesquisadores aos manuscritos ainda não publicados.

Após polêmica entrevista aos jornais, em dezembro de 1990, John Strugnell é demitido do cargo pela Israel Antiquities Authority (IAA), que indica Emanuel Tov como editor-chefe e amplia a equipe para cerca de 50 pesquisadores. John Strugnell faleceu em 30 de novembro de 2007 aos 77 anos.

Contudo, dois novos fatos mudam o rumo das coisas. Em setembro de 1991 Ben Zion Wacholder e Martin Abegg do Hebrew Union College, emEmanuel Tov Cincinati, publicam A Preliminary Edition of the Unpublished Dead Sea Scrolls. Baseados no glossário elaborado pelos pesquisadores oficiais, e utilizando um computador, os dois estudiosos reconstroem textos inteiros da gruta 4. No mesmo mês, a Biblioteca Huntigton, de San Marino, Califórnia, que possui as fotos de todos os manuscritos, coloca a coleção à disposição dos estudiosos.

Em novembro de 1991 a Biblical Archaeology Society publica a Edição Fac-símile dos Manuscritos do Mar Morto, com cerca de 1800 fotografias dos manuscritos.

Neste meio tempo a IAA autoriza aos fotógrafos o acesso aos manuscritos. Estas fotografias estão disponíveis em 5 lugares: Jerusalém, Claremont e San Marino (as duas últimas na Califórnia), Cincinati e Oxford. E, finalmente, em 1993, sob os auspícios da IAA, sai a edição completa em microfilmes de todos os manuscritos do Mar Morto: The Dead Sea Scrolls on Microfiche. A Comprehensive Facsimile Edition of the Texts from the Judaean Desert, edited by Emanuel Tov with the collaboration of Stephen J. Pfann, E. J. Brill-IDC, Leiden 1993.

Em novembro de 2001 a publicação dos Manuscritos do Mar Morto foi concluída. Hoje há várias edições impressas e eletrônicas dos Manuscritos, além das páginas que os disponibilizam online, como aqui e aqui.

Florentino García MartínezTambém já foram feitas exposições dos Manuscritos em alguns países. Pergaminhos do Mar Morto: Um Legado Para a Humanidade foi o nome da mostra dos Manuscritos do Mar Morto no Brasil que começou dia 20 de agosto de 2004 e permaneceu até 23 de outubro, no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Em seguida, a exposição foi para a Estação Pinacoteca, em São Paulo, onde permaneceu de 26 de novembro de 2004 a 27 de fevereiro de 2005.

E textos em português?

No Brasil temos a importante obra de Florentino García Martínez, Textos de Qumran: edição fiel e completa dos Documentos do Mar Morto. Petrópolis: Vozes, 1995, 582 p. – ISBN 9788532612830. É uma acurada tradução dos 250 textos mais importantes de Qumran. A tradução do espanhol para o português é de Valmor da Silva[30].

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[23]. São os Comentários de Habacuc, Oseias, Miqueias, Sofonias, Naum, Isaías (4 comentários), Salmos (3 comentários).

[24]. Sobre os targumim, cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 485-511.

[25]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 58-69.

[26]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 41-48.

[27]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 213-215.

[28]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p.20-27.

[29]. Sobre a data em que Strugnell assumiu a direção da equipe, circulam na imprensa duas datas: 1984 e 1987. Foi em 1987, mas em 1984 os preparativos já tinham sido feitos. 

[30]. “Este livro pretende oferecer ao leitor uma tradução dos 250 manuscritos mais importantes procedentes de Qumran, isto é, uma tradução praticamente completa dos manuscritos não bíblicos ali encontrados”, comenta o autor no prólogo à edição brasileira de sua obra. Uma resenha da obra de Florentino García Martínez, feita por J. C. Vanderkam, pode ser lida em The Catholic Biblical Quarterly 56 (july 1994), Washington, p. 545-546. Diz Vanderkam: “Seu Textos de Qumrán é a mais completa tradução dos manuscritos em uma língua moderna (…) Ele sustenta, contra N. Golb, que os manuscritos de Qumran fazem parte de uma biblioteca religiosa sectária, e ele discute também a identificação, origem e história da comunidade de Qumran (…) Ao contrário do irritante costume da largamente divulgada tradução inglesa de G. Vermes de uma quantidade bem menor de manuscritos, García Martínez fornece a numeração das linhas para todos os textos; e no final ele traz uma lista de todos os manuscritos de Qumran junto com informação bibliográfica sobre onde eles foram publicados, caso tenham sido (…) O resultado é uma fascinante e útil  apresentação dos  textos de Qumran, traduzidos por uma das mais importantes autoridades mundiais nos manuscritos”. 


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6. Artápano e seu romance popular

Artápano é localizado, pelos estudiosos, no Egito, na metade do século II a.C.

Por que Egito?

Porque ele tem familiaridade com tradições egípcias. Mas provavelmente ele não é de Alexandria, e sim de outro centro, talvez Mênfis.

P. M. Fraser acha que sua obra indica um ambiente mais modesto do que o da Carta de Aristeias a Filócrates e que, por isso, ele não é alexandrino. E explica:

“Ele tem familiaridade com a vida nativa do Egito e as suas tradições sacerdotais, e é muito mais natural ver nele não um membro dos influentes círculos judeus próximos a Filometor ou outro Ptolomeu, mas (como seu nome persa sugere) como um judeu de descendência mestiça, possivelmente residente em outro centro tal como Mênfis, onde o estabelecimento de judeus desde uma antiga data exacerbava um problema que ainda estava apenas começando na capital”[27].

Por que metade do século II a.C.?

Parece que Artápano está respondendo a polêmicas gentias contra os judeus, tais como aparecem em Maneton (sobre Moisés), que é do século III a.C. Além do que, ele pressupõe a existência do templo judeu de Leontópolis, fundado por volta de 150 a.C. A época de Ptolomeu VI Filometor (181-145 a.C.) é a mais adequada para situá-lo.

Sua obra pode ser classificada como “romance popular”. Este gênero desenvolve-se entre povos que mantêm interesse mútuo em questões de história e cultura, tais como egípcios, gregos, babilônios ou judeus.

Isto explica, por um lado, o universalismo de Artápano e, por outro, sua dimensão apologética, na medida em que procura combater a ignorância dos outros povos acerca da identidade cultural de seu próprio povo.

Esta dimensão apologética é forte em Artápano:

. os judeus não são egípcios, como dizem alguns, mas vêm da Síria (Fragmento 1; Fragmento 2, § 3; Fragmento 3, § 21)
. Moisés não é um sacerdote egípcio, como diz Maneton, mas filho de judeus, apenas criado (e não adotado) por Merris, filha do faraó (Fragmento 3, § 3)
. Moisés não cria uma nação com egípcios e rejeitados, mas é o benfeitor cultural do Egito (Fragmento 3, §§ 4-7)
. os judeus não odeiam os deuses e os costumes de outras nações, mas reconhecem o seu valor, como faz Moisés (Fragmento 3, §§ 4-7)
. não é verdade que os judeus jamais produzem grandes homens; veja-se Abraão, José e Moisés, grandes benfeitores culturais, especialmente para o bem-estar do Egito (todos os fragmentos)
. não é verdade que a circuncisão não é um sinal da aliança com Deus porque os egípcios teriam-na ensinado a outros povos; é Moisés quem a leva aos sacerdotes egípcios e etíopes (Fragmento 3, § 10)[28].

Enfim, pode-se ver que os fragmentos da obra de Artápano são importantes para que verifiquemos o grau de assimilação cultural e acomodação da diáspora judaica em contexto gentio. Ele representa um grande segmento da diáspora, bastante liberal, que não vê as tradições gentias como uma ameaça às suas tradições religiosas judaicas.

De sua obra, chamada “Sobre os judeus” (Perì Ioudaíôn), temos três fragmentos, conservados por Alexandre Poliístor e citados por Eusébio. Tratam respectivamente de Abraão, José e Moisés, nas suas relações com o Egito. A LXX é sua fonte bíblica. Ele parece não conhecer o texto hebraico das Escrituras.

O Fragmento 1, de poucas linhas, trata de Abraão: ele emigra para o Egito, onde vive 20 anos, ensina astrologia ao faraó, volta à Síria, mas muitos dos que o acompanham ficam no Egito, atraídos pela prosperidade do país:

Um trecho do fragmento:

“Ele [Artápano] também diz que Abraão veio com toda a sua casa (panoikía) para o Egito, para Faretotes[29], o rei dos egípcios e lhe ensinou astrologia”.

O Fragmento 2 tem cerca de 30 linhas. Condensa a história de José de Gn 37;39-47. Fala de sua ascensão no Egito, de sua elevação a “senhor (despótês) do Egito” e de sua atividade como benfeitor cultural do Egito.

O Fragmento 3 é o mais longo. Trata de Moisés, desde o seu nascimento até a morte, seguindo o roteiro do livro do Êxodo, mas inserindo dados extrabíblicos.

Moisés é apresentado como:

. benfeitor cultural do Egito, mais importante do que Abraão e José
. estrategista que comanda os egípcios contra os etíopes
. fundador de cultos egípcios, organizador de sua vida religiosa, reverenciado pelos egípcios como divino.

C. R. Holladay observa a propósito: “Neste fragmento Moisés desponta não como o legislador dos judeus, como em Eupólemo, Aristóbulo, Fílon ou Josefo, mas como herói e taumaturgo, que realiza maravilhosos, para não dizer mágicos, feitos, e que nunca é vencido”[30].

Diz o § 4 do Fragmento 3:

“Este Moisés tornou-se mestre (didáskalos) de Orfeu. Quando ele tornou-se adulto, ele deu à humanidade muitas contribuições úteis, pois ele inventou navios, máquinas para erguer pedras, armas egípcias, inventos para tirar água e guerrear (polemiká), e filosofia. Ele também dividiu o país em 36 nomos e para cada nomo ele designou o deus a ser cultuado; além disso, ele designou os escritos sagrados para os sacerdotes. Os deuses, que ele designou como gatos, cães e íbis”.

 

7. O Pseudo-Hecateu: resposta a Hecateu de Abdera?

De Hecateu de Abdera falamos em outro artigo: etnógrafo, filósofo, crítico e gramático helenista que vive aí por volta de 300 a.C. e que trata dos judeus na sua obra “Sobre os egípcios”.

O problema é que há muitos outros fragmentos atribuídos a Hecateu, fragmentos que tratam dos judeus, e que muitos especialistas acreditam ser pseudepígrafos judaicos[31].

As questões que estes fragmentos suscitam provocam grande desacordo entre os estudiosos acerca do:

. número de fragmentos
. extensão de cada fragmento
. natureza e título da(s) obra(s) das quais derivam
. autoria
. contexto histórico

Os testemunhos acerca da obra de Hecateu que trata dos judeus são:

. a Carta de Aristeias a Filócrates (séc. II a.C.)
. Flávio Josefo, em Antiquitates Iudaicae e Contra Apionem
. Eusébio, na Praeparatio Evangelica.

Duas obras atribuídas a Hecateu suscitam problemas: “Sobre Abraão” e “Sobre os judeus”.

