SOTER ’98: Experiência religiosa. Risco ou aventura?

SOTER ’98: Experiência religiosa. Risco ou aventura?

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SOTER ’98: Experiência religiosa. Risco ou aventura?

 

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1. O Congresso

O Congresso da SOTER[1], Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, trabalhando sobre o tema Experiência Religiosa: Risco ou Aventura? foi realizado com sucesso em Belo Horizonte, de 6 a 10 de julho de 1998. Cerca de 170 teólogos, teólogas, cientistas da religião e áreas afins estiveram presentes. Destaque, entre os participantes, para alguns dos teólogos e cientistas da religião que mais produzem em nosso país, como João Batista Libânio, Clodovis Boff, Carlos Mesters, Alberto Antoniazzi, Pedro Ribeiro de Oliveira, Luiz Roberto Benedetti, Márcio Fabri dos Anjos, José Comblin, Mário de França Miranda, Maria Clara Bingemer, Ana Maria Tepedino, Walter Altmann, Francisco Catão, José Bittencourt Filho, Cleto Caliman e tantos outros.

Do CEARP participaram os professores Paulo Fernando Carneiro de Melo Cunha e Airton José da Silva. No dia 5 de agosto, os dois professores fizeram, durante toda uma manhã, um comunicado sobre o congresso para toda a comunidade acadêmica do CEARP.

Conforme o Boletim n. 24 da SOTER, de agosto de 1998[2], que utilizarei como referência básica aqui, “em bom ritmo de congresso, foram apresentados os muitos estudos e pesquisas, com grande riqueza e variação, conforme se pode ler no libreto do congresso”, que traz um resumo das conferências e comunicações científicas feitas no congresso[3].

No dia 6, uma noite de autógrafos, realizada logo após a conferência de abertura, “revelou vinte e uma obras publicadas ultimamente pelos sócios/as. Uma média bastante boa de produção científica para a SOTER”. Entre os lançamentos, destaco aqui o esperado estudo de Clodovis Boff, Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 1998, um alentado volume de 758 páginas, no qual o conhecido teólogo, nestes tempos de transição e crise, volta ao fundamento operativo da teologia, que é o seu método. Clodovis, neste seu empreendimento, lança mão das mais recentes pesquisas em epistemologia teológica feitas a nível mundial, na Alemanha, Suíça, França, Itália, USA, Espanha e América Latina. Mas também recorre à longa tradição teológica para ouvir a “lição dos clássicos”, que vão desde Agostinho até Rahner, passando por Anselmo, Tomás de Aquino, Boaventura e Duns Scoto. Sem deixar de fora os “teólogos naturais”, como Platão, Aristóteles, Varrão e Horkheimer.

Além das palestras e debates em plenário, que ocuparam as manhãs e as tardes, ocorreram comunicações científicas à noite, organizadas em três grupos concomitantes e em três dias diferentes. Conforme o Boletim da SOTER, “algumas delas foram particularmente importantes para se conhecerem novas gerações de pesquisadores/as que estão despontando”.

A SOTER preparou duas publicações diferentes sobre o Congresso deste ano. Uma, com as conferências: DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito. São Paulo: SOTER/Paulinas, 1998, 350 p. A outra, com as comunicações científicas, pela Editora Santuário. Vale lembrar que em preparação ao congresso foi publicado um livro de ensaios sobre o tema a ser discutido, e no qual se recolheram aspectos diversificados. O livro, também organizado por Márcio Fabri dos Anjos, tem por título Experiência Religiosa Risco ou Aventura?, e foi publicado pelas Paulinas em coedição com a SOTER.

 

2. A Assembleia

Este Congresso da SOTER realizou também Assembleia para eleição da nova Diretoria que comandará a organização pelos próximos três anos. Chapa única acolhida calorosamente e eleita por unanimidade, a nova Diretoria ficou assim composta: para Presidente, Luiz Carlos Susin (Porto Alegre – RS); para Vice-presidente, Agenor Brighenti (Florianópolis – SC); para Secretário, Érico Hammes (Porto Alegre – RS); para Segundo Secretário, Flávio Martinez de Oliveira (Pelotas – RS); para Tesoureira, Araci Maria Ludwig (Passo Fundo – RS). Foram igualmente eleitos os Coordenadores Regionais com seus respectivos suplentes[4].

Segundo a descrição do Boletim n. 24, “a Assembleia se pronunciou também sobre programações futuras e aprovou que se realize o próximo Congresso, em Belo Horizonte – MG, de 5 a 9 de julho de 1999. Entre as sugestões levantadas pelos diversos Regionais da SOTER, a Assembleia escolheu para tal evento o tema genericamente formulado como ‘Cosmologia’, visando aproximar o estudo da teologia e das ciências da religião com a ‘teologia da criação, as ciências de fronteira, a ecologia’. Outro tema que ficou em segundo lugar nas preferências foi enunciado como ‘Teologia e História’, referindo-se às questões de ‘escatologia, milenarismo, fim do mundo, teologia da esperança’. Foi aprovado também, sem maiores definições, que se organize também outro congresso para o ano 2000”. A novidade é que este contará com a participação de outras entidades teológicas latino-americanas similares à SOTER.

De uma reunião de Mulheres participantes do Congresso foi mandado ao Boletim da SOTER o seguinte comunicado: “Vinte e duas das quarenta mulheres que participaram no Congresso da Soter/98, apesar da extensa programação, conseguiram fazer uma reunião de fim de noite, durante o Congresso, para trocar experiências de vida e de trabalho profissional/pastoral. Ficou demonstrado concretamente, embora em um curto espaço de tempo, a importância da articulação práxis-teoria para uma metodologia teológica adequada, sobretudo quando é percebida através de um diálogo aberto e afetivo entre as pessoas comprometidas e fecundada por uma espiritualidade viva e partilhada.

A reunião teve uma presença bastante diversificada de mais antigas e mais novas, leigas e religiosas: teólogas com mestrado e doutorado completos, experiência acadêmica, artigos e livros publicados; mestrandas e doutorandas em teologia; especialistas no campo das ciências da religião e das ciências sociais; responsáveis pelo Conselho Editorial de editoras presentes, e outras.

Sentiu-se a necessidade de um trabalho mais organizado entre as participantes antes, durante e depois de cada Congresso. Este procedimento poderá dinamizar a presença articulada de mulheres e homens nos próximos congressos. Para tal, pensamos fazer a reunião das mulheres nas segundas feiras à tarde, no horário que antecede a abertura de cada Congresso e o cocktail de congraçamento. A teóloga doutora Delir Brunelli foi escolhida por unanimidade como representante das mulheres junto à Diretoria da Soter.”

 

3. A abrangência do tema  e a perspectiva  assumida

O Boletim n. 23, de maio de 1998, falando do Congresso, diz que “a amplidão do tema da ‘experiência religiosa’ exige naturalmente concentrar agora as atenções em alguns aspectos, para que se possa avançar na reflexão. Neste congresso, assumimos o Neopentecostalismo e a Renovação Carismática Católica como lugares a partir de onde desenvolvemos os estudos e debates. A atualidade destes espaços como lugares de experiência religiosa dispensa argumentação sobre sua relevância”.

Na Conferência de Abertura, Mapas da experiência religiosa no contexto atual, o Presidente da SOTER, Prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos, chamou a atenção para o seguinte, conforme consta da ementa publicada no Boletim n. 23: “Quando falamos em ‘experiência religiosa’ mencionamos um assunto de uma enorme abrangência. Toda aproximação desse tema requer delimitações precisas e boa interdisciplinaridade. A porta de entrada nesse tema tem sido com frequência as perguntas em torno da ‘experiência’. Mas talvez uma das chaves interessantes para se compreender a problemática atual neste assunto pode estar na conotação ‘religiosa’ da experiência e ao que ela remete”. Márcio desenvolveu sua palestra desdobrando as múltiplas definições e lugares da “experiência religiosa”.

Nos três dias seguintes, 7, 8 e 9 de junho, os conferencistas abordaram o tema dentro da seguinte lógica: no primeiro dia, a experiência religiosa foi enfocada sob o ponto de vista socioantropológico; no segundo dia, a abordagem foi fundamentalmente teológica: no terceiro dia, se concretizou uma abordagem prático-pastoral da questão. E, finalmente, no dia 10, para encerrar as conferências, Clodovis Boff falou dos horizontes e perspectivas da teologia para o novo milênio, sempre sob a ótica da experiência religiosa.

 

3.1. Abordagem socioantropológica

No dia 7, O Neopentecostalismo e a Renovação Carismática Católica foram abordados por Ricardo Mariano, Mestre em Sociologia pela USP; Brenda Maribel Carranza Davila, Mestre em Sociologia pela UNICAMP; Cecília Mariz, Doutora em Sociologia da Cultura e da Religião pela Boston University (USA) e por Luiz Roberto Benedetti, Doutor em Sociologia pela USP.

Segundo Ricardo Mariano o que mais chama a atenção no neopentecostalismo é que ele se firma no Brasil “como uma religião que cada vez mais deita raízes em nossa sociedade e é por ela influenciada num processo de assimilação mútua”. Embora excessos possam ser cometidos, como os “chutes na santa”, a “assimilação da cultura ambiente, não obstante sua rivalidade com outras religiões e as contínuas importações teológicas dos Estados Unidos, constitui processo, ao que parece irreversível”[5]. Por isso, supô-los, de um lado, “fundamentalistas”, “fascistas de carteirinha” ou, de outro, inversamente, como “portadores tardios da velha ética protestante em tudo afim com o chamado espírito capitalista” é um anacronismo. “O futuro dessa religião, como já dá mostras de sobra seu presente, aponta noutra direção: flexibilização, ajustamento, assimilação, secularização”[6].

Brenda Carranza, por sua vez, salientou em sua palestra que “fazer da experiência religiosa uma mercadoria submetida às leis da concorrência no mercado de bens simbólicos, parece ser o tom que a Renovação Carismática Católica (RCC) quer imprimir à sua oferta espiritual”[7]. Um texto do padre Eduardo Dougherty, citado por Brenda nesta mesma página, e tirado de O Globo de 05.10.1997, p. E-11 é bem esclarecedor deste objetivo da RCC. Diz Eduardo Dougherty[8]: “Acredito que a Igreja Católica precisa encantar seus clientes. Utilizando um termo de marketing, temos o melhor produto possível que é Deus; o melhor preço possível que é grátis; uma rede mundial de distribuição bastante ampla; mas ainda temos que fazer muito barulho. O nosso produto tem que ser uma experiência de Deus”.

A partir dessa ótica, e tendo como pano de fundo as diferenças e semelhanças entre a RCC e o pentecostalismo e a tensão existente entre a Teologia da Libertação e a RCC, Brenda levanta em sua palestra uma série de questões sobre a RCC, segundo ela, ainda mal respondidas pelos especialistas: “Em que momento a RCC começou a tomar corpo e tornar-se relevante dentro do catolicismo e da sociedade? O que tem a RCC que atrai e aglutina tantos católicos? Qual a conjuntura social que permite sua expansão? Qual a especificidade de sua oferta religiosa perante a diversidade do campo religioso no Brasil? Quais suas relações com esse campo? É a RCC, de fato, portadora de elementos novos que mudam o perfil da Igreja Católica?”[9].

Interessante no estudo de Brenda é sua observação de que “desde as suas origens, a RCC se debateu entre sua potencialidade carismática (autonomia dos leigos alicerçados na certeza de serem portadores também do sagrado, exercendo os dons e carismas do Espírito Santo) e a institucionalização do carisma”, tendo a RCC sucumbido “à rotinização e burocratização da sua capacidade de oposição ao sistema religioso estabelecido, tornando-se um movimento que vivencia o paradoxo entre a espontaneidade do carisma e a cooptação, mediante mecanismos de controle da instituição eclesial”[10].

Essa sua burocratização se revela na apologética postura do projeto Ofensiva Nacional que articula estratégias de expansão do movimento. Segundo Brenda, “tudo isso caracteriza a RCC como um movimento inclusivo, isto é, uma igreja dentro da Igreja; uma sociedade dentro da sociedade; um modelo de igreja que se basta a si mesma, levando o fiel a um encasulamento, a refugiar-se do mundo, no movimento. Além disso, a RCC, em nome da experiência do Espírito que diz possuir e da renovação que oferece, pretende ser, segundo algumas de suas lideranças, a expressão da totalidade da Igreja católica”[11].

Quando, finalmente, Brenda aborda as tendências da RCC, diz ela que é possível indicar o seguinte processo: a RCC procura 1) “revigorar a instituição eclesiástica da Igreja católica nos moldes de um catolicismo tradicional, constituindo-se no último suspiro do catolicismo romanizado nesta virada de milênio; 2) desencadear um processo sinérgico, mediante o uso do marketing religioso, que reforce um modelo de Igreja já centrada em si mesma, apologética, intolerante, não ecumênica, tradicionalista e centrípeta; 3) reforçar, por meio de sua mensagem religiosa, um catolicismo de temor e aflição, que fomente a confiança nas intervenções mágicas como solução de problemáticas históricas, fazendo da experiência religiosa uma recusa do mundo real; 4) sofrer um esgotamento em si mesma, devido aos seguintes sintomas: alto grau de burocratização; a possível disputa das lideranças para ocupar um espaço significativo na mídia; atrelamento de interesses do movimento com a política partidária; e abuso na manipulação da emoção, como recursos para atrair fregueses. Além do que, a RCC aposta na novidade ritual como recurso para atrair os fiéis. Mas esses fiéis poderão perceber que não há novidade na mensagem e poderão cansar-se do mesmo discurso. Portanto, é possível que o pentecostalismo católico esteja com seus dias contados e seja perene enquanto efêmero”[12].

A fala de Cecília Mariz foi sobre As diferenças e semelhanças de pentecostais e carismáticos brasileiros na sua luta contra o mal e o demônio. A conferencista estabeleceu “uma comparação quanto ao papel e o significado do demônio e da ‘libertação’ nas igrejas pentecostais clássicas (o caso da Assembleia de Deus) e nos grupos de oração carismática”. Discutiu “assim de forma comparativa o discurso sobre o demônio em cada um desses grupos e como se relaciona com questões outras tais como conversão, pecado, cura e ascensão social”[13].

Luiz Roberto Benedetti procurou oferecer um quadro teórico de reflexão sobre a experiência religiosa que teve por título: Entre a crença coletiva e a experiência individual: renascimento da religião. Diz Benedetti: “A minha intenção é apresentar um quadro interpretativo mais globalizante. Talvez tenha de terminar por uma pergunta: será possível uma interpretação globalizante da experiência religiosa hoje?”. E acrescenta: “O título desta conferência remete a uma pergunta fundamental que perpassará todas as reflexões: onde se radica o ‘social’, o coletivo da sociedade? Não será, no limite, a própria ideia de sociedade – esta entidade sacralizada pela teologia e pela ciência – a sociologia de Durkheim – que está em crise?”[14].

Benedetti percebe a religião cada vez mais como aparência fluida, desligada de um significado profundo, perdendo seu papel de valor totalizante da vida pessoal e social, crença coletiva e fonte de identidade. Assim a própria experiência religiosa é redefinida: tem caráter transitório, passageiro, superficial e efêmero.

Benedetti busca pistas em Durkheim: “Para ele a religião é essencialmente coletiva – sociedade sacralizada; na sociedade marcada pela divisão do trabalho esta se cultua através do culto à sacralidade do indivíduo, erigido como valor supremo. Não estaríamos atingindo o ápice deste processo? Isto é, o sagrado volatiliza-se das instituições, torna-se ‘disponível’ a qualquer ‘experiência’. O indivíduo o maneja a partir da situação social em que vive”[15].

 

 3.2. Abordagem teológica

No dia 8 a Experiência Religiosa foi analisada pelos teólogos Mário de França Miranda, Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma; José Comblin, Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain, Bélgica.; Carlos Mesters, Mestre em Ciências e Línguas Bíblicas pela École Biblique et Archéologique de Jerusalém.

À tarde, uma Mesa Redonda sobre Experiência e elaboração da Teologia foi constituída por Etienne Alfred Higuet, Doutor em Teologia; Walter Altmann, Doutor em Teologia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha e Fernando Altmeyer Júnior, Mestre em Teologia pela Universidade de Louvain, Bélgica.

A conferência de Mário de França Miranda teve como título A experiência do Espírito Santo. Abordagem teológica, na qual o teólogo jesuíta destacou a experiência do Espírito Santo na Bíblia, a ação do Espírito refletida na ação humana, o discernimento quanto à atuação do Espírito e, finalmente, a atualidade do tema.

Segundo Mário de França Miranda, a reflexão proposta, “por dizer respeito à atuação do Espírito Santo, implica necessariamente a própria identidade da Terceira Pessoa da Trindade e, portanto, o ser mesmo de Deus. Não nos deve admirar, por conseguinte, que nossas conclusões tenham nos deixado insatisfeitos (…) A realidade misteriosa de Deus, que não se deixa dispor ou manipular, esteve presente ao longo de todo nosso estudo. Nossas palavras nada desvelaram, apenas apontaram para uma realidade que as ultrapassa. Contudo, nem por isso deixam de ser significativas para nós, pois nos oferecem um horizonte de compreensão que pode nos ajudar quando nos confrontamos com certas questões atuais. Escolhemos três que nos parecem muito importantes: a promoção da vida, a inculturação da fé e o diálogo inter-religioso”[16].

José Comblin, tratou da Experiência espiritual, o seu conteúdo, o seu alcance, a partir de três perspectivas: a teologia do Espírito Santo de H. Mühlen, a teologia ocidental tradicional revisada por K. Rahner e a teologia mística de J. Maréchal. O teólogo belga expôs a perspectiva de cada um dos teólogos citados e, em seguida, fez algumas reflexões atualizando a discussão em relação, especialmente, às experiências do Espírito Santo vivenciadas hoje pelos cristãos[17].

Carlos Mesters, na sua fala sobre o Espírito Santo na Bíblia, que teve por título Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia, nos diz que “a palavra Espírito aparece na Bíblia desde o começo do livro do Gênesis (Gn 1,2) até o fim do Apocalipse (Ap 22,17). Ela nem sempre tem o mesmo significado”[18]. Por isso, em sua exposição, o conhecido biblista apresentou alguns critérios para entendermos melhor o alcance das afirmações do NT sobre o Espírito Santo.

“As afirmações do NT sobre a vida no Espírito dizem respeito sobretudo à experiência das comunidades”, continua Mesters. “Nestas afirmações podemos distinguir vários níveis ou enfoques:

1) Um primeiro nível é o da descrição ou da verbalização da experiência. Ele deixa transparecer uma experiência comunitária vivida num sabor de total novidade que revolucionou a vida das pessoas, mas também trouxe surpresas, muitos problemas e não saber.

2) Um segundo nível ou enfoque é o do recurso a imagens e símbolos do AT para descrever a ação do Espírito. Aqui transparece o esforço dos primeiros cristãos para compreender a novidade da vida no Espírito a partir das categorias familiares da história do povo de Deus.

3) Um terceiro nível é o dos conselhos de orientação prática para saber como viver segundo o Espírito (Gl 5,16). Ele revela o esforço de descobrir o rumo do Espírito na vida das comunidades e de, assim poder discernir os espíritos, pois nem tudo que parecia ser do espírito era do Espírito de Jesus.

4) Finalmente, um quarto nível é o das afirmações e ensinamentos, tanto de Jesus como dos cristãos, sobre a origem ou a procedência do Espírito. É aqui que aparece a dimensão trinitária.

Na maioria dos textos, esses quatro níveis ou enfoques existem misturados entre si. Os três primeiros formam as três partes desta exposição, o quarto será a sua breve conclusão”[19].

Já na parte da tarde do dia 8, na Mesa Redonda sobre Experiência e elaboração da Teologia, Etienne Alfred Higuet falou sobre o processo que liga a experiência religiosa e a teologia a partir dos teólogos protestantes Schleiermacher, Tillich e Siegwalt[20].

Walter Altmann, teólogo luterano e presidente do CLAI (Conselho Latino-Americano das Igrejas), abordou o tema Experiência e teologia na tradição protestante, no qual destacou o seguinte: “O Protestantismo tem inerente à sua identidade, desde suas origens, uma tensão, que podíamos classificar de dialética, entre experiência e teologia (ou experiência e doutrina). Essa tensão é salutar e lhe dá vitalidade. Ainda assim, em sua trajetória histórica o Protestantismo tem sido suscetível à tentação quase que permanente de dissolver essa tensão, seja em favor da dimensão doutrinal, seja em favor da dimensão experiencial. Contudo, a memória de sua identidade mais profunda suscita a reação do polo oposto e, em seus melhores momentos, o restabelecimento da tensão dialética original”. E mais adiante observa: “Em um dos anos mais decisivos da Reforma, Lutero formulou uma tese interessante e que nos soa sumamente atual: ‘A experiência faz o teólogo'”[21].

Por último, Fernando Altmeyer Júnior abordou o tema da experiência religiosa e os meios de comunicação de massa, sob o título de Experiência e elaboração da Teologia: ver como somos vistos. Altmeyer assim precisou seu tema: “Minha contribuição nesta comunicação sobre ‘Experiência e elaboração da teologia’ pretende verificar, estudar e refletir sobre a comunicação social e o fenômeno pentecostal, de modo particular na vertente carismática. Verificaremos o fenômeno carismático-pentecostal e este seu BOOM na mídia brasileira, nos últimos três anos, com destaque para os recortes de jornais e revistas da grande imprensa da capital paulistana. Tomamos então matérias e manchetes publicadas pela grande imprensa escrita durante os anos de 1996, 1997 e 1998 e aparições na grande mídia televisiva neste ano de 1998”[22].

Altmeyer explicou em sua fala que “a revelação de Deus e a leitura da presença do Espírito Santo em movimentos sociais, eclesiais e populares, passa hoje inevitavelmente pelos meios de comunicação de massa. (…) Este grande fenômeno mundial e o próprio movimento carismático católico e seus líderes espirituais são vistos e lidos pelas Igrejas cristãs e pela sociedade civil por meio da imprensa, e esta faz sua leitura a partir de determinadas chaves jornalísticas e empresariais. Nem sempre ou raramente teológicas ou religiosas. (…) Quero me perguntar se esta ‘nova chave hermenêutica’ incide e de que forma no trabalho teológico, pois sabemos que ela modifica e polariza o próprio fenômeno, sua audiência coletiva e os próprios atores pentecostais. Como os teólogos profissionais levam em conta esta chave de leitura contemporânea? Vemos como somos vistos? Os carismáticos são entendidos, captados, ouvidos e vistos de forma transparente ou deformada, conformada ou adequada a que recorte epistemológico? No trabalho metodológico da teologia acadêmica e ecumênica que lugar devem ocupar as leituras da mídia impressa e televisiva? Seria esta uma nova tendência que está a aflorar no campo do trabalho teológico? Afinal, é, de fato, oportuno comunicar em teologia?”[23].

 

3.3. Abordagem prático-pastoral

No dia 09.07.1998 a abordagem do tema foi prático-pastoral. Na parte da manhã, guiados pelo lema Experiência religiosa e ação comunitária, falaram José Bittencourt Filho, Mestre em Teologia e Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP; Alberto Antoniazzi, Doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Milão, Itália; Cleto Caliman, Doutor em Teologia.

À tarde, uma Mesa Redonda sobre Experiência religiosa e ensino religioso nas escolas teve como participantes Carmencita Seffrin, Mestra em Teologia pela Universidade Santa Úrsula, RJ; Lurdes Caron, Mestra em Teologia e Risoleta Moreira Boscadin, especialista em Pedagogia para o Ensino Religioso.

José Bittencourt Filho, pastor da igreja Presbiteriana Unida do Brasil e editor da revista Tempo e Presença, abordou a questão do posicionamento do protestantismo histórico brasileiro quanto aos pentecostalismos sob o título de Os caçadores da identidade perdida: o protestantismo histórico brasileiro às voltas com os pentecostalismos. Assim disse José Bittencourt: “Intuímos que a melhor maneira de fazê-lo seria efetuar um apanhado da trajetória do Protestantismo tradicional brasileiro, sobremodo naqueles aspectos que dizem respeito à consolidação de sua identidade. Buscamos salientar as marchas e contramarchas desse processo, no intuito de construir uma perspectiva a partir de episódios marcantes que tornaram-se decisivos para conferir o perfil atual das Igrejas que aqui chegaram por meio de missões norte-americanas, na segunda metade do século passado”[24].

Sua exposição detalhou, numa primeira parte, “a aventura que consistiu a formulação de um projeto eclesiológico autóctone e comprometido para o assim chamado Protestantismo de Missão após o esgotamento do projeto original trazido na mala dos missionários”. Como o campo religioso brasileiro vive extraordinária efervescência, exercendo nele os pentecostalismos de todos os matizes um papel fundamental, “a título de cotejo, expusemos em seguida um interpretação do estado atual dos pentecostalismos. Isto posto encaminhamos algumas notas conclusivas que retomam a temática principal, sem deixar de, nas entrelinhas, arriscar algumas estimativas para o futuro próximo”[25].

Alberto Antoniazzi, Diretor do Instituto Nacional de Pastoral da CNBB e Coordenador do Curso de Teologia da Arquidiocese de Belo Horizonte e Cleto Caliman, Diretor do Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) de Belo Horizonte discorreram, em seguida, sobre A pastoral católica: do primado da instituição ao primado da pessoa. Os dois teólogos organizaram sua exposição em três passos. Em suas palavras:

1) “Procuraremos caracterizar a ‘pastoral tradicional’, que é basicamente a pastoral pós-tridentina, especialmente na forma que assumiu no século que separa o Vaticano I do Vaticano II.

2) Tentaremos compreender de forma mais matizada a atual situação pastoral, caracterizada pela presença contemporânea dos dois pólos de que se falava no início: a herança do catolicismo tradicional e a experiência religiosa do indivíduo ‘moderno’. Para isso, faremos referência a uma pesquisa recente e inédita sobre a presença da Igreja Católica na Arquidiocese de Belo Horizonte.

3) Finalmente, apresentaremos o esboço de uma pastoral que tenha como eixo – hoje e amanhã – o primado da pessoa humana”[26].

Isto porque, segundo os conferencistas, “o perfil da pastoral católica hoje vacila entre dois eixos. Por um lado, está a continuidade – às vezes clara, outras latente – do projeto pastoral tradicional, embutido em tantas formas eclesiais onde a instituição é o eixo e o clero o seu promotor. Por outro lado, está a ruptura provocada pelos movimentos históricos ligados ao projeto da modernidade. Aí encontram-se muitas iniciativas pastorais com a marca do indivíduo, constituído juiz supremo nas coisas de religião, que instituem o caos pastoral”.

Segundo os dois teólogos, esses dois polos, por fazerem parte da realidade eclesial, não podem ser simplesmente abolidos. “O que um projeto pastoral pode e deve empreender consiste em fazer uma ponte entre os dois pilares, correlacionando-os devidamente, de modo a cimentar um caminho possível entre ambos. Entre o primado da instituição e o do indivíduo, o caminho é a afirmação do primado da pessoa como sujeito na Igreja”[27].

Na tarde do dia 9, na Mesa Redonda sobre Experiência religiosa e ensino religioso nas escolas, Carmencita Seffrin, Coordenadora do Ensino Religioso nas Escolas Municipais da cidade do Rio de Janeiro e Membro do Fórum Nacional de Ensino Religioso, relatou três experiências religiosas, duas em estabelecimentos de ensino e uma de uma professora, todas na cidade do Rio de Janeiro, que deram suporte a uma reflexão sobre o sentido do “conhecimento como parte da experiência e fundamental na experiência religiosa”[28]. Esta reflexão tem sua urgência face aos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso que têm gerado muita controvérsia e perplexidade entre autoridades religiosas e docentes engajados no ensino escolar.

