Autores judeus antigos 3

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6. Artápano e seu romance popular

Artápano é localizado, pelos estudiosos, no Egito, na metade do século II a.C.

Por que Egito?

Porque ele tem familiaridade com tradições egípcias. Mas provavelmente ele não é de Alexandria, e sim de outro centro, talvez Mênfis.

P. M. Fraser acha que sua obra indica um ambiente mais modesto do que o da Carta de Aristeias a Filócrates e que, por isso, ele não é alexandrino. E explica:

“Ele tem familiaridade com a vida nativa do Egito e as suas tradições sacerdotais, e é muito mais natural ver nele não um membro dos influentes círculos judeus próximos a Filometor ou outro Ptolomeu, mas (como seu nome persa sugere) como um judeu de descendência mestiça, possivelmente residente em outro centro tal como Mênfis, onde o estabelecimento de judeus desde uma antiga data exacerbava um problema que ainda estava apenas começando na capital”[27].

Por que metade do século II a.C.?

Parece que Artápano está respondendo a polêmicas gentias contra os judeus, tais como aparecem em Maneton (sobre Moisés), que é do século III a.C. Além do que, ele pressupõe a existência do templo judeu de Leontópolis, fundado por volta de 150 a.C. A época de Ptolomeu VI Filometor (181-145 a.C.) é a mais adequada para situá-lo.

Sua obra pode ser classificada como “romance popular”. Este gênero desenvolve-se entre povos que mantêm interesse mútuo em questões de história e cultura, tais como egípcios, gregos, babilônios ou judeus.

Isto explica, por um lado, o universalismo de Artápano e, por outro, sua dimensão apologética, na medida em que procura combater a ignorância dos outros povos acerca da identidade cultural de seu próprio povo.

Esta dimensão apologética é forte em Artápano:

. os judeus não são egípcios, como dizem alguns, mas vêm da Síria (Fragmento 1; Fragmento 2, § 3; Fragmento 3, § 21)
. Moisés não é um sacerdote egípcio, como diz Maneton, mas filho de judeus, apenas criado (e não adotado) por Merris, filha do faraó (Fragmento 3, § 3)
. Moisés não cria uma nação com egípcios e rejeitados, mas é o benfeitor cultural do Egito (Fragmento 3, §§ 4-7)
. os judeus não odeiam os deuses e os costumes de outras nações, mas reconhecem o seu valor, como faz Moisés (Fragmento 3, §§ 4-7)
. não é verdade que os judeus jamais produzem grandes homens; veja-se Abraão, José e Moisés, grandes benfeitores culturais, especialmente para o bem-estar do Egito (todos os fragmentos)
. não é verdade que a circuncisão não é um sinal da aliança com Deus porque os egípcios teriam-na ensinado a outros povos; é Moisés quem a leva aos sacerdotes egípcios e etíopes (Fragmento 3, § 10)[28].

Enfim, pode-se ver que os fragmentos da obra de Artápano são importantes para que verifiquemos o grau de assimilação cultural e acomodação da diáspora judaica em contexto gentio. Ele representa um grande segmento da diáspora, bastante liberal, que não vê as tradições gentias como uma ameaça às suas tradições religiosas judaicas.

De sua obra, chamada “Sobre os judeus” (Perì Ioudaíôn), temos três fragmentos, conservados por Alexandre Poliístor e citados por Eusébio. Tratam respectivamente de Abraão, José e Moisés, nas suas relações com o Egito. A LXX é sua fonte bíblica. Ele parece não conhecer o texto hebraico das Escrituras.

O Fragmento 1, de poucas linhas, trata de Abraão: ele emigra para o Egito, onde vive 20 anos, ensina astrologia ao faraó, volta à Síria, mas muitos dos que o acompanham ficam no Egito, atraídos pela prosperidade do país:

Um trecho do fragmento:

“Ele [Artápano] também diz que Abraão veio com toda a sua casa (panoikía) para o Egito, para Faretotes[29], o rei dos egípcios e lhe ensinou astrologia”.

