O discurso socioantropológico 2

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No plano dos fatos, temos classes sociais antagônicas em luta: é a revolução. No plano do pensamento, temos dois polos contraditórios que, através de contínua superação, constituem o avançar histórico, encarnação da ideia em contínua tensão. A dialética é a revolução vitoriosa, em forma conceitual! O mundo, a história, não são réplicas imperfeitas de um mundo transcendente e estático na sua perfeição. Eles são a ideia, fazendo-se, procurando a perfeição. É a superação da metafísica[7].

Estes são, resumidamente, alguns dos pressupostos nos quais as Ciências Sociais se fundamentam. Entre os vários tipos de abordagens das sociedades humanas e de suas instituições que podemos chamar de Ciências Sociais estão, entre outras, a sociologia, a antropologia, a arqueologia, a economia, a psicologia, as ciências políticas…. Vamos nos restringir aqui à sociologia e à antropologia.

 

4. A sociologia, ciência da sociedade humana e de suas instituições

Quando Auguste Comte (1798-1857)[8] e Émile Durkheim (1858-1917)[9] procuram formular as leis que regem a organização social, a especulação filosófica sobre a sociedade transforma-se em sociologia, ciência que pode ser sumariamente definida como o estudo da sociedade humana e de suas instituições.

Podemos, assim, verificar que a sociologia nasce mesmo é como consequência das profundas transformações geradas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial. É a formação da sociedade capitalista “que impulsiona uma reflexão sobre a sociedade, sobre suas transformações, suas crises, seus antagonismos de classe”[10].

Ou seja: na Europa, duas condições precedem o aparecimento do pensamento sociológico:
. uma secularização de atitudes e dos modos de compreender a natureza humana, a origem e o fundamento das instituições
. um processo de racionalização que projeta na esfera da ação coletiva a ambição de conhecer, explicar e dirigir os acontecimentos e a vida social[11].

 

5. Comte e a instauração do espírito positivo

Vamos exemplificar este processo com uma síntese do pensamento de Comte, que, abalado com a os resultados mais radicais da Revolução Francesa, e considerando que a humanidade se encontrava numa fase de desorganização social perigosa, propõe uma nova ordem social que deve nascer de um sólido espírito positivo em oposição ao espírito negativo do Iluminismo, segundo seu parecer.

Comte estrutura seu pensamento em torno de três temas básicos que são: uma filosofia da história, uma classificação das ciências e uma reforma das instituições.

Comte (1798-1857)A filosofia da história de Comte pode ser resumida na sua lei dos três estágios ou três fases pelas quais o espírito humano passou historicamente: a teológica, a metafísica e a positiva. Na fase teológica, o homem, impotente diante dos fenômenos naturais, apela para seres sobrenaturais aos quais atribui sua origem. Isto se dá na Idade Antiga. Na fase metafísica, o homem, mais habituado ao manejo da racionalidade, passa a atribuir a causa dos fenômenos naturais a forças da natureza, incontroláveis do ponto de vista prático, mas passíveis de serem pensadas de modo abstrato. Isto ocorre na Idade Média. Na fase positiva, já presente entre os gregos e que agora reaparece com Bacon, Galileu e Descartes, o homem abandona a consideração das causas dos fenômenos, que era uma atitude teológica ou metafísica, e põe-se a pesquisar as suas leis, entendidas como relações constantes entre os fenômenos.

Em suas palavras: “O caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços (…) Cada um sabe que, em nossas explicações positivas, até mesmo as mais perfeitas, não temos de modo algum a pretensão de expor as causas geradoras dos fenômenos, posto que nada mais faríamos então além de recuar a dificuldade. Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e de similitude”[12].

A classificação das ciências é o segundo tema básico de Comte, que, partindo da que julga mais simples, as ordena de acordo com sua complexidade: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. A sociologia, no topo da classificação, é para Comte “a única meta essencial de toda filosofia positiva, considerada de agora em diante como formando, por sua natureza, um sistema verdadeiramente indivisível, em que toda decomposição é radicalmente artificial, sem ser aliás, de modo algum, arbitrária, já que tudo se reporta finalmente à Humanidade, única concepção plenamente universal”[13].