Lurdes Caron, Assessora da CNBB no Setor de Ensino Religioso, relatou, em seguida, uma “experiência religiosa vivenciada entre representantes de Igrejas e professores, envolvidos numa proposta ecumênica de educação, entre os anos que vão de 1970 a 1996” em Santa Catarina[29]. Segundo a Profa. Lurdes “fazer experiência religiosa numa proposta ecumênica de educação religiosa escolar é fazer a experiência de um ‘Deus grande, de um Deus maior, de um Deus infinito’. Experiência religiosa numa proposta ecumênica exige maturidade e identidade de fé. Exige diálogo, confiança, coragem, sinceridade, humildade e profunda espiritualidade. Exige mística[30].

Por fim, Risoleta Moreira Boscadin, Coordenadora da Associação Interconfessional de Curitiba (ASSINTEC), que assessora o Ensino Religioso nas Escolas Estaduais, falou da Experiência religiosa a partir do fenômeno amoroso. Seu relato englobou desde as dificuldades e possibilidades da experiência religiosa na escola, até as várias manifestações do “ser religioso” e suas características do ponto de vista do comportamento das pessoas. Comportamentos que ela caracterizou como de pessoas religiosas por tradição mas não praticantes, até pessoas praticantes de alguma tradição religiosa porém imaturas na fé, passando pelo tipo religioso eufórico e pelo tipo religioso coerente engajado. Daí que, segundo Risoleta, “a escola como espaço aberto a todos apresenta em seu bojo esses tipos de manifestações, por isso é possível refletir a experiência religiosa a partir do fenômeno amoroso, em uma abordagem pedagógica”[31].

 

3.4. Horizontes e perspectivas

Por fim, chegamos ao final da maratona, no dia 10, com a conferência conclusiva de Clodovis Boff, Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain, Bélgica, e um dos mais destacados teólogos da libertação da América Latina. Sua tese de doutorado, Teologia e Prática: Teologia do Político e suas Mediações, publicada pela Vozes em 1978 e traduzida em alemão, francês e inglês, é um marco dos mais importantes no desenvolvimento da epistemologia teológica dos últimos anos. Clodovis é atualmente professor no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis/RJ, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no Instituto Filosófico-Teológico Paulo VI de Nova Iguaçu/RJ e na Pontifícia Faculdade “Marianum” de Roma.

A tarefa confiada a Clodovis foi a de traçar A perspectiva da experiência religiosa para o novo milênio. Em sua palestra, proferida na manhã do dia 10.07.1998, o teólogo considerou válida a seguinte perspectiva: “Em vez de nos determos em problemáticas e enganosas prospecções futuristas, é melhor falarmos nas exigências da experiência da fé para o próximo milênio (…) Elencamos a seguir cinco blocos de exigências, ou cinco linhas de força espirituais, ou ainda cinco campos de tarefas necessárias e oportunas em vista da experiência religiosa (= ER) no próximo milênio”[32].

1. Reativar e aprofundar a experiência cristã originária
“Sente-se uma demanda aguda e crescente por um Cristianismo experiencial e vivencial. Não se quer mais saber de doutrinarismo, de juridicismo ou de moralismo, ainda que social. Há, pois, o imperativo de ‘volta às fontes’ do Cristianismo. Ora, suas fontes vivas são as fontes espirituais”[33].

2. Cultivar formas culturais novas de experiência religiosa
“Os traços dessa nova espiritualidade, adequada ao novo milênio, com suas virtudes e seus riscos, parecem ser os seguintes:
. Uma ER mais cotidiana, e menos extraordinária
. Uma ER mais acessível, e menos reservada a uma elite
. Uma ER mais individual, e menos padronizada
. Uma ER mais aberta ao diálogo, e menos confessionalista
. Uma ER mais holística, e menos parcializada”[34].

3. Recolocar a partir da experiência religiosa a questão do compromisso social
“Seja qual for a corrente de espiritualidade que se professe livremente dentro do pluralismo católico (libertadora ou carismática, tradicional ou moderna), uma coisa é certa: o cristão e a cristã têm de se haver doravante com a ‘questão social’. Por outras, a ER cristã do Terceiro Milênio estará necessariamente conectada com o tema dos excluídos. Ela terá de se posicionar diante do dramático desafio das massas excluídas”[35].

4. Renovar a eclesiologia em vista da experiência religiosa
“Se o grande desafio para a Igreja católica é crescer em espiritualidade, então questões como as da disciplina, organização e poder passam para a segunda, terceira ou enésima categoria, como as que esquentam hoje o debate intra-eclesial, especialmente na mídia, como as relativas ao celibato dos padres, ao sacerdócio das mulheres, à indissolubilidade do matrimônio, à comunhão dos divorciados, ao aborto, ao lugar dos gays na Igreja, à participação das bases no poder de decisão, à designação dos bispos etc. Não que essas não sejam questões importantes e por vezes dramáticas. Mas só podem ser corretamente equacionadas se forem tratadas a partir do ‘único necessário’, do primado do Reino e da justiça de Deus (cf. Mt 7,33: TEB)”. Isto significa:
. redescobrir a dimensão mistérica da Igreja
. aprofundar a dimensão comunional da Igreja a partir da comunhão trinitária. Portanto, rever a eclesiologia com o olho na ER significa também dar preferência à Igreja-comunidade sobre a Igreja-sociedade, ao ‘eclesial’ sobre o ‘eclesiástico’
. flexibilizar as estruturas eclesiais. Renovar a Igreja a partir e em função da ER implica em ‘aliviar’ suas estruturas de seu peso histórico e canônico. É, em suma, tornar as mediações eclesiais mais transparentes ao seu conteúdo nuclear, que é justamente o de ser comunidade graça e amor”[36].

5. Exigências teológico-pastorais
“Para a entrada do próximo milênio, sobe a demanda por uma reflexão teológica mais substantiva nas seguintes linhas”[37]:
. na linha da teologia espiritual
. na linha da teologia do Espírito
. na linha da teologia da Trindade

“Portanto, os três grandes temas teológicos do futuro serão, de modo interconectado, a Mística, o Espírito e o Mistério trinitário. Dos três, é a Pneumatologia que parece estar emergindo com vigor. Se o século XX foi chamado o ‘século da Igreja’, talvez o século XXI venha a ser o ‘século do Espírito'”[38].

> Este artigo foi publicado inicialmente em Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 10, p. 47-61, 1998.

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[1]. A SOTER “teve sua fundação em um Encontro de Teologia realizado em Vila Fátima, Justinópolis, município de Ribeirão das Neves nos arredores de Belo Horizonte – MG, de 25 a 28 de julho 1985. Para além das formalidades jurídicas registradas em cartório no dia 28 de setembro de 1985, todos os participantes deste Encontro são considerados “sócios fundadores”. Os Conselheiros Regionais da SOTER foram introduzidos na Diretoria a partir de 1987. O mandato da Diretoria foi inicialmente de dois anos. A partir de 1991 passou a ser de três anos, o que é atualmente vigente. O nome de fantasia “SOTER”, embora já utilizando anteriormente, só foi oficializado em 1990, substituindo a sigla S.T.C.R.” explica o Boletim n. 24.

[2]. Os Boletins da SOTER são regularmente distribuídos aos sócios(as) em forma impressa.

[3]. Este libreto apareceu também como Boletim n. 23.

[4]. O endereço da SOTER mudava para o local de onde provinha a diretoria. Agora é fixo em Belo Horizonte, na PUC-Minas.

[5]. MARIANO, R. Neopentecostalismo: novo modo de ser pentecostal. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito. São Paulo: SOTER/Paulinas, 1998, p. 35.

[6]. Idem, ibidem, p. 35-36.

[7]. CARRANZA, B. Renovação Carismática Católica: Origens, Mudanças e Tendências. Em DOS ANJOS,  M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 39.

[8]. O padre Eduardo Dougherty é sacerdote jesuíta, norte-americano, nascido em 1941. Veio ao Brasil em 1966. Foi para o Canadá, em seguida, para fazer seus estudos teológicos em Toronto, tendo, nesta época, sua experiência de “Batismo no Espírito”, em Michigan, EUA, tornando-se carismático. De volta ao Brasil em 1969 passa a colaborar com o Pe. Haroldo Rahm, também jesuíta e carismático, no centro Kennedy, em Campinas, SP.

[9]. CARRANZA, B. o. c., p. 43.

[10]. Idem, ibidem, p. 48.

[11]. Idem, ibidem, p. 49.

[12]. Idem, ibidem, p. 58-59.

[13]. SOTER, Boletim n. 23.

[14]. BENEDETTI, L. R. Entre a crença coletiva e a experiência individual: renascimento da religião. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 62.

[15]. SOTER, Boletim n. 23.

[16]. DE FRANÇA MIRANDA, M. A experiência do Espírito Santo. Abordagem teológica. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 133.

[17]. Cf. COMBLIN, J. Experiência espiritual, o seu conteúdo, o seu alcance. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 139-148.

[18]. MESTERS, C. Descobrir e discernir o rumo do Espírito. Uma reflexão a partir da Bíblia. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 81.

[19]. Idem, ibidem, p. 81-82.

[20]. Cf. HIGUET, E. A. A experiência religiosa no método teológico. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 149-163.

[21]. ALTMANN, W. Experiência e Teologia na tradição protestante. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 165.

[22]. ALTMEYER JÚNIOR, F. Experiência e elaboração da teologia: ver como somos vistos. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 177.

[23]. Idem, ibidem, p. 176.

[24]. BITTENCOURT FILHO, J. Os caçadores da identidade perdida: o protestantismo histórico brasileiro às voltas com os pentecostalismos. Em DOS ANJOS, M. F., (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 211.

[25]. Idem, ibidem, p. 212.

[26]. CALIMAN, C. ; ANTONIAZZI, A. A Pastoral Católica: do primado da instituição ao primado da pessoa. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 230.

[27]. Idem, ibidem, p. 229.

[28]. SEFFRIN, C. Experiência religiosa, uma experiência de sentido. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 289.

[29]. CARON, L. Experiência religiosa numa proposta ecumênica de educação religiosa escolar. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 261.

[30]. Idem, ibidem, p. 273-274.

[31]. SOTER, Boletim n. 23.

[32]. BOFF, C. Perspectivas da experiência religiosa para o novo milênio. Em DOS ANJOS, M. F. (org.) Sob o Fogo do Espírito, p. 325-326.

[33]. Idem, ibidem, p. 326.

[34]. Idem, ibidem, p. 328-334.

[35]. Idem, ibidem, p. 334.

[36]. Idem, ibidem, p. 339-341.

[37]. Idem, ibidem, p. 342.

[38]. Idem, ibidem, p. 342.


SOTER ’96: Teologia e novos paradigmas

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SOTER ’96: Teologia e novos paradigmas

 

leitura: 9 min

Belo Horizonte, 8 a 12 de julho de 1996: neste local e data um pouco mais de 100 teólogos e teólogas de todo o Brasil encontraram-se para mais um Congresso da SOTER, que teve como tema básico Teologia e Novos Paradigmas.

A SOTER, Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, é uma sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em julho de 1985 por um grupo de teólogos e teólogas católicos de várias regiões do Brasil.

Seus objetivos são incentivar e apoiar o ensino e a pesquisa no campo da Teologia e das Ciências da Religião; divulgar os resultados da pesquisa; promover o serviço dos teólogos a comunidades e organismos eclesiais na perspectiva da opção preferencial pelos pobres; facilitar a comunicação e a cooperação entre os sócios e defender sua liberdade de pesquisa, segundo o art.30 de seu Estatuto.

 

Interfaces da Teologia

No dia 8, à noite, após as apresentações, foi feita a Conferência de Abertura pelo presidente da SOTER, Prof. Dr. Márcio Fabri dos Anjos. Márcio tratou da relevância do tema escolhido para o congresso “Teologia e Novos Paradigmas”. Em seguida foi lançado o livro Teologia e Novos Paradigmas. São Paulo: Loyola/SOTER, 1996, escrito por vários autores, que teve a função de orientar, tanto quanto possível, os participantes do congresso no tocante à temática em discussão. Um alegre coquetel, animado pelo reencontro de tantos colegas, encerrou este primeiro dia.

 

A emergência de novos paradigmas nas ciências

No dia 9, as conferências, debates e mesas redondas giraram em torno de um tema chave: a emergência de novos paradigmas nas ciências.

O Prof. Dr. Manfredo Araújo de Oliveira, da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza – CE, foi o primeiro a falar sobre a Emergência de novos paradigmas científicos na sociedade contemporânea. Manfredo destacou especialmente três eixos dominantes nas ciências atuais: a visão processual da mecânica quântica, a integração de todos os seres e a visão idealista da realidade que aí impera.

Em seguida o Prof. Dr. Hugo Assmann, da Universidade Metodista de Piracicaba (SP), abordou a questão das Novas epistemologias científicas e teologia, sublinhando o forte neoplatonismo presente nas biociências que planejam, até mesmo, um corpo descartável para o homem futuro, puro cérebro dinâmico, numa identificação da vida com o conhecimento.

Após estas duas palestras, dois debatedores teceram considerações sobre as ideias apresentadas, antes do plenário ampliar a discussão. Aqui, os dois debatedores foram o Prof. Eduardo Rodrigues Cruz (PUC-SP) e Rogério Valle, do CERIS, RJ.

Na parte da tarde aconteceu uma mesa redonda, da qual participaram José Comblin, Paulo Fernando C. Andrade e Jung Mo Sung. Esta mesa redonda foi seguida de debates, ampliando a participação para todo o plenário.

Ainda nesta tarde do 20 dia, aconteceu o simpósio, seguido de debates, sobre Diferenças de gênero e paradigmas, com as apresentações de Ana M. Tepedino, Luiza Tomita e Zilda Fernandes Ribeiro. Destaque para a fala de Luiza Tomita que, recusando a categoria de “Teologia feminina”, fez um rápido histórico da Teologia feminista em geral, nos USA e na Teologia da Libertação. Ana M. Tepedino, por sua vez, analisou o pensamento de Yvone Gebara (antropologia filosófica) e de Tânia Mara na sua leitura de Oseias feita na RIBLA.

 

Emergência de novos paradigmas na Teologia

O terceiro dia do congresso teve como tema orientador a Emergência de novos paradigmas na Teologia.

O Prof. Dr. Carlos Palácio (C.E.S. da Companhia de Jesus, Belo Horizonte) falou sobre as Incidências de novos paradigmas na sistematização teológica, onde defendeu uma teologia sem adjetivos, enquanto que a Profa. Dra. Maria Clara Bingemer, da PUC-RJ, abordou a Caracterização teológica da mística cristã nos tempos atuais chamando a atenção para três aspectos: o caminho da experiência do outro (corporeidade da mulher e conhecimento no sentido bíblico), o caminho da religião do outro (islamismo, judaísmo, cristianismo) e o caminho da pobreza do outro (mística e política na TdL), para concluir que a experiência mística cristã é alteridade e relação.

Desta feita os debatedores foram o Prof. Dr. Antônio Aparecido da Silva (ITESP; ITM – S. Paulo) e o Prof. Dr. José Antônio de Almeida, do Instituto Paulo VI, de Londrina – PR. Almeida apresentou três cenários futuros para a humanidade, falou de cinco desafios e de quatro modos de fazer teologia. Já Antônio Aparecido (Toninho) questionou o humanismo das novas ciências e trabalhou o tema dos novos paradigmas à luz da inculturação.

Comandada pelos Profs. Alberto Antoniazzi, Cleto Caliman e Rogério Valle aconteceu, às 14 hs. uma mesa redonda sobre Cidade, Teologia e Evangelização. As questões que mais se destacaram nesta mesa redonda foram: a pesquisa sobre a Igreja na cidade que está sendo feita pelo CERIS (Rogério), a necessidade de retomar o diálogo com o catolicismo popular e de passar a uma pastoral centrada no sujeito, invertendo Trento (Antoniazzi) e a constatação da inadequação entre o modelo tradicional de Igreja e a cidade moderna, levando ao desafio de refazer o caminho da experiência pessoal da fé, de observar as outras formas de organização da cidade e de agilizar a comunicação (Cleto).

Simultaneamente acontecia outra mesa redonda com os Profs. Pedro Ribeiro de Oliveira, Antonio G. Mendonça e José Queiroz sobre Pós-graduação em Teologia e Ciências da Religião: Questões e Perspectivas

No final deste dia participamos de uma grande celebração e de uma confraternização em volta de um bom churrasco.

 

Prática da Teologia em novos paradigmas

No dia 11, o tema chave foi: Prática da Teologia em novos paradigmas sendo o primeiro conferencista o Prof. Dr. Alfonso García Rubio, da PUC-RJ. Rubio começou sua fala com a questão: A TdL deixou de ser adequada aos tempos atuais? Para distinguir entre sua superação em relação a determinados temas e sua validade em relação a outros, com o alargamento de horizontes. Rubio, naquela que foi a mais animada palestra de todo o congresso, concluiu pela necessidade de um trabalho coletivo dos teólogos, de mediações com as outras ciências e de interdisciplinaridade.

Na segunda palestra desta manhã do dia 11 o Prof. Dr. Benedito Ferraro, da FTCR da PUC-Campinas, tratou do tema Teologia em tempos de crise, com ênfase em três itens: Teologia e exclusão; opção pelos pobres/excluídos como chave hermenêutica da reflexão teológica e inculturação, Teologia e Magistério. Ferraro concluiu sua intervenção sublinhando a função do teólogo: traduzir a revelação para as várias culturas, pois todos os povos e culturas têm direito de expressar suas vivências de fé.

A seguir apresentaram-se os debatedores: Prof. Dr. Luiz Carlos Susin, da PUC-RS, e o Prof. Dr. Antônio Moser, do Instituto Franciscano de Pastoral, Petrópolis, RJ. Seguiu-se uma participação do plenário nos debates.

A parte da tarde foi reservada para mais de uma dezena de comunicações científicas previamente inscritas. Algumas destas comunicações: Luiz João Baraúna: Atuação do Brasil no Concílio Vaticano II; Mariano Foralosso: Teologia Jovem: Monografias de Bacharelado 1990-1995; Ênio José da Costa Brito: Novos Paradigmas para a Interpretação do Período Colonial; Arnaldo Lima Dias: Visão de Deus de uma ‘Ikerere’ (Mãe de Santo); Rudolf von Sinner: Projetos da Comissão ‘Fé e Constituição’, do Conselho Mundial de Igrejas

No final do dia, a SOTER instalou-se em Assembleia para definir o próximo congresso. Decidiu-se pela prorrogação do mandato da atual diretoria, pela realização do próximo congresso só em 1998 (pois muitos teólogos estarão em julho no Intereclesial de 97) e foram apresentados os temas preferenciais dos presentes para o Congresso de 98. O mais votado foi Teologia e experiência religiosa, seguido por Diálogo inter-religioso (com ênfase no messianismo e no fundamentalismo) e Cristologia e Pluralismo. Compete à diretoria a escolha do tema.

 

Avaliação do Congresso

Último dia, manhã do dia 12: quatro intervenções para avaliação final do que fora debatido. Fizeram as avaliações os Profs. João Batista Libânio (C.E.S. da Companhia de Jesus, Belo Horizonte), Maria da Conceição Correa Pinto (PUC-RJ), Airton José da Silva (CEARP de Ribeirão Preto e FTCR da PUC-Campinas), José Oscar Beozzo (CEHILA).

Finalmente falou o representante da Comissão de Doutrina da CNBB, Dom Dadeus Grings (Bispo de São João da Boa Vista), incentivando os teólogos a produzir mais e, com espírito fraterno, a colocar suas ideias em discussão. O almoço, às 12h00, encerrou o congresso. Congresso extremamente proveitoso, denso nas discussões e ousado na temática, com mais de 40 intervenções programadas e realizadas.

 

A publicação

Um livro com as palestras foi publicado, em 1997, pela Loyola/ SOTER. Teologia aberta ao futuro, organizado por Márcio Fabri dos Anjos, que faz a introdução, traz as intervenções de:

. Márcio Fabri dos Anjos, Interfaces da Teologia
. Manfredo Araújo de Oliveira, A Mudança de Paradigma nas Ciências Contemporâneas
. Hugo Assmann, Paradigmas ou Cenários Epistemológicos Complexos?
. Eduardo R. Cruz, Novas Epistemologias Científicas e Teologia
. Carlos Palácio, Novos Paradigmas ou Fim de uma Era Teológica?
. Maria Clara Lucchetti Bingemer, A Alteridade e seus Caminhos
. Luiz Carlos Susin, “Gloria Maior Deus Humilis”
. Airton José da Silva, A Expulsão do Paraíso. Sobre a Teologia e Novos Paradigmas
. Antonio José de Almeida, Os Desafios dos Novos Paradigmas para a Prática Teológica
. Luiza E. Tomita, A Teologia Feminista no Contexto de Novos Paradigmas
. Margarida Luiza Ribeiro Brandão, Gênero e Experiência das Mulheres
. Benedito Ferraro, Teologia em Tempos de Crise
. José Comblin, Nota sobre as Tarefas de uma Teologia da Libertação no Final do Século XX
. Hugo Assmann, Ecoteologia: um Ponto Cego do Pensamento Cristão?
. Antônio Moser, Mudança de Paradigmas e Crises na Teologia
. Alfonso García Rubio, Prática da Teologia em Novos Paradigmas.

Na última capa do livro há uma boa síntese do que se debateu na SOTER ’96 e se publicou nesta obra. Nas palavras de Márcio Fabri dos Anjos: “Na organização desta obra, os autores e autoras foram provocados para a elaboração de seus estudos por meio de três grupos de questões: a emergência de ‘novos paradigmas’ nas ciências, a emergência de ‘novos paradigmas’ na teologia e a prática da teologia segundo ‘novos paradigmas’.

Tentou-se levar em conta as raízes interdisciplinares da elaboração teológica, na convicção de que a questão dos paradigmas perpassa não só pelas formas de interpretar a vida e produzir ciência, mas pela própria forma de viver.

Como resultado dessa postura, os diversos temas analisados proporcionam uma visão das inquietações que movem a produção teológica.

Não passe despercebido que este volume expressa ainda o esforço conjunto de busca do diálogo e da participação em teologia. Assim, a virada de milênio nos encontra unidos a sondar os sinais dos tempos como teólogos e teólogas desafiados, mas não perplexos; sem respostas acabadas, mas com muitas expressões de uma construção em andamento”.

> Este artigo foi publicado inicialmente em Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 6, p. 47-50, 1996.

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Autores judeus antigos

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Quem somos nós? Falam autores judeus antigos

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leitura: 17 min

“Habitando um número considerável de judeus em nosso território (…) e desejoso de lhes ser agradável (…), nós decidimos mandar traduzir vossa Lei do hebraico para o grego, para termos estes livros também em nossa biblioteca, com os outros ‘livros do rei'” (O rei Ptolomeu II Filadelfo ao sumo sacerdote Eleazar, segundo a Carta de Aristeias a Filócrates, séc. II a.C.).

 

A partir do século III a.C., com a assimilação da língua e dos gêneros literários gregos, vários judeus tentam explicar aos seus conterrâneos e aos gregos cultos, especialmente de Alexandria, que o judaísmo é uma religião respeitável e recomendável pela sua antiguidade e pelos feitos de seus líderes.

Escrevendo em grego, e em gêneros literários gregos – da historiografia à filosofia – autores como Aristeias, Artápano, Teodoto, Jasão de Cirene e outros nos legam uma literatura de apologia do judaísmo, mas que é, ao mesmo tempo, excelente testemunho da resistência e da submissão desse povo e dessa cultura ao dominador grego.

Neste artigo, proponho a abordagem, em um primeiro momento, desta literatura de um modo geral e, em seguida, da Carta de Aristeias a Filócrates e de alguns historiadores como Demétrio, Eupólemo, o Samaritano anônimo, Artápano e o Pseudo-Hecateu.

Naturalmente esta é apenas uma amostragem, mas creio que bastante significativa, do processo de helenização que avança inexoravelmente entre os judeus durante os últimos três séculos antes da era cristã.

 

1. Literatura judaica em grego

Muitos autores judeus da época helenística escrevem em grego. Seu objetivo é, às vezes, o de explicar aos seus conterrâneos da diáspora, que falam grego ou leem apenas o grego, a validade e a importância dos antigos preceitos e da Lei judaica. Outras vezes, eles escrevem também para demonstrar aos gregos, com os quais convivem, que o judaísmo tem práticas bem fundamentadas, antigas e de muito valor.

Temos preservados, quase sempre só fragmentariamente, textos dos mais variados gêneros. Desde a tradução da Torá do hebraico para o grego, passando pela historiografia, carta, poesia, teatro até a filosofia.

É impossível sabermos até onde estes textos sobreviventes representam a totalidade da produção judaica em língua grega. Mas, mesmo assim, seu valor permanece, por serem os únicos textos deste tipo que possuímos[1].

O primeiro texto que chama a nossa atenção é a mais antiga tradução da Bíblia hebraica para o grego, a chamada LXX[2].

A LXX não é apenas uma tradução. É uma releitura da Bíblia com características específicas. Eis dois exemplos desta releitura:

. Em Ex 3, 14ss Deus não é Iahweh, mas o Senhor (Kýrios): faz-se um esforço para deslocar Deus de um contexto local e particular, o do povo judeu, para uma dimensão universal, a realidade do mundo após Alexandre Magno.

. No início do Sl 18 fala-se de Iahweh como rocha, fortaleza, abrigo, escudo, torre Os LXX traduzem isto em conceitos mais abstratos, não semíticos: Iahweh é apoio, refúgio, protetor etc, conceitos aceitáveis para a mentalidade grega.

Estritamente falando, a LXX é só o Pentateuco, que é traduzido por volta de 285 a.C. ou pouco depois. Os outros livros são traduzidos posteriormente, e para a maioria não temos datas exatas.

A Carta de Aristeias a Filócrates, do séc. II a.C., diz que 72 tradutores, enviados pelo sumo sacerdote de Jerusalém, vertem a Torá para o grego em 72 dias, a pedido do rei Ptolomeu II Filadelfo (285-247 a.C.).

Esta história de 72 tradutores é mera ficção, mas hoje sabemos que:

a) o rei Ptolomeu II precisa conhecer a lei da comunidade judaica para administrá-la
b) Alexandria é um centro onde há grande curiosidade intelectual
c) além do que, os judeus de Alexandria, que falam só o grego, precisam conhecer as suas leis, para a organização social da comunidade e para atender às necessidades litúrgicas locais.

Outro setor extremamente interessante é o da historiografia: Demétrio, Eupólemo, o Samaritano anônimo, Artápano, Cleodemo Malco, Aristeias, o Exegeta, o Pseudo-Hecateu e 2 Macabeus (Jasão de Cirene) são os principais representantes deste gênero[3].

Estes são os primeiros autores judeus do período helenístico que escrevem em grego. São geralmente ou da Palestina ou do Egito e cobrem um período que vai do século III a.C. ao século I a.C.

Neles as tradições religiosas judaicas e gentias são mixadas e fundidas: eles manifestam várias características da época helenística e, por isso, são preciosos para a pesquisa sobre a helenização do judaísmo. Eles iluminam o processo social pelo qual o primeiro grupo judeu se acomoda e se adapta à cultura dominante grega na qual ele vive.

Estes autores escrevem sobre sua herança judaica, mas usando os novos gêneros da cultura em que vivem, e mostram confiança nesta cultura.

São importantes também porque fazem interpretações midrashicas da tradição bíblica e iluminam os modos de leitura bíblica tanto na Palestina quanto na diáspora.