“Sobre Abraão” é citada por Flávio Josefo (Antiquitates Iudaicae I, 159), Eusébio e Clemente de Alexandria. É claramente uma obra de um apologista judeu. Mas persiste a dúvida quanto à existência de uma obra com tal nome.

“Sobre os judeus” é citada por Flávio Josefo (Contra Apionem I, 183-204), Eusébio e Orígenes (Contra Celsum I,15). Josefo dá a entender que “Sobre os judeus” é um tratado completo de etnografia, segundo os padrões da época helenística[32].

Se se assume que os fragmentos de “Sobre Abraão” e “Sobre os judeus” não pertencem a Hecateu de Abdera, mas são pseudonímicos, surgem outras questões:

. são da mesma obra?
. ou são de obras diferentes? Neste caso, são do mesmo autor ou são de autores diferentes?

As posições dos especialistas são:

. uma única obra de um mesmo autor: é a solução mais simples, oferecida por E. Schürer. Ele acha que os dois títulos são apenas variações da mesma obra[33].
. duas obras do mesmo autor. Primeiro é escrito o “Sobre os judeus”, depois o “Sobre Abraão”. É a posição de C. R. Holladay que cita três fragmentos atribuídos por ele a um mesmo autor, escritos na primeira metade do séc. II a.C. no Egito[34].
. diferentes obras de diferentes autores, que é a tendência da pesquisa hoje. F. Jacoby, por exemplo, defende que “Sobre os judeus” é de aproximadamente 170 a.C. e é escrito por um sacerdote judeu da Palestina que emigra para o Egito; “Sobre Abraão” é de outro autor judeu, posterior ao primeiro[35].

Mas, deixando de lado esta discussão, vejamos a importância do Pseudo-Hecateu em seis pontos:

. Certos elementos típicos da apologética judaica são apresentados:  a sabedoria superior dos judeus; seu grande número; sua fidelidade à lei; seu desprezo pelas superstições gentias; sua lealdade política aos governantes.
. O Pseudo-Hecateu ilustra bem como um autor judeu interpreta o tratamento dado a seu povo por um autor gentio, já que talvez ele escreva em resposta ao verdadeiro Hecateu de Abdera.
. É útil para o estudo da Carta de Aristeias a Filócrates que o utiliza.
. Tem algum valor histórico.
. Testemunha a fé judaica da época dos Macabeus.
. Exemplifica o encontro entre judeus e gentios no terreno da tradição popular.

Dos fragmentos vou citar apenas o § 186 do Fragmento 1, que está no “Contra Apionem” de Flávio Josefo:

“Hecateu continua a dizer que, após a batalha de Gaza, Ptolomeu tornou-se senhor da Síria, e que muitos dos habitantes, ouvindo falar de sua bondade e humanidade, desejaram acompanhá-lo ao Egito e viver no seu reino”.

Este Ptolomeu é o I, Soter, e seu retrato está em contraste com o da Carta de Aristeias a Filócrates: segundo a Carta, a migração dos judeus para o Egito é forçada e não voluntária[36]. A batalha de Gaza acontece em 312 a.C.

Esta visão otimista continua nos §§ 187-189 do mesmo Fragmento 1, onde se fala do sumo sacerdote Ezequias (que não existe nas listas do pós-exílio), homem hábil e estimado, que, agraciado por Ptolomeu I Soter, convence seus amigos das vantagens da migração para o Egito.

 

Bibliografia

DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II. Madrid: Cristiandad, 1983.

FRASER, P. M. Ptolemaic Alexandria I. Oxford: Oxford University Press, 1972.

HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. I: Historians. Chico, California: Scholars Press, 1983.

HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. II: Poets. Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1989.

HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. III: Aristobulus. Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1995.

JOSEFO, F. História dos Hebreus: Obra Completa. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007.

MONDÉSERT, C., (org.) Le monde grec ancien et la Bible (Bible de tous les temps 1). Paris: Beauchesne, 1984.

SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015.

THACKERAY, H. St. J.;MARCUS, R.; WIKGREN, A.; FELDMAN, L. H. Josephus I-XIII, Cambridge: Harvard University Press, 1926-1965. Texto disponível online.

>> Bibliografia atualizada em 28.08.2015

Artigos


[27]. FRASER, P. M. Ptolemaic Alexandria I.Oxford: Oxford University Press, 1972, p. 704. Citado em HOLLADAY, C. R. o. c., p. 195, nota 9.

[28]. Cf. HOLLADAY, C. R, o. c., p. 197; SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 521-525.

[29]. Faretotes (Farethôthês) é uma variação de Faraô, a típica forma helenizada usada pela LXX para traduzir Phr’h. Em a narrativa bíblica, Faraó é usado como título, o que de fato é, mas aqui aparece como nome.

[30]. HOLLADAY, C. R. o. c., p. 192.

[31]. Cf., para toda a discussão que se segue, HOLLADAY, C. R. o. c., p. 279-302; SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 671-677.

[32]. Tratam, via de regra: a) da cosmogonia e teologia nativas; b) da geografia; c) dos governantes locais; d) dos costumes.

[33]. Cf. SCHÜRER, E. o. c., p. 674-675.

[34]. Cf. HOLLADAY, C. R. o. c., p. 283-284.

[35]. Cf. JACOBY, F. Die Fragmente der grieschischen Historiker, Leiden, 1958, p. 61-74.

[36]. Cf. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 12-13, em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II, p. 20-21.


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4. Eupólemo: Moisés, o primeiro sábio

Eupólemo é o filho de João, da família de Acos que, segundo 1Mc 8,17-20 e 2Mc 4,11, Judas manda junto com Jasão, filho de Eleazar, para estabelecer uma aliança de amizade com Roma em 161 a.C.

“Tendo escolhido Eupólemo, filho de João, da família de Acos, e Jasão, filho de Eleazar, Judas enviou-os a Roma para travarem relações de amizade e aliança, e para conseguirem que os libertassem do jugo, visto que o reino dos gregos queria manter Israel na servidão” (1Mc 8,17-18).

A família de Acos é uma importante família sacerdotal de Jerusalém desde o começo do pós-exílio (1Cr 24; Esd 2,61; Ne 3,4; 7,63). O pai de Eupólemo, João, consegue, em 198 a.C., concessões de Antíoco III para os judeus (2Mc 4,11) e é membro da gerousia de Jerusalém. Talvez Eupólemo também o seja.

“A família então tornou-se fortemente alinhada com os Selêucidas, exercendo decisiva influência nos negócios externos e prosperando numa época e local favoráveis à helenização”, comenta C. R. Holladay[19].

Portanto, Eupólemo deve ser situado na Palestina, no ambiente aristocrático de Jerusalém, aí pela metade do século II a.C.

A obra de Eupólemo chama-se “Sobre os reis na Judeia” (Perì tôn en tê Ioudaía basiléôn), título dado por Clemente ao escrito no Fragmento 1. Ela inclui cálculos cronológicos de Adão até a época dos Macabeus, mas trata mesmo é da monarquia unida e do exílio.

Há 5 fragmentos: o primeiro e o segundo são preservados por Eusébio e Clemente, em versões diferentes; os fragmentos terceiro e quarto estão em Eusébio e o quinto em Clemente.

A obra de Eupólemo está escrita em grego, mas é um grego inferior ao dos clássicos. Depende, do ponto de vista bíblico, tanto da LXX quanto do Texto Massorético, mas vê-se que a língua de origem do autor é o hebraico e o aramaico. Usa livremente as tradições bíblicas, incorporando tradições hagádicas ao texto bíblico, que é frequentemente alterado ou contradito. Na historiografia, ele depende de 2 Crônicas, mas harmoniza-o com 1 Reis. Eupólemo conhece também fontes gregas, inclusive Heródoto e Ctésias[20].

C. R. Holladay comenta: “A obra pertence a uma tradição historiográfica bem estabelecida na época helenística, e representada por autores tais como Maneton e Beroso que procuram descrever sua própria história nacional em língua grega. Típico deste gênero são suas agudas tendências encomiásticas, através das quais a história de Israel, heróis e instituições são engrandecidas e apresentadas em termos gloriosos”[21].

Neste sentido:

. Moisés é o primeiro legislador, primeiro sábio e benfeitor cultural
. os limites do reino de Davi são ampliados, indo até o Eufrates
. as dimensões do Templo de Salomão são aumentadas e sua beleza interna – especialmente a  quantidade de ouro – é impressionante.

Os fragmentos estão cheios de anacronismos geográficos e cronológicos. Eis alguns exemplos de anacronismos geográficos, nos quais as divisões da época dos Macabeus são retroprojetadas para a monarquia unida e o exílio:

a) o reino de Davi compreende a Comagena e a Galadena, que são divisões geográficas helenistas
b) Davi luta contra os nabateus, que só estão na Palestina a partir do séc. IV a.C.
c) a Palestina de Salomão é descrita com a divisão geográfica da época dos Macabeus
d) Nabucodonosor conquista a Samaria, a Galileia e a cidade de Citópolis, nome grego de Beth-Shan…

Como se vê, é uma obra historicamente negligenciável, mas que revela tendências da época macabeia e isto nos interessa na definição do judaísmo em sua relação com o helenismo. Pois Eupólemo é o mais antigo historiador judeu-helenístico que conhecemos.

Aumentar o território de Davi e Salomão, por exemplo, é um modo de justificar a política expansionista dos Macabeus, ao mesmo tempo que a descrição do heroísmo destes dois reis serve para glorificar a dinastia asmoneia.

Mas olhemos um pouco o próprio texto de Eupólemo, nas versões de Clemente de Alexandria e Eusébio.

O primeiro fragmento é muito curto. Diz o seguinte:

“E Eupólemo diz em sua obra ‘Sobre os reis na Judeia’ que Moisés foi o primeiro sábio e que ele deu o alfabeto primeiro aos judeus; e que os fenícios receberam-no dos judeus, e os gregos receberam-no dos fenícios”[22].

Já a versão de Eusébio, na Praeparatio Evangelica IX, 26, 1, aqui parcialmente citada, diz:

“Eupólemo diz que Moisés foi o primeiro sábio e que ele deu o alfabeto para os judeus primeiro; então os fenícios receberam-no dos judeus e os gregos receberam-no dos fenícios. Além disso, Moisés foi o primeiro a escrever leis, e ele fez isso para os judeus”.

Aqui vale um comentário: descrever Moisés como um sábio anterior e maior do que os sábios gregos – especialmente Platão – torna-se tema comum na literatura judaico-helenística e depois na apologética cristã. Assim em Artápano, Aristóbulo, Fílon de Alexandria, Flávio Josefo…

Outra coisa: já na antiguidade é bem estabelecida a tradição de que os inventores do alfabeto são os fenícios[23]. Inverter isso, como o faz Eupólemo, é extremamente apologético.

O Fragmento nº 2 é o mais longo dos cinco. Sintetiza a história de Israel de Moisés a Davi; descreve especialmente as realizações de Salomão, dando detalhada descrição dos preparativos e da construção do Templo. Traz cartas trocadas entre Salomão e Hiram, rei de Tiro (cf. 1Rs 5,15-26; 2Cr 2,2-9), mas traz também a correspondência entre Salomão e Vafres, rei (desconhecido) do Egito.

