Essênios 4

Páginas 1 | 2 | 3 | 4

leitura: 28 min

5. A organização da comunidade

Dissemos antes que os habitantes de Qumran não se autodenominam “essênios”. Então, como é que eles chamam a sua organização?

Nos manuscritos o nome mais utilizado para indicar o grupo é yahad, “comunidade”, que só na 1QS aparece mais de 60 vezes. A Regra leva este título, como aparece em 1QS I,1: “Para [o Instrutor…] … [livro da Regra da Comunidade (serek hayahad) : para buscar a Deus [com todo o coração e com toda a alma…”

A Regra da Comunidade tem dois anexos, um dos quais é chamado de Regra da Congregação, sendo o termo ‘adah, “congregação” outra autodenominação do grupo de Qumran. 1QSa usa-o 21 vezes. Diz 1QSa I,1: “Esta é a Regra para toda a Congregação (haserek lekol ‘adat) de Israel nos últimos dias…”.

Além destes dois termos, os qumranitas se autodesignam também como ‘asah, “conselho” (1QS I,8.10;2,25 etc), sod, yasod, mosad, “assembleia”, “sociedade” e ha­rabbim, “os numerosos”, “os muitos”. Além de “os santos”, “resto”, comunidade da “nova aliança” e outros semelhantes[56].

Na organização interna da comunidade de Qumran observa-se a predominância dos sacerdotes (= filhos de Aarão) sobre os leigos, como exemplifica 1QS IX,7-8 que diz: “Só os filhos de Aarão terão autoridade em matéria de juízo e de bens, e sua palavra determinará a sorte de toda disposição dos homens da comunidade e dos bens dos homens de santidade que caminham na perfeição”.

O órgão supremo de governo da comunidade, com poder judicial e executivo é a “assembleia dos numerosos” (môshab harabbim), descrita em 1QS VI, 8-13. Essa assembleia reúne-se para discutir a Lei, os negócios da comunidade, acolher ou rejeitar novos membros, ouvir as acusações contra os culpados de alguma transgressão etc.

Mais restrito que essa grande assembleia é o “Conselho da Comunidade”, composto por doze leigos e três sacerdotes, como diz 1QS VIII, 1: “No conselho da comunidade haverá doze homens e três sacerdotes, perfeitos em tudo o que tiver sido revelado de toda a lei…”

É possível que estes doze leigos representem as doze tribos de Israel, enquanto os três sacerdotes representariam as três famílias sacerdotais descendentes de Levi, através de Gérson, Cat e Merari (Cf Gn 46,11). Mas a sua função não é bem conhecida. Seriam estes homens uma elite especial na comunidade? Ou um quórum mínimo de liderança do grupo? Se a Regra da Comunidade tem vários níveis redacionais, como creem alguns, este Conselho poderia representar o primeiro estágio de formação da comunidade de Qumran, que teria evoluído para uma organização mais complexa nos decênios seguintes.

Jarro de QumranOs documentos falam também das comunidades-base que são compostas por dez membros, e nas quais deve haver um sacerdote para aconselhar e um especialista na Lei para instruir os companheiros. É o que diz 1QS VI, 3-7, do qual cito trechos: “Em todo lugar em que houver dez homens do conselho da comunidade, que não falte entre eles um sacerdote; cada qual, segundo a sua categoria, sentar-se-á diante dele, e assim se lhe pedirá o seu conselho em todo assunto (…) E que não falte no lugar em que se encontram os dez um homem que interprete a lei dia e noite, sempre, sobre as obrigações de cada um para com seu próximo”.

O responsável por toda a comunidade é o mebaqqer, “inspetor” (1QS VI, 12.14.20), às vezes chamado de paquid, “presidente”. Ele é o administrador dos bens da comunidade, e aquele que ensina e guia. Ele preside a assembleia geral. Há também o maskîl, “instrutor”, dedicado à formação espiritual.

O sistema de admissão na comunidade é bastante rigoroso. Temos as informações da Regra da Comunidade e de Flávio Josefo sobre o assunto[57].

O candidato, que deve ser israelita, passa inicialmente por um rigoroso exame feito pelo líder da comunidade “quanto a seu entendimento e a seus atos”. Se for considerado apto, ele é instruído nas regras da comunidade e viverá como um deles durante um ano, mas fora da comunidade.

Após esse ano, caso seja aprovado pela assembleia, o candidato ingressa na comunidade, mas durante um ano inteiro não participa de suas refeições comuns nem da comunhão de bens. É um tempo de aprendizado, certamente guiado pelo “instrutor”.