A maioria destes textos é preservada, em primeiro lugar, pelo escritor Alexandre Poliístor, de Mileto, que, em Roma, na metade do séc. I a.C., coleta materiais de várias proveniências e autores, inclusive sobre os judeus e de autores judeus. Como falta a Alexandre Poliístor originalidade no modo de tratar seus materiais, suas fontes estão bem preservadas.

Entre suas muitas compilações, Alexandre Poliístor escreve Perì Ioudaíôn, “Sobre os judeus”, onde cita os autores judeus helenistas.

Da obra de Alexandre Poliístor temos apenas fragmentos, citados por Eusébio na sua Praeparatio Evangelica IX, 17-39, e alguns por Clemente de Alexandria, em Stromata[4].

C. R. Holladay observa que Eusébio cita tais fragmentos “porque eles foram preservados por um autor gentio que tornou-se um valioso testemunho para a antiguidade do judaísmo e, por extensão, para a credibilidade da cristandade”[5].

Destes historiadores tratarei ainda neste artigo, apenas deixando de lado Cleodemo Malco – samaritano do século II a.C. que num único fragmento trata de Abraão e sua descendência – e Aristeias, o Exegeta, talvez do Egito, no século II a.C., e que trabalha a história de Jó[6].

Na área da poesia conhecemos dois autores interessantes: Fílon épico e Teodoto.

Fílon, poeta épico, deve ser situado entre os séculos II e I a.C. em Jerusalém. De seu poema “Sobre Jerusalém” (Perì tà Hierosólyma) temos três fragmentos citados por Eusébio, na Praeparatio Evangelica IX, 20; 24; 34. O primeiro trata de Abraão, o segundo de José e o terceiro canta a abundância da água em Jerusalém.

Teodoto de Siquém é citado por Eusébio, Praeparatio Evangelica IX,22. O seu tema é a história da cidade de Siquém. Teodoto pode ser situado entre os séculos II e I a.C. Provavelmente é um samaritano[7].

Ezequiel, o Trágico, do séc. II a.C., que escreve provavelmente em Alexandria, é uma isolada testemunha da conversão de temas bíblicos em dramas gregos.

Através de Eusébio e Clemente de Alexandria, conhecemos trechos de seu drama “O Êxodo” (Exagôgê). Ezequiel segue de perto a narrativa bíblica, mas a enfeita com muitos misdrashim. Sua linguagem tem afinidade com Eurípedes e outros trágicos do séc. V a.C.[8]

Finalmente, no campo da filosofia é necessário citar Aristóbulo, judeu alexandrino do séc. II a.C., talvez até mesmo um dos sábios do Museu. Ele conhece a fundo a filosofia grega, especialmente Pitágoras, Sócrates e Platão. E ele é um eclético em seu pensamento.

Sua obra reproduz temas da Torá, que são explicados filosoficamente. Ele descreve o conteúdo do Pentateuco para mostrar ao mundo culto grego que a lei mosaica já possui tudo o que os filósofos ensinam[9].

Agora, é preciso dizer que a filosofia judaica produzida na época helenística permanece ligada aos conceitos da sabedoria palestina. O objetivo desta filosofia não é a discussão da lógica ou da física, e sim da ética. “O objetivo dos filósofos judeus era apenas um: educar as pessoas na verdadeira moralidade e piedade”[10].

 

2. Nada na Escritura está fixado por acaso

Certo Aristeias, que se apresenta como alexandrino, escreve a seu irmão Filócrates para contar-lhe de uma embaixada, na qual ele toma parte. Embaixada que o rei Ptolomeu II Filadelfo (285-247 a.C.) manda ao sumo sacerdote de Jerusalém, Eleazar.

O motivo da embaixada: o bibliotecário de Alexandria, Demétrio de Fáleron, explica ao rei que é necessário traduzir e possuir junto aos outros livros, também a lei dos judeus.

“Eu estava presente quando [o rei] lhe perguntou: ‘Quantos milhares de livros há?’ Ele respondeu: ‘Mais de duzentos, rei; porém, estou me apressando para completar em pouco tempo os quinhentos mil que me faltam. Disseram-me que as leis dos judeus deveriam ser transcritas e formar parte de tua biblioteca’. Disse: ‘E o que te impede de fazê-lo? Tens tudo o que é necessário à tua disposição’. Porém Demétrio respondeu: ‘É preciso traduzi-las, pois utilizam na Judeia uma escrita peculiar, como os egípcios, tanto na disposição das letras como na pronúncia. Supõe-se que empreguem o siríaco, porém não exatamente, mas um dialeto diferente’. Quando o rei se informou dos pormenores, deu ordem para se escrever ao sumo sacerdote dos judeus para que se realizasse o combinado”[11].

 Início da Carta de Aristeias a Filócrates: séc. XI - Biblioteca Apostólica Vaticana, Vat. gr. 747, f. 1rApós contatos epistolares entre o rei e o sumo sacerdote, a embaixada alexandrina dirige-se a Jerusalém com o objetivo de conseguir um exemplar fidedigno da Lei e idôneos tradutores. O sumo sacerdote Eleazar escolhe, então, 72 especialistas – 6 de cada uma das 12 tribos de Israel – que são regiamente recebidos em Alexandria. Em 72 dias, isolados na ilha de Faros, os 72 tradutores realizam o seu trabalho, que é lido para a comunidade judaica de Alexandria e aprovado. Os 72 tradutores voltam a Jerusalém carregados de presentes do rei.

Este é o tema central da Carta, que está falando da tradução da LXX. Mas, uma série de assuntos paralelos são inseridos no seu meio:

. o rei liberta os escravos judeus que estão no Egito
. descreve-se a cidade de Jerusalém e o Templo
. conta-se de um banquete do rei com os 72 sábios judeus, durante 7 dias, quando se discutem variadas questões.

O nome dado ao escrito, Carta de Aristeias a Filócrates é recente: aparece pela primeira vez em um manuscrito de Paris do século XIV, o Ms. Parisinus, 950, da Biblioteca Nacional de Paris. Flávio Josefo chama-o simplesmente de “O livro de Aristeias”[12] e Eusébio, na sua Praeparatio Evangelica IX, 38, refere-se ao escrito com o título de “Sobre a tradução da lei dos judeus”.

O autor se apresenta como um grego, adorador de Zeus:

“Estes [os judeus] adoram ao Deus que vê e cria todas as coisas, ao qual todos veneram; nós, porém, rei, o chamamos de forma diferente, Zena e Dia”[13].

Mas o autor da Carta é um judeu de Alexandria e vive muitos anos depois dos fatos que narra. Porque, no § 28, diz ele:

“Pois estes reis [sublinhado meu] administravam todos os assuntos…”.

Isto indica uma época posterior ao segundo Ptolomeu.

No § 182 ele diz:

“O que ainda permanece e se pode observar agora [sublinhado meu]…”

Aqui também o autor se descuida e se mostra distanciado dos fatos que narra.

Além do que, sua origem judaica é patente em sua visão da Lei, do Templo, dos sacerdotes e dos judeus. E o fato de ter vivido bem depois dos acontecimentos é evidente em vários anacronismos, como, por exemplo:

. Demétrio de Fáleron não é diretor da biblioteca, muito menos na época de Ptolomeu II Filadelfo, que o desterra, talvez por volta de 283 a.C. Demétrio é um literato e político ateniense que chega a governar Atenas como vice-rei de Cassandro, rei macedônio. Em 307 a.C. ele vai para o exílio e junta-se à corte de Ptolomeu I Soter, em Alexandria, onde exerce grande influência. É possível que ele tenha sugerido a Ptolomeu I a fundação do Museu.

. no § 180, a Carta diz que o rei fala de uma vitória naval sobre Antígono:

“Pois casualmente coincidiu [o dia da chegada dos tradutores a Alexandria] com nossa vitória naval sobre Antígono”.

Só que esta é uma derrota na batalha de Cós, em 258 a.C.

Enfim, a data da Carta é difícil de ser estabelecida, mas certamente ela é do século II a.C., talvez mais para o seu final. Cerca de um século e meio posterior aos fatos que narra.

“Carta” é apenas um gênero literário, muito comum na época helenística. Na verdade esta carta “é um escrito de propaganda que quer informar sobre a tradução do Pentateuco para o grego. Sua finalidade é, assim, apologética e provavelmente didática. Difícil é determinar seu destinatário principal: os próprios judeus (da Palestina ou da diáspora), os gregos (a fim de fazê-los participantes do passado glorioso de Israel) ou a corte dos Ptolomeus”, comenta A. Diez Macho[14].

A concepção de Deus presente na Carta é universalista: o autor se esforça para apresentar à sociedade helenística uma imagem aceitável do Deus dos judeus, mas também de seus costumes e de sua religião, como no § 168 que diz:

“Assim pois, no que diz respeito aos preceitos que te apresentei, na medida em que se pode expô-los tão resumidamente, tudo está orientado para a justiça e nada na Escritura está fixado por acaso ou em forma de mitos, mas encaminhado para que em toda a nossa vida e ações pratiquemos a justiça com todos os homens, segundo o Deus soberano”.

Ou quando Aristeias diz ao rei Ptolomeu no § 15:

“Concluí que o Deus que lhes deu a lei [aos judeus] é o mesmo que governa teu reino”.

Já no § 31 diz Aristeias:

“Porque esta lei, por ser divina, é a mais sábia e perfeita”.

Sobre os 72 tradutores diz Aristeias no § 122:

“Tinham grandes dotes para as entrevistas e discussões motivadas pela lei, zelosos da moderação, pois esta é a melhor, descartadas a rudeza e a incultura da mente e, ao mesmo tempo, muito afastados da ideia de desprezar os outros”.

Compare-se esta visão com o antissemitismo grego de origem egípcia, visto no artigo Quem são os judeus? Falam autores gregos antigos e o tom apologético da carta torna-se evidente.

Além disso, a exegese alegórica da Carta, como nos §§ 147-166, possibilita ao autor explicar aos gregos vários preceitos judaicos que parecem esquisitos para eles, especialmente no tocante às proibições alimentares. Interpretando alegoricamente estes preceitos, Aristeias tenta fazê-los compreensíveis e aceitáveis aos gregos. A religião de Israel torna-se humanitária, ilustrada e filantrópica[15].

 

3. Demétrio, o primeiro autor judeu de fala grega

Demétrio escreve crônica. É conhecido entre os estudiosos modernos como Demétrio, o Cronógrafo[16]. Seu interesse em a narrativa bíblica é todo voltado para seu valor histórico, documentando nascimentos, genealogias etc.

Demétrio é talvez o primeiro autor judeu que faz uma sistemática crítica bíblica: ele observa as dificuldades e inconsistências cronológicas, lógicas e morais presentes no texto grego da LXX, que é o texto usado por ele. Mas não se limita a observar os problemas: tenta solucioná-los. Demétrio é de Alexandria e pode ser situado na última metade do século III a.C.

O que indica ser sua cidade a Alexandria dos Ptolomeus?

. aparentemente ele não sabe hebraico. E só conhece a versão grega da Bíblia, a LXX
. vive no mesmo ambiente intelectual de Eratóstenes – diretor da biblioteca de Alexandria, matemático, geógrafo, filósofo, crítico literário etc que falece por volta de 234 a.C. – Hecateu de Abdera (ca. 300 a.C.), Maneton (séc. III a.C.), Fábio Píctor (séc. III a.C.): todos eles são interessados em cronografia[17].

Além do mais, a última metade do século III a.C. é a época mais indicada para Demétrio, pois no Fragmento 6 o reinado de Ptolomeu IV Filopator (221-205 a.C.) é colocado como “terminus ad quem” do seu sumário cronológico.

De Demétrio temos 6 fragmentos. Os 5 primeiros tratam de acontecimentos narrados em Gênesis e Êxodo. O sexto é um sumário cronológico de um período da história de Israel e é baseado em 2 Reis. Os 5 primeiros são transmitidos por Eusébio e o sexto por Clemente de Alexandria.

Apesar dos limites do texto, a importância de Demétrio é grande porque:

. ele é o primeiro autor judeu independente conhecido que escreve em grego. É o primeiro representante do judaísmo de fala grega, excetuando-se, é claro, a LXX, mas que é uma obra coletiva e, além do mais, uma tradução
. ele é fonte importante para se examinar a relação entre os métodos de exegese palestino e alexandrino
. ele é talvez o primeiro autor judeu cujo trabalho reflete uma consciência e um conhecimento da historiografia grega e, portanto, é importante para se verificar as raízes da helenização entre os judeus da diáspora.

O objetivo de Demétrio parece ser o de mostrar aos gregos a antiguidade de Moisés e do povo judeu e, portanto, sua credibilidade[18].

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[1]. Cf. SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015, p. 470-473.

[2]. Cf. LAMARCHE, P. La Septante, em MONDÉSERT, C., (org.) Le monde grec ancien et la Bible (Bible de tous les temps 1). Paris: Beauchesne, 1984, p. 19-35.

[3]. Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. I: Historians. Chico, California: Scholars Press, 1983, p. 1-5.

[4]. Eusébio, bispo de Cesareia, na Palestina, vive entre 265 e 340 e escreve importantes obras em grego, entre elas a famosa “Historia Ecclesiastica”, a “Praeparatio Evangelica” e a “Demonstratio Evangelica”. Clemente de Alexandria vive aproximadamente de 160 a 215. Um dos mais notáveis padres gregos, famoso por seu amplo conhecimento da literatura e da filosofia gregas. Deve ter nascido em Atenas, mas vive e ensina em Alexandria. Além de outras obras, escreve o Stromata, “Miscelâneas”, cujo objetivo é reconciliar a fé cristã com a razão e a filosofia.

[5]. HOLLADAY, C. R. o. c., p. 8-9.

[6]. Ambos podem ser lidos em Idem, ibidem, p. 245-275.

[7]. Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. II: Poets. Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1989, p. 51-299. Fílon e Teodoto são comentados também por SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 559-563.

[8]. Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. II: Poets, p. 301-529.

[9]. Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. III: Aristobulus. Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1995.

[10]. SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 567. O grande filósofo judeu helenizado é obviamente Fílon de Alexandria (20 a.C.-54 d.C.), de quem não trato aqui por estar além da época demarcada para este estudo.

[11]. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 10-11, em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II. Madrid: Cristiandad, 1983, p. 20.

[12]. Cf. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XII, 100.

[13]. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 16, em o. c., p. 21-22. Zena (Zêna) vem de zên = “viver” e Dia (Diá), por causa da preposição homônima diá = “através de”, faz da divindade a causa de todas as coisas. São etimologias populares usadas para Zeus na época helenística.

[14]. DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II, p. 14.

[15]. Cf. Idem, ibidem, p. 41; SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 677-687.

[16]. Os “cronógrafos” ou “logógrafos” são os cronistas antigos, precursores dos verdadeiros historiadores como Heródoto. Eles representam a transição da poesia épica para a prosa. Suas narrativas são em geral áridas e com pouco senso crítico. Cf. HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina, verbete Logôgrafos.

[17]. Contudo, nada impede que a origem do escrito possa ser situada ou na Palestina ou na Cirenaica. Em ambos lugares há judeus cultos e que sabem grego. E talvez ele saiba hebraico.

[18]. Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors I, p. 53-54; SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 513-517.


Autores gregos antigos

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Quem são os judeus? Falam autores gregos antigos

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Como é que os gregos antigos veem os judeus? Existe compreensão e aceitação de sua cultura ou não? Constituem os judeus um povo a ser respeitado ou “civilizado”? Como é de se esperar, não temos uma opinião abrangente dos gregos sobre os judeus. O homem grego comum não pode mais testemunhar nesta questão. Mas há os escritos de vários autores da época. E através deles podemos perguntar aos gregos: Quem são, para vocês, os judeus?

As respostas serão diferenciadas, mas nos 18 autores que analisarei a seguir aparecem alguns elementos comuns:

. os judeus são vistos e julgados a partir dos padrões culturais e civilizatórios gregos, transformando-se assim a sua história em uma história muitas vezes mítica e absurda porque a diferença cultural não é respeitada

. os costumes alimentares e cultuais judaicos, em geral causam profunda estranheza ao mundo grego

. as origens de Israel são frequentemente desfiguradas por feroz antissemitismo que tem sua origem nos conflitos da época do autor e que não deveria ser assim retroprojetado para o final do II milênio.

 

1. Dezoito autores e suas opiniões

Do século V a.C. ao início do século II d.C., de Heródoto a Plutarco, são conhecidos 175 fragmentos de 57 autores gregos que falam dos judeus[1]:

Século V a.C.: Heródoto

Século IV a.C.: Aristóteles, Teofrasto, Jerônimo de Cárdia, Hecateu de Abdera, Megástenes, Clearco de Soli

Século III a.C.: Evêmero, Beroso, Maneton, Xenófilo, Eratóstenes, Aristófanes, Hermipo de Esmirna, Mnaseas de Patara

Século II a.C.: Polemo de Ilium, Agatarquides de Cnido, Políbio, Apolodoro de Atenas, Menandro de Éfeso, Díon, Teófilo, Leto, Ocelo Lucano, Timocares, Xenofon de Lampsaco, Meleagro de Gadara, Possidônio

Século I a.C.: Apolônio Mólon, Alexandre Poliístor, Teucro de Cizico, Diodoro Sículo, Crinagoras de Mitilene, Hipsicrates, Timagenes, Nicolau de Damasco, Estrabão de Amaseia, Conon, o Mitógrafo, Ptolomeu, o Historiador (?), Lisímaco (?)

Século I d.C.: Pseudo-Longino, Filipe de Tessalônica, Ptolomeu de Mendes (?), Apião, Queremon, Dioscorides, Zopirio, Hermógenes (?), Memnon de Heracleia, Anônimo autor da guerra entre romanos e judeus, Damócrito (?), Nicarco(?), Cláudio Iolau (?), Antônio Diógenes

Séculos I/II d.C.: Epicteto, Dio Crisóstomo, Plutarco

 

Destes 57 autores vou apresentar apenas 18. São os mais interessantes quanto às suas opiniões e/ou informações sobre os judeus. Muitos dos outros que deixo de lado trazem apenas informações geográficas sobre a Palestina ou referências muito vagas aos judeus. O Mar Morto, por exemplo, suscita grande interesse entre os escritores gregos graças a suas características peculiares.

:: Século IV a.C.
. Teofrasto: ap. 372-288
. Hecateu de Abdera: ap. 300
. Clearco de Soli: ap. 300
. Megástenes: ap. 300

:: Século III a.C.
. Maneton: séc. III
. Mnaseas de Patara: ap. 200

:: Século II a.C.
. Agatarquides de Cnido: séc. II
. Possidônio: ap. 135-51

:: Século I a.C.
. Apolônio Mólon: séc. I
. Alexandre Poliístor: séc. I
. Diodoro Sículo: século I
. Nicolau de Damasco: ap. 64 a.C.-séc. I d.C.
. Estrabão de Amaseia: ap. 64 a.C.-19 d.C.
. Lisímaco: séc. II/I a.C.?

:: Século I d.C.
. Apião: 1a metade do séc. I d.C.
. Queremon: séc. I d.C.
. Damócrito: séc. I d.C.?
. Nicarco: séc. I d.C.?[2]

Dos 18 autores escolhidos não cito todos os fragmentos, mas apenas os mais pertinentes. O número de fragmentos por autor varia muito: de 1 fragmento apenas de vários autores até 27 de Estrabão ou 15 de Nicolau de Damasco e 15 de Apião.

Grécia e Ásia Menor ca. 400 a.C.Interessante é observarmos a origem dos 18 autores:

. 6 autores são de cidades gregas da Ásia: Hecateu (Abdera, Trácia), Mnaseas (Patara, Lícia), Agatarquides (Cnido, Dórida), Apolônio Mólon (Alabanda, Cária), Alexandre Poliístor (Mileto, Ásia Menor) e Estrabão (Amaseia, Ponto)

. 5 autores são do Egito: Maneton (Heliópolis), Lisímaco (?, Egito), Apião (Alexandria), Queremon (?, Egito) e Nicarco (?, Egito)

. 2 autores são da Síria: Possidônio (Apameia) e Nicolau (Damasco)

. 3 autores são de diferentes ilhas: Teofrasto (Êresos, Lesbos), Clearco (Soli, Chipre) e Diodoro Sículo (?, Sicília)

. 2 autores são de local desconhecido: Megástenes e Damócrito.

Das cidades gregas da Ásia Menor e do Egito saem 11 dos 18 autores citados. E não é sem razão: Alexandria é o maior centro cultural helenístico e a Ásia Menor é o coração do mundo grego helenístico. Com exceção de Timagenes (séc. I a.C.), não citado entre os 18, todos os autores greco-alexandrinos são antissemitas.

 

Outra coisa interessante a ser observada é a especialidade, profissão ou área de interesse destes 18 autores gregos que falam dos judeus:

. Teofrasto: filósofo da escola de Aristóteles
. Hecateu de Abdera: etnógrafo, filósofo, crítico e gramático
. Clearco de Soli: filósofo da escola de Aristóteles
. Megástenes: ?
. Maneton: sacerdote egípcio
. Mnaseas de Patara: ?
. Agatarquides de Cnido: historiador da escola de Aristóteles
. Possidônio: filósofo estoico, historiador e cientista
. Apolônio Mólon: retor
. Alexandre Poliístor: historiador, geógrafo, literato
. Diodoro Sículo: historiador
. Nicolau de Damasco: historiador, professor, diplomata
. Estrabão de Amaseia: filósofo estoico, geógrafo, historiador
. Lisímaco: ?
. Apião: escritor e professor de literatura
. Queremon: historiador
. Damócrito: historiador
. Nicarco: ?

Verifica-se a predominância dos historiadores, como parece natural, em se tratando de observações sobre um povo estrangeiro, o judeu. Mas os filósofos seguem-nos de perto: filósofos interessados nos “bárbaros” é característico da época helenística.

Vale aqui a observação de P. Lévêque de que na época helenística a historio­grafia sobrevive, mas se transforma. Sua tendência é tornar-se universal, consequência óbvia da ampliação do mundo grego feita por Alexandre e depois unificado por Roma. O historiador desta época é um grande erudito e sua investigação torna-se cada vez me­nos literária e mais científica[3].

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[1]. Utilizo o texto de STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976, 576 p. Os textos estão em grego, com tradução em inglês. As interrogações (?) após alguns nomes referem-se a incertezas quanto à data.

[2]. Como se pode observar, para a quase totalidade dos autores só temos datas aproximadas, infelizmente.

[3]. Cf. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 109.


Minimalistas

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Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita?

 

leitura: 27 min

ABSTRACT
O artigo investiga algumas publicações de membros do Seminário Europeu de Metodologia Histórica e define sua posição na pesquisa atual da “História de Israel”.

The article proposes to investigate the more important publications of some members of the European Seminar in Historical Methodology, and to define their position in the current research of the “History of Israel”.

 

1. A constituição do Seminário Europeu de Metodologia Histórica

Um grupo de 21 pesquisadores iniciou o European Seminar in Historical Methodology. Este grupo surgiu com o objetivo de abordar as questões centrais da ‘História de Israel’ de maneira sistemática e de determinar as reais posições e problemas da área. O seu coordenador foi Lester L. Grabbe, Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Antigo e, à época da criação do grupo, Coordenador do Departamento de Teologia da Universidade de Hull, Reino Unido.

A participação no Seminário Europeu de Metodologia Histórica foi seletiva e incluía, quando fundado, 21 pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades:

. Andrew Mayes (Irlanda)
. Axel Knauf-Belleri (Suíça)
. Bob Becking (Países Baixos)
. Ed Noort (Países Baixos)
. Hans Barstad (Noruega)
. Hans-Peter Müller (Alemanha)
. Helga Weippert (Alemanha)
. Herbert Niehr (Alemanha)
. Josette Elayi (França)
. Keith Whitelam (Reino Unido)
. Knud Jeppesen (Dinamarca)
. Lester Grabbe (Reino Unido)
. Manfred Weippert (Alemanha)
. Mario Liverani (Itália)
. Michael Niemann (Alemanha)
. Niels Peter Lemche (Dinamarca)
. Philip Davies (Reino Unido)
. Rainer Albertz (Alemanha)
. Robert Carroll (Reino Unido)
. Thomas Thompson (Dinamarca)
. Ulrich Hübner (Alemanha)

Explica Lester L. Grabbe que o debate sobre o modo como a ‘História de Israel’ tem sido escrita veio se acirrando cada vez mais nos últimos anos, e muitos pesquisadores têm sofrido ataques radicais. Surgiram protestos, por exemplo, dizendo que as tendências atuais da ‘História de Israel’ são perigosas e que, por isso, devem ser combatidas ou ignoradas ou, até mesmo, as duas coisas ao mesmo tempo.

Can a 'History of Israel' Be Written?Diz Lester L. Grabbe no primeiro parágrafo do livro por ele editado – e que traz os resultados do Primeiro Seminário – Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997 [T & T Clark: 2005 – ISBN 0567043207]:

“O grupo surgiu das frustrações que eu, em primeiro lugar, venho sentindo acerca da atual situação do debate sobre como escrever a história de Israel e Judá nos segundo e primeiro milênios AEC e no século I da EC” (p. 11).

E continua:

“Nos últimos anos, um certo número de estudiosos – a maioria deles europeus por origem ou adoção – tem feito um ataque radical sobre o modo como a história de ‘Israel’ tem sido escrita. Mesmo aqueles outrora considerados radicais não escaparam da crítica. Este movimento, a princípio minoritário, causou pouco impacto no debate. Recentemente, porém, ele adquiriu personalidade, mas a resposta foi o surgimento de protestos, incluindo a sugestão de que tais tendências são perigosas, ou que podem ser tranquilamente ignoradas ou – de modo curioso – ambas as coisas ao mesmo tempo” (p. 11).

Lester L. Grabbe está se referindo à controvérsia existente entre a postura maximalista que defende que tudo nas fontes que não pode ser provado como falso deve ser aceito como histórico e a postura minimalista que defende que tudo que não é corroborado por evidências contemporâneas aos eventos a serem reconstruídos deve ser descartado.

Os autores ‘minimalistas’ são também conhecidos como membros da Escola de Copenhague, pois alguns dos mais importantes entre eles, como Niels Peter Lemche e Thomas L. Thompson, trabalham na capital dinamarquesa. Entretanto, nem todos os participantes do Seminário se consideram ‘minimalistas’, categoria que, aliás, gera polêmica, como se pode ver em artigo de 2002 de DAVIES, P. R. Minimalism, “Ancient Israel,” and Anti-Semitism. “Minimalism” is an invention. None of the “minimalist” scholars is aware of being part of a school, or a group, em The Bible and Interpretation.

O grupo fez vários seminários. Em julho de 1996 foi realizado em Dublin, Irlanda, o Primeiro Seminário, dedicado a tomadas de posição. Todos as conferências abordaram de um modo ou de outro as duas questões seguintes: Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita e, caso possa, como? Que papel exerce neste empreendimento o texto do Antigo Testamento/da Bíblia Hebraica?

O Segundo Seminário, sobre O Exílio, aconteceu em Lausanne, na Suíça, em julho de 1997, e a obra publicada pela Editora Sheffield, da Inglaterra, e editada por L. L. Grabbe, tem por título Leading Captivity Captive. ‘The Exile’ as History and Ideology [Conduzindo um Cativo ao Cativeiro. ‘O Exílio’ como História e Ideologia], 1998, 161 p. Falarei dele mais adiante.

O Terceiro Seminário procurou responder à desafiadora questão, formulada por Niels Peter Lemche: A Bíblia é um livro helenístico? Lester L. Grabbe foi novamente o editor das contribuições em um volume de 343 páginas. A Editora Sheffield publicou, em março de 2001, a obra Did Moses Speak Attic? Jewish Historiography and Scripture in the Hellenistic Period [Moisés falava Ático? Historiografia Judaica e Escritura na Época Helenística], que, na verdade, reúne as contribuições do Terceiro e do Quarto Seminário.