O Fragmento nº 4 relata fatos da vida do profeta Jeremias e fala da destruição de Jerusalém por Nabucodonosor. Diz Eupólemo que Jeremias resgata a Arca e as Tábuas da Lei do Templo e Nabucodonosor não consegue levá-las, detalhe que não combina com o relato bíblico (cf. 2Cr 36,18-19).

 

5. O Samaritano Anônimo ou Pseudo-Eupólemo

São dois fragmentos, citados por Eusébio, que os encontra em Alexandre Poliístor. A figura central nos dois fragmentos é Abraão e, em segundo lugar, Henoc, lembrando episódios do Gênesis.

O autor é chamado de Samaritano anônimo, e situado aí pela metade do séc. II a.C., porque Abraão aparece, nos fragmentos, ligado ao templo samaritano do Garizim, destruído por João Hircano I em 128 a.C. É chamado também de Pseudo-Eupólemo porque Poliístor diz que o primeiro fragmento é de Eupólemo, opinião hoje contestada pelos especialistas. Eupólemo é um judeu que realça o papel do Templo de Jerusalém. Este fragmento chama, entretanto, o Garizim de “montanha do Altíssimo” e o encontro de Abraão com Melquisedec realiza-se ali.

“É possível que o autor dos fragmentos fosse um judeu, mas, graças à ênfase dada ao Monte Garizim, é possível que esta seja uma obra anônima de um samaritano, na qual lendas gregas e babilônicas foram fundidas com a história bíblica, com a intenção apologética de mostrar que os judeus levaram a cultura para todos os povos ocidentais, inclusive para os gregos. Esta é uma obra inteiramente dentro do gênero da historiografia helenística, na sua historicização de mitos e no seu interesse na difusão da cultura”[24].

O autor usa a LXX (e talvez o TM) como fonte básica, mas intercala tradições hagádicas e mitológicas, estas tiradas de fontes gregas e babilônicas, como:

. a colonização do mundo por gigantes no período pós-diluviano
. a construção da torre de Babel pelo herói babilônico Belos (Bêlos) ou Bel (= Marduk)[25].
. Abraão é um benfeitor cultural, descobre a astrologia enquanto está na Babilônia e transmite esta “ciência caldeia” aos fenícios e egípcios
. no Fragmento 1, § 5, Abraão aparece associado ao templo do Garizim
. Sara tem sua castidade miraculosamente protegida por ocasião de seu casamento com o faraó (cf. Gn 12,10-20)
. Abraão desenvolve atividades civilizatórias em Heliópolis, instruindo os sacerdotes desta cidade  egípcia em astrologia e coisas afins (Fragmento 1, § 8)

A obra é importante por representar antigas tradições midrashicas samaritanas, além de ser importante testemunho da historiografia israelita na época helenística[26].

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[19]. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors I , p. 100.

[20]. Ctésias é um médico grego de Cnidos, na Ásia Menor, do século IV a.C. Escreve a “Pérsica” e a “Índica”. Na primeira narra a história da Pérsia em 23 livros; da “Índica” há, atualmente, apenas fragmentos. Cf. HARVEY, P. o. c., verbete Ctésias.

[21]. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors I, p. 95. Cf. também SCHÜRER, E. The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ III.1, p. 517-521.

[22]. CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata I, 23, 153, 4. Este e os textos seguintes podem ser lidos, em grego e inglês, em HOLLADAY, C. R. o. c., p. 112-135.

[23]. Por exemplo: HERÓDOTO História 5,58; PLÍNIO História Natural 7,192-193; DIODORO SÍCULO Bibliotheca Historica 3, 67,1;5,74,1.

[24]. SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 529.

[25]. Bel, em acádico Bêlu = “senhor”, é o mesmo Enlil, deus da cidade de Nippur e que forma com Anu e Ea a tríade suprema dos deuses sumero-acádicos. Após o domínio dos amorreus no começo do II milênio, Marduk é elevado à condição de deus supremo dos babilônios e Bel é identificado com ele.

[26]. Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors I, p. 157-160.


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5. Os judeus são leprosos expulsos do Egito

No século I a.C. temos seis autores gregos e suas opiniões sobre os judeus: Apolônio Mólon, Alexandre Poliístor, Diodoro Sículo, Nicolau de Damasco, Estrabão de Amaseia e Lisímaco.

Apolônio Mólon (Apollônios ho Mólôn) é um renomado retor. Nasce em Alabanda, na Cária. Mais tarde instala-se em Rodes, onde muitos romanos importantes são seus alunos, inclusive Cícero e César. O mais importante fragmento de sua obra De Iudaeis é preservado por Alexandre Poliístor que, por sua vez, é citado na Praeparatio Evangelica IX, 19, 1-3 de Eusébio[18].

Flávio Josefo, no Contra Apionem, acusa Apolônio de fanático antissemita e de ter sido uma das fontes usadas por Apião para falar contra os judeus.

No trecho citado por Eusébio não há qualquer traço de antissemitismo. Ele descreve o sobrevivente do dilúvio (Noé não é mencionado pelo nome), o nascimento e a descendência de Abraão (“este homem era sábio“) até José e Moisés, que é considerado por ele neto de José[19] .

Flávio Josefo em Contra Apionem II, 145; 148 diz o seguinte:

“Vendo, entretanto, que Apolônio Mólon, Lisímaco e outros, parte por ignorância, mas especialmente por má vontade, fizeram reflexões que não são nem justas nem verdadeiras, sobre nosso legislador Moisés e seu código, acusando-o de charlatão e impostor e afirmando que dele [do código] nós recebemos lições de vício e não de virtude, eu desejo dar, com minha melhor habilidade, uma breve narrativa de nossa constituição (…) Eu adoto esta linha mais legível porque Apolônio, diferente de Apião, não reuniu as suas acusações, mas espalhou-as aqui e ali em toda a sua obra, injuriando-nos em uma passagem como ateístas e misantropos, em outra repreendendo-nos como covardes, enquanto algures, ao contrário, ele nos acusa de temeridade e atrevida loucura. Ele acrescenta que nós somos os mais tolos de todos os bárbaros e, consequentemente, o único povo que não contribuiu com inventos úteis para a civilização”.

É instrutivo compararmos esta visão sobre o judaísmo de um grego tão culto como Apolônio, com a dos apologistas judeus que escrevem em grego. Ali veremos que eles respondem a este tipo de acusação – o único povo que não contribuiu com inventos úteis para a civilização” – falando da sabedoria de Moisés e de seu excepcional papel como legislador, da contribuição dos judeus para a humanidade (egípcios, fenícios e gregos) com o ensino do alfabeto, da astrologia, dos cultos etc.[20].

 

Alexandre Poliístor (Aléxandros ho Polyístôr), originário de Mileto, na Ásia Menor, nasce por volta de 105 a.C. É levado prisioneiro para Roma, tornando-se livre por volta de 80 a.C. e influente professor até a sua morte em aproximadamente 35 a.C.

Alexandre Poliístor coleta em suas obras, escritas em grego na metade do século I a.C., materiais de várias proveniências e autores, inclusive sobre os judeus e de autores judeus. No seu livro De Roma (Perì Rômês), conservado por Suda[21], encontramos a seguinte curiosidade:

“E nos seus cinco livros sobre Roma, nos quais ele diz que ali viveu uma mulher hebreia Mosó (hós gynê gégonen Hebraía Môsô), que compôs a Lei dos hebreus”.

Curioso é que, apesar de conhecer muito bem a tradição judaica sobre Moisés – como veremos no próximo capítulo -, Alexandre Poliístor não hesita em citar esta versão que contradiz a judaica. Mosó é Moisés e é mulher.

Talvez esta história tenha surgido por causa da Sibila. As Sibilas são profetisas inspiradas por Apolo ou outra divindade. Provenientes da cultura grega, consta que as Sibilas se difundem por várias regiões do mundo romano.

Os Livros Sibilinos são coletâneas de oráculos em grego, trazidos, segundo a lenda, da Grécia para Roma e guardados nos subterrâneos do templo de Júpiter Capitolino. São consultados, por ordem do Senado romano, por ocasião de grandes calamidades, para se descobrir como contornar a ira dos deuses. Existem coletâneas de oráculos sibilinos de origem judaico-helênica ou judaico-cristã[22]. Por ser Moisés, segundo a tradição, o autor da Lei, e, além disso, profeta, terá surgido a analogia com a Sibila, transformando-o afinal em mulher.

 

O terceiro autor do século I a.C. que examinaremos é Diodoro Sículo. Diodoro é um siciliano contemporâneo de César e de Augusto. Escreve em grego a Bibliotheca Historica em 40 livros, que abrangem a história do mundo desde os tempos mitológicos até a conquista da Gália por César. De sua obra ainda existem 15 livros.

Diodoro é o menos original dos antigos historiadores: sua obra é apenas uma compilação de obras de autores anteriores. E, para nós, aí está o seu valor: ele nos transmite muitas obras que hoje estão perdidas[23].

M. Stern explica que “sua principal narrativa sobre os judeus, sua história e sua religião está incluída na sua narrativa da primeira captura de Jerusalém pelos romanos em 63 a.C.”[24] .

Diodoro fala da circuncisão dos judeus e a explica como sendo trazida do Egito, já que os judeus emigraram de lá. Diz também que

“entre os judeus, Moisés atribuiu suas leis ao deus que é invocado como Iao”[25] .

É a primeira vez que Iáô aparece na literatura grega para designar Iahweh. O nome não aparece na LXX, mas está nos papiros de Elefantina[26] . Diodoro explica ainda, no mesmo parágrafo, que atribuir as leis à divindade, como o faz Moisés, é um modo de fazer o povo obedecê-las! Diodoro traz também a mais completa descrição do Mar Morto, e a extração do asfalto, que se conhece na literatura grega e latina.

Mas a descrição que mais nos interessa está em Bibliotheca Historica XXXIV-XXXV, 1,1-5. Aí se diz que quando Antíoco VII Sidetes (139-128 a.C.) sitia Jerusalém, seus amigos aconselham-no a destruir completamente os judeus porque eles não prestam, sendo inimigos de todos os homens e não se misturando com as outras nações.

“Eles disseram também que os ancestrais dos judeus tinham sido expulsos do Egito como homens ímpios e detestados pelos deuses. Pois, para purificar o país, todas as pessoas que tinham manchas brancas ou leprosas nos seus corpos foram reunidas e conduzidas além da fronteira, como sob maldição; os refugiados ocuparam o território nas cercanias de Jerusalém e, tendo organizado a nação dos judeus, fizeram do seu ódio à humanidade uma tradição e para isto introduziram leis completamente exóticas: não partir o pão com nenhuma outra raça, nem mostrar-lhes nenhuma boa vontade”.

Os amigos do rei lembram-lhe também de que, quando Antíoco IV Epífanes vence os judeus e entra no Santo dos Santos do Templo de Jerusalém, ele

“encontrou ali uma estátua de mármore de um homem extremamente barbado montado num asno, com um livro nas mãos, e ele supôs ser uma imagem de Moisés, o fundador de Jerusalém e organizador da nação, o homem, enfim, que determinou aos judeus os seus misantrópicos e ilegais costumes”.

