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Comentários bíblicos
Os comentários bíblicos de Qumran são do gênero pesher, palavra hebraica que quer dizer “explicação”, “significado”. O método pesher consiste em comentar o texto bíblico versículo por versículo, procurando aplicá-lo às circunstâncias vividas pela comunidade, como se os textos bíblicos, especialmente os proféticos, estivessem falando diretamente da realidade atual. Os livros resultantes são conhecidos como pesharim, “comentários”.
Após citar um versículo ou mesmo trechos menores, o comentarista diz: “A explicação (pesher) disto diz respeito a…”.
Estes livros são classificados como 1QpHab, 1QpMq, 4QpOs etc, respectivamente, Comentário (= pesher) de Habacuc, Comentário de Miqueias, Comentário de Oseias e assim por diante. Estão identificados cerca de uma dúzia destes comentários entre os manuscritos de Qumran[23].
Os pesharim, além de exemplificarem um método exegético só usado pela comunidade de Qumran e pelos cristãos, são importantes igualmente como testemunhos históricos da organização e vicissitudes da comunidade.
O pesher mais importante de Qumran é o 1QpHab, Comentário de Habacuc, escrito provavelmente no começo do séc. I a.C., por suas constantes referências à história da comunidade.
Outro tipo de trabalho exegético encontrado em Qumran é o targum. Targum significa “tradução” e indica as traduções aramaicas dos livros bíblicos (= targumim) que se fazem nas sinagogas da época. Só que o targum não é uma tradução literal, mas uma paráfrase explicativa e atualizada do texto hebraico. É ótimo para se saber como os judeus interpretam o texto bíblico.
Na gruta número 11 de Qumran os arqueólogos encontram vários fragmentos de origem targúmica, entre eles um Targum de Jó. É o mais antigo dos targumim conhecidos, sendo do final do séc. II a.C[24].
Outro tipo de exegese é o que os editores dos manuscritos chamam de Florilégio: consiste em agrupar vários trechos bíblicos, que possuam alguma homogeneidade, para que eles se completem e sejam explicados. O fragmento 4Q174, por exemplo, reúne trechos de 2Sm 7 com Sl 1 e 2 que são interpretados, em seguida, segundo o padrão do pesher.
Regras da comunidade
De extrema importância são os livros que trazem as normas de constituição e atividades da comunidade de Qumran.
A Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, em hebraico, Serek hayahad (1QS), é o principal livro da comunidade de Qumran. É o manuscrito que contém as normas que governam a comunidade. Provavelmente seu autor é o próprio fundador da comunidade, conhecido nos textos como o Mestre da Justiça. Sua composição pode ser situada entre 150 e 125 a.C., enquanto que o manuscrito completo é dos anos 100-75 a.C.
Além da cópia completa encontrada em 1Q, fragmentos de outras 11 cópias estão entre os textos de 4Q e 5Q.
A Regra pode ser dividida em três seções:
. Normas para o ingresso na Comunidade (I-IV)
. Estatutos referentes ao Conselho da Comunidade (V-IX)
. Diretrizes para o Mestre e o Hino do Mestre (IX-XI).
A Regra da Congregação, em hebraico, Serek ha’edat (1QSa), e a Coleção de Bênçãos (1QSb) são dois anexos à Regra da Comunidade. A primeira é da metade do séc. I a.C. e a segunda pode ser datada por volta de 100 a.C. A Regra da Congregação é um escrito de tipo escatológico que descreve a vida e o banquete da comunidade no fim dos tempos. A Coleção de Bênçãos é uma antologia de fórmulas para abençoar os membros da comunidade.
Os Cânticos de Louvor, em hebraico, Hôdayôt (1QH), são cânticos de ação de graças ou hinos de louvor, parecidos com o “Magnificat” e o “Benedictus” de Lucas. Inspiram-se principalmente nos Salmos e em Isaías. Devem ter sido compostos entre 150 e 125 a.C., e, pelo menos em parte, pelo Mestre da Justiça. O manuscrito de 1Q provém dos anos 1 a 50 d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais 6 cópias.