O Seminário do ano 2000 [quinto encontro] foi realizado em Utrecht, nos Países Baixos, em agosto, e o tema debatido foi a Invasão de Judá por Senaquerib. A Editora Sheffield publicou, em 2003, o volume ‘Like a Bird in a Cage’: The Invasion of Sennacherib in 701 BCE [‘Como um Pássaro numa Gaiola’: A Invasão de Senaquerib em 701 AEC].

Não tenho informações mais detalhadas sobre os dois encontros seguintes do Seminário Europeu de Metodologia Histórica, mas eles aconteceram em 2001 (em junho, em Berlim) e 2002. Em um e-mail de Niels Peter Lemche, com data de 03.01.2003 ao grupo de discussão ANE, respondendo a uma solicitação minha sobre o assunto, ele diz literalmente: “The group met also in 2001 and 2002. A combined volume will be published by Lester Grabbe. The group will meet again in August this year [2003] in Copenhagen at the 2nd meeting of the EABS”.

Do Seminário de 2002 [sétimo encontro] resultou o livro GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE.  London: T & T Clark, 2005, que tratou de Judá do século VII a.C., e, em especial, do reinado de Josias. Há resenhas na RBL por John Engle and Eckart Otto, publicadas em 1 de abril de 2006.

Em 2004 [nono encontro] o grupo debateu O Período Persa, e isto aconteceu em Groningen, Países Baixos, em julho.

Em 2005 [décimo encontro] o grupo esteve presente na EABS – European Association of Biblical Studies – em seu Encontro Anual, desta vez em Dresden, Alemanha, de 7 a 10 de agosto. Discutiu o tema Recent publications Relating to Biblical Historiography [Publicações recentes na área da Historiografia Bíblica]. Estão citadas as seguintes publicações:
Rainer Albertz, Israel in Exile (Axel Knauf, Bern)
John Day (ed.), In Search of Pre-exilic Israel (Bob Becking, Utrecht and Thomas Thompson, Copenhagen)
W. G. Dever, What Did the Biblical Writers Know? and Who Were the Early Israelites? (Rainer Albertz, Münster)
Lester Grabbe, History of the Persian Province of Judah (Ehud Ben Zvi, Edmonton)
Baruch Halpern, David’s Secret Demons (Axel Knauf, Bern)
James Hoffmeier and Alan Millard, The Future of Biblical Archaeology (Thomas Thompson, Copenhagen)
Mario Liverani, Oltre la Bibbia (Joseph Blenkinsopp (Notre Dame) and Philip Davies (Sheffield)
Iain Provan, V. Philips Long, and Tremper Longman, A History of Biblical Israel (Lester Grabbe, Hull)
Alberto Soggin, Storia d’Israele (Lester Grabbe, Hull)
J. B. Kofoed, Text and History (N. P. Lemche, Copenhagen).

O Seminário de 2006 [décimo primeiro encontro] aconteceu em agosto, em Budapeste, na Hungria. Veja aqui. Seu tema foi A Transição do Bronze Recente para o Ferro IIA (ca. 1250-850 BCE).

O Seminário de 2007 [décimo segundo encontro] aconteceu em julho, em Viena, Áustria, dentro do Congresso Internacional da SBL. Segundo o programa da SBL, o grupo continuou a tratar do tema de 2006, citado acima. Presidido por Lester L. Grabbe, da Universidade de Hull, Reino Unido, o painel teve [segundo o programa] a participação de Rainer Albertz, A. Grame Auld, Ehud Ben Zvi, Joseph Blenkinsopp, Marc Brettler, Philip R. Davies, Israel Finkelstein, Axel Knauf, Niels Peter Lemche, Oded Lipschits, Robert Miller, Nadav Na’aman, Donald Redford, Thomas Römer, Thomas L. Thompson e John Van Seters. Sobre o Seminário de 2008, leia aqui.

O Seminário de 2012, o décimo sétimo e último, foi realizado em Amsterdã, Holanda, como parte do Congresso da EABS/SBL (22-26 de julho).Leading Captivity Captive: ‘The Exile’ as History and Ideology Os membros do Seminário fizeram apresentações sobre suas perspectivas para a escrita de uma História de Israel (ou do Levante Sul) e refletiram sobre o que aprenderam desde o Primeiro Seminário, realizado em 1996.

Membros do Seminário em 2012 incluem, segundo o programa: Hans Barstad, Edinburgh; Bob Becking, Utrecht; Ehud Ben Zvi, Edmonton; Joseph Blenkinsopp, Notre Dame; Philip Davies, Sheffield; Diana Edelman, Sheffield; Philippe Guillaume, Bern; Axel Knauf, Bern; Niels Peter Lemche, Copenhagen; Nadav Na’aman, Tel Aviv; Thomas L. Thompson, Copenhagen.

Na ocasião, Lester L. Grabbe, da Universidade de Hull, Reino Unido, coordenador do grupo, apresentou os resultados de 16 anos do Seminário Europeu de Metodologia Histórica (Sixteen Years of the ESHM: the Results – This paper will summarize the results of the ESHM meetings from my perspective as the ESHM organizer and editor) e disse que este é o último encontro regular do grupo, que passa agora o bastão para as novas gerações de biblistas que trabalham com história: As its 17th meeting in 2012, the ESHM will draw a close to its regular meetings. Although we might get together for certain special discussions in the future, we feel that we have accomplished our main purpose and wish to pass the torch to a younger generation of biblical scholars who work in history.

 

2. Alguns participantes do Seminário e suas ideias

Minha intenção aqui é identificar membros do Seminário de quem li alguns textos, citar suas obras mais importantes sobre o tema e definir seu posicionamento no atual debate sobre a História de Israel. Para clarear melhor o contexto, recomendo a leitura de meu artigo A História de Israel no debate atual nesta mesma página.

 

Bob Becking  – Países Baixos (1951-)

Professor Emérito de Estudos do Antigo Testamento na Universidade de Utrecht, Países Baixos.

Bob Becking (1951-)Obras: The Fall of Samaria: an Historical and Archaeological Study. Leiden: Brill, 1992, 154 p. – ISBN 9789004096332; Between Fear And Freedom: Essays on The Interpretation of Jeremiah 30-31. Leiden: Brill, 2004, 338 p. – ISBN 9789004141186; Identity in Persian Egypt: The Fate of the Yehudite Community of Elephantine. University Park, PA: Pen State University Press, 2020, 224 p. – ISBN 9781575067452; Israel’s Past: Studies on History and Religion in Ancient Israel and Judah. Berlin: Walter de Gruyter, 2021; A Transverse Dreamer: Essays on the Book of Micah. Berlin: Walter de Gruyter, 2023, 166 p. – ISBN 9783111207834; Micah: A New Translation with Introduction and Commentary. New Haven, CT: Yale University Press, 2023, 304 p. – ISBN 9780300159950.

Posicionamento: na reconstrução da História de Israel os textos bíblicos podem ser usados com moderação e muito senso crítico.

BECKING, B. Inscribed Seals as Evidence for Biblical Israel? Jeremiah 40.7-41.15, par exemple, em GRABBE, L. L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, 201 p. [T  & T Clark: 2005 – ISBN 0567043207], p. 65-83, procura responder a três questões: O que se entende por ‘Israel’? O que quer dizer ‘escrever história’? e Como o texto do Antigo Testamento é usado como uma fonte histórica? Ele conclui com uma resposta positiva sobre a possibilidade da história da Israel e o uso do Antigo Testamento como uma de suas fontes.

BECKING, B., em GRABBE, L. L. (ed.) Leading Captivity Captive. The ‘Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998, 161 p. – ISBN 9781850759072, p. 40-61, faz uma análise do livro de Esdras e seus relatos sobre a volta da Babilônia. Conclui que o livro pode ser usado para uma reconstrução ou para várias reconstruções deste período. Excelentes questionamentos sobre o ‘exílio’ colocados sob o título The Idea of the Exile, nas p. 42-46.

 

Hans M. Barstad – Noruega (1947-2020)

Foi professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Oslo, Noruega.

Obras: The Myth of the Empty Land: A Study in the History and Archaeology of Judah During the ‘Exilic’ Period. Oslo: Scandinavian University Press, 1996, 113 p. – ISBN 9788200227564; History and the Hebrew Bible: Studies in Ancient Israelite and Ancient Near Eastern Historiography. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008, 223 p. – ISBN 9783161498091.

Posicionamento: moderado; defende o uso do texto bíblico na construção da história de Israel. Mas insiste, com muita fundamentação, que éHans M. Barstad (1947-2020) necessário abandonar o conceito positivista de história, herança do século XIX , e partir para uma história narrativa.

BARSTAD, H. M. History and the Hebrew Bible, em GRABBE, L. L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, 201 p. [T  & T Clark: 2005 – ISBN 0567043207], p. 37-64, lida com a questão do desenvolvimento da historiografia em geral, onde ele critica a postura positivista de muitos historiadores e manifesta sua firme convicção de que o futuro pertence à história narrativa. Para Barstad, as antigas categorias de fato e ficção já não são distinções válidas. Para Barstad, pesquisadores como Lemche e Thompson ainda se debatem dentro de um conceito convencional de história que é altamente problemático.

Em suas palavras: “Estudiosos como Lemche e Thompson têm avidamente usado o conceito de ‘mudança de paradigma’ em suas contribuições para a historiografia bíblica. Isto, entretanto, está longe de ser uma descrição adequada do que está realmente acontecendo. Lemche e Thompson, aparentemente não atentos para o fato de que o que nós podemos chamar de um conceito convencional de história é hoje altamente problemático, ainda trabalham dentro dos parâmetros da pesquisa histórico-crítica, assumindo que história é uma ciência e que devemos trabalhar com fatos ‘brutos’” (p. 50-51). Barstad diz que os pós-modernos os classificariam como “os primeiros dos últimos modernistas” (p. 51).

E defende em seguida: “No futuro nós teremos, irreversivelmente, ter de nos ajustar a uma visão de história diferente daquela dos métodos histórico-críticos do século XIX: uma história com diferentes ‘verdades’ que quase nunca será o resultado de análises científicas de dados empíricos. Uma história cujo estatuto epistemológico deveria não mais ser visto como parte da ciência, mas como uma parte da cultura. Uma história caracterizada por uma multiplicidade de métodos” (p. 51-52).

BARSTAD, H. M. The Strange Fear of the Bible: Some Reflections on the ‘Bibliophobia’ in Recent Ancient Israelite Historiography, em GRABBE, L. L. (ed.) Leading Captivity Captive. The ‘Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998, 161 p. – ISBN 9781850759072, p. 120-127, começa observando que “frequentes vezes, durante as discussões sobre o ‘antigo Israel’ em Dublin e Lausanne, objeções eram levantadas por alguns membros de nosso Seminário quando eram feitas tentativas de se referir a informações históricas tiradas da Bíblia Hebraica” (p. 120). Dizendo que sempre achou esta atitude um tanto estranha para quem reivindica ser um historiador da Palestina da Idade do Ferro, ele decidiu fazer, após a realização do Seminário, algumas observações a respeito desta ‘bibliofobia’.

Ele sublinha que sua posição é a seguinte: não podemos tratar a Bíblia de modo diferente de outras fontes históricas ou literárias antigas, como as da Grécia antiga ou da antiga historiografia mesopotâmica. Para exemplificar que problemas existem em todas as fontes antigas, e que isto não é exclusividade da Bíblia, Hans Barstad passa, em seguida, a mostrar os problemas de credibilidade histórica, hoje em debate, em Heródoto e na “Lista dos Reis Sumérios”.

Barstad defende também, como já fizera no 10 Seminário, a substituição da busca de uma “verdade histórica factual” por uma “verdade histórica narrativa” (p. 126) e termina o seu texto dizendo enfaticamente: “Como uma fonte histórica, a Bíblia Hebraica é da ‘mesma’ natureza e qualidade dos outros textos literários do Antigo Oriente Médio (….) Nós devemos aceitar, para o bem ou para o mal, a Bíblia Hebraica não só como necessária, mas também, de longe, como a mais importante fonte para nosso conhecimento da história da Palestina da Idade do Ferro. Negar isto é não apenas ser injustificadamente hipercrítico, mas é também se fundamentar em uma visão positivista de história que hoje está irremediavelmente ultrapassada” (p. 127).

 

Herbert Niehr – Alemanha (1955-)

Professor de Introdução à Bíblia e História da Época Bíblica na Universidade de Tübingen, Alemanha.

Obras: Rechtsprechung in Israel: Untersuchungen zur Geschichte der Gerichtsorganisation im Alten Testament. Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1987, 144 p. – ISBN 9783460043015; Der höchtste Gott: Alttestamentlicher JHWH-Glaube im Kontext syrisch-kanaanäischer Religion des 1. Jahrtausends v. Chr. Berlin: de Gruyter, 1990, 268 p. – ISBN 978-3110123425; Religionen in Israels Umwelt: Einfuhrung in die nordwestsemitischen Religionen Syrien-Palastinas. Würzburg: Echter, 1998, 255 p. – ISBN 9783429019815.

Posicionamento: moderado; defende um uso criterioso das fontes, distinguindo-as entre primárias, secundáriasHerbert Niehr (1955-) e terciárias.

NIEHR, H. Some Aspects of Working with the Textual Sources, em GRABBE, L. L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, 201 p. [T  & T Clark: 2005 – ISBN 0567043207], p. 156-165, analisa os vários tipos de fontes disponíveis para o historiador, ou seja, a antropologia histórica (dados oferecidos pela geografia, arqueologia, climatologia e assim por diante); fontes primárias (relatos contemporâneos ou próximos aos eventos que elas narram, como fontes escritas fora da Palestina, fontes escritas provenientes da Palestina e evidência arqueológica da Palestina); fontes secundárias (o Antigo Testamento), e fontes terciárias (livros que retomam fontes secundárias, como os livros das Crônicas). Finalmente, ele trabalha os problemas metodológicos relativos ao uso de cada uma delas, argumentando que as tentativas para superar as diferenças existentes entre estas fontes devem ser feitas cuidadosamente. O estudo de Niehr é um dos mais equilibrados de todo o livro editado por Grabbe.

 

Knud Jeppesen – Dinamarca 

Ex-professor de Antigo Testamento na Universidade de Aarhus, Dinamarca. Exerceu o cargo de Vice-reitor do Instituto Ecumênico Tantur para Estudos Teológicos de Jerusalém.

Obras: Det Gamle Testamente pä gudstjenestens betingelser I : introduktion til de gammeltestamentlige laesninger efter første tekstrække med sproglige noter af Martin Ehrensvärd. København: Anis, 2004.

Posicionamento: moderado.

JEPPESEN, K. Exile a Period – Exile a Myth, em GRABBE, L. L. (ed.) Leading Captivity Captive. The ‘Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998, 161 p. – ISBN 9781850759072, p. 139-144, avaliando as contribuições de alguns participantes do Seminário – que ele classifica em dois grupos: as contribuições de Rainer Albertz, Bob Becking e Lester L. Grabbe, que lidam com o problema de se e de que maneira nós podemos reconstruir a história da época do exílio e as contribuições de Thomas L. Thompson e Robert P. Carroll que, de outro lado, procuram explorar o exílio mais como mito e metáfora – mostra a dificuldade do tema nas posições dos debatedores citados.

Rainer Albertz, por exemplo, que de modo algum pretende ser um minimalista, acaba admitindo que o exílio é “um buraco negro” na narrativa histórica bíblica ou uma “caixa preta”, na qual os pesquisadores colocam tudo o que não cabe no período pré-exílico. Já Bob Becking, discutindo o livro de Esdras está convencido de que processos como ‘exílio’ e ‘volta’ ocorreram, mas conclui que sabemos muito pouco sobre isso. Grabbe é quem parece não ter muitas dúvidas! Jeppesen diz que, em princípio, concorda com Albertz, Becking e Grabbe e acha que nós ainda podemos contar alguma estória sobre o ‘exílio’ de 587-586 AEC. Mas ele vê também que o exílio é interpretado pela Bíblia como um mito universal, e, por isso, aprecia as colocações de Thompson e Carroll, quando trabalham o exílio como mito, metáfora e símbolo.

E conclui: “Eu ainda acredito que deve haver alguma forma de conexão entre o exílio na história e o exílio na narrativa mítica (….) A ideologia – o mito – e a narrativa – a ‘história’ – são duas diferentes maneiras de conhecimento que nós devemos manter distintas. Os pesquisadores frequentemente as misturam e, por isso, é difícil para o mito e a história conviverem em paz. Nós precisamos dos dois, mas nós devemos traçar uma linha divisória entre eles (…) Para os pesquisadores bíblicos, uma escolha entre mito e história é equivalente a uma escolha entre a história e a Bíblia. E se houvesse a possibilidade de escolha, eu iria sempre preferir a Bíblia – ela é muito mais excitante do que a história”.

 

Lester L. Grabbe – Reino Unido (1945-)

Professor Emérito de Bíblia Hebraica e Judaísmo Antigo na Universidade de Hull, Reino Unido.

Obras: Judaism from Cyrus to Hadrian. I. Persian and Greek Periods; II. Roman Period. Minneapolis: Augsburg Fortress, 1992 & London: SCM Press, 1994;  A History of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: Vol 1, Yehud: A History of the Persian Province of Judah. London: T & T Clark, 2006, 496 p. – ISBN 9780567043528; Ancient Israel: What Do We Know and How Do We Know It? London: T & T Clark, 2007, 328 p. – ISBN 9780567032546; A History of the Jews and Judaism in the Second Temple Period: Vol. 2, The Coming of the Greeks, the Early Hellenistic Period 335-175 BCE. London: T & T Clark, 2008, 432 p. – ISBN 9780567033963.

Lester L. GrabbePosicionamento: como coordenador do Seminário Europeu de Metodologia Histórica e, durante alguns anos, Diretor da Faculdade de Teologia da Universidade de Hull, Grabbe sempre procurou mostrar uma atitude de equilíbrio entre os mais prudentes e os mais extremistas minimalistas, sendo ele mesmo, em sua própria definição, um declarado ‘minimalista’.

GRABBE, L. L. Are Historians of Ancient Palestine Fellow Creatures – Or Different Animals? em GRABBE, L. L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, 201 p. [T  & T Clark: 2005 – ISBN 0567043207], p. 19-36, chegou às seguintes conclusões: 1) Podemos escrever uma história da antiga Síria-Palestina-Israel. 2) Ao escrever esta história, podemos e devemos usar o texto bíblico. 3) Persistem grandes dificuldades no uso do texto bíblico, de modo que o seu uso precisa ser debatido em cada caso. 4) As fontes arqueológicas e bíblicas precisam ser avaliadas cada uma no seu âmbito, e devemos evitar misturar de modo promíscuo fontes escritas com outros dados. 5) Reconstruções imaginativas e especulativas poderiam ser admitidas e devemos indicar as probabilidades de qualquer hipótese.

GRABBE, L. L. ‘The Exile’ under the Theodolite: Historiography as Triangulation, em GRABBE, L. L. (ed.) Leading Captivity Captive. The ‘Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998, 161 p. – ISBN 9781850759072, p. 80-100, se propõe analisar três questões: 1. Comunidades exiladas perderam suas identidades e jamais voltaram para suas terras de origem ou não? 2. O que as fontes extrabíblicas podem confirmar sobre os eventos descritos no texto bíblico? 3. Como ficaria uma história construída a partir desse estudo?

Grabbe vai concluir, de sua análise de textos bíblicos e extrabíblicos, que houve uma volta de exilados judaítas, e apresenta seis argumentos favoráveis à sua tese nas p. 95-96. Tira, em seguida, quatro ‘conclusões metodológicas’ do estudo anterior, conclusões que me parecem mais pressupostos do que qualquer outra coisa! Entre elas (ou eles!), a óbvia de quem é o mediador do Seminário: “Eu rejeitarei qualquer posição que se recuse a usar o texto bíblico na reconstrução histórica do exílio ou que se mantenha numa atitude puramente agnóstica, assim como eu também rejeitarei qualquer posição que aceite sem mais o texto bíblico a não ser que ele possa ser refutado” (p. 98).

Finalmente, Lester Grabbe apresenta, em grandes linhas, o que seria a sua história do exílio, para concluir seu texto com o seguinte parágrafo: “O conceito bíblico de exílio e volta estava, por conseguinte, baseado em eventos reais. Embora exílio e volta representem um tema teológico significativo no texto bíblico, eles não foram construídos apenas com objetivos teológicos. Neste caso específico, a teologia representa uma reinterpretação e reutilização de eventos históricos” (p. 99-100).

 

Mario Liverani – Itália (1939-)

Assiriologista. Professor Emérito na Università La Sapienza, Roma, Itália

Obras: Antico Oriente: Storia, società, economia. 2. ed. Roma-Bari: Laterza, 2013, 912 p. – ISBN 9788842095880.;  Myth and Politics in Ancient Near Eastern Historiography. Edited and Introduced by Zainab Bahrani and Marc Van De Mieroop, New York: Cornell University Press, 2007, 240 p. – ISBN 9780801473586; Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, 544 p. – ISBN 9788515035557 (veja a bibliografia completa de Liverani aqui).

Posicionamento: moderado

Mario Liverani, Nuovi sviluppi nello studio della storia dell’Israele biblico. Biblica, Roma, n. 80, p. 488-505, 1999, diz o seguinte: “Infelizmente, aMario Liverani lentidão em adotar as consequências mais radicais (e positivamente construtivas)  do novo modo de fazer história, do novo papel e das novas potencialidades da arqueologia, levou a uma espécie de defasagem operacional em relação às mais recentes tendências no campo da análise textual e literária. Se não estou enganado, a assim chamada ‘nova história’ e a assim chamada ‘nova arqueologia’ poderiam interagir melhor com uma crítica literária de matriz em última análise wellhauseniana  (no que toca aos princípios básicos, não nas propostas específicas que hoje parecem um tanto conservadoras), quero dizer, com uma retomada dos materiais textuais dispostos no tempo e girando em torno da época de redação mais do que da época a que se referem. 

Contudo,  as mais recentes tendências de crítica textual e literária me parecem marcadas por tendências descontrutivistas, não direcionadas para uma nova história, mas para novas teologias. Paira também sobre os estudos bíblicos a fórmula do ‘fim da história’. Parece que a colocação correta dos materiais documentários no seu contexto cronológico e contextual  específico não é mais considerada a base ou o fim último da análise do texto. O gênero literário da ‘História de Israel’ é declarado, enfim, ‘obsoleto’. 

Parafraseando os títulos de alguns livros recentes bastante estimulantes, há quem se pergunte se é possível escrever uma história de Israel, há quem se coloque em busca do antigo Israel como algo problemático, há quem fale claramente de uma falsificação histórica, ou de uma construção literária, ou, de qualquer maneira, de um edifício que deva ser derrubado (e não necessariamente reconstruído).

O velho problema de avaliar a credibilidade de uma reconstrução histórica em relação a um referente real, de fatos realmente acontecidos, de realidades que existiram de fato, é desconsiderado quando falta o referente real. Creio que esta postura ‘pós-moderna’ (como se costuma defini-la) tenha muito a ver com a enorme proliferação dos fluxos de informação indireta e incontrolável a que estamos submetidos. A realidade da informação instantânea leva a duvidar da existência mesma do fato: é o mundo ‘virtual’ no qual estamos imersos.

Com certeza os principais defensores da nova tendência (Th. L. Thompson, N. P. Lemche, Ph. Davies) acreditam estar fazendo história, lançando as bases para uma nova – ampliada nos problemas e nas fontes, sabidamente crítica, finalmente correta – história de Israel. A minha preocupação é que tal tentativa,  que  realizada nos anos setenta e com total adesão à ‘função’ filológica da crítica textual teria sido certamente construtiva, corra agora o risco (no clima dos anos noventa) de ser envolvida pelas tendências desconstrutivistas e anti-históricas dominantes. 

Não entrarei, por absoluta incompetência, nos meandros fascinantes das novas teologias; limitar-me-ei a observar que uma postura desconstrutivista não serve à reconstrução histórica como esta era compreendida até recentemente. 

Liverani, Para além da Bíblia: história antiga de IsraelUma vez desmontado o livro dos Juízes (…) em sentido lévistraussiano, ou em sentido feminista, ou em qualquer outro sentido que ilustre os valores morais ou as tensões sociais ou os mecanismos mentais, entende-se que estes valores e estes mecanismos sejam colocados fora da história, que a sua datação precisa seja impossível ou irrelevante: século XI ou VI ou III, não faz grande diferença. Na prática: posto que as narrativas do livro dos Juízes não sejam mais utilizados para escrever o capítulo (enfim inexistente) da liga tribal pré-monárquica, não se sabe mais para qual outro capítulo se deva utilizá-lo e acaba-se com o não utilizá-lo (para uma reconstrução histórica).

Não é por acaso que as propostas historiográficas mais estimulantes, no multifacetado mundo do revisionismo, dizem respeito à crítica do paradigma passado, e à acentuação dos seus condicionamentos: penso na inserção do Israel bíblico na Orientalismo como discurso ocidental para produzir um ‘duplo’ de si mesmo sobre o qual lançar clamores inconfessáveis. Penso nos estudos sobre colonialismo como apropriação do passado alheio para poder legitimar o próprio passado. Penso no impacto do sionismo em projetar um modelo antigo de validação para os projetos políticos em andamento. Penso na individuação do contexto europeu (e especialmente alemão) do final do século XIX como matriz da centralidade dos conceitos de ‘estado’ e de ‘nação’. Penso nas reivindicações feministas de uma história que não seja só masculina, às reivindicações do Terceiro Mundo de uma história que não seja sempre vista a partir do Ocidente, que se seguem àquelas marxistas de uma história que não seja somente aquela das classes dominantes.

Todo este afã crítico e autocrítico é louvável e muito bom; mas, enquanto permanece ao nível de manifesto reivindicatório, este deve enfrentar ainda a parte mais difícil do trabalho, que é o de escrever, de fato, uma história que não incorra nem nestes pecados já conhecidos nem em outros que as gerações futuras se encarregarão, sem dúvida, de cometer” (p. 497-500).

Obs.: as notas de rodapé – números 21 a 34 – foram omitidas, mas deveriam ser consultadas no artigo original, pois são importantes para a discussão.

LIVERANI, M. Oltre la Bibbia: Storia Antica di Israele. Roma-Bari: Laterza, [1. ed.: 2003] 2014, 526 p. – ISBN 9788842098416 [Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, 544 p. – ISBN 9788515035557]. Este é um dos mais interessantes livros sobre História de Israel publicado em anos recentes.

Diz a edição brasileira: “As historias do antigo Israel sempre foram concebidas como uma espécie de paráfrase da narrativa bíblica. Esta obra de Liverani, porém, é uma tentativa de reescrita da história de Israel que leva em consideração os resultados da crítica textual e literária, as contribuições da arqueologia e da epigrafia e que foi desenvolvida segundo os critérios da moderna metodologia historiográfica. Desta perspectiva resultam duas histórias: uma história normal dos dois pequenos reinos de Israel e Judá, semelhante àquelas de tantos outros pequenos reinos da região. E uma história inventada, construída pelos judaítas durante e após o exílio babilônico, que projetam no seu passado os problemas e as esperanças de sua época”. Há uma resenha feita por Nadav Na’aman na RBL, publicada em 01 de julho de 2006, que vale a pena ser lida.

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Os instrumentos da helenização

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Os instrumentos da helenização

 

“Verificou-se desse modo, tal ardor de helenismo e tão ampla difusão de costumes estrangeiros (…) que os próprios sacerdotes já não se mostravam interessados nas liturgias do altar” (2Mc 4,13a.14a).