E então Antíoco IV Epífanes, chocado com tal ódio dos judeus à humanidade, proíbe suas práticas tradicionais. O texto termina dizendo que os amigos de Antíoco Sidetes nada conseguem contra o judeus, porque ele apenas cobra o tributo devido, destrói as muralhas de Jerusalém e leva reféns, pois o rei é uma pessoa magnânima e misericordiosa.

As observações que devem ser feitas sobre este texto são as seguintes:

. Este cerco de Jerusalém, pelo rei selêucida Antíoco VII Sidetes, acontece no começo do governo de João Hircano I, em 133 a.C. Antíoco VII impõe um tributo a João Hircano e o obriga a combater ao seu lado contra os partos.
. A proibição das práticas judaicas, decretada por Antíoco IV Epífanes, acontece em 167 a.C.
. Aparece aqui mais uma vez, o tema do segregacionismo judaico, como já vimos em Apolônio Mólon.
. Aqui não aparece a lenda da cabeça de asno que seria cultuada no Templo de Jerusalém – como em Mnaseas de Patara (ap. 200 a.C.), Apião (séc. I d.C.) e Damócrito (séc. I d.C.) -, mas apenas a da estátua de Moisés cavalgando um asno com um livro nas mãos!
. Reaparece em Diodoro Sículo o tema dos judeus que são expulsos do Egito por serem leprosos, como em Maneton (séc. III a.C.), Lisímaco (séc. I a.C.) e Apião (séc. I d.C.).

 

Nicolau de Damasco (Nikólaos ho Damaskenós) é o quarto autor do século I a.C. a ser abordado. Nicolau nasce em Damasco por volta de 64 a.C. de uma importante família. Historiador, professor e escritor. Conselheiro de Herodes Magno a partir de 14 a.C. “Ele supervisionou a educação do rei e foi um de seus principais conselheiros, representando-o em várias ocasiões”[27] .

Antes disso, Nicolau fora professor dos filhos de Antônio e Cleópatra. Após a morte de Herodes, passa a representar os interesses de seu filho Arquelau. Parece que Nicolau termina seus dias em Roma, no começo do século I d.C.

Sua grande obra é a Historiae, em 144 livros. Os fragmentos que falam dos judeus nos são transmitidos através das Antiquitates Iudaicae de Flávio Josefo.

Ele escreve sobre o governo de Antíoco IV Epífanes, sobre a guerra de Antíoco VII Sidetes contra os partos, sobre as guerras de Ptolomeu Latiro, sobre as campanhas de Pompeu e Gabínio contra os judeus etc.

“Como se poderia naturalmente esperar de um historiador que foi amigo pessoal e servidor de um rei judeu e que defendeu os direitos judaicos diante de Agripa, Nicolau mostrou mais respeito para com o passado e as tradições judaicas do que a maioria dos escritores greco-romanos”, explica M. Stern[28] .

Flávio Josefo, em Antiquitates Iudaicae I, 159-160 diz:

“Nicolau de Damasco, no seu quarto livro das Historiae, faz a seguinte colocação: ‘Abrames reinou em Damasco, um estrangeiro que tinha vindo com um exército do país além da Babilônia, chamado a terra dos caldeus. Mas, não muito depois, ele deixou este país também, com o seu povo, para a terra chamada Canaã, mas agora Judeia, onde ele se estabeleceu, ele e seus numerosos descendentes’…”[29].

Sobre este texto, vou observar apenas o seguinte:

. há várias tradições midrashicas sobre Abraão como rei.
. deve existir uma tradição, em círculos judaicos da Síria, acerca da estada de Abraão em Damasco, da qual Nicolau se serve.
. a Bíblia não fala de Abraão em Damasco, mas a estrada que vai de Harã para Canaã passa por Damasco.

 

Estrabão de Amaseia nasce por volta de 64 a.C. e morre em 19 d.C. Natural de Amaseia, no Ponto, “um estoico e viajante, escreve em grego a ‘Geographica’ (Geographiké) em dezessete livros ( que sobreviveram com uma lacuna em um dos livros) descrevendo a geografia física dos principais territórios do mundo romano, e dando em grandes linhas as características principais de seu desenvolvimento histórico e econômico, além de mencionar os aspectos notáveis nos costumes de seus habitantes ou em sua vida animal e vegetal”[30] .

Estrabão escreve também uma história (Historica Hypomnemata) em 43 livros, cobrindo o período no qual para Políbio, a destruição de Corinto e Cartago em 146 a.C., até a captura de Alexandria por Otaviano (30 a.C.). Esta obra se perdeu, mas Flávio Josefo usa-a bastante nas Antiquitates Iudaicae. Aí ele fala dos judeus. Assim como fala na sua Geographica.

Na Geographica XVI, 2, 35 diz Estrabão:

“Moisés era um dos sacerdotes egípcios e governava uma parte do Baixo Egito, como era chamado, mas ele saiu dali para a Judeia, pois ele estava desgostoso com o estado das coisas por lá e foi acompanhado por muitas pessoas que cultuavam a Divindade. Pois ele dizia, e ensinava, que os egípcios estavam errados em representar a Divindade (tò Theion) em imagens de animais selvagens e domésticos, como faziam os líbios; e que os gregos também estavam errados por moldarem deuses em forma humana; pois, segundo ele, Deus é aquele que abarca todos nós e engloba terra e mar – aquilo que nós chamamos céu, ou universo, ou a natureza de tudo o que existe. Que homem, então, se ele tem inteligência, poderia ser temerário o suficiente para fabricar uma imagem de Deus imitando qualquer criatura entre nós?”

Estrabão continua dizendo que Moisés leva o povo para o local onde hoje está Jerusalém e ali estabelece as leis que o governam.

Fala igualmente da circuncisão e da excisão (das mulheres) como costumes supersticiosos introduzidos mais tarde por sacerdotes tirânicos. Além disso, ele pensa que o sábado é um dia de jejum, o que não é verdade.

Estrabão, assim como Hecateu, vê o céu como o Deus dos judeus. Mas Estrabão amplia o quadro para o universo e a natureza. Enfatiza o monoteísmo dos judeus e conhece sua oposição ao antropomorfismo. Não há excisão entre os judeus, embora outros povos a pratiquem[31].

 

Lisímaco (Lysímachon) é o último autor do século I a.C. a ser analisado. Um dos mais ferrenhos antissemitas entre os escritores greco-egípcios, ele vive no II ou I séculos a.C., um pouco antes de Apião, o maior anti-semita conhecido desta época[32] .

Na sua obra Aegyptiaca, que tem fragmentos preservados por Flávio Josefo no Contra Apionem, Lisímaco trata dos judeus. Vejamos um trecho. Em Contra Apionem I, 304-311 se diz que

“No reinado de Bocoris, rei do Egito, o povo judeu, que estava afligido com lepra, escorbuto e outras doenças, refugiou-se nos templos e vivia uma existência mendicante. As vítimas de doença sendo muito numerosas, uma escassez tomou conta do Egito”

Então o rei consulta o oráculo de Amon, continua o texto, e fica sabendo que deve mandar embora este povo para o deserto e matar os leprosos e com escorbuto, para que o Egito se recupere. As pessoas leprosas e com escorbuto são mortas no mar e as outras impuras levadas para o deserto.

Um homem entre eles, Moisés, atravessa com o povo o deserto, chega a uma terra habitada, onde eles maltratam a população, destroem os templos,

“até que eles chegaram no país chamado Judeia, onde eles construíram uma cidade na qual eles se estabeleceram. Esta cidade era chamada Jerósila (Hierósyla) por causa de suas tendências sacrílegas. Mais tarde, quando eles adquiriram poder, eles mudaram o nome, para ocultar a desgraça da imputação, e chamaram a cidade de Jerosólima (Hierosólyma) e a si mesmos de Jerosolimitas (Hierosolymítas).

Este o texto. Agora, sabemos que o faraó Bocoris (Bokchóreôs) é da 24ª dinastia e que governa no século VIII a.C. A tradição egípcia situa a Profecia do Cordeiro, que trata do governo de estrangeiros no Egito, durante o seu reinado. Daí talvez decorra a sua ligação com os judeus e o tema de sua expulsão.

Os judeus são descritos como doentes, impuros e terrivelmente maus: matam populações, destroem templos etc. Esta “destruição de templos” pode estar indiretamente se referindo à política dos Asmoneus na Palestina, quando judaízam à força várias cidades helenizadas.

 

6. Os judeus fazem sacrifícios humanos

Do século I d.C. abordarei quatro autores: Apião, Queremon, Damócrito e Nicarco.

Apião (Apíôn), que pode ser situado na primeira metade do século I d.C., “era um escritor e professor grego de origem egípcia, que exerceu um importante papel na vida cultural e política de seu tempo. Ele ficou famoso como um mestre em Homero e como autor de uma obra sobre a história do Egito”[33] .

Apião não nasce em Alexandria, mas torna-se cidadão alexandrino. Representa os gregos contra os judeus de Alexandria diante de Calígula, enquanto Fílon de Alexandria representa os judeus, no ano 40 d.C., na questão dos direitos cívicos dos judeus alexandrinos.

Apião é o mais ferrenho dos antissemitas do mundo helenístico e, como é um escritor muito popular, tem grande influência na formação da opinião pública culta de sua época.

Ele fala dos judeus nos livros 3 e 4 de sua Aegyptiaca. Flávio Josefo o escolhe como alvo entre todos os antissemitas e escreve o Contra Apionem por volta de 95 d.C., através do qual conhecemos as acusações que Apião faz aos judeus.

Diz Flávio Josefo que o tratamento de Apião a respeito dos judeus pode ser dividido em três seções:

a) o êxodo
b) o ataque aos direitos dos judeus alexandrinos
c) o ataque ao Templo e aos costumes religiosos judaicos[34] .

Em Contra Apionem II, 10-11 temos:

“No terceiro livro de sua História do Egito ele [Apião] faz a seguinte colocação: ‘Moisés, como eu ouvi de pessoas idosas no Egito, era um nativo de Heliópolis que abandonando os costumes de seu país, erigiu casas de oração (proseuchàs anêgen) ao ar livre, em vários distritos da cidade, todas voltadas para o leste; tal sendo também a orientação de Heliópolis. No lugar de obeliscos ele erigiu colunas, debaixo das quais havia um modelo de barco; e a sombra formada na sua base pela estátua desenhava um círculo correspondente ao curso do sol nos céus'”.

Esta ligação dos judeus com a cidade de Heliópolis, que acontece após a geração de Maneton, parece influenciada pela construção do templo na região por Onias IV, por volta de 150 a.C.

Onias IV, filho do sumo sacerdote Onias III, que fora morto por ordem de Menelau, um usurpador do partido helenizante, funda um templo semelhante ao de Jerusalém em Leontópolis. Pois com a ascensão dos Macabeus, os Oníadas, família que fornecia os sumos sacerdotes do Templo de Jerusalém, fica excluída. As casas de oração mencionadas por Apião são as sinagogas, em grego, proseuchê.

Sobre o êxodo, lemos em Contra Apionem II, 15:

“Sobre a questão da data em que ele [Apião] coloca o êxodo dos leprosos, cegos e coxos sob a liderança de Moisés…”.