A Regra da Guerra, em hebraico, Serek hamilhamah, também conhecida como “A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”, compreende uma espécie de compêndio da ciência bélica e das celebrações cultuais que deveriam ser observadas por ocasião de uma guerra com vistas à luta final que precederia a era da salvação[25] . Os filhos da luz contam com a ajuda dos anjos Miguel, Rafael e Sariel, enquanto que os filhos das trevas contam com Belial. A vitória, é claro, é dos filhos da luz. O original é composto entre os anos 50 a.C. e 25 d.C., enquanto que o manuscrito encontrado em 1Q é do séc. I d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais cinco cópias deste livro.
O Documento de Damasco (CD) é uma obra conhecida desde 1896-97, quando dois manuscritos são encontrados num depósito de rolos velhos (genizá) de uma antiga sinagoga do Cairo. Um dos manuscritos é do século X d.C. e o outro do séc. XII d.C. Publicados em 1910, continuam, então, um enigma: não se sabe a que grupo judeu o texto se refere e que certamente compôs a obra. Os estudiosos sugerem os saduceus, os fariseus, os ebionitas, os caraítas… e apenas um diz que é dos essênios!
Agora, acontece que fragmentos de nove cópias do Documento de Damasco são encontrados nas grutas de Qumran (7 fragmentos em 4Q, 1 em 5Q, 1 em 6Q): sem dúvida é uma obra criada na comunidade essênia.
Muitos especialistas defendem que “Damasco” deve ser entendido em sentido literal e que representaria uma primeira fase da comunidade, anterior ao seu estabelecimento em Qumran. Outros pensam que “Damasco” seja apenas um modo velado de se falar de Qumran, a partir de Am 5,26-27. E o Documento pode ser também a regra de outra ala da organização, que viveria fora de Qumran. Mas discutirei isso mais para a frente.
A obra compõe-se de uma exortação e de uma lista de estatutos. Na exortação o pregador (talvez uma autoridade da comunidade) tem por objetivo encorajar os sectários a permanecer fiéis e, com este fim em vista, ele se empenha em demonstrar, por meio da história de Israel e da comunidade, que a fidelidade é sempre recompensada e a apostasia castigada[26].
Os estatutos reinterpretam as leis bíblicas relativas a votos e juramentos, tribunais, purificação, sábado, pureza ritual etc. Trazem também os estatutos da comunidade. O Documento de Damasco deve ter sido escrito por volta de 100 a.C.
O Rolo do Templo, encontrado na gruta 11, (11QT), só aparece em junho de 1967, durante a “Guerra dos Seis Dias”, quando o Estado de Israel o retira das mãos de um antiquário da parte árabe de Jerusalém, a quem os ta’amireh o vendera.
É o maior dos manuscritos de Qumran, com mais de oito metros e meio de comprimento e 66 colunas. Trata do Templo e do culto, e embora se trate de uma reinterpretação da legislação bíblica do Êxodo, Levítico e Deuteronômio, o autor apresenta sua mensagem como fruto de revelação divina direta. O Rolo do Templo é do séc. II a.C. São encontrados fragmentos deste livro nas grutas 4Q e 11Q.
O Rolo de Cobre (3Q15) – que tem de ser cortado para ser aberto, de tão oxidado que está – fala de um tesouro escondido em 64 lugares diferentes da Palestina, em ouro, prata, perfumes etc. O montante alcançaria a fabulosa quantia de 65 toneladas de prata e 26 toneladas de ouro.
Seria um tesouro de fato ou só uma ficção? Até hoje nada foi achado deste pretenso tesouro. Os estudiosos se dividem na suas opiniões: seria um tesouro da comunidade de Qumran? Ou pertenceria ao Templo de Jerusalém? Neste último caso, quando e porquê o documento vai parar em Qumran?[27].
4QMMT pode parecer meio esotérico, mas é apenas a sigla de Miqsat Ma’aseh ha-Torah ou “Alguns dos Preceitos da Torá”, também conhecida como “Carta Halákica”. Seis cópias deste escrito são encontradas na gruta 4.