 

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A chegada dos poderosos exércitos macedônios com Alexandre Magno em 332 a.C., mas, principalmente, as várias guerras travadas por seus sucessores na regiões da Síria e da Palestina constituem, sem dúvida, eficaz elemento de helenização das populações locais. A fundação de novas cidades ou a transformação de várias cidades orientais em póleis constituem outro mecanismo fundamental de mudança de mentalidade e estilo de vida. Nas cidades, a língua grega que se difunde sempre mais e a educação aristocrática desenvolvida nos ginásios completam este quadro de transformação social, levando à assimilação de grandes camadas da população à nova realidade.

O assunto deste artigo é este: verificar como os vários mecanismos da sociedade e da cultura grega carreiam para a Palestina os valores do dominador estrangeiro.

 

1. O exército, as técnicas militares e a guerra

Quando Alexandre chega à Ásia, vence os exércitos persas, destrói a fabulosa resistência de Tiro, toma posse do resto da Palestina sem esforço, é aclamado no Egito, o que sentem os judeus? Sentem evidentemente o impacto da chegada de uma poderosa organização militar e de suas bem estruturadas técnicas de cerco e combate. Assim, é o exército macedônio o primeiro veículo concreto do helenismo na Palestina e a certeza de que novos tempos estão começando.

A unidade básica do exército macedônio é a falange, que mantém sua forma e superioridade desde que é desenvolvida por Filipe II até sua derrota para a legião romana. A falange é formada por uma unidade de infantaria pesada agrupada numa frente de dezesseis fileiras de soldados. Estes usam o capacete macedônio, uma couraça, um escudo de forte concavidade, uma espada e, sobretudo, a sarissa, uma longa lança que pode ultrapassar os 5 metros de comprimento. O resultado é uma concentração impenetrável de lanças que avança inexoravelmente ao encontro do inimigo. Os combatentes da primeira fila são protegidos pelas lanças dos soldados da segunda, terceira, quarta e quinta filas, de modo que, antes dos romanos, só uma falange pode vencer outra falange. Todas as formações existentes nos exércitos orientais mostram-se impotentes para detê-la.

FalangeO problema da falange é que ela exige terreno plano para combater com eficiência e possui pouca flexibilidade, ficando exposta aos ataques nos flancos e não conseguindo se voltar para enfrentar uma manobra de envolvimento. Por isso, é necessário protegê-la com a cavalaria e com tropas ligeiras, o que Alexandre Magno sabe fazer com eficiência. No século II a.C. a falange sucumbe frente à legião romana, como ilustra a batalha de Cinoscéfalos, quando em 197 a.C. o cônsul romano Flamínio vence o rei Filipe V da Macedônia.

Convém, enfim, observar que os exércitos helenísticos são constituídos, na sua maioria, pela infantaria, pois a cavalaria representa apenas cerca de 10% do total. Os mercenários, sempre numerosos, usam, em geral, seu armamento característico de acordo com sua origem e avançam com maior mobilidade à frente da falange, enfrentando os primeiros embates.

O elefante asiático é outro elemento importante nos exércitos macedônios, verdadeiro “tanque” de guerra, incorporado após a campanha de Alexandre na Índia. Todos os governantes macedônios procuram usá-lo. Diz-se que Selêuco, na batalha de Ipsos, em 301 a.C., conta com 480 elefantes. Ptolomeu II Filadelfo começa a treinar elefantes africanos. Na batalha de Ráfia, em 217 a.C., Ptolomeu IV usa 73 elefantes africanos contra os 102 elefantes indianos de Antíoco III, o Grande. Também os cartagineses os usam em suas guerras contra Roma, tornando-se famoso o elefante de Aníbal, chamado Suro.

Os efetivos usados pelos reis helenísticos nas batalhas são consideráveis se comparados aos da pólis clássica. O efeito que podem provocar no inimigo é o terror, como descreve 1Mc 6,41, a propósito da batalha de Bet-Zacarias entre as forças de Judas Macabeu e o exército selêucida: “Ficavam apavorados todos os que ouviam o clamor daquela multidão, o marchar de tanta gente e o retinir de suas armas, pois era um exército extraordinariamente numeroso e forte”.

Exércitos com cerca de 100 mil homens de infantaria, 10 mil cavaleiros e uma centena de elefantes são bastante comuns nas batalhas da época. Por isso, às vezes, uma guerra é decidida em uma única batalha. Tantos são os recursos mobilizados, que o perdedor não consegue mais se recuperar a curto prazo. Além do que, os mercenários não costumam permanecer com um rei ou general derrotado.

Para a conquista das cidades, em geral todas fortemente muradas, as técnicas de assédio empregadas pelos macedônios são sofisticadas. A artilharia de cerco usa dezenas de catapultas de 7 a 10 metros de altura, que lançam projéteis de 80 kg a uma distância de 400 a 700 metros. Consta que no assalto a Tiro Alexandre usa torres de até 50 metros de altura, montadas sobre rodas, para alcançar e atingir os defensores das muralhas. Mas estas medidas são exageradas, já que tal altura ultrapassa em muito a das muralhas. Outro cerco famoso é o que Demétrio Poliocerta (= “conquistador de cidades”) faz a Rodes em 304 a.C.

Outra técnica de assédio é o uso de minas que destroem as muralhas. Consiste em abrir um túnel sob as muralhas e escorá-lo com madeira, na qual, em seguida, se coloca fogo: o calor produzido faz desabar aquele trecho das fortificações.

No mar, a trirreme continua a ser a unidade fundamental, mas “vê-se também aparecerem grandes barcos com trinta ou quarenta fileiras de remadores, cobertos com blindagem de madeira contra os golpes de esporões e trazendo em abundância torres e máquinas”[1]. São usadas frotas de até 500 barcos de guerra. Nau de três bancadas, a trirreme é construída pela primeira vez em Corinto, por volta de 700 a.C. Uma trirreme clássica é uma embarcação estreita e longa: mede cerca de 40 metros de comprimento por 5 metros de largura. Possui um mastro e uma vela principais, baixados antes do combate e às vezes substituídos por um mastro e uma vela menores. Uma trirreme ateniense, por exemplo, leva uma tripulação de 200 homens. Destes, 170 remam, enquanto 30 ficam de reserva. Uma trirreme chega à velocidade de 7,5 milhas marítimas por hora. As trirremes não possuem espaço a bordo para o preparo das refeições e nem para que os homens durmam. Isto é feito em terra[2].

É preciso lembrar, no que diz respeito à Palestina, que mercenários judeus já lutam em exércitos gregos mesmo antes de Alexandre Magno. Tornam-se, assim, conhecedores competentes desta organização militar, o que será útil, mais tarde, à resistência macabeia contra os Selêucidas.

Enfim, a guerra é um elemento central na civilização helenística, por razões econômicas, estratégicas ou ideológicas. De tal modo que a paz é apenas um período de preparação de uma nova guerra[3].

Calcula-se que, entre a morte de Alexandre, em 323 a.C., e a chegada de Pompeu, em 63 a.C., a Palestina é palco de pelo menos 200 campanhas militares, o que não é de se desprezar. Com todas as sequelas conhecidas de destruições, requisições, mortes, escravidão. A literatura da época conserva imagens significativas da visão judaica sobre o poder de Alexandre Magno e de seus sucessores. Como em 1Mc 1,1-4 que fala de “numerosas guerras”, do extermínio dos “reis da terra”, de seu avanço “até as extremidades do mundo”, e, pateticamente, do silêncio da terra diante do conquistador poderoso, que é Alexandre Magno. Ou na simbólica linguagem de Dn 7,7 e Dn 11,3.

 

2. Helenismo, fenômeno urbano

Um fato que logo chama a atenção de quem começa a estudar o helenismo é o fenômeno urbano. O helenismo é um fenômeno tipicamente urbano. A cidade é o seu berço. O processo de urbanização começa com Alexandre Magno – segundo Plutarco, só com o nome de Alexandria ele funda 70 cidades -, aprofundando-se com seus sucessores – veja-se o caso de Antíoco IV Epífanes – e se generaliza sob o Império Romano. Roma cria um forte mercado, transformando o Mediterrâneo em movimentada via de comunicação interna, o que leva as cidades portuárias a grande desenvolvimento. Este processo de urbanização atinge também o mundo judaico e a aristocracia de Jerusalém luta para transformá-la numa pólis. Por isso é preciso verificar este fenômeno de disseminação da pólis, na época, como fator de helenização.

Quando Alexandre Magno conquista o Oriente, a maior parte das cidades o acolhe favoravelmente e sem resistência. Nas cidades gregas da Ásia Menor – mas também nas cidades sírias e fenícias – Alexandre destitui os governos oligárquicos sustentados pela Pérsia e restabelece a democracia, restituindo-lhes a autonomia e a liberdade, embora coloque nestas cidades guarnições macedônias. As populações gregas da Ásia acolhem-no como um libertador. Por outro lado, se as cidades resistem à sua interferência, são destruídas e repovoadas com colonos estrangeiros. É o que acontece com Tiro, Gaza e Samaria, por exemplo. Às vezes, Alexandre mantém o tributo que é cobrado pelos persas, mas redireciona-o para as divindades locais, como faz em Éfeso, onde o santuário de Ártemis passa a recebê-lo. Com isto ele consegue o consenso da população local para a implantação da nova ordem macedônia.

Entretanto, o ideal sonhado pelas cidades libertadas é o de não pagar tributo, não alojar guarnições militares e nem sustentar o exército conquistador. Do que se conclui que sua “liberdade” é bastante relativa, pois Alexandre exige as três coisas.

Por que Alexandre fortalece as cidades? Porque ele precisa de fortalezas bem localizadas para a defesa do território, e as antigas cidades, em geral, estão em pontos estratégicos; porque ele precisa de sua estrutura social e política para garantir o seu domínio e porque ele precisa sustentar o seu exército[4].

As cidades orientais são também ideologicamente apropriadas pelos conquistadores, pelo menos segundo os escritores gregos, que relatam suas lendas de fundação como lendas gregas. Através de especulações etimológicas ou mitológicas, várias cidades da Palestina, por exemplo, são consideradas gregas porque “fundadas” por gregos. Assim Ráfia é relacionada com Dionísio, Gaza com um filho de Héracles, Dora com Doros, filho de Poseidon e assim por diante[5].

Os sucessores de Alexandre, em permanente conflito entre si, interferem muito nas cidades, transformando sua “liberdade” em obrigação de ficar do lado do governante do momento e não do lado do rei concorrente. Segundo Políbio, por exemplo, Filipe V, rei da Macedônia (221-179 a.C.) que está em confronto com Roma, dá a liberdade à cidade de Élis, situada a noroeste do Peloponeso, mas os seus habitantes preferem continuar aliados dos etólios que estão com os romanos. Os reis helenísticos chegam a vender cidades. Egina, conquistada pelos romanos e entregue aos etólios, é vendida por estes, em 211-210 a.C., por 30 talentos, ao rei de Pérgamo, Átalo I. E Antíoco III, o Grande, rei selêucida de 222-187 a.C., dá Stratoniceia de Cária a Rodes, segundo o mesmo Políbio[6].

Uma cidade, para ter autonomia, “que é um dos elementos da liberdade concedida pelos reis”, precisa conservar os “organismos da vida política herdados da idade clássica”[7]. Estes organismos básicos são os seguintes: magistraturas e sacerdócios epônimos, a boulé ou gerousia, estrategia, funções judiciárias, ginasiarquia e educação, organização das festas, provisão e supervisão dos mercados e polícia. As constituições das póleis helenísticas inspiram-se nos modelos jônios, dórios ou atenienses. Ou combinam vários modelos. Platão e Aristóteles, no século IV a.C., trabalham a questão da dimensão política da cidade, embora estas dimensões variem muito na época helenística[8]. Apesar da autonomia, as cidades helenísticas não são totalmente independentes, pois estão situadas no interior de reinos e impérios. Daí os constantes e variados modos de intervenção real nas cidades[9].

 

3. E todos falavam uma só língua: a koiné

Veículo fundamental de difusão do modo de vida grego no Oriente é a língua grega, conhecida neste período sob a forma de koiné. Koiné significa “comum”, e designa a língua única, comum a todos, que substitui, após as conquistas de Alexandre Magno, a pluralidade dos dialetos gregos. Esta língua, mais simples do que o grego clássico e mais flexível na absorção de elementos novos, torna-se instrumento indispensável para a comunicação dos povos tão diferenciados que constituem as monarquias helenísticas.

Qual é a origem da koiné?

No fim do III milênio ou começo do II milênio a.C. tribos vindas do norte introduzem o indo-europeu na Grécia. Os gregos não chamam sua pátria de Grécia, mas de Hellás e a si mesmos de helenos, nome derivado de uma tribo que, na época das migrações indo-europeias, se estabelece em parte da Tessália. Embora os gregos falassem vários dialetos, quando é criado o império ateniense no século V a.C. acontece uma tendência unificadora com predominância do dialeto ático. Com a conquista macedônia adota-se um dialeto único, baseado no ático, que é a koiné diálektos, a koiné do mundo helenístico[10].

Mas, para entendermos a importância da koiné como instrumento de helenização é necessário verificarmos o seu papel na circulação dos bens culturais e na estrutura política do dominador macedônio. Os modos de circulação da koiné são os jogos, as artes (poetas, músicos, atores), o comércio, a ciência, a filosofia, o exército, a administração…

M. Hengel observa que “os mercadores gregos negociavam nela [na koiné], tanto na Báctria, nas fronteiras da Índia, quanto em Marselha; as leis eram promulgadas nela e os tratados elaborados segundo determinado esquema; ela era a língua do diplomata e do homem de letras; e qualquer um que almejasse respeitabilidade social ou apenas a reputação de ser um homem educado deveria ter um impecável conhecimento dela”[11].

Vejamos, em primeiro lugar, os jogos, eficiente modo de circulação da koiné e dos padrões gregos de comportamento. Na época helenística há Jogos Olímpicosgrande difusão dos jogos de tipo olímpico. Tanto os reis, como os santuários ou as cidades os instituem por toda a parte. Ou para honrar seus antepassados, ou para comemorar uma vitória, ou ainda para agradecer aos deuses por terem se salvado de alguma catástrofe.

H.-I. Marrou, em seu conhecido estudo sobre a educação na antiguidade, diz a propósito: “Onde quer que se implante o helenismo aparecem ginásios, estádios, edificações esportivas; reencontramo-los por toda parte, de Marselha à Babilônia ou Susa, do Egito meridional à Crimeia e não somente nas grandes cidades, mas até nas menores aldeias de colonização, por exemplo, em Fayum. O esporte não é para os gregos apenas um divertimento apreciado; é algo de muito sério, que se relaciona com todo um conjunto de preocupações higiênicas e médicas, estéticas e éticas a um só tempo”[12].

Há quatro grandes festivais pan-helênicos, ocasião em que vêm visitantes de todas as partes do mundo grego e em que circulam músicos, atores, poetas, políticos e atletas. Estes festivais enfatizam a unidade da raça grega, incentivam a prática do atletismo como uma postura social civilizada e estimulam as artes, especialmente a poesia, a música, a escultura e a pintura. São eles: o festival Olímpico, celebrado em Olímpia a cada quatro anos; o festival Pítico, realizado em Delfos no terceiro ano de cada Olimpíada, em agosto-setembro, para celebrar a vitória de Apolo sobre a serpente Píton; o festival Ístmico, celebrado no istmo de Corinto em honra de Melicertes, um grego divinizado que morre afogado e cujo cadáver aparece numa praia do istmo de Corinto; e o festival Nemeu, realizado a cada dois anos no vale de Nemea, perto de Cleoneia, na Argólida, dois meses após o festival Ístmico. A tradição diz que o festival se celebra em honra de Ofeltes, morto durante a expedição dos Sete contra Tebas [13].

Sobre o festival Olímpico, observa P. Harvey: “Poetas e oradores aproveitavam-se da grande afluência de visitantes para tornarem-se conhecidos mediante a declamação de suas obras. Atletas e donos de cavalos de corridas vinham de muitos Estados gregos, e realizava-se simultaneamente uma grande feira. Pode-se fazer uma ideia aproximada do número de pessoas presentes ao festival considerando o fato de o estádio de Olímpia ter capacidade para acomodar 40.000 espectadores sentados”[14].

Além das festas pan-helênicas, há as festas regionais, que também atraem visitantes. Em Atenas são celebradas as Panatenaias, as Tesmoforias, as Targélias, as Pianêpsias, as Apatúrias e 4 festas em honra de Dionísio (as Dionísias Rústicas, as Lenaias, as Antestérias e as Dionísias Urbanas). Em Esparta são celebradas as Ginopedias e as Cárneias. Em Argos, a Heraia etc.

Cópia romana do Discóbolo, de Míron (séc. V a.C.)Mas, deixemos as festas. Vamos a outro modo de circulação da koiné: os médicos ambulantes. Há também os médicos da corte, que além de exercerem sua função técnica são, frequentemente, discretos conselheiros reais e até embaixadores. Mas o que nos interessa são os médicos públicos.

O médico público é nomeado pela assembleia do povo na pólis, recebe seus proventos da cidade, que institui um imposto para tal fim, o iatrikon (iatrikós, “pertencente aos médicos ou à medicina”; he iatrikê, “a medicina”). São muito respeitados e vários decretos honoríficos louvam sua competência e devotamento, especialmente em situações críticas como terremotos e epidemias. Hipócrates, nascido em Cós por volta de 460 a.C. é o modelo do médico grego.

Como vimos, as conquistas de Alexandre alargam os domínios gregos em desmesurada proporção. As guerras contínuas entre os vários Estados helenísticos e entre estes e Roma criam a necessidade de amplo uso da diplomacia. Assim, os embaixadores são também portadores da língua grega que chamamos de koiné. Como não existe um corpo diplomático permanente e profissional, são filósofos, médicos, sábios, historiadores e juristas que cumprem tais tarefas. Ou homens ricos de famílias de renome. Veja-se o caso do historiador Políbio e de seu pai Licortas, participando de embaixadas no século II a.C. Aliás, Políbio escreve sua “História” na língua koiné[15].

A filosofia é outro instrumento de circulação da koiné. Quatro grandes escolas florescem, além de outras tendências menores. Gente de todo o mundo helenístico acorre aos grandes centros filosóficos ou escuta os filósofos ambulantes.

As quatro grandes escolas são a Academia, fundada por Platão, que pensa em dedicar-se à política, mas acaba voltando-se para a filosofia quandoSócrates (Atenas, ca. 470-399 a.C.) - Museus Capitolinos, Roma conhece Sócrates, por volta de 407 a.C., tornando-se seu fiel aluno[16]; outra grande escola filosófica é o Liceu, fundada por Aristóteles em 335 a.C. A influência de Aristóteles sobre todo o conhecimento, ciência e cultura posteriores é imensa. Entre os peripatéticos da época helenística destaca-se Teofrasto (ap. 371-ap. 287 a.C.), sucessor de Aristóteles à frente do Liceu; o Jardim é a escola fundada por Epicuro em 306 a.C.[17]; o Pórtico, fundado por Zenão de Cítion, um semita de Chipre, por volta de 315 a.C. em Atenas e leva este nome porque funciona em uma Stoá (= colunata, pórtico). Um dos aspectos mais populares do estoicismo é a sua pregação de uma fraternidade universal entre os homens, onde não haveria distinção entre gregos e bárbaros nem entre livres e escravos. Segundo o estoicismo “o essencial é distinguir ‘o que depende de nós’ e ‘o que não depende de nós’. No segundo grupo fica tudo o que depende das paixões, e o que é preciso aprender a renunciar através de uma longa ascese que vai conduzir ao domínio sobre si próprio, à apatia (ausência de paixão). O que depende de nós é precisamente a vontade, que faz do sábio um igual a Deus. Moral dura mas exaltante, que torna o homem independente das circunstâncias, e, em particular, da sua classe e da sua situação”[18]. Mas esta moral estoica é fatalista, pois sustenta o conformismo a uma dada ordem.

Além destas quatro grandes escolas, devem ser mencionados também os céticos e os cínicos. A Escola Cética é fundada por Pírron de Élis, que vive de ap. 365 a 275 a.C. Pírron participa da expedição de Alexandre Magno. Pírron parte das contradições percebidas pelos sentidos e pelas operações do espírito para afirmar a impossibilidade do conhecimento da natureza das coisas. Então ele prega a suspensão do julgamento e a indiferença em relação ao mundo exterior[19]. A Escola Cínica é fundada em Atenas por Antístenes, nascido por volta de 440 a.C. Antístenes é discípulo e amigo de Sócrates. A escola tem esse nome porque funciona no ginásio Cinosarges, nome de um local a leste de Atenas, fora das muralhas, onde há um santuário de Héracles, aliás, segundo Antístenes, o modelo a ser imitado. O cinismo é um típico fenômeno de contracultura, meio parecido com o movimento hippie. “O cinismo é uma reivindicação de liberdade absoluta, tanto em relação às paixões quanto às necessidades físicas e às obrigações sociais. Ele é uma exasperação do ideal de autarquia, tão fortemente enraizado na mentalidade grega”[20].

Platão (Atenas, 428/27-348/47 a.C.) - Museus Capitolinos, RomaPara terminar a questão filosófica, é útil lembrarmos que com Sócrates, Platão e Aristóteles a filosofia grega chega ao seu ápice. Mas a sua reflexão se situa no âmbito da cidade-estado independente, condição que as conquistas de Alexandre Magno e a fundação das monarquias helenísticas ultrapassam. Os ensinamentos destes grandes filósofos tornam-se insuficientes para responder à nova realidade. As novas correntes de pensamento, especialmente o estoicismo e o epicurismo, atentos a essa realidade, deslocam o interesse da metafísica e da epistemologia para os problemas práticos da conduta humana. Entretanto, “são filosofias mais da resignação que da esperança, e procuram um caminho para a paz e a felicidade no estado de espírito do indivíduo, tornando-o independente das circunstâncias exteriores”[21].

Deixando de lado a filosofia e voltando à Judeia, observamos que também aí a koiné deixa as suas marcas. Os papiros de Zenão, testemunham ser a língua grega bem conhecida pela alta sociedade do judaísmo palestino já por volta do ano 260 a.C. e as cartas que o judeu Tobias escreve a Apolônio e ao rei Ptolomeu II Filadelfo testemunham que seu secretário domina um excelente grego[22].

Devemos supor que também em Jerusalém, no século III a.C., uma respeitável minoria aristocrática fale o grego corretamente. Sabemos que José, o filho de Tobias, incrementa o modo de vida grego em Jerusalém a partir de 242 a.C., quando se torna o prostátes, chefe administrativo e financeiro da Judeia. M. Hengel observa que “enquanto o senhor feudal Tobias residia na Transjordânia, José e os seus descendentes viviam na cidade junto com a nobreza que tendia a urbanizar-se, de modo que Jerusalém pouco a pouco se abriu à influência helenística”[23].

Quando Antíoco IV Epífanes entra em choque com os judeus no século II a.C. o grego já é muito difundido. A luta dos Macabeus e a resistência à helenização não impedem a difusão da língua nem diminuem a sua influência. Até mesmo porque se os Macabeus desejam influenciar a numerosa e forte diáspora judaica de fala grega, precisam desta língua internacional. Atestam esta realidade a produção literária judaica em grego e a tradução grega de obras escritas em hebraico.

Finalmente, é necessário observar que o costume de adotar nomes gregos cresce progressivamente entre os judeus e por toda a Palestina. UmaAristóteles (Estagira, 384 - Cálcis, 322 a.C.) - Museo Nazionale Romano, Roma forma intermediária bastante usada pelos judeus é o nome duplo semita-grego, como Eliakim-Alcimo, Jeshua-Jasão, Simeão-Simão.

A barreira linguística é uma barreira social. Ilustra-o o caso – até mesmo cômico – que está em um dos papiros de Zenão (Papiro Colúmbia-Zenão 66). No fim de sua viagem pela Palestina, em 258 a.C., Zenão deixa em Jope um seu auxiliar sem o pagamento prometido. Ele então foge para o interior do país “para não morrer de fome”. Ao ser obrigado a voltar para o Egito é privado até mesmo do salário mínimo e diz: “Por isso estou angustiado no verão e no inverno. Jasão mandou-me aceitar vinho de má qualidade como pagamento. Agora tratam-me com desprezo, porque sou um bárbaro. Peço-lhe, portanto (…) que exija deles dar-me o que me cabe e que para o futuro deem-me todo o pagamento para que não morra de fome pelo fato de não conhecer corretamente a língua grega (hóti ouk epístamai hellênízein)”[24].

Com efeito, o termo hellênízein significa primariamente “falar grego corretamente” e também “adotar um estilo de vida grego”. E a ironia: a carta do suplicante está escrita em grego… Assim como os nossos atuais cientistas sociais precisam escrever em inglês para denunciar o domínio dos países ricos sobre os países pobres…

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[1]. LÉVÊQUE, P. Impérios e barbáries do século III a.C. ao século II d.C. Lisboa: Dom Quixote, 1979, p. 32.

[2]. Cf. HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, verbete Embarcações.

[3]. Cf. PRÉAUX, C. Le Monde hellénistique. La Gréce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) I. 4. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2003, p. 332-357. Cf. também  PLUTARCO Pirro 12. Em Vidas Paralelas III: São Paulo: PAUMAPE, 1991, p. 21. Plutarco faz eco a Platão que em Leis I, 626a diz: “O que a maioria dos homens denomina paz, disso tem apenas o nome, pois em verdade, embora não declarada, é a guerra o estado natural das cidades entre si”. Cf. PLATÃO Diálogos, vols. XII-XIII. Belém: Universidade Federal do Pará, 1980, p. 21. A partir de 2000, a Universidade Federal do Pará iniciou a reedição gradual dos Diálogos de Platão, sob a coordenação do filósofo Benedito Nunes.

[4]. Cf. PRÉAUX, C. Le Monde hellénistique. La Gréce et l’Orient (323-146 av. J.-C.) II. 4. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2002, p. 408-410.

[5]. Cf. SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ II. Edinburgh: Bloomsbury T & T Clark, 1986, p. 50-52. 

[6]. Cf. POLÍBIO História IV, 84; XXII, 8,10 e XXX, 31. Brasília: Editora da UnB, 1985. Para outros dados sobre a liberdade das cidades, cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 411-412.

[7]. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 414. 

[8]. Cf. PLATÃO Leis V, 737d-738e, em Diálogos, vols. XII-XIII, p. 149-151. ARISTÓTELES Política VII, 1326 a-b. Em Política. 6. ed. São Paulo: Lafonte, 2012.

[9]. Cf. exemplos em PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 415-428. 

[10]. Cf. HARVEY, P. o. c., verbete Migrações e Dialetos.

[11]. HENGEL, M. Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period. London: SCM Press, 2012, p. 58.

[12]. MARROU, H.-I. História da educação na antiguidade. 5ª reimpressão. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1990, p. 185.

[13]. Cf. HARVEY, P. o. c., verbete Festivais.

[14]. HARVEY, P. o. c., verbete Festivais

[15]. Cf. sobre os embaixadores, PRÉAUX, C. Le monde hellénistique I, p. 220-224.

[16]. Cf. PLATÃO Diálogos 13 vols. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973-1980. A partir de 2000, a Universidade Federal do Pará iniciou a reedição gradual dos Diálogos de Platão, sob a coordenação do filósofo Benedito Nunes; DE ROMILLY, J. Fundamentos da literatura grega. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p. 188-202. A influência e a difusão do platonismo são imensas em todo o mundo helenístico. Entre os vários nomes célebres da Academia, lembro, a propósito da Palestina, Antíoco de Askalon, do século I a.C.