Ao término desse segundo ano, inicia o candidato um terceiro ano no qual entrega seus bens ao tesoureiro da congregação e continua sua formação, mas ainda sem participação integral.

No fim desses três anos, se aceito pela assembleia, o candidato passa a participar integralmente da comunidade, com direito às purificações rituais, banquete, voz e voto nas assembleias e comunhão de bens.

Mas, como é que a comunidade se vê, qual é seu ideal? 1QS I, 1- 11 diz que “os santos” ingressam no grupo e vivem de acordo com a Regra da Comunidade “Para buscar a Deus [com todo o coração e com toda a alma; para] fazer o que é bom e o que é reto em sua presença, como ordenou pela mão de Moisés e pela mão de todos os seus servos os Profetas; para amar tudo o que ele escolhe e odiar tudo o que ele rejeita; para manter-se distante de todo mal, e apegar-se a todas as boas obras; para operar a verdade, a justiça e o direito na terra, e não caminhar na obstinação de um coração culpável e de olhos luxuriosos fazendo todo mal; para admitir na aliança da graça todos os que se oferecem voluntariamente para praticar os preceitos de Deus, a fim de que se unam no conselho de Deus e caminhem perfeitamente em sua presença, de acordo com todas as coisas reveladas sobre os tempos fixados de seus testemunhos; para amar a todos os filhos da luz, cada um segundo o seu lote no plano de Deus, e odiar a todos os filhos das trevas, cada um segundo a sua culpa na vingança de Deus”.

Segundo os arqueólogos, vivem em Qumran entre 150 e 200 pessoas. Em dois séculos de existência da comunidade deve viver ali cerca de 1.200 pessoas. A partir das ferramentas encontradas e das instalações escavadas sabe-se que eles cultivam a terra – no estabelecimento agrícola de Ain Feshka, ao sul das ruínas – fazem cerâmica, curtem peles e copiam manuscritos. Além disso, 1Q VI,2-3 diz que eles comem juntos, rezam juntos e deliberam juntos.

A quebra da ordem interna, pela desobediência às regras da comunidade, é duramente punida. As penalidades vão desde 10 dias de punição – com simples exclusão de rituais da vida comum – até a expulsão definitiva da comunidade. Os crimes mais graves são a transgressão de qualquer ponto da Lei mosaica, o uso do nome de Deus, a calúnia contra a congregação e a obstinação continuada de alguém no erro, mesmo após muitos anos de vida comunitária[58].

Os essênios não vivem apenas em Qumran. Muitos habitam cidades e aldeias da Palestina, espalhando-se por todo o país em “acampamentos”, como diz o Documento de Damasco. É possível que o movimento essênio seja anterior ao surgimento da comunidade de Qumran, que talvez represente apenas um de seus ramos.

Flávio Josefo já nos diz que eles “Não têm uma cidade única, mas em cada cidade compõem com alguns outros uma colônia”[59].

E Fílon traz a seguinte informação: “Eles habitam numerosas cidades da Judeia e também diversas aldeolas e agrupamentos com grandes efetivos”[60].

Em Qumran os essênios vivem em regime de celibato, mas as outras comunidades não, pois diz o Documento de Damasco: “E se habitam nosManuscrito de Isaías encontrado na gruta 1 de Qumran acampamentos de acordo com a regra da terra e tomam mulheres e engendram filhos, caminharão de acordo com a lei e segundo a norma das instruções, segundo a regra da lei que diz: ‘Entre um homem e sua mulher, e entre um pai e seu filho'” (CD VII, 6-9).

Diz a Regra da Congregação que o membro da comunidade deve se casar aos 20 anos de idade: “À idade de vinte a[nos passará] [entre] os alistados para entrar no lote em meio à sua família para unir-se à congregação santa. Não se [aproximará] de uma mulher para conhecê-la por ajuntamento carnal até que tenha cumprido os vinte anos, quando conheça [o bem e] o mal. Então ele será recebido para dar testemunho sobre os preceitos da lei e para ocupar o seu lugar na proclamação dos preceitos” (1QSa I,8-11).

Além disso, no Documento de Damasco nunca se fala da mesa comum nem do banquete sagrado, tão importantes em Qumran. Por outro lado, admite a propriedade privada (CD IX, 10-16), sendo entregue ao “inspetor” apenas o ganho de dois dias por mês. Em Qumran há total ruptura com o Templo de Jerusalém, enquanto que o Documento de Damasco regulamenta o envio de oferendas e sacrifícios ao Templo e dá normas sobre como se comportar durante a permanência em Jerusalém (CD XI, 19-XII, 2).