Os editores sugeriram que se trata de uma carta do grupo de Qumran, talvez redigida pelo Mestre da Justiça e seus companheiros, dirigida a seus oponentes em Jerusalém, incluindo o sumo sacerdote (= o Sacerdote Ímpio). O propósito da carta era esmiuçar as diferenças entre os dois partidos e convocar os oponentes para uma retificação da vida[28].
A carta é de grande importância para a compreensão dos essênios, pois apresenta 22 pontos da Lei em que os dois partidos divergem. A carta termina do seguinte modo: “E também nós te escrevemos alguns dos preceitos da Torá que pensamos bons para ti e para o teu povo, pois vimos em ti inteligência e conhecimento da Torá. Considera todas estas coisas e busca diante dele que ele confirme o teu conselho e afaste de ti a maquinação malvada e o conselho de Belial, de maneira que possas alegrar-te no final do tempo no descobrimento de que algumas de nossas palavras são verdadeiras. E te será contado em justiça quando fizeres o que é reto e bom diante dele, para o teu bem e o de Israel” (4QMMT 112-118).
3. A publicação
A leitura, tradução e publicação dos manuscritos mais ou menos completos não é um grande problema para os especialistas. Mesmo os fragmentos das grutas menores são publicados até os anos 70.
O problema está nos milhares de fragmentos de mais de 500 manuscritos da gruta 4. A maioria está muito deteriorada: corroídos, curvados, enrugados, retorcidos, cobertos por mofo e elementos químicos.
Para trabalhar nestes fragmentos é constituída em 1952 uma equipe internacional no Museu Arqueológico da Palestina, em Jerusalém Oriental, pertencente à Jordânia.
O chefe da equipe é o dominicano Roland de Vaux. Com ele trabalham Frank Moore Cross, americano, presbiteriano; J. T. Milik, polonês, católico; John Allegro, inglês, agnóstico; Jean Starcky, francês, católico; Patrick Skehan, americano, católico; John Strugnell, inglês, presbiteriano, depois católico; Claus-Hunno Hunziger, alemão, luterano. Predominam especialistas de Harvard (USA), École Biblique (Jerusalém) e Oxford (Inglaterra). Nota-se, nesta lista, a ausência de pesquisadores judeus. Dizem os especialistas que foi uma exigência do governo jordaniano.
Os trabalhos avançam em bom ritmo, já que são financiados por J. D. Rockfeller Jr., magnata americano. Mas, dois fatos intervêm: morre Rockfeller e Israel, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, anexa Jerusalém Oriental e toma o Museu Arqueológico da Palestina onde estão os manuscritos da gruta 4. O projeto de publicação perde o compasso.
Com a morte de Roland de Vaux em setembro de 1971, a função de editor-geral passa para seu colega dominicano Pierre Benoit, que por sua vez, ao morrer em 1987, passa o cargo para John Strugnell [os preparativos para esta sucessão vinham desde 1984]. Durante todos estes anos, a equipe continua pequena. Quando um pesquisador morre ou se retira, é substituído por outro e pronto. Strugnell, porém, lutará por duas coisas: pela expansão do pequeno grupo original encarregado dos manuscritos e pela inclusão nesta equipe de pesquisadores judeus[29].
Entretanto, cresce no meio acadêmico mundial a insatisfação com a demora na publicação dos documentos. Alguns nomes se destacam neste protesto: Robert Eisenman, da Universidade do Estado da Califórnia e Philip R. Davies da Universidade de Sheffield, Reino Unido. Eles tentam o acesso aos manuscritos, mas são barrados por J. Strugnell. É então que entra em cena Hershel Shanks, fundador da Biblical Archaeology Society. Através da Biblical Archaeology Review, ele inicia, a partir de 1985, poderosa campanha em favor do livre acesso dos pesquisadores aos manuscritos ainda não publicados.
Após polêmica entrevista aos jornais, em dezembro de 1990, John Strugnell é demitido do cargo pela Israel Antiquities Authority (IAA), que indica Emanuel Tov como editor-chefe e amplia a equipe para cerca de 50 pesquisadores. John Strugnell faleceu em 30 de novembro de 2007 aos 77 anos.