[17]. HARVEY, P. o. c., verbete Epícuros, explica que “os ensinamentos dessa escola filosófica são condensados concisamente nas doze palavras que o filósofo epicurista Diôgenes de Oinoanda (na Líbia) inscreveu em um lugar de meditação em sua cidade: ‘Aphobon ho theôs, anáistheton ho thânatos, tô agathon êukteton, tô deinon euekkartêreton‘ (não há o que temer em Deus, não se sente a morte, o Bem está ao nosso alcance, o Mal é suportável)”. Segundo o epicurismo não há o temer dos deuses, porque eles são indiferentes em relação aos homens e não há porque temer a morte, porque a alma é constituída de sutis átomos materiais e se desagregam no momento da morte. O epicurismo é uma filosofia de notável sucesso na época helenística, tanto no Oriente quanto em Roma. Atinge as classes populares, as mulheres e os escravos. Da Palestina conhecemos Filodemo de Gadara, filósofo epicurista do século I a.C.

[18]. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 119. O estoicismo difunde-se muito por todo o mundo helenístico e no ambiente romano. Cícero, Sêneca, o Filósofo, e Marco Aurélio, imperador romano, por exemplo, são estoicos. Na Palestina destacam-se os filósofos estoicos Boécio de Sidon, do século II a.C., e Antíoco de Askalon, dos séculos II/I a.C.

[19]. Cf. HARVEY, P. o. c., verbete Escola Cética.

[20]. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 620. Diôgenes de Sinope, do século IV a.C., é o mais famoso filósofo cínico. Vários ditos espirituosos atribuídos a Diógenes são recolhidos por Diógenes Laércio, escritor do século III d.C. Um filósofo cínico conhecido da Palestina é Menipo de Gadara. Escravo de nascimento, vive no século III a.C. e cria uma obra filosófica satírica que conquista o mundo grego e, mais tarde, Roma.

[21]. HARVEY, P. o. c., verbete Filosofia. O que é confirmado por PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 607: “Os filósofos helenísticos têm uma função de evasão: vontade de contracultura dos cínicos, procura de indiferença pelos epicuristas, fatalismo dos estoicos, suspensão de julgamento dos céticos”.

[22]. Os papiros de Zenão constituem uma coleção de cerca de 2.000 papiros, encontrados após 1910, perto da antiga Filadélfia, localizada nas vizinhanças do oásis de Fayum, Egito, e trazem os arquivos de Zenão, que entra para o serviço de Apolônio, poderoso ministro de Ptolomeu II Filadelfo, no qual permanece 13 anos, de 261 a 248 a.C. Zenão faz uma viagem de negócios para seu patrão, à Palestina, no final de 260 a.C. Fica na região até o começo de 258 a.C., isto é, por um período de 13 a 14 meses e alguns de seus papiros relatam o que aconteceu por lá. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon. L’orizon d’un grec en Egypte an IIIe siècle avant J. C. Paris: Macula, 1988.

[23]. HENGEL, M. Ebrei, Greci e Barbari. Aspetti dell’ellenizzazione del giudaismo in epoca precristiana. Brescia: Paideia, 1981 , p. 60.

[24]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon, p. 132-133.


Essênios

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Os essênios: a racionalização da solidariedade

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1. A descoberta

No dia 18 de fevereiro de 1948, John C. Trever (1915-2006), das  “American Schools of Oriental Research” (ASOR), recebe, em Jerusalém, um telefonema do monge Butros Sowmy, professor e secretário do mosteiro sírio-ortodoxo de São Marcos, situado na mesma cidade. O assunto é a identificação de uns manuscritos escritos em hebraico antigo, que ele não consegue classificar ao organizar a biblioteca.

John C. Trever - Jerusalém, fevereiro de 1948Na tarde do dia seguinte, o monge Butros leva à Escola Americana cinco rolos de pergaminho. J. C. Trever, ao compará-los com as fotografias do papiro NASH[1], sente o coração disparar: o hebraico dos manuscritos é extremamente parecido com o deste texto do séc. II a.C. Para quem sabe que os textos bíblicos hebraicos mais antigos que possuímos, e que servem de base para as nossas Bíblias (AT), são dos séculos IX e XI de nossa era, o caso é ainda mais emocionante[2].

Pois o que Trever descobre ainda naquele dia, junto com seu colega William H. Brownlee, é que o pequeno trecho que ele copiara do rolo maior é um versículo do livro de Isaías[3].

Jerusalém está, neste começo de 1948, em plena guerra árabe-israelense[4] e os contatos entre os especialistas americanos e os monges sírios são extremamente difíceis. Mesmo assim, Trever consegue que os manuscritos sejam levados novamente à ASOR e obtém a permissão do metropolita da comunidade síria, Mar Atanásio Josué Samuel, para fotografá-los. Entretanto, até este momento, nem os sírios estão dispostos a dizer de onde vêm os rolos, nem os americanos lhes revelam sua antiguidade e importância.

No dia 26 de fevereiro, Trever envia algumas fotografias dos manuscritos a W. F. Albright, nos Estados Unidos, e pede sua opinião[5].

No dia 5 de março quando os manuscritos seriam fotografados para publicação, os sírios contam a Trever que os rolos foram comprados, em 1947, de uns beduínos que vivem na vizinhanças de Belém e que eles os haviam encontrado em uma gruta na região do Mar Morto.

No dia 15 de março, Trever recebe a resposta de Albright, que lhe garante ser esta “a descoberta mais importante de manuscritos dos tempos modernos” e acrescenta: “Eu os dataria em torno do ano 100 a.C.”[6].

No dia 18 de março de 1948, M. Burrows, diretor da ASOR, Brownlee e Trever comunicam a Mar Atanásio Josué Samuel a importância dos manuscritos. Convencem também o metropolita sírio a levar os manuscritos para fora da Palestina, dada a situação precária de Jerusalém, submetida a pesada guerra.

No dia 25 de março os manuscritos são depositados em um cofre de banco em Beirute. E no dia 11 de abril de 1948 a central da ASOR em New Haven (USA) divulga a notícia da descoberta.

Agora voltemos um pouco mais no tempo, até o fim de 1946. E a uma tribo de beduínos seminômades que vive no deserto de Judá, os ta’amireh.

No fim de 1946 (novembro ou dezembro) os ta’amireh estão pastoreando seus rebanhos em Ain Feshka, oásis próximo ao Mar Morto. Três pastores,ed-Dib, à esquerda Khalil Musa, Juma Mahoma Khalil e Mahoma Ahmed el-Hamed, cognominado ed-Dib (o lobo), descobrem em uma das grutas da região uns jarros de argila e em um deles três rolos[7].

Em março de 1947 os beduínos deixam os três rolos com o antiquário de Belém Abraham Iylia que, temendo terem sido roubados de alguma sinagoga, os devolve no dia 5 de abril.

No começo do verão de 1947 os ta’amireh encontram mais quatro rolos na mesma gruta. Três deles são vendidos a E. L. Sukenik, reitor da Universidade Hebraica de Jerusalém, no dia 29 de novembro de 1947[8].

No dia 19 de julho de 1947 o mosteiro de São Marcos adquire os outros quatro manuscritos dos beduínos por cerca de 97 dólares[9].

Os sírios tentam, sem sucesso, junto a vários estudiosos, identificar os manuscritos. Até que procuram os americanos, como assinalei.

Com o agravamento da guerra, o mosteiro de São Marcos é bombardeado, a comunidade síria foge de Jerusalém e começa a sustentar milhares de refugiados. Assim, o metropolita sírio decide levar os manuscritos para os Estados Unidos e vendê-los. Para isso, ele chega a Nova York no dia 29 de janeiro de 1949.

Mas as coisas não dão certo. As instituições americanas se interessam pouco pelos rolos, o arcebispo sírio quer inicialmente um milhão de dólares, E. L. Sukenik tenta boicotar a venda, alegando que o material pertence ao Estado de Israel, a região árabe da Palestina é anexada ao reino da Jordânia, que passa também a reivindicar o seu direi­to sobre os manuscritos…

Santuário do LivroA partir de 1965 os manuscritos ficam guardados no Santuário do Livro, museu construído em Jerusalém para abrigar as descobertas do Mar Morto e os estudos sobre eles[10].

Ainda resta o problema de chegar até o local das descobertas. Quem consegue primeiro ir até lá é um oficial belga das tropas da ONU que procuram manter a paz entre árabes e judeus. No dia 28 de janeiro de 1949 a gruta é localizada pelo grupo do capitão Ph. Lippens.

Só em 1954 Ygael Yadin, general israelense e arqueólogo, filho de Sukenik, consegue comprar os manuscritos através de um banco nova-iorquino, sem que os sírios saibam a quem estão vendendo, porque, por razões políticas, eles se recusam a deixá-los com os judeus. O preço pago: 250 mil dólares pelos quatro rolos.

De 15 de fevereiro a 5 de março de 1949 é feita a escavação desta primeira gruta. A expedição é dirigida por R. de Vaux, diretor da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém e por G. L. Harding, diretor inglês do Serviço de Antiguidades da Jordânia[11].

Essa gruta mede 8 metros de comprimento por 2 de largura. Além dos sete manuscritos encontrados pelos beduínos, os arqueólogos conseguem recuperar pedaços das tampas de cerca de cinquenta jarros[12] e de quatro candeeiros de argila, cerca de seiscentos fragmentos de pele correspondentes a uns setenta manuscritos (15 livros bíblicos e 55 não bíblicos), tecidos de linho que envolviam os rolos, quarenta fragmentos de papiro e outros objetos.

Esta gruta está situada nos rochedos de uma falésia a cerca de 1300 metros ao norte de algumas ruínas que os árabes conhecem pelo nome de Khirbet Qumran. “Khirbet” significa “ruína” e “Qumran” deriva do nome do Wadi Qumran ali existente. Estas ruínas estão a 12 km ao sul da atual Jericó e a 1 km da margem noroeste do Mar Morto. Os arqueólogos sempre acharam que fossem ruínas de uma fortaleza[13].

Escrevendo em 1949 sobre a exploração da gruta, R. de Vaux acredita que “estes rolos, de idades diferentes, cuidadosamente guardados em vasilhas da mesma época, não são peças abandonadas por acaso, mas um arquivo ou biblioteca escondida em um momento de perigo”. E, ao datar a cerâmica e com ela relacionar os manuscritos, acrescenta: “Nenhum documento é posterior aos começos do século I a.C. e alguns deles podem ser mais antigos”[14].

Agora é necessário descobrir quem teria depositado os manuscritos na gruta. O estabelecimento humano mais próximo é representado pelas ruínasRoland de Vaux (1903–1971) de Qumran. R. de Vaux e G. L. Harding fazem assim a primeira expedição de escavações no Khirbet Qumran de 24 de novembro a 12 de dezembro de 1951.

Identificam uma construção retangular de 37 metros de comprimento por 30 metros de largura à qual se ligam outros edifícios e um aqueduto que serve para recolher as águas do Wadi Qumran no inverno[15]. A cerâmica encontrada é idêntica à de 1Q: isto relaciona os manuscritos com o grupo que vivia em Qumran. O cemitério, com mais de mil túmulos, rigorosamente organizado, também é investigado e nove esqueletos são enviados a Paris para exames técnicos.

Mas as moedas são o achado mais precioso, porque permitem a datação do assentamento humano de Qumran. As dez moedas identificadas inicialmente vão da época de Herodes Magno (37-4 a.C.) à segunda guerra judaica contra Roma (132-135 d.C.).

Entretanto, ainda em 1951, os ta’amireh levam mais fragmentos manuscritos a Jerusalém e os oferecem aos arqueólogos, que os compram. No dia 21 de janeiro de 1952, R. de Vaux e outros arqueólogos seguem até a região do Wadi Murabba’at, situado a 25 km a sudeste de Jerusalém e a cerca de 18 km ao sul de Qumran. Em algumas grutas desta região são encontrados importantes documentos em hebraico, aramaico, grego e latim relacionados, em sua maioria, com a segunda guerra judaica contra Roma  (132-135 d.C.) Fica estabelecido que Murabba’at servia de refúgio aos soldados de Simão bar Kosibah, líder do levante, de quem são recuperadas até cartas assinadas.

Enquanto a equipe de R. de Vaux se encontra em Murabba’at, os ta’amireh levam novos manuscritos a Jerusalém, descobertos em outra gruta de Qumran, que será chamada de 2Q. Nela são encontrados 185 fragmentos de pele. Logo em seguida, De Vaux e seu pessoal, em março de 1952, faz um levantamento da falésia, numa extensão de 8 km, explorando 230 grutas. Destas, 37 contêm cerâmica e outros objetos. E a cerâmica é idêntica à das ruínas de Qumran e da primeira gruta.

Na terceira gruta de Qumran são encontrados cerca de 35 jarros e fragmentos de mais ou menos 30 rolos de pele extremamente deteriorados. Mas o seu conteúdo mais curioso era de cobre: na parte anterior da gruta jaziam dois rolos de cobre com um texto gravado em caracteres hebraicos quadrados, alguns deles em relevo[16].

Em setembro de 1952 são descobertas as grutas de número 4, 5 e 6. A gruta 4Q é a mais rica de todas: possui fragmentos de cerca de 400 manuscritos.

Na 6Q são encontrados fragmentos do “Documento de Damasco”, um manuscrito que fora recuperado em 1897 em uma antiga sinagoga do Cairo e do qual não se sabia quase nada.

As grutas de QumranNa primavera de 1955 são descobertas as grutas 7Q, 8Q, 9Q e 10Q, e em fevereiro de 1956, a última, a 11Q, com quatro rolos em bom estado de conservação[17].

As ruínas de Qumran são escavadas em 6 diferentes expedições que se encerram em 1958. Arqueólogos judeus pesquisam também os wadis da região ocidental do Mar Morto entre Engaddi e Massada e encontram importantes documentos[18].

No total, cerca de mil documentos são recuperados em 20 grutas no deserto de Judá, entre os anos de 1946 e 1966. Além de centenas de óstraca (= cacos de cerâmica com escrita) e inscrições.

Em Khirbet Qumran os arqueólogos identificam um conjunto de construções bastante interessante: oficinas, olaria, despensas, refeitório, cisternas, um “scriptorium” etc. Nenhum fragmento de manuscrito é encontrado nas construções, mas apenas alguns óstraca. E a sua grafia é a mesma dos manuscritos encontrados nas grutas. Também são recolhidas cerâmicas, moedas e outros objetos.

O curioso é que o edifício não tem dormitórios. Ou se dormia em tendas ou nas grutas das redondezas. O estabelecimento agrícola de Ain Feshka, ao sul de Qumran, também é explorado. Ali os essênios manufaturam a palmeira, juncos, sal, betume e cereais. Estes últimos são cultivados numa planície a oeste de Qumran, a Buqea, que mede cerca de 8×4 km[19].

 

2. Os manuscritos

No total, são recuperados, em 11 grutas de Qumran, 11 manuscritos mais ou menos completos e milhares de fragmentos de mais de 800 manuscritos em pergaminho e papiro. Escritos em hebraico, aramaico e grego, cerca de 225 manuscritos são cópias de livros bíblicos, sendo o restante livros apócrifos, trabalhos exegéticos e escritos da comunidade que vive em Qumran.

Todos os manuscritos são anteriores ao ano 68 d.C., quando Qumran é destruído. Os mais antigos são anteriores à instalação da comunidade que vive em Qumran e remontam ao século III a.C. O mais antigo é o 4QExf, datado em torno de 250 a.C. O teste do Carbono 14 chega à data de 33 a.C. com 200 anos para mais ou para menos.

O método do Carbono 14, descoberto em 1947, é aplicado em 1950-51 a um pedaço de linho que envolve os manuscritos. Não é possível aplicá-lo diretamente aos manuscritos porque exige a destruição de 1 a três gramas de material.

Mais recentemente, em 1990 e 1994-95, vários manuscritos são submetidos ao teste AMS (= Accelerator Mass Spectrometry), ou Espectrometria de Massa com Acelerador de Partículas, técnica de datação descoberta em 1987. O material orgânico necessário para o AMS é de apenas 0,5 a 1,0 miligrama. Dos 14 manuscritos testados em 1990, por exemplo, 4 não são de Qumran e estão datados com segurança através de outros métodos: isto é necessário para se checar a veracidade dos resultados. E os resultados confirmam, com certa segurança, a datação feita através de outros métodos como a paleografia. Com certeza nenhum dos manuscritos de Qumran foi copiado após 68 d.C.[20].

 

Manuscritos bíblicos

São recuperados manuscritos e fragmentos de quase todos os livros bíblicos judaicos, pois só falta Ester[21].

O Pentateuco está muito bem representado em Qumran, pois há 15 manuscritos fragmentados do Gênesis, 15 do Êxodo, 9 do Levítico, 6 de NúmerosGrutas de Qumran e 25 do Deuteronômio. São 70 manuscritos. Estes manuscritos ligam-se a três tradições textuais:

a) à do texto massorético (TM)
b) à do original hebraico a partir do qual é traduzida a LXX
c) à do Pentateuco samaritano[22].

A parte da Bíblia que hoje conhecemos como Obra Histórica Deuteronomista (OHDtr.), composta pelos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis está pouco presente em Qumran, num total de apenas 12 manuscritos.

Os arqueólogos recuperam apenas fragmentos de 2 manuscritos de Josué, 3 de Juízes, 3 de Samuel e 4 de Reis. O grande interesse desses manuscritos para os estudiosos é que eles estão bem mais próximos do texto hebraico usado para a tradução da LXX do que do texto massorético.

Dos profetas são encontrados 18 manuscritos: 2 de Isaías – um quase completo (1QIsa) e outro com uma parte apenas (1QIsb) – 4 de Jeremias, 6 de Ezequiel e 8 dos doze profetas menores.

Os textos de Isaías são próximos ao TM, assim como os de Ezequiel e dos profetas menores, mas um manuscrito de Jeremias, 1QJrb, traz o mesmo texto da LXX. E isso é importante, pois o Jeremias da LXX é bem mais curto do que o do TM. Este é resultado de uma ampliação posterior, enquanto o que serve de base para a LXX é mais sóbrio.

1QIsa é um rolo quase completo de Isaías, datando da primeira metade do séc. I a.C. 1QIsb está mal conservado e contém apenas Is 38-66 e trechos de outros capítulos. É da última metade do séc. I a.C.

Quanto à última parte da Bíblia Hebraica, os Escritos, são recuperados em Qumran restos de cerca de 66 manuscritos. Os Salmos estão bem representados com 30 manuscritos, Daniel está em 8 e assim por diante. Na gruta 4 são recuperados fragmentos do original aramaico de Tobias, até então perdido, e textos muito próximos à época de composição dos originais como 4QEcla e 4QDna, respectivamente, cerca de cem e cinquenta anos após a escrita dos livros do Eclesiastes e de Daniel.

Ester não é encontrado. Como esse livro é muito bem aceito pelos Macabeus, isto deve ter provocado sua rejeição pela comunidade de Qumran, inimiga daqueles governantes.

No conjunto, são cerca de 225 manuscritos ou fragmentos de livros bíblicos. Sua importância para a história do texto do AT é grande, já que testemunham as várias tradições existentes antes da unificação feita pelos rabinos de Jâmnia nos anos 90 da era cristã.

 

Livros apócrifos

Outra área bastante interessante dos manuscritos de Qumran é a dos livros apócrifos.

Na gruta 1 são encontradas 22 colunas de um Gênesis Apócrifo (1QapGn), em aramaico, que narra a história de Gn 5,28-15,4, isto é, de Lamec a Abraão, com embelezamentos midrashicos. Pode ser datado entre o II e o I séculos a.C.

Vários fragmentos da gruta 1 testemunham a existência de um Livro de Noé. Na gruta 4 há fragmentos de 5 manuscritos de um Testamento de Amram (Amram é neto de Levi, segundo a Bíblia), sete fragmentos de um Samuel Apócrifo (4Q160) etc.

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[1]. O Nash consiste de uma folha de papiro, escrita em hebraico, com o texto do Decálogo (Ex 20,2-17 = Dt 5,6-21) e do Shema (Dt 6,4-5). Seu nome vem de Walter Llewellyn Nash que o adquire no Egito. Pertence à Universidade de Cambridge, Inglaterra. Data da metade do século II a.C. Antes da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto era o mais antigo manuscrito conhecido contendo um texto da Bíblia Hebraica. Foi digitalizado e pode ser visto na página da Cambridge Digital Library.

[2]. O texto hebraico já está fixado no século II d.C. Nos séculos seguintes os escribas copiam novos rolos, procurando limitar os erros de transcrição ao mínimo. Para a compreensão correta do texto eles começam a fazer anotações nas margens, assinalar palavras duvidosas etc. No século V entram em ação os chamados massoretas. O termo vem do hebraico masar = “transmitir” e os massoretas são os “transmissores” do texto. Além de fazer anotações sobre o texto, estes sábios judeus sentem a necessidade de vocalizá-lo e acentuá-lo, para se obter um texto mais uniforme e fixo. Neste processo cada escola segue um método diferente, como a oriental, sediada na Mesopotâmia e a ocidental, na Palestina. Depois de muitas peripécias, prevalece a escola de Tiberíades (Palestina) aí pelo ano 900 d.C. E em Tiberíades as famílias Ben Neftali e Ben Asher. Desta última temos dois manuscritos importantíssimos: o manuscrito massorético mais antigo, Codex do Cairo, escrito e vocalizado por Moisés ben Asher, data do ano 895, mas só contém os profetas (anteriores e posteriores). O mais precioso é, porém, o Codex de Aleppo, quase completo, escrito e vocalizado por Aarão ben Moisés ben Asher, até 930. Pertencia à sinagoga de Aleppo e é salvo da destruição em 1948, sendo levado para Israel. Um terceiro manuscrito importante é o Codex de Leningrado, baseado nos manuscritos de Aarão ben Moisés ben Asher. Este contém todo o AT e é escrito em 1008. A melhor edição crítica que possuímos hoje – que é a Bíblia Hebraica Stuttgartensia – baseia-se principalmente neste manuscrito.

[3]. Todos os detalhes desta descoberta podem ser lidos em TREVER, J. C. The Dead Sea Scrolls: A Personal Account. A Revised Edition of the Author’s Untold Story of Qumran. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2003. Vale a pena visitar a página  The Orion Center for the Study of the Dead Sea Scrolls and Asssociated Literature. O Orion Center pertence ao Instituto de Estudos Judaicos da Universidade Hebraica de Jerusalém e possui variados e atualizados recursos para o estudo dos Manuscritos. Os Manuscritos do Mar Morto estão online. Um relato de sua descoberta pode ser visto no site dos manuscritos.

[4]. Ben Gurion, líder da Agência Judaica, proclamou a 14 de maio de 1948 a fundação do Estado de Israel. Os árabes declararam, no dia seguinte, guerra ao Estado sionista. Mal equipados, destreinados, os exércitos árabes foram fragorosamente derrotados pelos sionistas.

[5]. William Foxwell Albright (1891-1971) foi um destacado arqueólogo bíblico do século XX.

[6]. Os americanos tentam, nesta época, chegar até às grutas da região do Mar Morto, mas a guerra os impede.

[7]. O relato dos beduínos é impreciso, mas estes rolos devem ser o manuscrito de Isaías (1QIsa), a Regra da Comunidade (1QS) e o Comentário de Habacuc (1QpHab).

[8]. Estes três textos serão identificados mais tarde como os Cânticos de Louvor (1QH), a Regra da Guerra (1QM) e um texto fragmentário do livro de Isaías (1QIsb).

[9]. São cinco rolos, mas apenas quatro textos. A “Regra da Comunidade” está partida em dois rolos. O quarto rolo é o Gênesis apócrifo (1QapGn).

[10]. A bibliografia sobre os manuscritos do Mar Morto chega a milhares de títulos atualmente. Observe a bibliografia de The Orion Center.

[11]. As grutas são numeradas segundo a ordem das descobertas, seguidas pela identificação dos manuscritos aí encontrados. Assim 1QIsa significa Manuscrito a de Isaías encontrado na primeira gruta de Qumran; 1QapGn quer dizer Apócrifo do Gênesis da primeira gruta de Qumran e assim por diante.

[12]. Os dois jarros comprados dos beduínos por Sukenik em 1947 medem um 65 cm de altura por 25 cm de diâmetro e o outro 47 cm de altura e 26 cm de diâmetro.

[13]. Cf. The Fortress at Qumran: A History of Interpretation – By Robert Cargill – The Bible and Interpretation: May 2009.

[14]. As citações de R. de Vaux foram lidas em LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto: Balance de 25 años de hallazgos y estudio. 2. ed. Madrid: La Editorial Católica, 1973, p. 42-43.

[15]. Na Palestina as chuvas ocorrem no inverno, começando pelos fins de outubro, começos de novembro e terminando em abril ou maio. Entretanto, chuvas fortes caem apenas durante 5 meses, da metade de novembro à metade de abril. Como nesta região desértica próxima ao Mar Morto o nível de precipitação é muito baixo (100 mm anuais), a água deve ser recolhida de nascentes em oásis ou da chuva de inverno nos wadi, torrentes secas a maior parte do ano. Cf. KEEL, O.; KÜCHLER, M.; UEHLINGER, C. Orte und Landschaften der Bibel I. Zürich/Göttingen: Benziger/Vandenhoeck & Ruprecht, 1984, p. 40-47.

[16]. Este material, tão diferente, gerou muita especulação. Sobre isso, leia o artigo On the Insignificance and the Abuse of the Copper Scroll, escrito por Robert R. Cargill e publicado em The Bible and Interpretation em julho de 2009.

[17]. Os arqueólogos só descobrem as grutas nº 3 e 5 de Qumran. Todas as outras são achadas pelos ta’amireh.

[18]. Li a história destas escavações em LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto, p. 63-78.

[19]. Cf. KEEL, O. ; KÜCHLER, M. Orte und Landschaften der Bibel II. Zürich/Göttingen: Benziger/Vandenhoeck & Ruprecht, 1982, p. 453-455. Sobre a situação atual (2013) dos estudos sobre Qumran, leia aqui.

[20]. O processo de datação pelo carbono 14 funciona da seguinte maneira: quando um nêutron vindo do sol acerta um núcleo de nitrogênio, ele expulsa um próton e fica preso. O átomo vira um isótopo do carbono com oito nêutrons (carbono 14). O carbono 14 é um átomo instável e tende a voltar a ser nitrogênio. A cada 5.730 anos metade dos átomos de C14 vira N14. Mas como ele é produzido sempre, a quantidade é constante. O carbono combina-se com o oxigênio e forma gás carbônico. O carbono 14 também forma essas moléculas. O gás carbônico é absorvido pelas plantas no processo de fotossíntese. Os homens e os animais comem as plantas e ingerem o isótopo. Quando morrem, não há reposição de carbono 14 e a quantidade cai. Quando o material orgânico é encontrado, pode-se saber sua idade pela concentração de carbono 14 que ainda resta. Com essa técnica são feitas datações entre 5.730 e 50.000 anos.

[21]. Cf., sobre os manuscritos, ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária. 2. ed. São Paulo: Ave-Maria, 2013; NICKELSBURG, G. W. E. Literatura judaica entre a Bíblia e a Mixná: uma introdução histórica e literária. São Paulo: Paulus, 2011; BOCCACCINI, G. Além da hipótese essênia: a separação entre Qumran e o judaísmo enóquico. São Paulo: Paulus, 2010; COLLINS, J. J. The “Dead Sea Scrolls”: A Biography. Princeton: Princeton University Press, 2012; GROSSMAN, M. L. (ed.) Rediscovering the Dead Sea Scrolls: An Assessment of Old and New Approaches and Methods. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2010; STACEY, D. ; DOUDNA, G. Qumran Revisited: A Reassessment of the Archaeology of the Site and Its Texts. Oxford: Archeopress, 2013.

[22]. O Pentateuco samaritano, pertencente à comunidade separada de Samaria, começa a ter sua história independente no final do séc. II a.C. 


