História de Israel 9

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2. As origens de Israel

Um dos grandes desafios da História de Israel é explicar como este povo surgiu na Palestina no final do II milênio a.C. O relato mais detalhado que temos é a narrativa bíblica. Mas essa ajuda pouco, pois enfatiza os poderosos atos divinos que liberta o povo do Egito, o conduz pelo deserto e lhe dá a terra. Informa-nos, deste modo, sobre a visão e os objetivos teológicos de narradores de séculos depois, ocultando-nos, entretanto, as circunstâncias econômicas, sociais e políticas em que se deu o surgimento de Israel.

Por isto, propomos aqui:

  • abordar resumidamente as principais teorias até hoje oferecidas para explicar as origens de Israel, indicando seus méritos e limites
  • descrever a crise do final da Idade do Bronze e o fenômeno dos “povos do mar”, acontecimentos contemporâneos ao surgimento de Israel
  • fornecer um panorama da situação sociopolítica da Palestina na época do surgimento de Israel
  • para, enfim, observar a formação desta nova sociedade baseada na relação de parentesco

 

2.1. Quatro propostas para explicar as origens de Israel

Há muitas propostas para explicar as origens de Israel, mas podemos organizar as principais teorias em quatro grupos: a teoria da conquista, a teoria da instalação pacífica, a teoria da revolta e a teoria da evolução pacífica e gradual.

 

2.1.1. A teoria da conquista

Até os anos 80 do século XX, quando alguém queria saber como Israel tomara posse da terra de Canaã, lá no distante século XII a.C., ele lia o relato do livro de Josué: a conquista da terra prometida[1].

Para compreender melhor e aprofundar as circunstâncias desta conquista, o interessado leitor consultava umaWilliam Foxwell Albright (1891-1971) respeitada História de Israel, como, por exemplo, a do norte-americano John Bright,[2] naquela época muito difundida entre nós.

Mas foi John Bright quem desenvolveu sozinho esta teoria? Não. Foi William Foxwell Albright e seus discípulos, entre eles George Ernest Wright e John Bright[3]. Essa escola norte-americana de arqueologia fez grandes descobertas na Palestina, mas usava a arqueologia para dar sustentação ao relato bíblico.

Isso é suficiente? Não. Embora a arqueologia mostre uma significativa destruição de cidades da região nesta época, não há nenhuma evidência de que foi Israel quem fez isso. Além do que, cidades como Jericó e Ai não poderiam ter sido conquistadas, pois já estavam destruídas naquela ocasião.

E há mais: o livro de Josué tem alguns relatos com clara ênfase litúrgica muito mais do que militar, defende um impensável extermínio em massa das populações nativas e faz uso recorrente da etiologia – “e (tal está assim) até o dia de hoje” – para explicar certas situações. Isso só para citar alguns problemas.

 

2.1.2. A teoria da instalação pacífica

Alternativas já haviam sido apresentadas ao longo do século XX. Como a proposta de uma instalação pacífica de Israel na terra de Canaã, teorizada pelos alemães Albrecht Alt[4] e Martin Noth[5], segundo a qual as tribos foram ocupando os espaços vazios entre as cidades-estado cananeias, sem um conflito generalizado e organizado. Conflitos eventualmente aconteciam, mas apenas quando um clã invadia o território de uma cidade-estado. A teoria baseia-se na análise crítica dos textos bíblicos e interpreta à sua luz os dados arqueológicos, que assim a confirmam.

Martin Noth (1902-1968)Esta proposta defende, por exemplo, uma entrada diferenciada das tribos israelitas na Palestina: êxodos diferentes para os vários grupos – dois pelo menos, um para o sul e outro para o norte. Martin Noth fala de ligas anfictiônicas,[6] uma união de seis ou doze tribos em torno de um santuário no qual habita a divindade e onde se renova a Aliança entre as tribos, como existia entre cidades gregas. E ele liga os hebreus aos habiru/‘apiru, um termo que indica uma condição social de pessoas marginalizadas que circulavam pelo Antigo Oriente Médio.

Isso é suficiente? Mais uma vez não. Entre outras coisas, o modelo grego da anfictionia não pode ser comprovado no Israel primitivo, além do que a identificação de hebreu com habiru/‘apiru é problemática.

 

2.1.3. A teoria da revolta

Nos anos 60 e 70 do século XX, George E. Mendenhall e Norman K. Gottwald invertem o jogo ao propor que Israel surge de dentro de Canaã, como uma revolta camponesa contra a exploração das cidades-estado cananeias.