O Fragmento 2 tem cerca de 30 linhas. Condensa a história de José de Gn 37;39-47. Fala de sua ascensão no Egito, de sua elevação a “senhor (despótês) do Egito” e de sua atividade como benfeitor cultural do Egito.

O Fragmento 3 é o mais longo. Trata de Moisés, desde o seu nascimento até a morte, seguindo o roteiro do livro do Êxodo, mas inserindo dados extrabíblicos.

Moisés é apresentado como:

. benfeitor cultural do Egito, mais importante do que Abraão e José
. estrategista que comanda os egípcios contra os etíopes
. fundador de cultos egípcios, organizador de sua vida religiosa, reverenciado pelos egípcios como divino.

C. R. Holladay observa a propósito: “Neste fragmento Moisés desponta não como o legislador dos judeus, como em Eupólemo, Aristóbulo, Fílon ou Josefo, mas como herói e taumaturgo, que realiza maravilhosos, para não dizer mágicos, feitos, e que nunca é vencido”[30].

Diz o § 4 do Fragmento 3:

“Este Moisés tornou-se mestre (didáskalos) de Orfeu. Quando ele tornou-se adulto, ele deu à humanidade muitas contribuições úteis, pois ele inventou navios, máquinas para erguer pedras, armas egípcias, inventos para tirar água e guerrear (polemiká), e filosofia. Ele também dividiu o país em 36 nomos e para cada nomo ele designou o deus a ser cultuado; além disso, ele designou os escritos sagrados para os sacerdotes. Os deuses, que ele designou como gatos, cães e íbis”.

 

7. O Pseudo-Hecateu: resposta a Hecateu de Abdera?

De Hecateu de Abdera falamos em outro artigo: etnógrafo, filósofo, crítico e gramático helenista que vive aí por volta de 300 a.C. e que trata dos judeus na sua obra “Sobre os egípcios”.

O problema é que há muitos outros fragmentos atribuídos a Hecateu, fragmentos que tratam dos judeus, e que muitos especialistas acreditam ser pseudepígrafos judaicos[31].

As questões que estes fragmentos suscitam provocam grande desacordo entre os estudiosos acerca do:

. número de fragmentos
. extensão de cada fragmento
. natureza e título da(s) obra(s) das quais derivam
. autoria
. contexto histórico

Os testemunhos acerca da obra de Hecateu que trata dos judeus são:

. a Carta de Aristeias a Filócrates (séc. II a.C.)
. Flávio Josefo, em Antiquitates Iudaicae e Contra Apionem
. Eusébio, na Praeparatio Evangelica.

Duas obras atribuídas a Hecateu suscitam problemas: “Sobre Abraão” e “Sobre os judeus”.

“Sobre Abraão” é citada por Flávio Josefo (Antiquitates Iudaicae I, 159), Eusébio e Clemente de Alexandria. É claramente uma obra de um apologista judeu. Mas persiste a dúvida quanto à existência de uma obra com tal nome.

“Sobre os judeus” é citada por Flávio Josefo (Contra Apionem I, 183-204), Eusébio e Orígenes (Contra Celsum I,15). Josefo dá a entender que “Sobre os judeus” é um tratado completo de etnografia, segundo os padrões da época helenística[32].

Se se assume que os fragmentos de “Sobre Abraão” e “Sobre os judeus” não pertencem a Hecateu de Abdera, mas são pseudonímicos, surgem outras questões:

. são da mesma obra?
. ou são de obras diferentes? Neste caso, são do mesmo autor ou são de autores diferentes?

As posições dos especialistas são:

. uma única obra de um mesmo autor: é a solução mais simples, oferecida por E. Schürer. Ele acha que os dois títulos são apenas variações da mesma obra[33].
. duas obras do mesmo autor. Primeiro é escrito o “Sobre os judeus”, depois o “Sobre Abraão”. É a posição de C. R. Holladay que cita três fragmentos atribuídos por ele a um mesmo autor, escritos na primeira metade do séc. II a.C. no Egito[34].
. diferentes obras de diferentes autores, que é a tendência da pesquisa hoje. F. Jacoby, por exemplo, defende que “Sobre os judeus” é de aproximadamente 170 a.C. e é escrito por um sacerdote judeu da Palestina que emigra para o Egito; “Sobre Abraão” é de outro autor judeu, posterior ao primeiro[35].