O discurso socioantropológico

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O discurso socioantropológico: origem e desenvolvimento

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O objetivo deste artigo é esboçar um panorama da origem e do desenvolvimento de duas ciências sociais que estão sendo hoje muito utilizadas na leitura da Bíblia. Trata-se da sociologia e da antropologia cultural ou social, somadas no discurso que caracterizamos como socioantropológico. Em inglês, a terminologia comumente utilizada é Social-Scientific Criticism.

A parte dedicada à sociologia está razoavelmente delineada no artigo, enquanto que a antropologia precisaria ser melhor desenvolvida, mas o pouco conhecimento da área impõe-me, por ora, tais limites.

 

1. Deslocamentos no pensamento europeu do século XV ao século XVIII

Do século XV ao século XVIII acontecem dois deslocamentos no pensamento humano na Europa.

O primeiro é a passagem da especulação escolástica à filosofia da natureza. A natureza passa a ser entendida e explicada experimentalmente: “O que antes era visto como mero local de tentações para uma alma que aspirasse a recompensas noutro mundo, torna-se objeto de conhecimento científico. Em consequência, desenvolvem-se tentativas de estudo experimental dos fenômenos – esboçadas desde o século XIII nas Universidades de Paris e Oxford. Este tipo de investigação é que ganhará contornos definidos com os trabalhos científicos de Leonardo da Vinci (1452-1519) e de outros pensadores, a prenunciar a física de Galileu e Newton, desenvolvida no século XVII. Copérnico (1473-1543) formula a célebre teoria heliocêntrica. Tycho Brahe (1546-1601) prepara o caminho para a descoberta da lei da gravitação universal de Newton”[1].

A natureza, considerada pelo sobrenaturalismo da Idade Média como objeto de medo e de contemplação, torna-se objeto de estudo e de atuação do homem que procura modificá-la para que se adapte melhor às suas necessidades. Surgem, para isso, métodos mais empíricos e precisos, como mencionado acima. Este fenômeno se dá com a ascensão da burguesia, na forma de capitalismo mercantilista.

Galileu (1564-1642)É importante observarmos que, norteando-se por três princípios fundamentais para a ciência moderna – 1. É necessário observar os fenômenos tais como eles ocorrem, sem se deixar perturbar por preconceitos de natureza filosófica ou religiosa; 2. Toda afirmação sobre os fenômenos naturais deve ser verificada empiricamente; 3. A matemática oferece ao cientista a linguagem rigorosa de que ele necessita para descrever a natureza – Galileu (1564-1642) destrói a anterior concepção do universo como sistema imutável e hierarquizado, governado por Deus e reduz o universo a um mundo geométrico, a uma física mecanicista. Em O Ensaiador Galileu deixa claro que a matemática é a linguagem da física que começa a se constituir, quando diz: “A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto”[2].

O segundo deslocamento se dá quando se passa da análise da natureza para a análise da sociedade. Percebe-se, então, que a organização da sociedade não é natural, mas histórica. Questionam-se, filosoficamente, os fundamentos da sociedade a partir da ótica da nova ordem burguesa. É uma crítica ao poder absoluto, no qual Deus criava, organizava e geria o mundo através da Igreja e de suas leituras da realidade.

É de se notar: Descartes (1596-1650) descobre o sujeito pensante autônomo, coloca a consciência como a medida e a forma do ser, marcando uma definitiva virada antropocêntrica[3]. De outro lado, o empirismo inglês do século XVII, representado especialmente por T. Hobbes (1588-1679) e J. Locke (1632-1704), é responsável por uma nova abordagem da questão política. Hobbes e Locke viveram intensamente o processo de consolidação do poder político da burguesia inglesa.

Como tão bem explica Tiago Adão Lara, “ao terminar o século XVII, estavam consolidadas as duas correntes modernas de pensamento”, o Descartes (1596-1650)racionalismo e o empirismo. “O Estado substitui a Igreja, na tarefa de marcar os limites da racionalidade, para a convivência humana (…) Nesta sociedade, desvinculada da Igreja, embora ainda religiosa, não é mais à teologia que se vai pedir a última palavra a respeito dos princípios supremos da moralidade e da política, mas, sim, à filosofia, enquanto produção da razão humana. E a filosofia inovava e abria horizontes mais largos. O empirismo rompia com as barreiras tradicionais da cultura. Não era mais a partir do alto, do mundo das essências, mas a partir de baixo, do mundo dos fatos ou dos fenômenos que se devia construir algo de positivo. O Estado, concebido pelo empirismo, é criatura humana, fruto da convenção, destituído de sacralidade, religiosa ou profana. É o próprio homem que dá as cartas de leitura da sua existência e do mundo que o cerca. O homem torna-se, realmente, a medida do seu mundo significativo”[4].

 

2. A síntese kantiana entre o empirismo e o racionalismo

Mas se Descartes, no século XVII, representa a burguesia progressista pela racionalização (“penso, logo existo”) é Kant, no século XVIII, quem incorpora ao racionalismo os elementos do empirismo inglês (existo como um feixe de sensações organizadas), resultando que o homem pode ser feliz e organizar a sociedade com o uso de sua razão. Não é Deus, através da Revelação, que ordena a sociedade, mas é a própria Razão humana que fornece ao homem os instrumentos políticos para organizar e alcançar a sua felicidade.

Kant (1724-1804), de tradição racionalista, faz uma síntese entre o empirismo inglês e o racionalismo europeu. Nega que o homem possa conhecer algo que transcenda completamente a matéria (solução empirista), mas nega também que a experiência baste para o homem conhecer a matéria (solução racionalista).

Kant (1724-1804)Afirma que aquilo que conhecemos da matéria, cientificamente, é o que a razão dá à matéria, ou seja, as formas. O Fenômeno torna-se compreensível pelas aplicações das categorias a priori do Espírito. Mas o Espírito não conhece o em si, o noumenon, a essência da coisa: Kant assim interdita a metafísica e fundamenta a física, a ciência por excelência.

As questões básicas para Kant são:
. como fundamentar, filosoficamente, a nova ciência, ou seja, a física?
. como fundamentar a moralidade?

Kant é a encarnação filosófica da classe burguesa, confiante no poder demiúrgico do homem: nada melhor do que a concepção de um homem que cria o universo científico e o universo moral, segundo as normas da própria razão, para traduzir a experiência histórica do burguês que descobre, inventa, constrói e domina. Não é mais Deus o fiador do conhecimento científico nem da vida moral. É o homem[5].

Se o idealismo metodológico de Descartes privilegia a razão ante os sentidos e a tradição, o idealismo gnoseológico de Kant privilegia a forma do conhecimento – produto espontâneo da razão – ante a matéria do conhecimento – que é oferecida na sensação[6].

 

3. O idealismo ontológico de Hegel

Mas é Hegel (1770-1831) o intérprete fiel do momento histórico da Revolução. Ele é o representante máximo do idealismo alemão do século XVIII. A razão é, para ele, uma deusa. A ideia é a totalidade. Tudo o que existe é a exteriorização da ideia. O real é o racional e vice-versa! O idealismoHegel (1770-1831) hegeliano é ontológico. O mundo é a explicitação da ideia que lhe é imanente.

Hegel filosofou assim porque viveu plenamente a Revolução Francesa (1789). A burguesia triunfara, vencendo o clero e a nobreza. Era uma nova ordem, ordem racional baseada nos moldes que o homem queria, e não mais em tradições e fé religiosas. A razão humana conseguira sua libertação. Explodiam as instituições liberais vigorosamente, com toda a sua pujança. Era o homem, era a razão humana – da burguesia, mas que se julgava universal! – que triunfara. A sensibilidade pela história estava no auge. A burguesia estava consciente de que suas ideias, finalmente, se encarnavam em estruturas sociopolíticas, aptas a viabilizar a nova realidade econômica.

No hegelianismo a ordem estabelecida não retrata mais um plano divino, mas a racionalidade imanente da própria história. História que é palco de lutas entre contrários, fruto da contradição, superando-se sempre (tese, antítese, síntese). Daí a grande novidade hegeliana: a dialética.

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[1]. Vida e Obra de Bruno, em Bruno, Galileu, Campanella. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, coleção “Os Pensadores”, p. VII-VIII. Cf. também LARA, T. A. Caminhos da Razão no Ocidente: A filosofia ocidental do Renascimento aos nossos dias. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 26-30.

[2]. GALILEU, O Ensaiador, em Bruno, Galileu, Campanella, o. c., p. 119. Cf. ainda Vida e Obra de Galileu, em o. c., p. 97-98. De Galileu devem ser lidos O Ensaiador (Il Saggiatore de 1623), neste volume citado de “Os Pensadores”, e o fundamental A Mensagem das Estrelas (Sidereus Nuncius de 1610). Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins/Salamandra, 1987. Sobre Galileu devem ser lidos KOYRÉ, A. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. 2. ed.  Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986, p. 90-100; Idem, Estudos Galilaicos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986; PAGANI, S. M. ; LUCIANI, A. Os Documentos do Processo de Galileu Galilei. Petrópolis: Vozes, 1994.

[3]. De Descartes devem ser lidos o famoso Discurso do Método, de 1637, e outros textos, em DESCARTES.  3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, Coleção “Os Pensadores”. Em o Discurso do Método Descartes formula a proposta de um novo método, baseado no procedimento da matemática. Esse método deverá servir “para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade das ciências”. O título original do livro, com efeito, é: Discours de la Méthode pour bien Conduire Sa Raison et Chercher la Vérité à travers les Sciences.

[4]. LARA, T. A. Caminhos da Razão no Ocidente, p. 49-50.

[5]. “O que são as Luzes? A saída do homem de sua menoridade e pela qual ele próprio é responsável. Menoridade, isto é, incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem, menoridade pela qual ele é responsável, uma vez que a causa reside não em um defeito do entendimento, mas numa falta de decisão e coragem em se servir dele sem a direção de outrem. Sapere aude! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento. Eis a divisa das Luzes” diz KANT, O que é a Aufklärung? De Kant deve ser lida pelo menos a Crítica da Razão Pura, de 1781, em KANT (I). 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, Coleção “Os Pensadores”. Mas são importantes também a Crítica da Razão Prática, de 1788, e a Crítica da Faculdade de Julgar, de 1790.

[6]. Cf. LARA, T. A. Caminhos da Razão no Ocidente, p. 60-64.

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Sociologia

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Leitura socioantropológica da Bíblia Hebraica

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Philip R. Davies, exegeta britânico, ao falar dos métodos usados na leitura da Bíblia nas últimas décadas, sugere que a combinação das abordagens literárias e sociológicas apresenta hoje o mais promissor caminho para o avanço dos estudos da Bíblia Hebraica. É que estas abordagens examinam não somente a literatura e a realidade social de Israel, mas também as forças sociais subjacentes à produção da literatura bíblica, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto. Além disso, sublinha ainda Philip R. Davies, estas abordagens situam Israel no seu contexto histórico apropriado e questionam preconceitos teológicos que, frequentemente, estorvam os especialistas em exegese bíblica[1].

Na mesma direção sinaliza Norman K. Gottwald, quando diz que a leitura sociológica fecha a porta “firme e irrevogavelmente, às ilusões idealistas e supernaturalistas que ainda impregnam e enfeitiçam nossa perspectiva religiosa”, quando abordamos um texto bíblico. E acrescenta: “Cumpre que tanto Iahweh como ‘seu’ povo sejam desmistificados, desromantizados, desdogmatizados e desidolizados. Somente quando realizarmos esta desmitologização da fé javista, e dos seus derivados judaico e cristão, seremos capazes, aqueles dentre nós que foram formados e alimentados por esses símbolos judeus e cristãos curiosamente ambíguos, de alinharmos coração e cabeça, de combinarmos teoria e prática”[2].

Vale lembrar aqui outro aspecto: a aplicação das Ciências Sociais ao estudo da Bíblia vem conseguindo responder satisfatoriamente a questões que a clássica “teologia bíblica” não conseguiu abordar de modo adequado até agora[3].

É igualmente importante salientar que a leitura sociológica da Bíblia está relacionada especialmente com os métodos histórico-críticos e com a leitura popular. Na medida em que toda abordagem sociológica de um texto histórico é também uma abordagem histórica, a leitura sociológica tem complementado e corrigido a leitura histórico-crítica. Especialmente importante é a percepção de que sua colaboração se faz necessária quando a historiografia não se contenta em descrever as ações dos grupos dominantes de determinada sociedade, mas a história quer revelar a atividade total de um povo. Do mesmo modo, a leitura popular que vem sendo feita entre nós se beneficia das contribuições das Ciências Sociais. No estudo do contexto em que foram escritos os textos bíblicos, por exemplo, costuma-se olhar os quatro lados da situação enfocada: os lados econômico, social, político e ideológico. Esta é uma atitude sociológica, entre outras que poderiam ser aqui citadas[4].

É sobre esta atitude que David J. Chalcraft, organizador de um livro sobre a aplicação das Ciências Sociais ao Antigo Testamento, diz: “A crítica social científica não deve se restringir a modelos e teorias preditivas no seu esforço para reconstruir o que está ‘atrás dos textos’: mais do que isso, ela abarca toda uma série de questões, teorias, conceitos e metodologias. Ela, e isso é o mais importante, implica em ‘modos de pensar’ sociológico e antropológico”[5].

 

1. O pioneiro Smith e os estudos de Weber

Um dos pioneiros na aplicação das ciências sociais à Bíblia Hebraica foi W. Robertson Smith. Em 1885, em Kinship and Marriage in Early Arabia, e em Lectures on the Religion of the Semites – First Series: The Fundamental Institutions, de outubro de 1888 e março de 1889, as ideias sobre o totemismo que influenciaram E. Durkheim, J. G. Frazer ou S. Freud já estavam delineadas. Como muitos de seus contemporâneos, W. Robertson Smith tinha uma visão evolucionista da religião, defendendo que a cultura e a religião semíticas tinham passado por uma fase primitiva, matrilinear e totêmica, na qual a comunhão entre os membros de um grupo e seu deus era mantida através do sacrifício e consumação do animal totêmico que representava a divindade.

Mas o que é mais importante em W. Robertson Smith é sua ideia de que a pesquisa etnográfica é fundamental para o estudo da religião e da cultura. Esteve entre os árabes do Oriente Médio quatro vezes e defendia que sua cultura mantinha padrões rituais dos tempos antigos que podiam ser aproveitados, de modo comparativo,  no seu estudo dos semitas antigos.

Outra obra que teve impacto direto nos estudos bíblicos foi a de Max Weber, Das antike Judentum. Os ensaios que deram origem ao livro de Weber Das antike Judentum (O judaísmo antigo) foram escritos entre 1917 e 1919 e publicados por sua viúva em 1921, em Tübingen[6].

Como a sociologia de Weber é sociologia histórica, ele define primeiro uma situação e depois busca suas origens. Em Das antike Judentum Weber começa pela definição da comunidade judaica pós-exílica para em seguida buscar suas origens na história do antigo Israel.

A comunidade judaica é descrita como uma comunidade de párias, não sendo a consciência de sua unidade baseada em considerações econômicas: “Sociologicamente falando os Judeus eram um povo pária, o que significa, pelo que sabemos da Índia, que eles eram um povo hóspede ritualmente separado, formalmente ou de fato, de seu ambiente social. Todas as características essenciais da atitude judaica em relação ao ambiente social podem ser deduzidas de sua existência pária – especialmente seu gueto voluntário, muito anterior à internação compulsória, e a natureza dualista de sua moral interna e externa”[7].

“Depois de discutir as estruturas sociais de beduínos nômades, de cidades na Palestina, do lavrador do campo e do pastor seminômade, Weber volta-se para as leis do livro da Aliança e do Deuteronômio, e depois para a questão da aliança”[8].

Diz Max Weber: “O conceito de ‘aliança’ era importante para Israel porque a antiga estrutura social de Israel baseava-se em parte em uma relação permanente, regulada contratualmente, de guerreiros sedentários aparentados, com tribos hóspedes, assim como com estrangeiros residentes protegidos por lei: pastores nômades e artesãos hóspedes, mercadores e sacerdotes. Um intrincado labirinto de arranjos fraternos, nós vimos, dominava a estrutura social e econômica. Daí que, foi nestas circunstâncias, que a aliança com Deus, com o próprio Iahweh , tornou-se uma concepção fundamental para a autoavaliação de Israel de seu lugar entre as nações”[9].

Neste processo, verifica-se, portanto, a formação de Israel como uma sociedade urbana em gradual desenvolvimento. Uma sociedade que, apesar dos antagonismos sociais e econômicos, manteve-se unida pela lei, considerada como lei de Iahweh.

Mas, como Weber entende essa união? Diz ele que “não foram as condições de vida de Beduínos e seminômades que ‘produziu’ uma ordem social cujo estabelecimento poderia ser considerado como algo do tipo ‘explicação ideológica’ de suas condições econômicas. Esta forma de construção histórica materialista é inadequada aqui como alhures”. A emergência de tal ordem foi “determinada por circunstâncias e vicissitudes concretas de natureza histórico-religiosas e não raro muito pessoais”[10].

Andrew D. H. Mayes explica: “À luz da sociologia geral de Weber, significa, manifestamente, com isso, em primeiro lugar, que foi na base das compreensões e interpretações de sua situação tidas por indivíduos que a crença numa aliança comum com Iahweh veio a surgir, e, em segundo lugar, que as leis do livro da Aliança e do Deuteronômio representam a ‘racionalização’ progressiva da irrupção original carismática realizada nos inícios por Moisés e o grupo do êxodo. A irrupção rumo à percepção básica, da qual se podiam enfrentar novas situações sociais e históricas, realizou-se historicamente ao se criar a comunidade de aliança de Israel”[11].

Weber analisa também o papel dos levitas, segundo ele, os responsáveis pelo desenvolvimento do javismo mais racional e ético, associados por sua vez aos profetas, que “pregavam a ética levítica, cuja existência e cujo conhecimento retinham como evidentes por si”[12]. Aqui Weber insiste repetidamente na figura do profeta como um carismático solitário que, heroicamente, luta contra a corrente institucional. Enfatiza, igualmente, suas visões e audições, que o fazem viver um estado quase doentio de ansiedade e tensão emocional.

Em outros estudos Weber fala igualmente da função dos profetas: “Por ‘profeta’ queremos entender aqui o portador de um carisma pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino (…). O decisivo para nós é a vocação ‘pessoal’. Esta é que distingue o profeta do sacerdote. Primeiro e sobretudo porque o segundo reclama autoridade por estar a serviço de uma tradição sagrada, e o primeiro, ao contrário, em virtude de sua revelação pessoal ou de seu carisma. Não é casual o fato de que, com pouquíssimas exceções, nenhum profeta procedeu do sacerdócio. Os mestres de salvação hindus em regra não são brâmanes, os israelitas não são sacerdotes e somente Zaratustra talvez proceda da aristocracia sacerdotal. Em oposição ao profeta, o sacerdote distribui bens de salvação em virtude de seu cargo”[13].

Não sendo profissional, um traço característico da profecia é a gratuidade, segundo Weber: “Muitas vezes, tanto a adivinhação quanto a terapêutica e a consulta mágica são exercidas ‘profissionalmente’. Assim o era, por exemplo, pelos numerosos ‘profetas’ (nabi, nebî’îm) mencionados no Antigo Testamento, especialmente nas Crônicas e nos livros proféticos. Mas é precisamente destes que se distingue o profeta, no sentido que aqui lhe damos, por um critério puramente econômico: pelo caráter gratuito de sua profecia. Amós rejeita com ira a denominação nabi. E a mesma diferença existe também em relação aos sacerdotes. O profeta típico propaga a ‘ideia’ por ela mesma e não – pelo menos não de modo perceptível e de forma regulada – por uma remuneração”[14].

 

2. Os estudos de Albrecht Alt e de Martin Noth

Os estudos de Albrecht Alt (1883-1956), especialmente com seus conceitos de carisma e de cidade-estado, e de Martin Noth (1902-1968) sobre a importância social da aliança foram muito influenciados por Max Weber.

“Durante sua vida, Albrecht Alt esteve ligado à Palestina. Inclusive coordenou instituições que objetivavam a pesquisa arqueológica e histórico-cultural da Palestina e do Antigo Oriente. Seus continuados contatos com a terra palestinense e seus trabalhos de pesquisa de campo lhe proporcionaram vastos e profundos conhecimentos sobre as condições concretas e as circunstâncias territoriais da Palestina. Isto se reflete em sua interpretação dos textos bíblicos e em sua historiografia. Ele mesmo designa seu método de ‘método histórico-territorial'”, explica M. Schwantes na introdução ao livro de A. ALT, Terra prometida: ensaios sobre a história do povo de Israel[15].

A influência de Max Weber sobre Martin Noth é ainda mais marcante: a teoria de Noth de uma anfictionia no Israel pré-monárquico, publicada em 1930, foi durante muito tempo um terreno quase sagrado no qual não se podia mexer. Uma anfictionia é uma liga de seis ou doze tribos ao redor de um santuário no qual habita a divindade e onde se renova a aliança entre as tribos, cada uma cuidando de sua manutenção durante dois ou um mês por ano. Assim, Israel, no período pré-monárquico, teria se constituído nesta forma anfictiônica ao redor de Iahweh. Esta explicação de Martin Noth é bastante semelhante à de Max Weber de um Israel pré-monárquico existindo como uma comunidade de aliança, o que teria possibilitado a coesão de grupos diversos tanto econômica quanto socialmente[16].

Andrew D. H. Mayes comenta esta influência do seguinte modo: “Alt e Noth tornaram-se a influência predominante na compreensão histórica de Israel, continuando a sê-lo até o presente. Embora os três tópicos a que nos referimos tenham sido objeto de discussão crítica mais recente, que minou seriamente as reconstituições que ofereceram, foi por seu trabalho que a perspectiva sociológica de Weber consolidou-se e que as possibilidades que forneciam essa perspectiva sociológica para entender Israel se tornaram claras”[17].

Winfried Thiel, só para citar um exemplo, em Die soziale Entwicklung Israels in vorstaatlichen Zeit, de 1980, “atualiza inteiramente a compreensão de Weber do Israel pré-monárquico à base de estudos mais recentes. Ele considera minuciosamente a natureza da sociedade beduína, do seminomadismo e da sociedade urbana, vendo a origem de Israel sobretudo no contexto seminômade e sua fixação no país como processo demorado e em larga medida pacífico, indo do pastoreio seminômade com agricultura subsidiária, passando por prática econômica mais igualitária distribuída, rumo a uma economia plenamente agrária com pastoreio subsidiário[18]”.

Charles E. Carter observa que após Alt e Noth o uso das ciências sociais nos estudos da Bíblia Hebraica declinou rapidamente. “A disciplina foi dominada, por um lado, por uma abordagem linguística comparativa, literária e histórica (…) e, por outro lado, por uma orientação teológica que era tipicamente protestante em sua natureza. Qualquer estudo das origens de Israel ou de suas instituições – tanto da lei como dos práticas sociais ou da religião – tendia a ser escrita dentro destas perspectivas, com a escola Alt/Noth dominante na pesquisa europeia e a escola de Albright dominante na América do Norte”[19].

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[1]. Cf. DAVIES, P. R. In Search of ‘Ancient Israel’. London: Bloomsbury T & T Clark, [1992] 2005, p. 11-12. Cf. também ODEN, R., Historical Understanding and Understanding the Religion of Israel. In: CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, p. 201-229.

[2]. GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh: uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 709.

[3]. Cf. Idem, ibidem, p. 669-700. A teologia bíblica é um movimento paralelo à neo-ortodoxia de Karl Barth (1885-1968) e ao existencialismo de Rudolph Bultmann (1884-1976), que surgiu após a I Guerra Mundial e atingiu o seu apogeu na década de 50. A teologia bíblica tenta harmonizar a descontinuidade histórica de Israel, procurando demonstrar a unicidade religiosa do “pensamento bíblico”. E acaba falindo em tratar a religião de Israel como um fenômeno social. Diz Gottwald na p. 669: “As boas intenções da teologia bíblica foram frustradas constantemente pelo seu insucesso em tratar a religião de Israel como um fenômeno social. Ao contrário, tentarei mostrar que pelo menos algumas das afirmações do movimento da teologia bíblica podem ser expressas de maneira coerente e convincente numa teoria sociológica da religião, interessada em descobrir de que modo símbolos religiosos funcionam com respeito aos seres sociais dentro de uma perspectiva cultural-material histórica de desenvolvimento humano”.

[4]. Cf. DA SILVA, A. J. Leitura sociológica da Bíblia. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 32, p. 81, 1991; Idem, Notas sobre alguns aspectos da leitura da Bíblia no Brasil hoje. REB, Petrópolis, v. 50, n. 197, p. 126-128, 1990. Cf. também FERREIRA, J. A. et alii  Sociologia das Comunidades Paulinas. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 25, 1990, que utiliza a leitura dos quatro lados.

[5]. CHALCRAFT, D. J. Introduction. In: CHALCRAFT, D. J. (ed.) Social Scientific Old Testament Criticism: A Sheffield Reader. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, p. 16-17.

[6]. Usarei a versão inglesa do livro: Ancient Judaism, tradução de Hans H. Gerth e Don Martindale,  New York: Free Press, 1952; paperback edition, 1967, 484 p. Muito do que será dito aqui foi lido em CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel: perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas. São Paulo: Paulus, 1995. Nas p. 48-51 Andrew D. H. Mayes faz uma leitura do livro de Max Weber.

[7]. WEBER, M. Ancient Judaism, p. 3.

[8]. MAYES,  A. D. H. Sociologia e Antigo Testamento. In: CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel, p. 49. “Uma peculiaridade da ordem social israelita encontra sua expressão no verdadeiro nome do mais antigo livro da lei: sefer haberit ‘Livro da Aliança’. O que nos interessa é o importante conceito de berith“, diz WEBER, M. Ancient Judaism, p. 75.

[9]. Idem, ibidem, p. 79.

[10]. Idem, ibidem, p. 80.

[11]. MAYES,  A. D. H. Sociologia e Antigo Testamento. In: CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel, p. 50.

[12]. WEBER, M. Ancient Judaism, p. 277. Cf. também as p. 90-117; 267-335.

[13]. WEBER, M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva, Vol. 1. 4. ed. Brasília: Editora da UnB, 2015, p. 303.

[14]. Idem, ibidem, p. 304.

[15]. ALT, A. Terra Prometida: ensaios sobre a história do povo de Israel. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 5. Este livro é a tradução de textos selecionados da obra Kleine Schriftten zur Geschichte des Volkes Israel. München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, vol. I, 1953; vol. II 1953; vol. III, 1959.

[16]. Cf. NOTH, M. Das System der zwölf Stämme Israels. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft [1930], 1980; Idem, Geschichte Israels. 10. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, [1950] 1986. Para uma crítica do modelo da anfictionia, cf. GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh, p. 353-394.

[17]. MAYES, A. D. H. Sociologia e Antigo Testamento. In: CLEMENTS, R. E. (org.) O mundo do antigo Israel, p. 53.

[18]. Idem, ibidem, p. 58; cf.  THIEL, W. Die soziale Entwicklung Israels in vorstaatlichen Zeit. Berlin: Evangelisches Verlaganstalt, 1980; em português: A sociedade de Israel na época pré-estatal. São Leopoldo/São Paulo: Sinodal/Paulus, 1993.

[19]. CARTER, C. E. A Discipline in Transition. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L.(eds.) Community, Identity and Ideology, p. 17. É claro que muitos outros pesquisadores e estudos deveriam ser citados aqui, como Antonin Causse, Johannes Pedersen, Roland de Vaux, Hermann Gunkel, Sigmund Mowinckel, W. F. Albright.