Para entrar na comunidade de “Damasco” basta a entrevista com o inspetor geral e um juramento (CD XIV,11; XV,5-7). E além dos sacerdotes e leigos, como em Qumran, o Documento de Damasco fala em prosélitos.

 

6. A teologia dos essênios

Explicitar a teologia dos essênios não é tarefa fácil, pois os manuscritos não trazem uma exposição teológica sistemática. Além do que, corre-se o risco de se fazer teologia segundo os modelos clássicos da dogmática cristã (Deus, criação, messianismo, escatologia etc), o que não corresponde exatamente aos padrões judaicos[61].

De modo simples, abordarei apenas três aspectos da mundivisão essênia:
a) como a comunidade essênia avalia a realidade atual?
b) quais são as práticas da comunidade?
c) quais são as expectativas da comunidade em relação ao futuro?

Os essênios se veem como a comunidade da nova aliança, como o resto de Israel, os santos que permanecem fiéis a Deus, certamente inspirados em Jr 31,31-34 , que propõe uma nova aliança, porque o projeto original faliu[62].

Isto é bem claro no Documento de Damasco, que trata das normas a serem seguidas pelos “membros da nova aliança na terra de Damasco” (CD VI,19) ou dos “homens que ingressam na nova aliança na terra de Damasco” (CD VIII,21).

Na Regra da Comunidade, quando se fala do ingresso no grupo e de seus ide­ais, é marcante o fato de que os essênios se vejam como os justos, os santos, guiados por Deus, que seguem os preceitos da Lei mosaica. Em contraposição, os outros são os ímpios, guiados por Satanás, que pervertem a Lei (1QS I-II).

Mas um dos textos mais reveladores de sua visão de mundo é o trecho da Regra da Comunidade que trata dos dois espíritos.

Segundo o documento, Deus cria o homem com dois espíritos, com os quais ele deve conviver: o espírito da verdade que nasce de uma fonte de luz e o espírito da falsidade, que nasce de uma fonte de trevas. “Ele criou o homem para governar o mundo e designou-lhe dois espíritos com os quais deverá caminhar até o advento de seu juízo final: o espírito da verdade e o espírito da falsidade. Os nascidos na verdade brotam de uma fonte de luz, mas os que nascem da falsidade brotam de uma fonte de trevas. O príncipe da luz governa todos os filhos da justiça que andam pelos caminhos da luz, mas o anjo das trevas governa os filhos da falsidade que caminham pelos caminhos das trevas” (1QS III,17-21).

Os filhos da justiça, que andam pelos caminhos da luz, têm um espírito de humildade, paciência, amor fraterno, bondade, compreensão, inteligência, discernimento, zelo pelas leis, pureza etc. Os filhos das falsidade, que andam pelos caminhos das trevas, têm um espírito de ganância, negligência, maldade, arrogância, orgulho, hipocrisia, crueldade, luxúria, insolência, engano etc (1QS IV, 2-14).

Para os filhos da justiça o julgamento divino será de saúde, vida longa, abundância, bênçãos, alegria; enquanto que para os filhos da falsidade será de flagelos, maldição, tormentos, desgraça etc.

O texto diz também que “A natureza de todos os filhos dos homens é regida por estes (dois espíritos), e no decorrer de suas vidas todas as hostes dos homens possuem uma porção de cada um deles, e andam por (ambos) os caminhos. E por eras eternas, toda a retribuição pelos seus atos será conforme a porção grande ou pequena que cada um tem destas duas divisões” (1QS IV,15-16).

“Até agora os espíritos da verdade e da falsidade lutam no coração dos homens e eles caminham tanto na sabedoria quanto na insensatez. De acordo com a porção de verdade que tem em si, o homem odeia a falsidade; e de acordo com sua herança do reino da falsidade, ele é iníquo e abomina a verdade” (1QS IV,24).

Não é preciso dizer que, naturalmente, os essênios se julgam portadores de uma porção maior de verdade que de falsidade, exatamente o contrário de seus inimigos, segundo seu julgamento.

Este dualismo teológico do texto sobre os dois espíritos – um dos mais densos de toda a literatura de Qumran – oculta/revela o conflito social que se vive na Palestina da época, e do qual os essênios participam como atores extremamente ativos. Não é à toa que seu manual da guerra, 1QM, chama-se “Guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”.

O bem e o mal, simbolizados como luz e trevas, não são apenas dois princípios éticos ou metafísicos abstratos e estáticos: são forças vivas atuantes dentro do homem e da sociedade[63].