George E. Mendenhall, em 1962,[7] explica que um movimento religioso criou uma solidariedade entre umGeorge E. Mendenhall (1916-2016) grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-as capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze.

Esta motivação religiosa, segundo ele, foi a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos. Por isso, a tradição da Aliança é tão importante na narrativa bíblica, pois essa é o símbolo formal por meio da qual a solidariedade era tornada funcional.

A proposta de George E. Mendenhall, entretanto, não consegue explicar como apenas o javismo, e nenhuma outra esfera da vida daquele povo, poderia ser a causa da unidade solidária que fez surgir Israel.

Já Norman K. Gottwald, em 1979,[8] desenvolvendo muito mais detalhadamente a ideia de uma revolta camponesa, explica as origens de Israel como resultado de uma revolução social consciente que, unindo agricultores e pastores, levou parte da população de Canaã a um processo de retribalização, estruturada como uma forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada.

Norman K. Gottwald (1926-2022)A proposta de Norman K. Gottwald, publicada em livro de quase mil páginas, suscitou uma grande polêmica e polarizou as atenções dos especialistas durante muito tempo. E foi assim que o modelo da retribalização ou da revolta camponesa passou a ser citado como uma alternativa bem mais interessante do que os modelos anteriores, além de fazer surgir outras tentativas de explicação das origens de Israel[9].

Mas Norman K. Gottwald foi também muito criticado, pois ele faz um uso eclético de teorias e autores, de uma maneira que dificilmente qualquer um deles aprovaria. Um dos problemas do ecletismo de Gottwald, por exemplo, é que embora se reporte às vezes à tradição do conflito na ótica marxista, ele faz uma leitura do Israel pré-monárquico segundo a tradição durkheimiana, ao adotar um enfoque funcionalista na análise da sociedade israelita.

Estas questões metodológicas, somadas à falta de fundamentação arqueológica, tornou a proposta de uma revolta camponesa bastante problemática[10].

 

2.1.4. A teoria da evolução pacífica e gradual

Assim é preciso olharmos alguns autores que procuraram avançar a partir e além de Mendenhall e Gottwald.

Descobertas arqueológicas a partir dos anos 80 do século XX encorajaram os pesquisadores na elaboração de novas maneiras de compreender as origens de Israel. As escavações de várias localidades da Palestina deixaram os arqueólogos impressionados com a continuidade existente entre as cidades cananeias das planícies e os povoados israelitas da região montanhosa.

O crescente consenso entre os arqueólogos é de que a distinção entre cananeus e israelitas no primeiro períodoIsrael Finkelstein (nascido em 29 de março de 1949) do assentamento na terra é cada vez mais difícil de ser feito, pois estes parecem constituir um só povo. As diferenças entre os dois aparecem somente mais tarde.

Por isso, os arqueólogos começaram a falar cada vez mais da formação de Israel como um processo pacífico e gradual, a partir da transformação de parte da sociedade cananeia. De alguma maneira, cananeus gradualmente tornaram-se israelitas, acompanhando transformações políticas e sociais no começo da Idade do Ferro.

Os defensores deste ponto de vista costumam considerar vários fatores, como o colapso das civilizações do mundo mediterrâneo no Bronze Recente, a deterioração da vida urbana causada pelas campanhas militares egípcias na Palestina, a crescente tributação dos camponeses por parte das cidades-estado e severas mudanças climáticas que atingiram a região.

Mas o processo de evolução pacífica do qual surgiu Israel é descrito de maneira diferente pelos especialistas. Poderíamos, didaticamente, classificar as teorias em quatro categorias, que são: retirada pacífica, nomadismo interno, transição ou transformação pacífica e amálgama pacífico.

Esta proposta de uma evolução pacífica e gradual, em suas várias ramificações, é considerada a mais promissora de todas elas, sendo a mais debatida atualmente pelos especialistas.[11]

Existe hoje um consenso entre os especialistas de que a arqueologia é fundamental para definir o modo como Israel surgiu na região da Palestina. Claro, complementada pelos recursos oferecidos pelas ciências sociais e pela análise minuciosa dos textos bíblicos.