Ler a Bíblia no Brasil hoje

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Ler a Bíblia no Brasil hoje

 

leitura: 24 min

Fato incontestável é a redescoberta da Bíblia e o seu uso constante por todas as igrejas cristãs no Brasil, hoje. Este artigo quer refletir sobre algumas das muitas leituras feitas nos últimos anos. Um levantamento completo abrangeria muito mais. As limitações de quem escreve impõem, contudo, restrições objetivas e necessárias. Por isso, permaneço (quase que) só no âmbito católico e brasileiro. Embora suponha que alguns dados mencionados possam ser encontrados em outras igrejas e outros países latino-americanos. Um texto mais amplo do mesmo autor, com o título de Notas sobre alguns aspectos da leitura da Bíblia no Brasil hoje, pode ser lido na REB, Petrópolis, v. 50, n. 197, p. 117-137, 1990.

O assunto se dispõe em três partes – descrição, análise e perspectivas -, procurando responder, deste modo, a três questões:

. como se lê a Bíblia hoje?
. por que se lê a Bíblia hoje?
. para que se lê a Bíblia hoje?

 

1. Como se lê a Bíblia hoje?

1.1. A descoberta da Bíblia no Brasil

A presença da Bíblia no Brasil, nos meios católicos, começa a ser mais significativa a partir da década de 40. Por detrás disso há um fato dos mais importantes. Refiro-me à encíclica de Pio XII, Divino afflante Spiritu [Inspirados pelo Espírito Divino], de 30 de setembro de 1943. Foi esta encíclica que permitiu a entrada, na Igreja, da moderna pesquisa exegética, superando séculos de desconfiança no uso da Bíblia. Observo que até o século XIII, a reflexão bíblica ocupava lugar importante na reflexão teológica. A Escolástica quebrou esta tradição, com a elaboração de uma teologia cada vez mais especulativa. A Reforma protestante reagiu contra esta tendência com uma volta radical à Escritura, enquanto os teólogos católicos, no contexto da Contrarreforma, afastavam-se ainda mais da Bíblia.

Bíblia de JerusalémPio XII, entre outras coisas, recomendava, na Divino afflante Spiritu, o estudo das línguas bíblicas, o recurso à filologia, a busca do sentido literal dos textos, o exame do contexto, o estudo da história, da arqueologia e dos gêneros literários, o esclarecimento da condição social do autor. Leia-se, por exemplo, sobre o estudo das línguas bíblicas: Além disso são hoje tantos os meios para aprender aquelas línguas que o intérprete da Escritura, que, descurando-as, fecha a si mesmo o acesso aos textos originais, não podendo evitar a imputação de inconsideração e indolência. Ou sobre a pesquisa histórico-crítica: Procure por conseguinte o intérprete distinguir com todo o cuidado, sem descurar nenhuma luz fornecida pelas recentes investigações, qual a índole própria e condição social do autor sagrado, em que tempo viveu, de que fontes, escritas ou orais, se serviu, que formas de dizer empregou. Ou a repreensão dirigida a certas tendências que rejeitam a pesquisa moderna: Tal interpretação (…) será meio eficaz para fazer calar os que se queixam de não encontrar nos comentários bíblicos nada que eleve a mente a Deus, alimente a alma, fomente a vida interior, e por isso dizem que é preciso recorrer a uma interpretação que chamam espiritual e mística.

Perfeitamente afinado com este momento histórico, foi, entre nós, Frei João José Pedreira de Castro, exegeta franciscano, formado em Ciências Bíblicas em 1924. Um dos pioneiros na difusão da leitura e do estudo da Bíblia no Brasil. Na década de 50, por exemplo, Frei João José fundou, em São Paulo, o Centro Bíblico, através do qual incentivou a leitura da Bíblia de todas as maneiras possíveis. Durante 40 anos, Frei João José rompeu barreiras e venceu teimosos preconceitos, iniciando até mesmo um diálogo ecumênico.

Marco fundamental, naqueles tempos, foi a fundação da Liga de Estudos Bíblicos, a LEB, na I Semana Bíblica Nacional, realizada em São Paulo. A LEB reunia os exegetas católicos em amplos debates e estudos, pela primeira vez no Brasil, além de promover a divulgação da Bíblia junto à população. A partir de 1956 começou a ser publicada a Revista de Cultura Bíblica, órgão oficial da LEB. E ainda na década de 50 a LEB iniciou acurada tradução da Bíblia para o português, diretamente dos originais, atendendo aos anseios dos exegetas e aos apelos das autoridades eclesiásticas. Muitos exegetas da LEB se empenharam, desde então, na divulgação e estudo da Bíblia em vários níveis e de todos os modos: cursos, semanas bíblicas, conferências, retiros, artigos, livros e folhetos. Todo este esforço está relatado na Revista de Cultura Bíblica (RCB), São Paulo, n. 43-44, 1987. São mais de 20 artigos que trazem depoimentos dos protagonistas, dados históricos, análises e sugestões.

 

 1.2. À procura do melhor texto

Uma das questões enfrentadas pelos católicos era a dificuldade de acesso ao texto bíblico em português. A grande maioria da população só conhecia as simplificadas – e, com frequência, simplistas – “Histórias Sagradas” do catecismo e os selecionados trechos lidos nas missas e (mal) comentados pelos padres.

Sabe-se que a primeira tradução católica moderna da Bíblia, em português, foi feita pelo Padre Antônio Pereira de Figueiredo, nascido em Macau em 1725 e morto em Lisboa em 1797. A tradução, feita sobre a Vulgata, ficou pronta em 1790. A 1a edição brasileira saiu em 1864 e desde então esta Bíblia Sagrada foi várias vezes reeditada.

Enquanto isso, a primeira tradução protestante da Bíblia para o português, a divulgadíssima João Ferreira de Almeida, fora completada já em 1753. Almeida Revista e AtualizadaHoje, a tradução de João Ferreira de Almeida existe em mais de uma forma, como:

:: Almeida Corrigida Fiel – Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil
:: Almeida Revista e Atualizada – Sociedade Bíblica do Brasil
:: Almeida Revista e Corrigida – Sociedade Bíblica do Brasil
:: Bíblia Almeida Século 21 – Vida Nova
:: Nova Almeida Atualizada – Sociedade Bíblica do Brasil

Hoje, surpreende a variedade de Bíblias oferecidas pelas editoras católicas à população brasileira, como [a lista não pretende ser completa]:

:: A Bíblia – Paulinas
:: Bíblia de Jerusalém – Paulus Editora
:: Bíblia do Peregrino – Paulus Editora
:: Bíblia Mensagem de Deus – Edições Loyola
:: Bíblia Pastoral – Paulus Editora
:: Bíblia Sagrada – Ave Maria – Editora Ave-Maria
:: Bíblia Sagrada de Aparecida – Editora Santuário
:: Bíblia Sagrada – Tradução oficial da CNBB – CNBB
:: Bíblia Sagrada – Vozes – Editora Vozes
:: Bíblia TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia – Edições Loyola
:: Nova Bíblia Pastoral – Paulus Editora

Algumas são “traduções de traduções”, embora frequentemente cotejadas com os originais, enquanto outras – estas muito mais interessantes – são traduções feitas a partir dos textos originais hebraico, grego [e os poucos textos em aramaico], em geral acompanhadas de úteis introduções e notas explicativas. Lembro ainda que já existem algumas destas Bíblias disponíveis online, para leitura, audição ou download.

Outra questão que deve ser abordada é a do nível de compreensão, pelo povo, das várias traduções existentes e a diferença entre leitura e audição do texto.

Remeto tal discussão para um interessante artigo de Alberto Antoniazzi, no qual se avaliam os resultados de duas pesquisas, feitas em 1981, sobre o tema, uma em Ribeirão Preto e outra em Belo Horizonte[1].

O que preocupava os pesquisadores era:
. Uma tradução da Bíblia pode ser mais acessível (mais compreensível) ao povo que outras?
. Há diferenças na compreensão do texto bíblico lido e do texto bíblico ouvido?
. Se há dificuldades na compreensão, onde estão e como superá-las?

Duas conclusões (provisórias) são interessantes:
. É urgente uma tradução acessível da Bíblia, já que o nível de compreensão da Bíblia pelo povo é baixo.
. É preciso ter cuidado nesta questão da compreensão, pois, às vezes, tomam-se as opiniões dos padres pela manifestação do povo. Nem sempre o texto que o padre ou o agente de pastoral consideram ser mais acessível ao povo o é de fato.

 

1.3. A mediação hermenêutica necessária

Gostaria de caracterizar agora a leitura da Bíblia feita nos cursos de Teologia, ou melhor, em alguns dos mais bem estruturados cursos de Teologia do país.

Bíblia PastoralO papel da S. Escritura, em vários currículos teológicos, tem sido o de fundamento ou fonte inspiradora da reflexão teológica. Então o dado básico da fé é mediado hermeneuticamente pelos textos bíblicos, levando-se em conta quatro elementos na leitura: o texto e seu contexto, de um lado; nós e o nosso contexto, de outro lado. É estabelecida assim a seguinte correlação: o texto está para o seu contexto, assim como nós estamos para o nosso contexto. Deste modo, a identidade do sentido não é procurada no contexto ou na mensagem, mas na relação entre contexto e mensagem.

Deste modo, procuram os exegetas evitar dois modelos usuais de leitura. Aquele que funciona apenas com as categorias de regra e aplicação, tomando o texto bíblico como um código de normas a ser aplicado às situações atuais, sem mais. Ou ainda, o modelo que estabelece uma relação de igualdade ou profunda semelhança entre a situação do texto bíblico e a nossa, mesmo falando do contexto da Escritura e do nosso contexto. Desta maneira, manipular-se-ia facilmente o texto, exatamente a partir dos interesses preestabelecidos do leitor.

Quando o exegeta aborda o texto, ele o submete a uma verdadeira bateria de questões, do tipo:
. como conseguir uma reconstrução do texto a mais próxima possível do original?
. qual é a proveniência do texto, quem é o seu autor, quais são as suas características literárias, seu contexto histórico-cultural?
. qual é o gênero literário do texto analisado, as formas fixas do discurso utilizado, mesmo na sua fase de transmissão oral, qual o seu contexto social e a intenção de sua linguagem específica?
. como o autor trabalhou teologicamente o material recebido da tradição, dando-lhe a forma atual?
. como foi o desenvolvimento progressivo da tradição desde as camadas pré-literárias até a sua elaboração por escrito?

Para responder a tantas questões, a exegese criou e desenvolveu nos últimos séculos um vasto instrumental histórico-crítico conhecido como: crítica textual, crítica literária, crítica e história das formas, história da redação e história da tradição.

Mesmo assim, nem tudo pode ser respondido aí, porque ainda restam as questões do nosso lado:

a) Para que ler o texto?
Trabalha-se aqui com o problema da finalidade que é a de iluminar a caminhada da comunidade cristã, na busca de uma transformação de estruturas desumanas e anticristãs.

b) Com quem ler o texto?
É a questão do interlocutor, o homem latino-americano empobrecido e excluído.

c) Como ler o texto?
É a articulação Bíblia-Realidade que se pensa aqui: o modo concreto dessa articulação, os obstáculos que se apresentam e as possibilidades de tal articulação.

Como se vê, são os vários recursos da leitura histórico-crítica os mais utilizados. Somados, hoje, é claro, a fecundas contribuições da linguística e a um interessante retorno das questões socioantropológicas.

Pode-se afirmar que esta leitura feita entre nós tem levado a várias consequências, mas gostaria aqui de destacar apenas duas:Nova Bíblia Pastoral
. cria-se o hábito de procurar, na Bíblia, mais um sentido global, através de uma permanente atitude de alerta hermenêutico, do que a aplicação de sentidos parciais, retirados, segundo a necessidade, de textos isolados
. o confronto cotidiano do povo entre a Bíblia e os desafios da vida leva ao avanço metodológico, enquanto o exegeta é estimulado a buscar métodos mais adequados e realistas para a compreensão dos textos.

 

 1.4. Ler a vida com a ajuda da Bíblia

De todos os usos recentes da Bíblia entre nós, o que mais chama a atenção é a leitura popular feita pelas CEBs.

Quem melhor traduz a dimensão da leitura popular da Bíblia é Carlos Mesters, quando afirma: “A preocupação principal do povo não é interpretar a Bíblia, mas é interpretar a vida com a ajuda da Bíblia”[2].

Ou ainda: “Estimulado pelos problemas da realidade (pré-texto), o povo busca uma luz na Bíblia (texto), que é lida e aprofundada dentro da comunidade (con-texto). O pré-texto e o con-texto determinam o ‘lugar’ de onde se lê e interpreta o texto”[3]. Quando falta um desses elementos, a leitura empaca.

Há quatro elementos que, segundo Carlos Mesters, caracterizam a leitura popular da Bíblia:

. para o povo, a Bíblia vai além do texto: é Palavra de Deus viva e atual
. o povo recupera a dimensão comunitária e eclesial na leitura e aplicação da Bíblia
. o povo reapropria-se da Bíblia, mistura com a vida e começa a despertar para uma consciência crítica
. para o povo a Bíblia não é só história, é espelho da vida. O povo não pergunta primeiro pelo fato (aconteceu mesmo?), mas pelo símbolo (o que significa?)[4].

Falar de leitura popular, hoje, é falar também do CEBI, Centro de Estudos Bíblicos, que nasceu em 1978, “a partir da necessidade bem concreta, sentida por muita gente havia vários anos, de se articular um serviço que ajudasse o povo das Comunidades Eclesiais de Base no uso e na interpretação da Bíblia”[5]. Idealizado por Carlos Mesters, o CEBI é um organismo ecumênico espalhado por todo o país, que procura interpretar a Bíblia:

:: a partir dos pobres
:: a partir da realidade brasileira e latino-americana
:: a partir e em vista da comunidade de fé
:: ajudando o povo a reapropriar-se da Bíblia
:: procurando uma leitura ecumênica da Bíblia
:: uma leitura que leve em conta a questão do método mais adequado ao povo simples
:: e que considere os múltiplos aspectos da vida, além da razão: a fantasia, a poesia, a fé, a celebração…

A ata de fundação do CEBI, assinada por 23 pessoas, no dia 20 de julho de 1978, atesta a presença das Igrejas Presbiteriana, Congregacional, Católica, Metodista e Anglicana.

 

2. Por que se lê a Bíblia?

2.1. A opção pelos pobres

Esta não é uma questão tão fácil de ser respondida. Há certamente uma série de razões, uma convergência de múltiplos fatores que levaram à redescoberta da Bíblia entre nós nos últimos anos.

Claro está que o processo de reforma eclesial, que desembocou no Vaticano II e em Medellín [confira as Conclusões da Conferência de Medellín], conta muito. A consequente renovação dos estudos teológicos, o novo espaço conquistado pela Bíblia na liturgia, na catequese e na pastoral, em geral, é extremamente significativo. Pouco a pouco a Bíblia deixa de ser “coisa de protestante”, preconceito bastante difundido entre os católicos, para ser, de novo, o livro da Igreja, de todas as igrejas cristãs.

Mas creio que a análise das causas do crescente uso da Bíblia pela população brasileira passa pela análise das características da Igreja nos últimos 30 anos e, sem dúvida, pelo papel e caminhos das CEBs.

É preciso lembrar, em primeiro lugar, que as CEBs nascem no contexto da ditadura militar instalada no país a partir de 1964. E exatamente aí está uma das suas razões: fechados os outros canais de organização e mobilização, restou, às classes populares, a Igreja, como último espaço social possível. Aliás, é preciso deixar bem claro que não foi a Igreja, enquanto instituição oficial dirigida pelo magistério, que optou pelas classes populares, mas foram estas que ocuparam o espaço representado pela Igreja, graças especialmente às novas perspectivas eclesiais surgidas com o Vaticano II (1965) e com Medellín (1968). As várias pastorais setoriais foram sendo criadas pela cúpula da Igreja como respostas às pressões populares.

A partir desta nova realidade, muitos sociólogos falam de uma ruptura da Igreja, na década de 60, com as seculares posturas anteriores. Mas há aqueles que preferem falar de continuidade, pois manifesta-se aí uma ambiguidade: é a mesma instituição que fomenta, por um lado, a organização popular nas CEBs e, por outro lado, abre espaço para a classe média agrupada em movimentos socialmente reacionários.

Se a Igreja sempre se vinculou, antes de 1964, ao sistema dominante, a partir de então ela passa à defesa dos direitos civis e das liberdades individuais. Ela passa a exercer, em nível nacional, o papel de instituição mediadora entre as transformações sócio-culturais e suas eventuais projeções no sistema político.

Assim, se, por um lado, ela se colocou ao lado das classes populares, envolvendo-se num processo de democratização e descentralização que culmina nas CEBs, especialmente durante a década de 70, por outro lado, contudo, ao defender as liberdades civis e a democracia liberal, ela se identifica com as classes privilegiadas “traídas” pelo regime militar e que defendem, agora, a volta ao Estado de Direito.

Isso é possível, explicam alguns sociólogos, graças ao papel secundário da religião nas sociedades ocidentais contemporâneas: ela não tem a seu cargo a formulação da ideologia dominante e se concentra, por isso, na esfera motivacional, apoiando uma ordem de valores pluralistas.

Aqui entra a Bíblia com toda a sua força: “Os círculos bíblicos propiciaram a relação entre os fatos da vida e os fatos da Bíblia, reduzindo a dicotomia fé e vida, religião e política, Igreja e mundo”[6].

O método ver-julgar-agir possibilitou, por outro lado, a articulação entre comunidades cristãs e organizações de base, soando hegemônica, durante certo tempo, a voz profética da Igreja comprometida com as classes populares.

Entretanto, a volta aos textos fundadores – em nosso caso, à Bíblia – costuma acontecer, nas grandes religiões, nas crises de hegemonia que a instituição tem ou julga ter. É reativada assim sua consciência profética, na busca de uma identidade ameaçada pelas mudanças sociais e políticas. Só que a identidade religiosa não se define nem em si mesma, nem na relação direta religião-sociedade. Mas na disputa de posições hegemônicas ou na subsistência social de seus agentes em um campo de trocas simbólicas. “Identidades são estratégias simbólicas de lidar com o poder através da diferença”[7].

É por esta via que a Bíblia ajuda o povo – pela semelhança de situações entre o Israel antigo e o Brasil atual – a criar uma identidade, enquanto ele se vê como povo oprimido e fiel a Deus. Identidade que é estratégia simbólica na luta contra o poder dominador através da diferença: também o dominador é católico, exigindo do dominado a criação de uma leitura da Bíblia diferente da tradicional leitura do catolicismo oficial.

O oprimido procura na Bíblia uma linguagem para dizer sua luta. É que a linguagem do capital (atualmente de clara tendência neoliberal) predomina nos meios de comunicação, na história oficial, na escola, nas religiões tradicionais… Os discursos oficiais do Estado (e das igrejas) não traduzem a realidade popular. Daí a redescoberta da Bíblia como o discurso do povo, amparado pela legitimidade do sagrado, por isso, sempre vista como Palavra de Deus. Eis por que, em tal leitura, a Bíblia não é a fala de Israel com a sua época, mas a mensagem de Deus para o homem de hoje[8].

Em artigo publicado na revista Concilium 361, de 2015, Carlos Mesters e Francisco Orofino refletem sobre a leitura popular da Bíblia e “O caminho que temos pela frente”. O artigo busca apontar os novos paradigmas da leitura popular da Bíblia na América Latina, fazendo uma análise do caminho percorrido nos últimos 50 anos. Destaca os vários desafios que surgem da realidade latino-americana e como estes desafios influem no método da leitura popular da Bíblia.

Observam os autores que muita coisa mudou nos movimentos sociais e nas organizações populares dos anos 70 para cá. A população pobre, sujeito da leitura popular da Bíblia, tem encontrado novas formas de se organizar e de expressar suas buscas, sonhos e desejos. Por isso, julgam necessário destacar alguns eixos que estão mobilizando as pessoas. Como:
. a questão da terra
. o movimento pela ética na política
. o crescimento dos movimentos indígenas
. a luta dos afrodescendentes
. as grandes mobilizações dos homossexuais
. as várias frentes ecológicas
. os novos avanços da ciência
. o rosto dos pobres a partir do documento de Aparecida

E estes novos desafios levam necessariamente à pergunta: Qual a nossa proposta para uma leitura bíblica que possa atender a estes novos desafios? Para Carlos Mesters e Francisco Orofino são 5 os novos desafios que a leitura popular da Bíblia enfrenta hoje:

. A leitura feminista ou leitura de gênero
Que questiona e relativiza a secular leitura machista feita pelas igrejas para manter o sistema patriarcal.

. Como enfrentar a realidade do fundamentalismo?
Como explicar este crescente fenômeno, sobretudo nos jovens? Vem do contato com a linha conservadora, com a linha carismática, com os pentecostais? Será que também não vem das deficiências da atitude libertadora frente à Bíblia? Será que não vem de algo ainda mais profundo que está mudando no subconsciente da humanidade? Pois, a realidade do fundamentalismo não existe só nas igrejas cristãs, mas também nas outras religiões: judaica, muçulmana, budista. E há também variadas formas de um fundamentalismo secularizado.

. A busca de espiritualidade e o nosso método de interpretação
Em todo canto se ouve e se sente o desejo de maior profundidade, de mística, de espiritualidade.

. A cultura dos povos originários
Precisamos superar a leitura bíblica como instrumento de colonização. Muitos perguntam: o que fazer com a cosmovisão ultrapassada da Bíblia? Precisamos descobrir a mesma presença divina da Bíblia dentro da nossa cultura e expressá-la nas formas da nossa cosmovisão.

. A necessidade de um estudo mais aprofundado da Bíblia na América Latina
Existe uma escassez de assessores e de assessoras acadêmicas capazes de responder à demanda crescente de formação bíblica dos assessores populares e de fazer frente ao problema novo que está se criando por causa do crescimento imenso do fundamentalismo[8a] .

 

2.2. A opção pela classe média

Como vimos acima, a redescoberta da Bíblia no pós-Vaticano II se dá a partir da crise de hegemonia da Igreja na década de 60 do século XX. Foi quando começou a se implantar, na sociedade brasileira, a modernidade, consequência da inserção ativa do país na economia capitalista internacional. É nesse contexto, de rápidas mudanças, que acontece a ruptura, especialmente nos grandes centros urbanos, com os tradicionais padrões morais e sociais defendidos pela Igreja. Aí, dizíamos, a Bíblia se manifestou como instrumento eficaz na redefinição da identidade católica. Entretanto, convém lembrar que não é apenas nas CEBs que a Bíblia é usada. Ela é redescoberta também pelas classes médias, através de movimentos transnacionais, que impressionam por seu crescimento e persistência.

Bíblia TEBDefendendo a formação de uma neocristandade, os movimentos possuem uma estratégia bem precisa: influenciar a sociedade não mais via Estado, mas via sociedade civil, ressocializando (convertendo) os cristãos num meio pluralista. Os movimentos visam formar o cristão leigo ativo, em oposição ao cristão tradicional, que só é cristão porque nasceu assim.

Embora tenham origens e estruturas diferenciadas, os movimentos possuem características comuns, tais como: são predominantemente de classe média, defendem a família como fundamento da estrutura social, posicionam-se contra os movimentos populares, a opção pelos pobres e a Teologia da Libertação, olham o homem exclusivamente a partir de sua subjetividade, opõem-se ao engajamento social e político do clero, restringindo sua missão à função religiosa…

Luiz Roberto Benedetti assinala que o papel do leigo nos movimentos – positivo, ativo e não pura negação em relação ao sacerdote – leva a novo clericalismo, enquanto produz a sacralização do cotidiano profano. O leigo, profissionalmente competente, cuida do mundo, enquanto o padre deve restringir-se à ação religiosa tradicional[9].

A meu ver, a leitura da Bíblia, nos movimentos, deve ser compreendida neste contexto: ela serve como ferramenta eficaz para operar este processo de sacralização do real. Que não é real objetivo, é significado, é subjetivo.

Este processo de subjetivização chega a extremos, por exemplo, na Renovação Carismática Católica. Para a RCC, crer é sentir, já que a ação imediata de Deus, percebida pela vivência intensa da emoção, do entusiasmo, constitui a realidade total, a história objetiva. Entusiasmo vem do grego enthousiasmós, indicando o arrebatamento, o transe daqueles que estavam sob inspiração divina, como as sibilas.

É aí que entra a Bíblia: ela testemunha a autenticidade do sentimento do indivíduo. É uma leitura fundamentalista radical. “Radical porque vai além da aceitação, como dado objetivo, da narrativa bíblica, para assumir como única realidade os fatos de agora, sentidos como intervenção atual de Deus. É o mesmo fato: o bíblico e o de hoje. Não é nenhuma analogia”[10]. Daí a recriação de vivências primitivas, literalmente.

O resto é o óbvio: eliminadas as fronteiras entre o objetivo e o subjetivo, o mundo é reduzido ao coração do homem, onde Deus age através de seu Espírito. Para além do discurso moralista, esta subjetivização radical permite a sacralização até do dinheiro, que sustenta a sólida organização do movimento.

Termino com Benedetti, que afirma: “A grande aceitação que os encontros têm junto à classe média tem muito a ver com a sua insegurança e, sobretudo, seu ressentimento, disfarçado como indignação moral. Esse mecanismo social serve também para a classe média desobrigar-se de um compromisso social efetivo, reduzindo os problemas do mundo a problemas morais”[11].

Mas fica aqui, ainda, uma tarefa por mim definida, mas não completamente realizada: analisar a função social do discurso homilético de classe média. Minha hipótese é de que aquelas homilias aparentemente incompetentes e desnecessárias – na medida em que reproduzem um discurso óbvio – são socialmente competentes e necessárias para reproduzir e sacralizar os instrumentos capitalistas de dominação e, com sua crítica romântica das aparências, levar à acomodação à situação vigente. São discursos muitas vezes baseados numa ontologia existencialista e radicalmente inibidores da criticidade exegética.

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[1]. Cf. ANTONIAZZI, A. O povo e as traduções da Bíblia. Primeiro resultado de uma pesquisa. Vida Pastoral, São Paulo, n. 104, p. 15-23, maio/junho de 1982. Sobre as traduções da Bíblia, pode ser útil a leitura de um número da revista Pistis & Praxis: v. 8, n. 1 (2016): Traduções da Bíblia. Está disponível na íntegra aqui. Saber o que é equivalência dinâmica e equivalência formal, quando se fala de tradução de texto bíblico, é fundamental. No artigo de Johan Konings a questão é tratada no item “Considerações metodológicas”.

[2]. MESTERS, C. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 37.

[3]. Idem, ibidem, p. 42.

[4]. Cf. Idem, ibidem, p. 305-310.

[5]. CEBI, Por trás da Palavra, n. 25, p. 2, nov./dez. de 1984.

[6]. BETTO, Fr. Prática pastoral e prática política, Tempo e Presença, n. 26, p. 13, 1980.

[7]. BRANDÃO, C. R. Ser católico: dimensões brasileiras – um estudo sobre a atribuição de identidade através da religião. In: VV. AA. Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 58.

[8]. É oportuno mencionar que são duas as forças simbólicas de sustentação do espoliado povo brasileiro: a sua ancestral memória histórica de sofrimentos e a sua memória religiosa, que também lhe confere identidade e lhe dá esperança.

[8a]. Cf. MESTERS, C.; OROFINO, F. O caminho que temos pela frente. Concilium, Petrópolis, fascículo 361, n. 3, p. 38-48, 2015.

[9]. Cf. BENEDETTI, L. R.  Templo, Praça, Coração – A articulação do campo religioso católico. São Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2000.

[10]. Idem, ibidem, p. 264 (da versão fotocopiada, São Paulo: USP, 1988).

[11]. Idem, ibidem, p. 238-239 (da versão fotocopiada, São Paulo: USP, 1988).