O discurso socioantropológico 6

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10. A sociologia marxista

Um resumo da sociologia de Marx pode ser encontrado no célebre “Prefácio” da Contribuição à Crítica da Economia Política, escrito em janeiro de 1859: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciênciasKarl Marx (1818-1883) físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que faz de si mesmo, tampouco se pode julgar uma tal época de transformação pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir. Em grandes traços, podem ser designados, como outras tantas épocas progressivas da formação econômica da sociedade, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver este antagonismo. Com esta formação social termina, pois, a pré-história da sociedade humana”[45].

Comentando o “Prefácio” de Marx, na Introdução da coletânea citada, diz Florestan Fernandes que “o que emerge é uma refinada teoria sociológica da revolução social, esbatida sobre o pano de fundo das correntes históricas que atravessam as estruturas da sociedade”. Este texto “exibe a consciência revolucionária da história sob a forma acabada de teoria científica, desvendando como se produz historicamente a revolução social e o quanto ela não passa de um processo natural nas sociedades de forma antagônica”[46].

Raymond Aron, por sua vez, diz que “encontramos nesta passagem [transcrita acima] todas as ideias essenciais da interpretação econômica da história, com a única reserva de que nem a noção de classes nem o conceito de luta de classes aparecem aí explicitamente. No entanto é fácil reintroduzi-los nessa concepção geral”[47]. Vamos percorrer, com R. Aron, as sete “ideias essenciais” do pensamento de Marx sobre a sociedade, ideias que formam o arcabouço do chamado materialismo histórico.

1. A primeira ideia é a de que “na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais“. Ou seja, para compreender as sociedades é necessário analisar suas estruturas, as forças de produção e as relações de produção que nelas se encontram. A compreensão do processo histórico está condicionada à compreensão destas relações sociais que ultrapassam os indivíduos, pois as relações sociais se lhes impõem, com frequência, sem levar em conta suas preferências. Se adotarmos o modo de pensar dos homens de determinada sociedade como o único ponto de partida para entendê-la, não teremos uma compreensão suficiente de todas as suas determinações.

2. A segunda ideia diz que “a totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual.“. O que significa que em toda sociedade podemos distinguir a base econômica ou infraestrutura, constituída pelas forças e pelas relações de produção e a superestrutura que é constituída pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pelos modos de pensar ou pela consciência social, se quisermos.

3. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência“, do que decorre que para explicar a maneira de pensar dos homens é preciso analisar as relações sociais às quais eles estão integrados.

4. “Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social“. Aqui é preciso definir o que Marx entendia por forças produtivas e por relações de produção. O conceito de forças produtivas abrange os meios de produção, como o desenvolvimento tecnológico, as fontes de energia disponíveis, a organização do trabalho coletivo, entre outros, enquanto que as relações de produção são constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas, como a burguesia que detém, no capitalismo, o controle dos meios de produção dos bens de uma determinada sociedade. R. Aron explica assim: “Em outras palavras, a dialética da história é constituída pelo movimento das forças produtivas, que entram em contradição, em certas épocas revolucionárias, com as relações de produção, isto é, tanto as relações de propriedade como a distribuição de renda entre os indivíduos ou grupos da coletividade”[48].

5. Embora este texto do “Prefácio” não faça alusão à luta de classes, nesta contradição entre forças e relações de produção é fácil introduzir o conceito: na contradição existente entre forças e relações de produção, uma classe está associada às antigas relações de produção que constituem um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas, enquanto que outra classe representa as novas relações de produção que favorecem o desenvolvimento dessas forças. Segundo o Manifesto do Partido  Comunista, “A história de todas as sociedades existentes até hoje é a história das lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta[49].

6. “Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir“. As revoluções não acontecem por acaso, são expressão de uma necessidade histórica.

7. “Em grandes traços, podem ser designados, como outras tantas épocas progressivas da formação econômica da sociedade, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno”. Marx distingue as etapas da histórica humana a partir de sua estrutura econômica, falando destes quatro modos de produção. Cada um deles se caracteriza por determinado tipo de relações entre os homens na produção da riqueza. O modo de produção antigo caracteriza-se pela escravidão; o modo de produção feudal, pela servidão; o modo de produção burguês, pelo trabalho assalariado e, mais problemático na sua definição, o modo de produção asiático ou tributário, pela submissão dos trabalhadores ao tributo estatal e ao trabalho forçado[50].

Este resumo dá apenas uma rápida ideia da complexidade, do alcance e das inúmeras polêmicas que o pensamento de Marx gera, necessariamente, tanto entre os estudiosos como entre os homens engajados em qualquer ação social.

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[45]. MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política, em FERNANDES, F. (org.) K. MARX & F. ENGELS: História. São Paulo: Ática, 1983, p. 233-234. 

[46]. FERNANDES, F. (org.) o. c., p. 46.

[47]. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, p. 140. Cf. para o que se segue Idem, ibidem, p. 140-204. Cf. também BOTTOMORE, T. (ed.) Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, verbetes forças produtivas e relações de produção, base e superestrutura, classe, luta de classes. Sobre Marx e o marxismo podem ser lidos com proveito também: HOBSBAWM, E. J. et al. História do Marxismo, 12 vols. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979-1989; MCLELLAN, D. Karl Marx: Vida e Pensamento. Petrópolis: Vozes, 1990; IANNI, O. (org.) Karl Marx: Sociologia. 4. ed. São Paulo: Ática, 1984; KARL MARX, 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção “Os Pensadores”; WRIGHT, E. O. et al. Reconstruindo o Marxismo: Ensaios sobre a Explicação e Teoria da História. Petrópolis: Vozes, 1993. A leitura da principal obra de Marx, O Capital: Crítica da Economia Política, vols. I-III, pode ser feita na edição da Abril Cultural, São Paulo, 1983-1985, Coleção “Os Economistas”.

[48]. ARON, R. o. c.,  p. 141.

[49]. MARX, K. ; ENGELS, F., Manifesto do Partido Comunista, em FERNANDES, F. (org.), o. c., p. 365-366.

[50]. Sobre o modo de produção “asiático” ou tributário, cf. CARDOSO, C. F. S. (org.) Modo de produção asiático: Nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990. GEBRAN, Ph. (org.) Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

Última atualização: 05.04.2022 – 15h19

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