Em Contra Apionem II, 20-21, lemos sobre o sábado:

“Ele [Apião] dá uma espantosa explicação para a etimologia da palavra ‘sábado’. ‘Após seis dias de marcha’, ele diz, ‘eles formaram tumores na virilha, e foi por isto, que depois de alcançarem em segurança o país agora chamado de Judeia, eles descansaram no sétimo dia e chamaram a este dia sábaton, preservando a etimologia egípcia, pois doença na virilha, no Egito, é chamada de sabátosis'”.

Sobre o culto do Templo, lemos em Contra Apionem II, 80:

“Apião tem a coragem de afirmar que, dentro deste santuário, os judeus conservam uma cabeça de asno, cultuando este animal e julgando-o merecedor da mais profunda reverência; o fato foi desvendado, ele sustenta, por ocasião do saque do templo por Antíoco Epífanes, quando a cabeça, feita de ouro e valendo um alto preço, foi descoberta”.

Em Contra Apionem II, 91-96 ele [Apião] diz que Antíoco encontra no Templo um homem, servido de todas as iguarias, e destinado ao sacrifício. A prática é repetida a cada ano, quando, diz o § 95,

“Eles raptavam um grego, engordavam-no durante um ano e então conduziam-no para uma floresta, onde eles o matavam, sacrificavam seu corpo de acordo com seus rituais costumeiros, partilhavam sua carne e, enquanto imolavam o grego, faziam um juramento de hostilidade contra todos os gregos. Os restos de sua vítima eram lançados num buraco”.

 

Segundo M. Stern, Queremon (Chairêmona), escritor greco-egípcio, “pode ser considerado um intelectual na tradição de Maneton – alguém que tinha grande apreço pelo passado e imemoriais tradições de seu país, descrevendo-as em grego. Ele estava também profundamente imbuído da cultura grega, e ele se tornou um de seus mais notáveis representantes no século I d.C.”[35].

Os fragmentos sobre os judeus que temos de sua Aegyptiaca Historia estão em Contra Apionem I, 288-292. Aí ele narra como Ísis aparece em sonhos ao faraó Amenófis e repreende-o por destruir seu templo em uma guerra. Um escriba aconselha-o então a purificar o Egito das pessoas contaminadas, para ficar em paz. Por isso ele as bane do país, milhares de pessoas. E o texto diz no § 290:

“Seus líderes eram escribas, Moisés e um outro escriba sagrado – José. Seus nomes egípcios eram Tisiteu (para Moisés) e Petesef (José)”.

Em Pelusium eles encontram milhares de pessoas que Amenófis proibira de entrar no Egito. Feita uma aliança entre os dois grupos, eles invadem o Egito, enquanto Amenófis foge para a Etiópia, deixando para trás sua mulher grávida. Seu filho, ao nascer e crescer, Ramsés, expulsa os judeus para a Síria e reconduz seu pai ao Egito.

 

Damócrito (Damókritos) é um historiador que escreve um livro sobre tática. Conhecemo-lo através de Suda, que afirma ter ele escrito um livro sobre os judeus. Não conhecemos com certeza sua data, mas deve ser do século I d.C. Quanto ao local, nenhuma pista.

O texto de Suda diz:

“Damócrito, um historiador. Ele escreveu um livro sobre tática em dois volumes, e um livro Sobre os judeus. Neste último ele assegura que eles costumavam cultuar uma cabeça de asno dourada e que a cada sete anos eles capturavam um estrangeiro e sacrificavam-no. Eles costumavam matá-lo, repartindo sua carne em pequenos pedaços”.

 

Nicarco (Níkarchos) é o nosso último autor. Ele parece ser um greco-egípcio, porque suas afirmações sobre Moisés, preservadas no léxico de Fótios[36], estão na linha dos escritores egípcios helenizados. Nada sabemos sobre ele.

“Alfa: uma cabeça de vaca era assim chamada pelos fenícios, e também Moisés o legislador dos judeus era assim chamado, porque ele tinha muitas manchas brancas de lepra (alfoús) no seu corpo. Esta maluquice é contada por Nicarco, o filho de Amônio, no seu livro sobre os judeus”.

 

Bibliografia

AUTORES CLÁSSICOS: recomendo The Perseus Collections, The Perseus Catalog e Loeb Classical Library.

DE SOUZA BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2014.

DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento, vol. II.Madrid: Cristiandad, 1983.

HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. I: Historians. Chico, California: Scholars Press, 1983.

JOSEFO, F. História dos Hebreus: Obra Completa. Tradução do grego de Vicente Pedroso. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007. Uma excelente edição das obras de Flávio Josefo, com o texto original, tradução inglesa e notas é a da Loeb Classsical Library: THACKERAY, H. St. J.;MARCUS, R.; WIKGREN, A.; FELDMAN, L. H. Josephus I-XIII, Cambridge: Harvard University Press, 1926-1965. Este texto está disponível online.

KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997. Há um resumo no Observatório Bíblico.

LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987.

STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I-III. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976-1984.

>> Bibliografia atualizada em 26.08.2015

Artigos


[18]. Depois de Hecateu de Abdera (séc. IV a.C.) parece ser Apolônio o primeiro grego a escrever uma obra exclusivamente dedicada aos judeus. Isto se Hecateu escreve mesmo uma obra sobre os judeus, pois o texto “Sobre os judeus” pode ser de um Pseudo-Hecateu. Eusébio vive entre 263 e 339 d.C. e é bispo de Cesareia, na Palestina. Escreve uma importante “História Eclesiástica”, em 10 livros. Alexandre Poliístor, originário de Mileto, na Ásia Menor, nasce por volta de 105 a.C. Morre em Roma em aproximadamente 35 a.C.

[19]. Segundo Ex 6,16-20, Moisés é descendente, de quarta geração, de Levi, irmão de José. A ordem é a seguinte: Levi – Caat – Amram – Moisés.

[20]. Só uma amostragem: Eupólemo (séc. II a.C.) diz que Moisés é o primeiro sábio e que ele dá o alfabeto para os judeus que o passam para os fenícios e estes para os gregos; o Samaritano anônimo (séc. II a.C.) diz que Abraão descobre a astrologia e que supera todos os homens em nobreza de nascimento e sabedoria; Artápano (séc. II a. C.) diz que Moisés inventa navios, armas, máquinas, filosofia… Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. I: Historians. Chico, California: Scholars Press, 1983.

[21]. Suda ou Suída é “o nome de um grande léxico ou enciclopédia grega, compilada aproximadamente no final do século X e contendo muitos verbetes valiosos sobre a literatura e a história gregas”, explica HARVEY, P. o. c., verbete Suídas. Veja Suda On line.

[22]. Cf. HARVEY, P. o. c., verbetes Sibilas e Livros Sibilinos.

[23]. Cf. Idem, ibidem, verbete Diôdoros Sículo.

[24]. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, p. 167.

[25]. DIODORO SÍCULO, Bibliotheca Historica I, 94,2.

[26]. Elefantina é uma ilha do Nilo, importante centro comercial e militar no sul do Egito. Desde o século V a.C. existe em Elefantina uma colônia militar judaica, com uma sinagoga e um templo. Os papiros de Elefantina, escritos em aramaico (e uns poucos em grego), descobertos a partir do fim do século passado, são importantes para a reconstrução da vida judaica na diáspora da época persa.

[27]. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, p. 227.

[28]. Idem, ibidem, p. 231.

[29]. JOSEFO, F. História dos Hebreus: Obra Completa. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007. Antiguidades Judaicas, publicada em grego, é a segunda obra de Josefo e fica pronta em 93 d.C. Josefo, como qualquer judeu da época, sofre muito com a ignorância do mundo greco-romano acerca dos judeus e de seus costumes, tradições e crenças. Sua obra não tem, portanto, apenas o objetivo de informar, mas Josefo quer, através de uma história de milênios, defender seu povo e impressionar os romanos. Mostrar a antiguidade das origens é, na sua época, fundamental para qualquer povo que queira ser respeitado. Para nós, Antiguidades Judaicas é importante, especialmente quando trata da história dos Macabeus e do governo de Herodes Magno.

[30]. HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, verbete Strábon.

[31]. Cf. TANNAHILL, R., O sexo na história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 72. Sobre Estrabão, cf. também  COMBY, J./LEMONON, J.-P. Roma em face de Jerusalém. Visão de autores gregos e latinos. São Paulo: Paulus, 1987, p. 10-16.

[32]. Cf. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, p. 382.

[33]. Idem, ibidem, p. 389.

[34]. Cf. JOSEFO, F. Contra Apionem II, 6-7.

[35]. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, p. 417.

[36]. Fótios é patriarca em Constantinopla de 857 a 886.


Autores gregos antigos 2

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2. Os judeus são sírios e filósofos

Do século IV temos 4 autores: Teofrasto, Hecateu de Abdera, Clearco de Soli e Megástenes.

Teofrasto (Theófrastos), natural de Êresos, na ilha de Lesbos, nasce aproximadamente em 372 a.C. e morre em 288 a.C. Teofrasto é amigo e discípulo de Aristóteles e seu sucessor na Escola Peripatética de filosofia.

Das numerosas obras de Teofrasto possuímos ainda suas Investigações sobre as plantas, seu Crescimento das plantas, um tratado sobre metafísica e fragmentos de obras filosóficas e científicas[4] .

Um dos fragmentos de Teofrasto que trata dos judeus é de sua obra De Pietate (Perì Eusebeías). O fragmento é citado por Porfírio, De Abstinentia II,26:[5]

“E sem dúvida, diz Teofrasto, os sírios, de quem os judeus constituem uma parte, até hoje sacrificam vítimas vivas, segundo o seu antigo modo de sacrificar; se alguém nos mandasse sacrificar do mesmo modo, nós nos recusaríamos. Pois eles não comem as vítimas, mas queimam-nas totalmente de noite e, derramando sobre elas mel e vinho, eles rapidamente destroem a oferenda, para que o sol que tudo vê não possa olhar para a coisa terrível. E eles fazem isto jejuando em dias intercalados. Durante todo o tempo, sendo filósofos por raça, eles conversam entre si sobre a divindade e à noite eles observam as estrelas, contemplando-as e rezando para Deus. Eles foram os primeiros a instituir sacrifícios de seres vivos e de si mesmos; mas eles fazem isso por necessidade e não porque gostam”.

Teofrasto (ap. 372-288 a.C.)Teofrasto toma o holocausto como o único modo de sacrifício judaico. E nisto ele está enganado, porque há também sacrifícios nos quais a vítima não é toda queimada como no holocausto. Também está enganado quando diz que se queima a vítima com mel e vinho, pois Lv 2,11 diz: “Nenhuma das oblações que oferecerdes a Iahweh será preparada com fermento, pois jamais queimareis fermento ou mel como oferta queimada a Iahweh”. Talvez a proibição exista porque seria uma prática de cultos cananeus aos quais os israelitas se opõem.

Teofrasto também está enganado quando diz que eles sacrificam pessoas. Porque ele diz isso é que constitui problema: será por causa do relato do sacrifício de Isaac, narrado em Gn 22? Ou é por causa do costume fenício de sacrificar pessoas?