Entretanto, é bem possível que não se possa usar um só modelo para explicar a ocupação de todo o território de Canaã por Israel, já que o processo de instalação pode ter sido diferenciado conforme as regiões e as circunstâncias. Parece razoável considerar que em cada região tenha havido um processo social específico que deva ser explicado.

De qualquer modo, existe uma certeza: ainda surgirão muitos modelos explicativos para as origens de Israel e é possível que uma solução definitiva esteja bem distante.

 

2.2. A crise da Idade do Bronze Recente e o fenômeno dos “povos do mar”

E, de repente, estamos no ano de 1177 a.C.. No Egito, o faraó Ramsés III estava em seu oitavo ano de governo. E foi então que eles chegaram. Chegaram por terra, chegaram por mar. Grupos de origem e culturas diferentes, não havendo uma vestimenta padrão. Alguns usavam capacetes, outros turbantes. Túnicas longas ou saiotes curtos. Espadas, lanças, arcos e flechas. Chegaram em barcos, carroças, carros de boi e carros de combate. Às vezes, só guerreiros, às vezes, famílias inteiras. Embora 1177 a.C. seja uma data aqui usada como referência, eles chegaram em ondas ao longo de vários e vários anos.

Nós os chamamos, desde o século XIX, de “povos do mar”. Nome cunhado por Emmanuel de Rougé e popularizado por Gaston Maspero, ambos egiptólogos franceses.

Medinet Habu: Ramsés III x Povos do MarOs egípcios, os hititas e a cidade de Ugarit os chamaram, em seus textos, pelos estranhos nomes de Lukka, Sherden/Shardana, Eqwesh, Teresh, Shekelesh, Karkisha, Weshesh, Denyen/Danuna, Tjekker/Sikila, Peleset.

O registro mais famoso, com texto em hieróglifos e detalhadas imagens, é o de Ramsés III nas paredes do templo funerário de Medinet Habu, onde se narra a batalha vitoriosa do faraó ao impedir a invasão do Egito pelos “povos do mar”.

Ele diz:

Os países estrangeiros fizeram uma conspiração em suas ilhas. De uma só vez as terras foram eliminadas e as pessoas dispersas no conflito. Nenhum país foi capaz de resistir às suas armas, de Hatti, Qode, Karkemish, Arzawa e Alashiya eles foram [eliminados] imediatamente. Um acampamento foi montado em uma localidade de Amurru. Humilharam seu povo, e sua terra nunca tinha enfrentado uma situação como essa. Eles se moveram em direção ao Egito e uma barreira de fogo foi colocada diante deles. Sua confederação era formada pelos Peleset, Tjekker, Shekelesh, Danuna e Weshesh, terras que se uniram. Eles puseram suas mãos sobre estas terras, com corações confiantes e esperançosos: ‘Nossos planos terão sucesso’.

E continua o faraó:

Eles alcançaram a fronteira de minhas terras, mas sua semente não existe mais, e seus corações e almas terminaram para sempre e definitivamente. Aqueles que avançaram juntos no mar tinham uma grande chama diante deles na foz do rio, e toda uma barreira de lanças os cercava na praia. Eles foram arrastados para a praia, cercados e vencidos, mortos e despedaçados da cabeça aos pés. Os navios afundaram e as mercadorias caíram na água.[12]

De onde veem os “povos do mar”? Talvez da Sicília, da Sardenha, da Grécia e de outros lugares do mundo mediterrâneo. De fato, os Shekelesh lembram a Sicília, os Shardana podem ser da Sardenha, enquanto Danuna poderiam ser, segundo alguns, os Dânaos da Ilíada de Homero. Alguns deles podem ser originários da Ásia Menor, outros talvez de Chipre. Contudo, até hoje nenhuma localidade antiga pôde ser apontada, com segurança, como sua origem ou ponto de partida.

Apenas um grupo foi identificado com mais precisão: os Peleset são os filisteus, que, segundo a Bíblia Hebraica, vieram de Caftor, possivelmente a ilha de Creta.

Um estudo moderno reforça esta ideia. Em 2019, foi divulgado que uma equipe de pesquisadores extraiu DNA de amostras antigas de ossos humanos encontrados durante escavações feitas em Ascalon, na costa palestina.