O terceiro tema básico da filosofia de Comte é a reforma das instituições que tem seus fundamentos teóricos na sociologia. Diz Comte que “conforme o sentimento, cada vez mais desenvolvido, de igual insuficiência social que hoje oferecem o espírito teológico e o espírito metafísico, os únicos até agora a disputar ativamente um lugar ao sol, a razão pública deve encontrar-se implicitamente disposta a acolher o espírito positivo como a única base possível para uma verdadeira resolução da anarquia intelectual e moral, que caracteriza sobremaneira a grande crise moderna”[14].

E acrescenta um pouco mais adiante: “Não se pode primeiramente desconhecer a aptidão espontânea dessa filosofia a constituir diretamente a conciliação fundamental, ainda procurada de tão vãs maneiras, entre as exigências simultâneas da ordem e do progresso (…) Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e, reciprocamente, o progresso vem a ser a meta necessária da ordem (…) Especialmente considerado, em seguida, no que respeita à ordem, o espírito positivo apresenta-lhe hoje, em sua extensão social, poderosas garantias diretas, não somente científicas mas também lógicas, que poderão logo ser julgadas muito superiores às vãs pretensões duma teologia retrógrada…”[15].

Ou seja: para o conservador Comte, como a Revolução Francesa destruíra as instituições sociais por ter sido negativa e metafísica em seus pressupostos, mas ao mesmo tempo tinha sido necessária para superar as anacrônicas instituições políticas e sociais ainda teológicas, só uma nova elite científico-industrial seria capaz de instaurar o espírito positivo na organização social e política, fazendo com que as ciências se tornassem bem comum.

Este anseio por uma reforma intelectual e social levou Comte a desenvolver, nos últimos quinze anos de sua vida, uma religião da humanidade, com novo calendário, cujos meses tinham os nomes de grandes figuras da história do pensamento, com dias santos, em que se deveriam comemorar as obras de Dante, Shakespeare, Adam Smith e outros, e com novo catecismo, que substitui Deus pela Humanidade. A Igreja Positivista do Brasil existe até hoje no Rio de Janeiro, nossa bandeira tem o lema comteano “Ordem e Progresso” e a Constituição de 1891 foi fortemente influenciada pelos positivistas.

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[7]. Cf. LARA, T. A. o. c. , p. 64-69. De Hegel deve ser lida a Fenomenologia do Espírito, de 1807, em “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1980 (esta tradução traz apenas o Prefácio, a Introdução e os capítulos I e III); outra edição da Fenomenologia do Espírito: Petrópolis: Vozes, 1997 (volume I) e 1993 (volume II).

[8]. De A. Comte devem ser lidos o Curso de filosofia positiva, de 1839/42 e o Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, de 1848, que contêm suas principais ideias sobre o positivismo. Ambos estão em “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1978.

[9]. De E. Durkheim pode ser lido na mesma coleção “Os Pensadores” As regras do método sociológico, de 1895. Fundamental também é o livro As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulus, 1989. É importante observarmos que Durkheim ocupou, a partir de 1887, na Universidade de Bordéus, a primeira cátedra exclusivamente dedicada ao estudo da sociologia no ensino superior francês.

[10]. MARTINS, C. B. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 16.

[11]. FERNANDES, F. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 25.

[12]. COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva, em o. c., p. 7. Cf. uma síntese do pensamento de Comte em LARA, T. A. Caminhos da Razão no Ocidente, p. 82-85; MARTINS, C. B. O que é Sociologia, p. 43-46; COMTE, A. Introdução, em “Os Pensadores”, p. VI-XVIII.

[13] . COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo, em “Os Pensadores”, o. c., p. 90.

[14]. COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo, p. 68-69.

[15]. Idem, ibidem, p. 69.

Última atualização: 27.04.2019 – 13h15