A comunidade dos essênios se inspira no tema bíblico do deserto para justificar a sua opção de se retirar para a inóspita região de Qumran[64]. Claro que, além da razão teológica, há forte motivação política e estratégica para se viver em Qumran: o Mestre da Justiça tem que se retirar de Jerusalém com seus seguidores porque rompe com o governo macabeu, enfrenta-o e é perseguido. Isto inclusive terá outras consequências, como observa W. J. Tyloch: “As condições locais os obrigaram a introduzir uma economia coletiva e o conceito de bens comuns. Somente dessa forma puderam garantir para si próprios o mínimo necessário à sobrevivência”[65].

Mas o tema bíblico do deserto, carregado de reminiscências do projeto original da sociedade israelita, é que simbolicamente explica aos essênios as suas opções.

Diz a Regra da Comunidade, falando do cumprimento das leis que regem a sociedade essênia: “E quando estes se tornarem membros da comunidade de Israel, dentro de todas estas regras, separar-se-ão da morada dos homens sem Deus e retirar-se-ão para o deserto a fim de preparar seu caminho tal qual está escrito: ‘Preparai no deserto o caminho de…, aplainai no deserto uma vereda para o nosso Deus'” (1QS VIII,12-14).

No deserto, a comunidade se aplica a ler e a interpretar a Lei. A condição mínima para alguém entrar na comunidade é a vontade de seguir todos os preceitos da Lei mosaica. O superior admitirá no grupo “todos aqueles que livremente se dedicaram à observância dos mandamentos de Deus” (1QS I,7). E qualquer desobediência aos mandamentos leva o essênio a cumprir pesadas penas: “Todo homem que ingressar no conselho da santidade (o conselho daqueles que caminham na senda da perfeição conforme o ordenado por Deus) e que por vontade própria ou por negligência transgredir uma única palavra da Lei de Moisés, em qualquer  ponto que seja, será expulso do Conselho da Comunidade e não mais retornará; nenhum homem de santidade se associará à sua propriedade ou conselho em nenhum assunto” (1QS VIII, 21-23).

O estudo da Lei é permanente, segundo a Regra da Comunidade: “E onde estiverem os dez, nunca deverá faltar um homem entre eles que estudará a Lei, dia e noite, no que concerne à conduta correta de um homem para com seu companheiro. E a congregação fará vigília em comunidade durante um terço de cada noite do ano, para ler o livro, estudar a Lei e orar junto” (1QS VI,6-8).

Os essênios entendem que a “vereda” de Is 40,3 (“aplainai no deserto uma vereda para o nosso Deus“) é a Lei mosaica que a comunidade, voltando às origens, ao deserto, tem o dever de preservar: “Esta (vereda) é o estudo da Lei que ele ordenou por intermédio de Moisés, para que eles possam agir de acordo com tudo o que foi revelado de época em época, e conforme o que os profetas re­velaram pelo seu espírito santo” (1QS VIII,15).

Esta fidelidade absoluta à Lei – que é, por sinal, reinterpretada pela comunidade em vários pontos com mais rigor ainda do que no farisaísmo – é, sociologicamente falando, um recurso usado pelos essênios para distingui-los do resto de Israel e dar-lhes uma identidade.

Flávio Josefo, observando-os de fora e de longe, reconhece esta identidade projetada: “Deve-se admirar neles, se os compararmos a todos os outros adeptos da virtude, a sua prática da justiça, que não deve ter existido, de modo algum, em nenhum grupo grego nem em nenhum bárbaro, ainda que por pouco tempo, mas que se encontra entre eles desde uma data remota”[66].

Ou ainda: “São justos árbitros da cólera, homens que dominam seu arrebatamento, modelos de lealdade, artesãos da paz”[67].

A Lei é lida e interpretada através dos profetas. Estes têm grande importância na teologia da comunidade, pois, segundo as tendências apocalípticas da comunidade, eles anunciaram tudo o que está acontecendo agora e ainda acontecerá no futuro.

Mas a leitura dos profetas exige o discernimento dos iniciados nos segredos escatológicos. Daí ser o Mestre da Justiça o seu mais habilitado intérprete.

Ao Mestre da Justiça Deus revela “todos os mistérios das palavras de seus servos os profetas” (1QpHab VII, 5); ele é “o sacerdote [em cujo coração] Deus colocou [discernimento] para que ele interpretasse todas as palavras de seus servos os profetas, através de quem ele profetizou tudo o que aconteceria a seu povo e [à sua terra]” (1QpHab II,8-10); ele “revelou às gerações posteriores aquilo que Deus fizera à última geração, a congregação de traidores, aqueles que abandonaram o caminho” (CD I, 12-13).