Com a análise dos dados genômicos de pessoas que ali viveram durante as Idades do Bronze Recente e do Ferro (cerca de 1550 a 900 a.C.), foi constatado que uma proporção substancial de seus ancestrais era derivada de uma população europeia. Essa ancestralidade derivada da Europa foi introduzida em Ascalon na época da chegada estimada dos filisteus no século XII a.C.[13]

De acordo com as inscrições de Ramsés III, como visto acima, nenhum país foi capaz de se opor à pressão dos “povos do mar”. As grandes potências da época realmente caíram uma a uma: Hatti e Ugarit desapareceram, Babilônia e Assíria encolheram, o Egito saiu enfraquecido.

Mas teria sido apenas a chegada dos “povos do mar” a provocar este colapso? Provavelmente não. Além dos “povos do mar”, há outros fatores possíveis, mas nenhum parece ter sido capaz de provocar tal catástrofe sozinho.[14]

Esta grande crise socioeconômica da Idade do Bronze Recente (ca.1550-1150 a.C.) durou cerca de três séculos, de 1500 a 1200 a.C., assim como também cerca de três séculos vai durar a construção de uma nova ordem, de 1200 a 900 a.C. Mas o momento mais agudo da crise foi na primeira metade do século XII (1200-1150 a.C.).

Mario Liverani,[15] assim como muitos outros pesquisadores, tenta explicar a catástrofe como resultado de umaCLINE, E. H. 1177 B.C.: The Year Civilization Collapsed. Princeton: Princeton University Press, 2021 (Revised and Updated Edition) conjunção de fatores dramáticos. Isso pode ser verificado, por exemplo, com a severa crise climática na região do Saara, fazendo com que tribos líbias entrassem no vale do rio Nilo à procura de pastagens e água aí pelo fim do século XIII e início do século XII a.C. Os faraós Merneptah e Ramsés III se vangloriam de tê-las combatido, mas parece que tiveram que se adaptar à nova realidade. Também na Ásia Menor houve uma sequência de anos muito secos no final do século XIII, com chuvas escassas, provocando uma grave carestia, como atestam textos hititas, ugaríticos, egípcios e a moderna dendrocronologia. A tudo isso se somou a pressão dos “povos do mar”, o fenômeno mais impressionante desta época.

Deste modo, Ugarit, Alashiya (Chipre) e toda uma série de reinos e cidades do Egeu, Ásia Menor, Síria e Palestina foram destruídos. Ruiu todo o sistema político do Bronze Recente. Minoicos, micênios, hititas, egípcios, babilônios, assírios, cananeus e cipriotas eram civilizações independentes umas das outras, mas interligadas por rotas de comércio que geravam prosperidade.

 

2.3. O caos da Palestina na época do surgimento de Israel

O quadro político da Palestina mudou muito com a queda do sistema regional estruturado pelos reinos de Hatti, Egito, Assíria e Babilônia.

Depois de séculos, a Palestina se viu livre do controle externo que lhe havia sido imposto pelo Egito a partir do faraó Tutmósis III (1479-1425 a.C.). O sistema de cidades-estado administradas por pequenos reis locais, submissos ao Egito, foi destruído e, com ele, desabaram as estruturas administrativas, artesanais e comerciais da região. Quase todos os sítios arqueológicos até hoje pesquisados testemunham algum grau de destruição no início do século XII.

Um dos sinais da instabilidade que tomou conta da região na Idade do Bronze Recente são as menções, nos documentos da época, de fugitivos e marginalizados, uma preocupação para o Egito e para outras regiões, inclusive a Síria e a Palestina. Estes grupos raramente aparecem antes de 1500 a.C., mas agora se tornam um fenômeno frequente e parecem ser um fator importante na formação das primeiras sociedades da Idade do Ferro.

Muito lembrado pelos pesquisadores é o caso dos habiru/‘apiru, citados, entre outros documentos, nas cartas de Tell el-Amarna.

Cartas de Tell el-AmarnaEstas cartas foram escritas por governantes das cidades cananeias – e de outros países – à corte egípcia de Amenófis III e de seu filho Amenófis IV, no século XIV a.C. São 382 cartas, descobertas no Egito a partir de 1887, sendo as da Palestina escritas em acádico babilônico médio.

Nos conflitos entre as cidades cananeias, seus governantes se acusam, da ajuda, feita pelo inimigo, aos habiru/‘apiru, que estariam provocando revoltas e atacando cidades em Canaã. Parece que os habiru/‘apiru levantavam-se contra seus opressores cananeus e se libertavam de seu controle. Nas cartas, os governantes cananeus pedem a assistência do faraó para conter as revoltas.[16]

Paralelamente à decadência da antiga ordem da Idade do Bronze Recente, grupos “etnicamente” definidos começam a aparecer em textos contemporâneos e posteriores. Estamos falando de grupos pertencentes aos “povos do mar”, com destaque para os filisteus, mas também de povos que vão se consolidando durante a Idade do Ferro, como os fenícios, israelitas, arameus, moabitas, amonitas, edomitas e outros.