De modo geral, entretanto, o texto é favorável aos judeus, pois, segundo Teofrasto, eles fazem sacrifícios exóticos com relutância e porque são filósofos que conversam com Deus durante os sacrifícios e observam as estrelas. Para os filósofos gregos, uma das principais provas da existência de Deus é exatamente o movimento ordenado dos corpos celestes[6] .

 

O segundo autor do século IV a.C. que trata dos judeus é Hecateu de Abdera (Hecataíos ho Abdêrítês) situado por volta do ano 300 a.C., talvez um pouco antes.

Hecateu é natural de Abdera, cidade grega da costa da Trácia fundada por jônios. Hecateu estuda com o cético Pírron de Élis e torna-se etnógrafo, filósofo, crítico e gramático helenista. Visita o Egito na época de Ptolomeu I Soter. De suas muitas obras possuímos fragmentos de Sobre os hiperbóreos e de Sobre os egípcios, onde ele fala dos judeus.

Sobre os egípcios é citada em Diodoro Sículo (séc. I a.C.), Bibliotheca Historica. Esta obra de Hecateu é a principal fonte usada por Diodoro para descrever o Egito. No volume 40º de Diodoro – preservado através da Bibliotheca de Fótios, patriarca de 857 a 886 – temos boa descrição dos judeus feita por Hecateu. O texto em questão está em Diodoro, Bibliotheca Historica XL, 3. Como Diodoro sintetiza sua fonte, infelizmente não temos as “ipsissima verba” de Hecateu.

O texto diz que, quando nos tempos antigos uma peste toma conta do Egito, o povo acredita ser a doença causada pelos deuses. E a razão é que muitos estrangeiros moram no seu meio, praticam ritos e sacrifícios diferentes e, por isso, os cultos aos deuses egípcios estão abandonados. Diagnosticado o problema, os estrangeiros são expulsos. Muitos vão para a Grécia, liderados por Dânaos e Cadmos. E o texto continua:

“Mas o maior número foi para a região que é agora chamada Judeia, que não é muito distante do Egito e que era naquele tempo, totalmente desabitada. A colônia era liderada por um homem chamado Moisés, notável pela sabedoria e pela coragem. Tomando posse da terra, ele fundou, além de outras cidades, uma que é agora a mais renomada de todas, chamada Jerusalém. Além disso, ele construiu o templo, que eles veneram muito, instituiu suas formas de cultos e ritos, estabeleceu suas leis e organizou suas instituições políticas. Ele também dividiu-os em doze tribos (…) Mas ele não fez imagem alguma dos deuses para eles, sendo de opinião que Deus não tem forma humana; ao contrário, o Céu que circunda a terra é por si mesmo divino e governa o universo. Os sacrifícios que ele estabeleceu diferem daqueles de outras nações, assim como seu modo de vida, pois como resultado de sua própria expulsão do Egito ele introduziu um modo de vida antissocial e intolerante”.

O texto continua a dizer que Moisés faz dos homens mais hábeis sacerdotes e coloca-os como líderes e juízes do povo. Razão porque os judeus não têm rei e são governados pelo sacerdote mais sábio e virtuoso entre seus pares, o sumo sacerdote.

Moisés organiza também um exército, conquista territórios vizinhos e distribui a terra entre os cidadãos em lotes iguais e outros maiores para os sacerdotes, de modo que estes, recebendo maiores rendas, não se distraíssem e pudessem aplicar-se continuamente no serviço de Deus“. Os cidadãos comuns são proibidos de vender suas terras, para evitar que alguns comprem tudo e oprimam os pobres.

O texto termina dizendo que mais tarde, entretanto, quando eles são submetidos pelos persas e pelos macedônios, em virtude de sua mistura com outros povos muitas de suas práticas tradicionais se perdem.

Vamos observar algumas coisas na descrição de Hecateu. Diz ele que os estrangeiros que vão do Egito para a Grécia são liderados por Dânaos e Cadmos. “Dânaos, na mitologia grega, é descendente de Io, juntamente com Áigiptos, seu irmão. Áigiptos tinha 50 filhos e Dânaos 50 filhas. Áigiptos e Dânaos desentenderam-se, e Dânaos e suas filhas fugiram de seu lar no Egito para Argos, onde Dânaos tornou-se rei”[7]. E P. Harvey explica ainda: “Cadmos, na mitologia grega, filho de Agênor (rei de Tiro), irmão de Europe e tio de Minos, e consequentemente associado pela lenda à Fenícia e a Creta”[8] .

Aqui é interessante observar a perspectiva de Hecateu: ao associar os judeus aos imigrantes gregos através desta lenda, ele demonstra respeito e amizade por eles. Sobre a peste que toma conta do Egito e sobre suas causas, sabemos que há profecias egípcias que falam de campanhas estrangeiras no Egito que provocarão a abolição dos cultos, o abandono dos templos, a peste e a fome, até que um rei salvador apareça e expulse os estrangeiros, restabelecendo a antiga ordem. Estas profecias, em papiros demóticos, são a Profecia do Cordeiro e o Oráculo do Oleiro.

Passando a outro aspecto do texto de Hecateu, observamos que ele vê a formação dos judeus muito mais segundo o esquema grego de colonização – Moisés vem para a Judeia, funda Jerusalém e estabelece a constituição judaica – do que segundo o tradicional modo israelita. Aliás, esta visão grega parece que chega a ser defendida pela própria aristocracia helenizante de Jerusalém, para legitimar o estatuto de pólis de sua cidade[9] .

Hecateu ignora a época da monarquia israelita: nisto ele reflete a situação da Judeia de sua época, que na falta de um poder real, é governada pelo sumo sacerdote e pela Lei atribuída a Moisés. Aliás, “nós precisamos lembrar que, exceto Nicolau, que se refere a Davi, Pompeu Trogo, que fala de antigos reis judeus, e alguns escritores que se referem a Salomão, não há menção dos reis judeus bíblicos na literatura grega e romana do helenismo e do antigo período romano”[10]. A hierocracia é considerada a forma característica de governo judeu. Mesmo em Fílon de Alexandria e em Flávio Josefo, que tendem a ignorar a monarquia israelita.

Mais quatro observações:

. Hecateu conhece o monoteísmo judaico e sua oposição ao antropomorfismo.
. Ele sabe que o domínio estrangeiro, persa e macedônio, adultera as leis judaicas.
. Hecateu vê Moisés com simpatia e admiração.
. Hecateu não procura datar a saída dos judeus do Egito: coloca-a no passado mítico, na época de Dânaos e Cadmos.

 

O terceiro escritor grego do século IV a.C. a falar dos judeus é Clearco, cipriota da cidade de Soli. Comumente considerado como discípulo de Aristóteles, Clearco de Soli é contemporâneo de Hecateu, situando-se na passagem do século IV para o século III a.C.

Entre suas obras há o De Somno, uma discussão sobre a existência separada da alma, na qual um personagem dialoga com Aristóteles e este fala de um judeu que ele conhecera na sua viagem pela Ásia Menor. Naturalmente o diálogo é fictício e quem conhece algum judeu assim é Clearco. O texto de Clearco sobre os judeus é relatado por Flávio Josefo no Contra Apionem I, 176-183. Os §§ 179-181 dizem:

“‘Bem’, ele [Aristóteles] replicou, ‘o homem era um judeu da Celessíria. Este povo é descendente dos filósofos indianos. Os filósofos, eles dizem, são chamados na Índia calani, na Síria pelo nome territorial de judeus; pois o distrito que eles habitam é conhecido como Judeia. Sua cidade tem um nome extraordinariamente singular: eles a chamam de Jerusaléme, (Hierousalémên). Agora, o homem, que estava cercado por um grande círculo de amigos e estava viajando do interior para a costa, não só falava grego, mas tinha a alma de um grego. Durante minha estada na Ásia ele visitou os mesmos lugares que eu e conversou comigo e com outros estudiosos, para testar nossos conhecimentos. Mas como alguém que é íntimo de muitas pessoas cultas, era ele que, ao contrário, compartilhava algo de seu próprio conhecimento'”.

Apenas três observações:

. A forma Hierousalémên é única na literatura grega, que usa a forma plural mais comum de Hierosólyma.
. Este judeu do texto de Clearco parece ser o típico judeu helenizado da diáspora, pertencente à aristocracia: fala grego, pensa como grego, “tem alma de grego”, possui alta cultura…
. O tema do judeu como uma raça de filósofos aparece em outros autores, como Teofrasto e Megástenes.

 

E exatamente Megástenes é o nosso quarto e último autor do século IV a.C. Megástenes é um contemporâneo de Selêuco Nicator. Visita a Índia, onde fica de 302 a 288 a.C. Escreve a obra Índica e aí refere-se aos judeus, em fragmento citado por Clemente de Alexandria, Stromata I, 15,72,5:[11]

“Megástenes, o escritor que foi um contemporâneo de Selêuco Nicator, escreveu no terceiro livro de sua Índica: ‘Todas as opiniões emitidas pelos antigos sobre a natureza são encontradas também entre os filósofos fora da Grécia, alguns entre os brâmanes indianos e outros na Síria, entre aqueles chamados judeus'”.

Megástenes é de opinião que os judeus são sírios e são filósofos: a mesma noção se encontra em Teofrasto e Clearco de Soli, seus contemporâneos do fim do século IV e início do século III a.C.

 

3. Os judeus cultuam uma cabeça de asno

Do século III a.C. vale a pena conferir as opiniões de dois autores gregos: Maneton e Mnaseas de Patara.

Maneton (Mánethôs) é um sacerdote egípcio de Heliópolis, ligado à política dos Ptolomeus, especificamente à introdução do culto de Serápis no Egito. Os egípcios acreditam que o touro Ápis representa Osíris. A soma dos nomes Ápis e Osíris dá Osérapis, daí Serápis, para o qual se constroem os Serapeum. Mas Serápis é um deus que combina às suas características egípcias elementos tirados de deuses gregos como Zeus, Hades e Asclépios. Serápis é uma tentativa dos Ptolomeus de introdução de um deus comum a egípcios e gregos.

Maneton escreve a Aegyptiaca, em grego, na qual faz uma descrição da história passada do Egito, tornando-se, inclusive, o primeiro autor egípcio a fazer isso. Aí ele fala dos judeus. E fala mal. Ele é o primeiro escritor antissemita de uma série de escritores egípcios helenizados.

Seus textos sobre os judeus estão preservados no Contra Apionem de Flávio Josefo[12]. Em Contra Apionem I, 73-91 Maneton fala da invasão do Egito pelos hicsos e aí dá a sua célebre etimologia de “hicsos” como “reis-pastores”, aliás, equivocada. “Hicsos” significa “chefes de povos estrangeiros”. Os hicsos, pensávamos até recentemente, constituíam um conjunto de povos asiáticos, liderados por hurritas, que teriam invadido a Palestina e o Egito. No Egito eles se estabeleceram na região do delta, na capital Aváris, e governaram o Egito durante cerca de 100 anos (1670-1570 a.C.), constituindo as XV e XVI dinastias. A arqueologia defende hoje que esta “invasão” parece ter sido muito mais uma ocupação cananeia gradual e pacífica do delta do que uma operação militar.