Mas, deixando de lado esta discussão, vejamos a importância do Pseudo-Hecateu em seis pontos:

. Certos elementos típicos da apologética judaica são apresentados:  a sabedoria superior dos judeus; seu grande número; sua fidelidade à lei; seu desprezo pelas superstições gentias; sua lealdade política aos governantes.
. O Pseudo-Hecateu ilustra bem como um autor judeu interpreta o tratamento dado a seu povo por um autor gentio, já que talvez ele escreva em resposta ao verdadeiro Hecateu de Abdera.
. É útil para o estudo da Carta de Aristeias a Filócrates que o utiliza.
. Tem algum valor histórico.
. Testemunha a fé judaica da época dos Macabeus.
. Exemplifica o encontro entre judeus e gentios no terreno da tradição popular.

Dos fragmentos vou citar apenas o § 186 do Fragmento 1, que está no “Contra Apionem” de Flávio Josefo:

“Hecateu continua a dizer que, após a batalha de Gaza, Ptolomeu tornou-se senhor da Síria, e que muitos dos habitantes, ouvindo falar de sua bondade e humanidade, desejaram acompanhá-lo ao Egito e viver no seu reino”.

Este Ptolomeu é o I, Soter, e seu retrato está em contraste com o da Carta de Aristeias a Filócrates: segundo a Carta, a migração dos judeus para o Egito é forçada e não voluntária[36]. A batalha de Gaza acontece em 312 a.C.

Esta visão otimista continua nos §§ 187-189 do mesmo Fragmento 1, onde se fala do sumo sacerdote Ezequias (que não existe nas listas do pós-exílio), homem hábil e estimado, que, agraciado por Ptolomeu I Soter, convence seus amigos das vantagens da migração para o Egito.

 

Bibliografia

DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II. Madrid: Cristiandad, 1983.

FRASER, P. M. Ptolemaic Alexandria I. Oxford: Oxford University Press, 1972.

HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. I: Historians. Chico, California: Scholars Press, 1983.

HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. II: Poets. Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1989.

HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors, vol. III: Aristobulus. Atlanta, Georgia: Scholars Press, 1995.

JOSEFO, F. História dos Hebreus: Obra Completa. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007.

MONDÉSERT, C., (org.) Le monde grec ancien et la Bible (Bible de tous les temps 1). Paris: Beauchesne, 1984.

SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015.

THACKERAY, H. St. J.;MARCUS, R.; WIKGREN, A.; FELDMAN, L. H. Josephus I-XIII, Cambridge: Harvard University Press, 1926-1965. Texto disponível online.

>> Bibliografia atualizada em 28.08.2015

Artigos


[27]. FRASER, P. M. Ptolemaic Alexandria I.Oxford: Oxford University Press, 1972, p. 704. Citado em HOLLADAY, C. R. o. c., p. 195, nota 9.

[28]. Cf. HOLLADAY, C. R, o. c., p. 197; SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 521-525.

[29]. Faretotes (Farethôthês) é uma variação de Faraô, a típica forma helenizada usada pela LXX para traduzir Phr’h. Em a narrativa bíblica, Faraó é usado como título, o que de fato é, mas aqui aparece como nome.

[30]. HOLLADAY, C. R. o. c., p. 192.

[31]. Cf., para toda a discussão que se segue, HOLLADAY, C. R. o. c., p. 279-302; SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 671-677.

[32]. Tratam, via de regra: a) da cosmogonia e teologia nativas; b) da geografia; c) dos governantes locais; d) dos costumes.

[33]. Cf. SCHÜRER, E. o. c., p. 674-675.

[34]. Cf. HOLLADAY, C. R. o. c., p. 283-284.

[35]. Cf. JACOBY, F. Die Fragmente der grieschischen Historiker, Leiden, 1958, p. 61-74.

[36]. Cf. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 12-13, em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II, p. 20-21.

Última atualização: 26.04.2019 – 22h16

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