Contudo, o importante é o quadro de conjunto: o tipo de reino baseado na centralidade do palácio foi destruído, ficando somente uns poucos núcleos urbanos intocados pela crise. Com a redução do tamanho do núcleo palatino, cidades sobreviventes viraram povoados. Pois quando se tira de uma cidade da Idade do Bronze Recente o palácio real, as habitações dos altos funcionários e da aristocracia militar, as oficinas dos artesãos, os arquivos e as escolas, o que sobra é apenas um povoado, nada mais.

Em síntese, o colapso do sistema de palácios, agente básico e exclusivo do comércio de longa distância, gerou uma grave crise nos contatos inter-regionais, exigindo sua readequação.

E ao se falar em comércio, dois dados precisam ser considerados: primeiro, desapareceram os protagonistas do comércio, tais como reis, escribas, embaixadores, agentes comerciais dos palácios; e, segundo, a ordem jurídica e política do comércio foram destruídas, não existindo mais garantias jurídicas, tratados e alianças, proteção militar, indenizações econômicas, cartas de crédito, estradas seguras.

Até mesmo os canais de comunicação foram afetados, pois as cartas em linear B, hitita, ugarítico e acádico, por exemplo, que eram empregadas pelos contatos internacionais da Mesopotâmia, Ásia Menor, Síria, Palestina, Egito e Chipre, não puderam mais ser escritas, já que as escolas de escribas, que eram parte da administração das cidades-estado, foram eliminadas com a destruição dos palácios.[17]

 

2.4. Uma sociedade baseada na solidariedade do parentesco

À destruição do sistema palatino, segue-se um processo de sedentarização de tribos pastoris, documentado nos novos assentamentos da Idade do Ferro I (1150-900 a.C.). Nos povoados consolidam-se grupos de parentesco estáveis, formando unidades territoriais. É o que chamamos de clã. Grupos vizinhos se unem, formando o que chamamos, convencionalmente, de tribo. Matrimônios cruzados, necessidades de defesa, relações de trabalho, relações de hospitalidade, por exemplo, fortalecem estes laços.

Liverani observa que todas as relações sociais são apresentadas segundo o modelo genealógico: “O nome da vilaKAEFER, J. A. As Cartas de Tell el-Amarna e o contexto social e político de Canaã antes de Israel. São Paulo: Paulus, 2020, é (ou pelo menos é assim interpretado) o do chefe de que todos os habitantes descendem por ramos familiares. E todos os epônimos das vilas serão considerados os filhos ou talvez os netos do epônimo tribal”.[18] Um epônimo é um fundador real ou mítico de uma família, clã, tribo, dinastia ou cidade e que lhe dá seu nome. Porém, esse é um modelo artificial: as vilas e as famílias são aparentadas não porque têm um único antepassado comum, mas porque se tornaram parentes por meio de matrimônios cruzados.

Assim, podemos entender que, pouco a pouco, assentamentos agrupados por esse sistema de parentesco tomam uma dimensão tal que podem se apresentar como alternativa ao sistema político palatino. Este é um fenômeno documentado também na Síria, não é exclusivo da Palestina. Portanto, a crise leva a uma nova ordem baseada na solidariedade de parentesco.

Outro dado importante é que esta época é marcada por inovações tecnológicas de grande impacto, tais como:

  • a fabricação de ferramentas e armas de ferro, material mais resistente e mais fácil de ser obtido do que o bronze
  • a substituição do cuneiforme pelo alfabeto, tornando a escrita mais acessível a um grupo maior de usuários
  • a domesticação do camelo e do dromedário e seu uso como animal de carga, ampliando o comércio
  • a utilização do cavalo como montaria, o que muda as táticas de guerra
  • o aprimoramento da navegação em alto-mar
  • a construção de terraços que evitam a erosão dos terrenos, tornando possível a agricultura em região montanhosa
  • a construção de cisternas impermeabilizadas, onde a água é recolhida e guardada.