Mas a informação de Maneton que nos interessa está no § 90: ao serem expulsos do Egito vão os hicsos para a Síria e aí

“temendo o poder dos assírios, que então eram os senhores da Ásia, eles construíram na terra, agora chamada Judeia, uma cidade grande o bastante para suportar todos aqueles milhares de pessoas, e lhe deram o nome de Jerusalém”.

Maneton supõe que hicsos e hebreus sejam os mesmos, ou, pelo menos, parentes. Entretanto, o retrato dos hicsos traçado por Maneton é o de um povo cruel e bárbaro que massacra os egípcios. Esta visão parece exagerada, já que os hicsos acabam assimilados à cultura egípcia.

Outro texto de Maneton que fala dos judeus está em Contra Apionem I, 228-252. Maneton conta que um certo rei Amenófis quer ver os deuses. Comunica seu desejo a um sábio e vidente que lhe aconselha limpar a terra de todos os leprosos e pessoas impuras, se quiser ver os deuses. O rei assim o faz e confina os leprosos e impuros, em número de 80 mil pessoas, nas pedreiras, onde eles vivem todo tipo de provação. Entre eles há muitos sacerdotes instruídos que têm lepra.

Algum tempo depois o rei lhes permite ir morar em Aváris, que está deserta. Aí eles se organizam e se revoltam, sob o comando de um sacerdote de Heliópolis chama­do Osarsef. Pedem auxílio aos hicsos de Jerusalém que invadem brutalmente o Egito.

E então vem o final grandioso, no § 250:

“Diz-se que o sacerdote que elaborou a sua constituição e suas leis era natural de Heliópolis, chamado Osarsef, segundo o deus Osíris, cultuado em Heliópolis; mas quando ele reuniu este povo, ele trocou seu nome e era chamado Moisés”.

O tema da expulsão dos leprosos – os judeus seriam egípcios leprosos – é um dos recorrentes antissemitismos da antiguidade. Está também em Diodoro, em Lisímaco, em Apião, em Pompeu Trogo, em Tácito…

Segundo Maneton, Moisés é um egípcio, sacerdote de Heliópolis. Estrabão também diz ser Moisés um sacerdote egípcio; Apião diz que ele é de Heliópolis, mas não diz que é sacerdote; e Queremon diz que ele e José são escribas sagrados.

Este nome atribuído a Moisés, Osarsef, só aparece em Maneton, e só neste texto, em toda a literatura antiga. Talvez Osarsef seja uma forma egípcia de José, em hebraico Yôsêf, no qual as letras Io (de Iahweh) são substituídas por Osíris.

 

O segundo escritor grego do século III a.C. é Mnaseas, da cidade de Patara, na Lícia. Discípulo de Eratóstenes, Mnaseas é autor de uma coleção de fábulas.

O texto sobre os judeus é citado por Flávio Josefo, Contra Apionem II, 112-114. Aí ele conta que durante uma guerra entre judeus e idumeus, um cidadão idumeu consegue, através de um ardil, entrar no templo dos judeus e roubar a cabeça de ouro de asno que ali é cultuada.

Não se sabe quando acontece esta guerra. Os Macabeus lutam e dominam os idumeus, mas Mnaseas escreve antes disso. As relações entre judeus e idumeus, entretanto, são conflitivas desde o começo da época pós-exílica, no século VI a.C.

Mnaseas é o primeiro escritor que menciona um culto judaico de uma cabeça de asno. Mais tarde, no século I d.C., Apião e Damócrito também o fazem. Parece que esta história nasce no Egito helenístico. O asno é um animal ligado a Tyfon-Seth, o inimigo de Osíris. Seth é o deus dos hicsos (e, segundo Maneton, judeus e hicsos são os mesmos…). A palavra Iao (Iahweh) é, além disso, semelhante à palavra egípcia para asno, o que certamente faz surgir a lenda do culto de uma cabeça de asno[13].

 

4. Os judeus descansam no sábado

Do século II a.C. citarei apenas dois autores: Agatarquides de Cnido e Possidônio.

Agatarquides, natural de Cnido, na Dórida, é historiador e seguidor de Aristóteles. Vai ao Egito durante os governos de Ptolomeu VI Filometor (181-145 a.C.) e Ptolomeu VIII Físcon (144-116 a.C.). Aí conhece os judeus. Suas duas obras principais são uma História da Ásia, em 10 livros, e uma História da Europa, em 49 livros.

De uma dessas obras vem a passagem sobre os judeus, citada por Flávio Josefo em Contra Apionem I, 205-211. Os §§ 209-210 dizem o seguinte:

“O povo conhecido como judeus, que habita a mais solidamente fortificada das cidades, chamada pelos nativos Jerusalém, tem o costume de se abster de trabalhar todo sétimo dia; nestas ocasiões eles não portam armas nem fazem trabalhos agrícolas, nem participam de nenhuma outra forma de serviço público, mas rezam com mãos estendidas nos templos até o anoitecer. Consequentemente, porque os habitantes, ao invés de proteger a sua cidade, perseveraram na sua loucura, Ptolomeu, filho de Lagos, conseguiu entrar com seu exército; o país então foi submetido a um senhor cruel e o defeito de uma prática ordenada pela lei ficou claro”.

Sabemos que Ptolomeu I Soter conquista a Palestina quatro vezes: em 320, 312, 302 e 301 a.C. Alguns estudiosos pensam que Agatarquides menciona a captura de 320 a.C., enquanto outros optam pela de 312 a.C. Na verdade, há testemunhos de grande número de prisioneiros feitos por Ptolomeu I, o primeiro rei de Alexandria.

Diz a Carta de Aristeias a Filócrates:

“Pensei então que havia chegado o momento oportuno para um assunto sobre o qual eu havia insistido muitas vezes com Sosíbio de Tarento e com André, os mais confiáveis de sua [do rei Ptolomeu II Filadelfo] escolta particular, em favor da libertação daqueles que haviam sido deportados da Judeia pelo rei seu pai [Ptolomeu I Soter] que, ao invadir toda a região da Celessíria e da Fenícia, com sua boa fortuna e sua valentia, a uns os deportava e a outros os fazia prisioneiros, submetendo e atemorizando a toda a região. Deportou para o Egito, naquela época, mais de cem mil do país dos judeus…”[14] .

Observe-se também que o conhecimento de Agatarquides sobre o judaísmo é bastante bom: ele conhece bem o costume do sábado e não faz como Estrabão de Amaseia que o julga um dia de jejum. Além do que não há traços de antissemitismo em sua descrição. Sua crítica à lei é motivada por sua pouca praticidade no caso da defesa de Jerusalém em dia de sábado, quando qualquer forma de trabalho, inclusive a guerra, era proibida.

 

O outro autor do século II a.C. a tratar dos judeus é Possidônio (Poseidônios). Vive aproximadamente de 135 a 51 a.C. Possidônio, “de Apameia, na Síria (…), que passou a maior parte de sua vida em Rodes e se tornou o chefe da escola estoica existente lá, era um historiador, cientista e filósofo”, explica P. Harvey[15] .

Possidônio é igualmente eminente geógrafo, etnólogo e astrônomo. Escreve uma continuação da História de Políbio em 52 livros. Provavelmente é desta história que vem sua menção dos judeus.

Temos duas passagens: uma, de Flávio Josefo, em Contra Apionem II, 79-80; 89; 91-96, onde Josefo o acusa, ao lado de Apolônio Mólon, de ter fornecido a Apião material anti-semita. O que Possidônio realmente fala não sabemos[16] .

A outra passagem está na Geographica de Estrabão (XVI, 2,43). Diz o seguinte:

“Mas, segundo Possidônio, o povo é feiticeiro e pretende usar encantamentos, tais como urina ou outros líquidos malcheirosos que eles derramam sobre a substância solidificada e espremem o asfalto e endurecem-no e o cortam em pedaços”.

Possidônio está descrevendo o que ele entende ser o processo judaico de retirada do asfalto, presumivelmente do Mar Morto. O que não espanta, pois há autores antigos como os romanos Plínio, o Velho, e Tácito que dizem ser o asfalto retirado com sangue menstrual[17].

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[4]. Cf. HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, verbete Teôfrastos.

[5]. Porfírio, um dos principais expoentes do neoplatonismo, discípulo de Plotino, vive aproximadamente de 233 a 301 d.C.

[6]. Cf. BRÉHIER, E. História da filosofia I/1, São Paulo: Mestre Jou, 1977.

[7]. HARVEY, P. o. c., verbete Dânaos. Cf. também DE SOUZA BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2014, verbete Dânao.

[8]. HARVEY, P. o. c., verbete Cadmos. Cf. também DE SOUZA BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, verbete Cadmo.

[9]. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, p. 82. Há um resumo no Observatório Bíblico.

[10]. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, p. 31.

[11]. Clemente de Alexandria vive de aproximadamente 160 a 215 d.C., tornando-se um dos mais notáveis padres gregos da Igreja. Deve ter nascido em Atenas, mas vive e ensina em Alexandria. Stromata, “Miscelâneas”, é uma de suas obras.

[12]. Flávio Josefo, importante historiador judeu, nasce em Jerusalém, em 37 ou 38 d.C. O antissemitismo está em pleno florescimento no século I d.C. e se manifesta sobretudo entre escritores egípcios helenizados de Alexandria. É contra este antissemitismo que Josefo escreve o Contra Apião em 95 d.C., contestando como falsas várias ideias bastante difundidas em Roma por esse popular autor. Cf.  JOSEFO, F. História dos Hebreus: Obra Completa. Tradução do grego de Vicente Pedroso. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007. Uma excelente edição das obras de Flávio Josefo, com o texto original, tradução inglesa e notas é a da Loeb Classsical Library: THACKERAY, H. St. J.;MARCUS, R.; WIKGREN, A.; FELDMAN, L. H. Josephus I-XIII, Cambridge: Harvard University Press, 1926-1965. Este texto está disponível online.

[13]. Osíris é o mais importante deus egípcio, representando a vida e a fertilidade de toda a natureza. Seth é seu irmão e é mau: mata Osíris, mas Ísis, a esposa deste, e seu filho Horus vingam-se de Seth. Os gregos identificam Osíris com Dionísio e Seth com o monstro Tyfon, que tem cem cabeças de serpentes. Enquanto o touro simboliza Osíris, Seth é representado como um asno.

[14]. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 12, em DIAZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II. Madrid: Cristiandad, 1983, p. 21.

[15]. HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, verbete Poseidônios.

[16]. Cf., para a discussão sobre o assunto, STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I, p. 141-144.

[17]. Cf. STERN, M. o. c., p. 483; vol. II, p. 17-63.


Profetas 2

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Mas existe outra forma de romantismo, mais atual, que se manifesta após a ruptura de 1848, quando o capitalismo não consegue mais ocultar as suas contradições que se tornam explosivas com o surgimento do proletariado como classe autônoma. O pensamento burguês torna-se, então, uma justificativa teórica do existente. O pensamento torna-se cada vez mais imediatista, centrado nas aparências fetichizadas da realidade[9].

O processo de fetichização ou alienação ocorre quando as relações sociais entre os homens aparecem como relações entre coisas, como realidades naturais e independentes de sua ação. Os produtos de sua atividade revelam-se alheios à sua essência: há uma cisão entre essência (práxis criadora) e existência (vida social). Ora, quando o pensamento não supera o imediatismo e o espontaneísmo, capta-se somente a forma aparente da realidade e não se atinge a sua essência.