Contudo, dois novos fatos mudam o rumo das coisas. Em setembro de 1991 Ben Zion Wacholder e Martin Abegg do Hebrew Union College, em Cincinati, publicam A Preliminary Edition of the Unpublished Dead Sea Scrolls. Baseados no glossário elaborado pelos pesquisadores oficiais, e utilizando um computador, os dois estudiosos reconstroem textos inteiros da gruta 4. No mesmo mês, a Biblioteca Huntigton, de San Marino, Califórnia, que possui as fotos de todos os manuscritos, coloca a coleção à disposição dos estudiosos.
Em novembro de 1991 a Biblical Archaeology Society publica a Edição Fac-símile dos Manuscritos do Mar Morto, com cerca de 1800 fotografias dos manuscritos.
Neste meio tempo a IAA autoriza aos fotógrafos o acesso aos manuscritos. Estas fotografias estão disponíveis em 5 lugares: Jerusalém, Claremont e San Marino (as duas últimas na Califórnia), Cincinati e Oxford. E, finalmente, em 1993, sob os auspícios da IAA, sai a edição completa em microfilmes de todos os manuscritos do Mar Morto: The Dead Sea Scrolls on Microfiche. A Comprehensive Facsimile Edition of the Texts from the Judaean Desert, edited by Emanuel Tov with the collaboration of Stephen J. Pfann, E. J. Brill-IDC, Leiden 1993.
Em novembro de 2001 a publicação dos Manuscritos do Mar Morto foi concluída. Hoje há várias edições impressas e eletrônicas dos Manuscritos, além das páginas que os disponibilizam online, como aqui e aqui.
Também já foram feitas exposições dos Manuscritos em alguns países. Pergaminhos do Mar Morto: Um Legado Para a Humanidade foi o nome da mostra dos Manuscritos do Mar Morto no Brasil que começou dia 20 de agosto de 2004 e permaneceu até 23 de outubro, no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Em seguida, a exposição foi para a Estação Pinacoteca, em São Paulo, onde permaneceu de 26 de novembro de 2004 a 27 de fevereiro de 2005.
E textos em português?
No Brasil temos a importante obra de Florentino García Martínez, Textos de Qumran: edição fiel e completa dos Documentos do Mar Morto. Petrópolis: Vozes, 1995, 582 p. – ISBN 9788532612830. É uma acurada tradução dos 250 textos mais importantes de Qumran. A tradução do espanhol para o português é de Valmor da Silva[30].
[23]. São os Comentários de Habacuc, Oseias, Miqueias, Sofonias, Naum, Isaías (4 comentários), Salmos (3 comentários).
[24]. Sobre os targumim, cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 485-511.
[25]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 58-69.
[26]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 41-48.
[27]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 213-215.
[28]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p.20-27.
[29]. Sobre a data em que Strugnell assumiu a direção da equipe, circulam na imprensa duas datas: 1984 e 1987. Foi em 1987, mas em 1984 os preparativos já tinham sido feitos.
[30]. “Este livro pretende oferecer ao leitor uma tradução dos 250 manuscritos mais importantes procedentes de Qumran, isto é, uma tradução praticamente completa dos manuscritos não bíblicos ali encontrados”, comenta o autor no prólogo à edição brasileira de sua obra. Uma resenha da obra de Florentino García Martínez, feita por J. C. Vanderkam, pode ser lida em The Catholic Biblical Quarterly 56 (july 1994), Washington, p. 545-546. Diz Vanderkam: “Seu Textos de Qumrán é a mais completa tradução dos manuscritos em uma língua moderna (…) Ele sustenta, contra N. Golb, que os manuscritos de Qumran fazem parte de uma biblioteca religiosa sectária, e ele discute também a identificação, origem e história da comunidade de Qumran (…) Ao contrário do irritante costume da largamente divulgada tradução inglesa de G. Vermes de uma quantidade bem menor de manuscritos, García Martínez fornece a numeração das linhas para todos os textos; e no final ele traz uma lista de todos os manuscritos de Qumran junto com informação bibliográfica sobre onde eles foram publicados, caso tenham sido (…) O resultado é uma fascinante e útil apresentação dos textos de Qumran, traduzidos por uma das mais importantes autoridades mundiais nos manuscritos”.
Última atualização: 31.07.2019 – 15h56