Estas inovações não acontecem de uma hora para outra, nem ao mesmo tempo. Algumas são lentas, como o uso do ferro e do alfabeto, outras são recorrentes, como os terraços e as cisternas. Mas, no seu conjunto, elas caracterizam o que hoje chamamos de Idade do Ferro.

O resultado é o crescimento do número de assentamentos na região montanhosa, que saltam de 29 sítios na Idade do Bronze Recente para 254 na Idade do Ferro I na Cisjordânia e de 32 para 218 na Transjordânia.[19]

 

Conclusão

A pesquisa atual sobre as origens de Israel tende a ver o surgimento deste povo como resultado de um processo VITÓRIO, J.; LOPES, J. R.; SILVANO, Z. A. (orgs.) Livro de Josué: “Nós serviremos ao Senhor”. São Paulo: Paulinas, 2022interno ocorrido em Canaã a partir do final da Idade do Bronze Recente e começo da Idade do Ferro. Porém, o modo como isso teria acontecido continua a ser objeto de muita discussão e múltiplas hipóteses são propostas pelos especialistas. A arqueologia tem sido a mais eficaz ferramenta usada para enfrentar esta problemática.

O livro de Josué, por outro lado, que antes tinha um papel decisivo na discussão sobre as origens de Israel, perdeu este status no final do século XX. O debate mais recente sobre o livro coloca sua redação em algum momento entre o final da monarquia judaíta e o começo da época helenística, respondendo a problemas específicos de um ou outro destes contextos.

A autoria do livro vem passando de mãos desde o século XIX: de uma composição costurada com as mesmas fontes literárias do Pentateuco, Josué passa a fazer parte de uma Obra Histórica Deuteronomista escrita por um ou vários autores, terminando com uma origem independente, como propõem alguns pesquisadores atualmente[20].

 

As origens de Israel na Ayrton’s Biblical Page e no Observatório Bíblico

Em ordem cronológica, do mais recente para o mais antigo.

Ayrton’s Biblical Page

As origens de Israel – este item 2 da “História de Israel”, publicado em 2023

Leitura sociológica da Bíblia – Artigo publicado em 2022

A história de Israel e Judá na pesquisa atual – Artigo publicado em 2018

A história de Israel no debate atual – Artigo publicado em 2001

Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita? – Artigo publicado em 2001

Leitura socioantropológica da Bíblia Hebraica – Artigo publicado em 1999

Resenha de FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001

Resenha de GRABBE, Lester L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, [London: T T Clark, 2005]

Resenha de DAVIES, P. R. In Search of ‘Ancient Israel’. Sheffield: Sheffield Academic Press [1992], 1995, [2. ed.  2015]

 

Observatório Bíblico

As origens de Israel – 09.03.2023

A arqueologia bíblica norte-americana e o sionismo – 15.02.2023

Sobre o Mês da Bíblia 2022 – 16.10.2022

Apresentação do livro de Josué – 17.09.2022

Semana Bíblica Paulinas 2022 – 26.08.2022

Mês da Bíblia 2022 na ReBiblica – 19.08.2022

Em busca de terra livre: encontros virtuais – 08.08.2022

Em busca de terra livre: uma leitura de Josué – 08.08.2022

Mês da Bíblia 2022 na Vida Pastoral – 27.07.2022

Livro de Josué: live de lançamento – 25.07.2022

O livro de Josué – 19.06.2022

O cerco de Jericó: análise de Josué 2 e 6 – 15.06.2022

Mês da Bíblia 2022, segundo o SAB – 17. 05.2022

Mês da Bíblia 2022, segundo Mesters e Orofino – 17.05.2022

Mês da Bíblia 2022: entendendo o livro de Josué – 17.05.2022

Mês da Bíblia 2022: Josué – 17.05.2022

O livro de Josué no século XX: Alt e Albright – 04.06.2021

Quem escreveu o livro de Josué? – 03.06.2021

O livro de Josué não é um relato de conquista – 23.04.2021

O mundo das origens de Israel, segundo Mario Liverani – 22.04.2021

A invenção da conquista, segundo Mario Liverani – 21.04.2021

O quebra-cabeças das origens de Israel – 30.03.2021

O livro de Josué na pesquisa recente – 20.01.2021

A História de Israel e Judá na pesquisa atual I-V – 15 a 23.10.2018

Israel Finkelstein fala sobre as origens de Israel – 07.11.2015

A História Antiga de Israel no Brasil: três opiniões – 17.10.2013

Seca, terremoto e as origens de Israel – 22.08.2013

As origens de Israel: polêmico artigo de Rainey – 27.10.2008

Estudos sobre as origens de Israel são reeditados – 28.04.2008

George Mendenhall fala sobre as origens de Israel – 06.09.2006

Sobre as origens de Israel – 15.03.2006

As origens de Israel e o governo de Davi: a polêmica continua! – 12.02.2005

 