Várias manifestações do pensamento moderno, sejam elas racionalistas ou irracionalistas, objetivistas ou subjetivistas, possuem esse traço fetichizador. Limitando-se à apreensão imediata da realidade, não elaborando as categorias a partir de sua essência econômica, o pensamento acaba servindo aos interesses da burguesia.

É então que surge um anticapitalismo romântico, pois no capitalismo se vê a dissolução da “plenitude natural do homem”, enquanto a socialização do trabalho constitui uma ameaça mortal para a subjetividade espiritual dos indivíduos.

Este pensamento elege a subjetividade como única fonte de valores autênticos, subjetividade que acaba negando o real contraditório ao procurar um absoluto pleno de sentido[10].

Ele rejeita a razão, pois esta é confundida com a práxis burocrática e técnica do capitalismo. Este pensamento cai no pessimismo e no conformismo provenientes da sensação de impotência do homem.

O profeta Habacuc - Aleijadinho - Congonhas do Campo, MG (entre 1794 e 1804)É um pensamento fetichizador: algumas formas particulares do mundo capitalista são tomadas, em sua imediaticidade, como “condição eterna do homem”. O protesto subjetivo transforma-se em conformismo real. É um pensamento reprodutor do mecanismo capitalista, pois ataca sua aparência, deixando intacta sua essência.

Nada mais fácil do que fazer uma leitura romântica dos profetas. Através de seus livros, podemos conhecer – melhor ainda, imaginar – a angústia da condição profética. Isto favorece uma leitura altamente subjetiva e interiorizada, valorizando o sentimento do profeta em detrimento da práxis profética.

Por outro lado, as formas particulares de opressão do Estado tributário são generalizadas e transferidas para o sistema capitalista de modo direto, sem mediação científica alguma.

O resultado é uma leitura profética deslocada e enfraquecida que nem arranha a nossa realidade. Pelo contrário, soma-se ela às várias outras formas de camuflagem das contradições atuais. É assim que se coopta e se inutiliza um profeta.

Este é um obstáculo especialmente encontrado nas leituras feitas pelas camadas médias da população brasileira. Como classe, estas camadas vivem contradições enormes. Os indivíduos destas camadas costumam ser portadores de típicos “desvios” alienantes na sua mundivisão. Tais como: perceber o capital sempre transfigurado em valor, os bens de consumo em status, as situações em oportunidades, as pessoas em degraus para a ascensão social e assim por diante.

Tais contradições são sublimadas na fuga do real através do discurso de valoração da existência, transformando o ressentimento (sentimento considerado negativo e inaceitável) em indignação moral (atitude considerada positiva e corajosa), através da subjetivização radical da realidade[11].

 

6. O teologismo

O fato de os profetas fazerem uma leitura teológica da realidade israelita facilita o aparecimento de outro obstáculo, o teologismo.

O teologismo consiste em considerar a interpretação teológica como a única versão verdadeira do real. Ele esvazia, assim, o Político e o Social de seus conteúdos e rejeita a sua autonomia, como se só a leitura teológica da realidade fosse a verdadeira. É, no mais das vezes, um discurso dogmático, ideológico, autoritário e anticientífico. Além do que conduz ao espiritualismo e ao dualismo[12].

Neste enfoque a fé é frequentemente colocada em oposição ao conhecimento racional. É dito que este não resolve e ilustra-se o discurso com a persistente crise nacional, a perversão moral e as injustiças praticadas pelo mundo afora.

Processa-se uma mistificação do não acesso ao saber, que de questão política transforma-se em questão moral, enquanto se contrapõe o homem simples, o-que-nada-sabe, mas tem fé, ao homem cultivado, o-que-tudo-sabe, é estudado, mas não tem fé.

Este raciocínio legitima, em última instância, a dominação e a dependência do povo, revestido de uma aura de simplicidade, identificada à bondade.

Esta leitura não vê a abordagem teológica da realidade israelita feita pelos profetas como uma determinação/limitação histórica, mas como a superação de um discurso racional e científico.

Por isso, tal leitura simplesmente repete as ameaças dos profetas israelitas, sem se aperceber de que o está fazendo diante de um mundo secularizado que nem se dá ao trabalho de escutá-la.

 

7. O populismo

Ainda um último obstáculo, dos mais insistentes, precisa ser abordado. É o conhecido populismo.

Vários estudos sociológicos chamam a atenção para as características autoritárias que, historicamente, marcam as relações do Estado com a sociedade no Brasil.

Como na sociedade brasileira não se formaram grupos autônomos capazes de formular e canalizar institucionalmente seus interesses específicos, a participação política está voltada prioritariamente para a conquista de posições de poder e prestígio dentro da esfera burocrático-administrativa[13].

O Estado brasileiro exerce uma óbvia política de clientelismo. As elites brasileiras, que sempre consideraram o Estado como negócio seu, agem de modo paternalista. O paternalismo conduz à ideologia da benevolência e, concretamente, ao favor como forma de ação política.

Daí que, com a emergência política das massas populares, especialmente a partir de 1945, são criadas as condições para o aparecimento do populismo.

O populismo surge:
. Quando há “massificação”, provocada pela proletarização de amplas camadas da população – proletarização que é, por sua vez, provocada pela expansão do capital
. Quando a “classe dirigente” perde sua representatividade e se transforma em “classe dominante”
. Quando aparece um líder carismático.

Observam os sociólogos que nas sociedades em processo de desenvolvimento capitalista, como a brasileira, as camadas médias da população são sempre numerosas. Só que, pela lógica da expansão capitalista, elas tendem à condição de massa, enquanto os indivíduos são desvinculados de seu meio social de origem e esmagados pela expansão dos grandes capitais. Nesta importância histórica das camadas médias da população está a raiz da demagogia populista[14].

É assim que o populismo permanece limitado pelo horizonte das camadas médias, traindo as classes populares. Na sua visão, historicamente limitada, o mundo é constituído por “pobres” e “ricos”. A única maneira do pobre (leia-se, neste caso, “classe média”) ascender socialmente é através do paternalismo do Estado, que é um negócio bem sucedido das elites.

Mas o que tem isso a ver com a leitura dos profetas?

É que o populismo tem sua contrapartida religiosa e se faz presente também nas igrejas. Quando a leitura dos textos proféticos para nos seusJeremias de Michelangelo - Capela Sistina, Vaticano (1511) aspectos religiosos e sacraliza a figura do profeta, ela se torna vítima das atrações do populismo.

Na medida em que as igrejas dão voz e vez ao povo através da intervenção da consciência crítica hierarquizada e institucionalizada, elas se legitimam em sua prática religiosa pelo processo de identificação do “povo brasileiro” com “povo de Deus”.

Esta atitude é paralela à do populismo político que explora a ideia de unidade nacional para manter o domínio da burguesia sobre as classes populares. Os dois jogos se completam e se amparam na relação entre o político e o religioso.

Esta atitude soteriológica tem suas regras: cada ato humano, mais ou menos político, pouco importa, é transfigurado pela leitura teológica que o insere no plano divino global de salvação do homem. De certo modo, são as igrejas recriando a sociedade brasileira mediante o filtro teológico.

Roberto Romano, analisando a Igreja católica, vê um jogo hegeliano nesta atitude: a Igreja sempre se vê como essência desenvolvida e idêntica a si mesma (instituição de origem divina) exteriorizada no outro (o povo).

A sustentação do jogo tem o referencial simbólico da encarnação: “A Igreja se faz povo, torna-se povo com o povo, e se recolhe na afirmação universal de Si como  consciência do Homem enquanto ser genérico e absoluto. Todo este movimento, que se dá na consciência de si da Igreja, aparece como se fosse produzido pela consciência de si dos homens”[15].

Neste caso, a leitura dos profetas é usada pela hierarquia como “chave sagrada” para entrar na consciência do povo e lhe dar a medida da realidade.

As consequências políticas de tal atitude soteriológica são evidentes: potencializam-se as estruturas eclesiásticas para atingir a estrutura social e “salvar” o povo. Salvando-se o povo, salvam-se as igrejas.

 

Concluindo

Para terminar, gostaria de fazer menção de uma experiência pessoal, acontecida em mediana cidade do interior de Minas Gerais no final da década de 70.

Ao mesmo tempo em que, como exegeta assessorando a Igreja católica local, lia os profetas com pessoas das camadas médias da cidade, dirigia o semanário mais influente naquele meio, também pertencente à Igreja.

Através do jornal pude chegar à cidade real, com seus interesses e conflitos, enquanto a leitura dos profetas, na verdade, ocultava a cidade real, via discurso de legitimação.

Explico: os conflitos eram perfeitamente aceitáveis… no passado! Serviam, aliás, para ocultar os conflitos do presente, estes “inexistentes”, porque intocáveis para as camadas médias. Eram sistematicamente camuflados na prática política e na prática religiosa.

Houve reação (repressiva e violenta – estávamos em plena ditadura militar instituída em 1964) ao debate promovido pelo jornal, não à aparentemente mais radical leitura dos profetas.

Esta experiência comprova, mais uma vez, ser necessário o desenvolvimento de uma análise social prévia à atuação profética. Não se pode hoje, diante da complexidade da realidade, contentar-se com uma apreensão imediata da realidade social.

Aliás, as ciências sociais nos ensinam que a realidade social não é o que aparenta ser. A sua fachada é maquiada para ocultar o real que está no processo de geração da riqueza.

 

Bibliografia

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WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

>> Bibliografia atualizada em 22.08.2015

Este texto foi adaptado de meu livro Nascido Profeta: a vocação de Jeremias. São Paulo: Paulus, 1992, p. 110-122.

Artigos


[9]. Cf. COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da Razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 7-46; HOBSBAWM, E. J. A era do capital: 1848-1875. 15. ed. revista, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

[10]. “Mas essa subjetividade inteiramente vazia, convertida em mera negação abstrata do real, procura desesperadamente encontrar um Absoluto pleno de sentido. Nessa busca, as filosofias da subjetividade revelam um traço profundamente religioso (ainda que se trate de uma religiosidade ateia) e, desse modo, uma vinculação espiritual com formas de vida pré-capitalistas”, diz COUTINHO, C. N. o. c., p. 33.

[11]. “O ressentimento, sob os disfarces da indignação moral, está historicamente associado a uma posição inferior na escala social, ou em termos mais precisos, à pertinência à camada inferior das classes médias”, comenta BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 7.

[12]. “O teologismo é o correspondente teórico da atitude prática que se conveio chamar ‘sobrenaturalismo’, ‘espiritualismo’, ou simplesmente ‘mitologia’, explica BOFF, C. Teologia e Prática, p. 77.

[13]. Retomo aqui alguns elementos de meu artigo A denúncia profética da corrupção (Salmo 12). Vida Pastoral, São Paulo, n. 141, p. 2-6, 1988. Disponível online.

[14]. Cf. WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, p. 34.

[15]. ROMANO, R. Brasil: Igreja contra Estado: crítica ao populismo católico. São Paulo:  Kairós, 1979, p. 38. Cf. também as p. 183-223.