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>>Bibliografia atualizada em 09.03.2023

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  1. Cf. DA SILVA, A. J. O problema das origens de Israel e o livro de Josué. In: LOPES, J. R.; SILVANO, Z. A; VITÓRIO, J. (orgs.) Josué: “Nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15). São Paulo: Paulinas, 2022, p. 15-39.
  2. Cf. BRIGHT, J. História de Israel. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 139-181.
  3. Cf. DA SILVA, A. J. O livro de Josué no século XX: Alt e Albright. Post publicado no Observatório Bíblico em 04.06.2021.
  4. Cf. ALT, A. Terra Prometida: ensaios sobre a história do Povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 19-110.
  5. Cf. NOTH, M. Historia de Israel. Barcelona: Garriga, 1966, p. 63-89.
  6. Cf. NOTH, 1966, p. 91-110.
  7. Cf. MENDENHALL, G. The Hebrew Conquest of Palestine. The Biblical Archaeologist, Chicago, v. 25, p. 66-87, 1962; DA SILVA, A. J. Morreu o biblista George E. Mendenhall. Post publicado no Observatório Bíblico em 07.08.2016.
  8. Cf. GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto, 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004; DA SILVA, A. J. Morreu Norman K. Gottwald. Post publicado no Observatório Bíblico em 01.04.2022.
  9. Cf. DA SILVA, A. J. Norman K Gottwald por Roland Boer. Post publicado no Observatório Bíblico em 30.04.2011.
  10. A crítica de maior consistência foi a do dinamarquês Niels Peter Lemche, que analisou longamente os fundamentos do modelo de Gottwald. Cf. LEMCHE, N. P. Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985. Cf. também FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996, p. 104-121, onde os vários modelos são descritos e analisados.
  11. Cf. GNUSE, R. K. No Other Gods: Emergent Monotheism in Israel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, p. 32-61; DA SILVA, A. J. A história de Israel no debate atual. Artigo publicado na Ayrton’s Biblical Page em 2001, atualizado em 2020; Idem, A história de Israel e Judá na pesquisa atual. Artigo publicado na Ayrton’s Biblical Page em 2018, atualizado em 2020.
  12. PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (ANET). 3. ed. with Supplement. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1969, p. 262-263.
  13. Cf. DA SILVA, A. J. DNA indica origem europeia dos filisteus. Post publicado no Observatório Bíblico em 06.07.2019.
  14. Cf. CLINE, E. H. 1177 B.C.: The Year Civilization Collapsed. Princeton: Princeton University Press, 2021 (Revised and Updated Edition); KILLEBREW, A. E.; LEHMANN, G. (eds.) The Philistines and Other “Sea Peoples” in Text and Archaeology. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2013.
  15. Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008. p. 59-80; FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.
  16. Cf. KAEFER, J. A. As Cartas de Tell el-Amarna e o contexto social e político de Canaã antes de Israel. São Paulo: Paulus, 2020; RAINEY, A. F. The El-Amarna correspondence: A new edition of the cuneiform letters from the site of El-Amarna based on collations of all extant tablets. Leiden: Brill, 2015.
  17. Cf. LIVERANI, M. The Collapse of the Near Eastern Regional System at the End of the Bronze Age: The Case of Syria. In: ROWLANDS M.; LARSEN, M.; KRISTIANSEN, K. (eds.) Centre and Periphery in the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 66-73.
  18. Cf. LIVERANI, 2008, p. 70.
  19. Cf. LIVERANI, 2008, p. 81-82. Para as inovações tecnológicas, cf. as p. 72-78.
  20. Cf. DA SILVA, A. J. Quem escreveu o livro de Josué? Post publicado no Observatório Bíblico em 03.06.2021; Idem, O livro de Josué não é um relato de conquista. Post publicado no Observatório Bíblico em 23.04.2021; Idem, O livro de Josué na pesquisa recente. Post publicado no Observatório Bíblico em 20.01.2021.

Última atualização: 18.05.2023 – 08h32

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