É assim que a comunidade se sente segura, correta, fiel, o verdadeiro e único Israel, como reafirma a Regra da Comunidade: “Haverá uma plantação eterna, uma casa de santidade para Israel, uma assembleia de santidade suprema para Aarão. Deverão ser eles testemunhas da verdade no julgamento, e serão os eleitos da boa vontade que farão o resgate da terra e pagarão aos iníquos sua recompensa. Será a muralha já tão testada, aquela preciosa pedra angular, cujos alicerces não balançarão nem oscilarão. Será a santíssima morada para Aarão, com o eterno conhecimento da aliança da justiça e exalará um doce aroma. Será a casa da perfeição e da verdade em Israel, para que eles possam estabelecer uma aliança de acordo com os preceitos eternos”(1QS VIII,4-10).

Se a comunidade é o verdadeiro povo eleito, os outros são os “filhos das trevas”, que vivem sob o “domínio de Satanás”. São os “malditos”, os “homens da falsidade”, “os que transgridem os mandamentos”, os “homens do inferno”, segundo a Regra da Comunidade.

São os que “profanam o Templo”, “blasfemam contra as leis da aliança de Deus”, “praticam a vingança e a maldade contra seu irmão”; os que “saqueiam os pobres”, “fazem das viúvas suas presas”, “tornam órfãs suas vítimas”, segundo o Documento de Damasco.

São os “homens violentos que romperam a aliança”, guiados pelo “mentiroso”, o “sacerdote ímpio”, cuja “ignomínia era maior que sua glória”, e que “viveu de maneira abominável em meio a toda deturpação impura”, segundo o Comentário de Habacuc.

Como uma comunidade separada, os essênios de Qumran seguem seu próprio ritmo das festas, seus rituais de renovação da aliança, abluções e refeição comum.

Seu calendário é solar, enquanto o calendário judaico da época, usado pelo Templo, é o luni-solar; e seus sacrifícios são simbólicos, sendo a própria comunidade uma oferenda permanente a Deus, já que o Templo de Jerusalém está profanado pela usurpação macabeia[68].

Regra da Guerra - 1QM Os essênios, que acreditam estar vivendo os momentos decisivos da História, elaboram também uma doutrina – e até um manual – da guerra final. Será a guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas, codificada na Regra da Guerra. Nesta guerra os essênios vencerão os israelitas desencaminhados da Lei e os estrangeiros que dominam o país[69].

“No dia em que os kittin caírem, haverá terríveis batalhas e massacres diante do Deus de Israel, pois este será o dia designado desde os tempos antigos para a batalha da destruição dos filhos das trevas. Nesta ocasião, a assembleia dos deuses e das hostes dos homens combaterá, causando um enorme massacre; no dia da calamidade, os filhos da luz combaterão a companhia das trevas em meio a gritos de uma enorme multidão, e haverá clamor de deuses e homens para [tornar manifesto] o poder de Deus. será realmente um tempo de [grande] tribulação para o povo redimido de Deus, mas ao contrário de todas as suas tribulações anteriores,esta terminará rapidamente em uma redenção que durará para sempre” (1QM I,9-12).

Como se pode ver, não é apenas uma batalha de homens; os deuses também participam. E acreditam os essênios que “este será um tempo de salvação para os povos de Deus, uma era de domínio para todos os membros de sua companhia e de destruição eterna para toda a companhia de Satanás” (1QM I,5).

A esperança messiânica dos essênios é um pouco complexa. Parece que eles aguardam a vinda de dois Messias – segundo alguns até mesmo três -, um rei e um sacerdote, com o predomínio da figura sacerdotal sobre a real. O que não é de se estranhar em uma comunidade dirigida por sacerdotes.

E pode ser que o Mestre da Justiça, após a sua morte, tenha sido elevado por seus seguidores a uma espécie de “profeta messiânico” ou “Messias-profeta” que ensina a verdade à comunidade da nova aliança, na hora em que o estabelecimento definitivo do reino já desponta no horizonte[70].

Para finalizar, é bom lembrarmos que as ideias apocalípticas, que tão fortemente colorem a teologia essênia, pregam mesmo é a mudança da ordem social em vigor. Segundo os padrões apocalípticos, essa mudança social tem alcance mundial: “a revolução cósmica provocaria uma revolta social”[71].

Só que os essênios têm consciência de que os indivíduos isolados jamais poderiam desencadear a mudança social, daí a necessidade da ação comunitária; e de que o homem só é ainda incompetente para tal revolução cósmica, donde a necessidade das forças divinas.

Os essênios têm esperança de alcançar benefícios concretos dessa mudança, por isso rompem com a ordem social dominante e se organizam segundo princípios alternativos[72].

A antiga solidariedade israelita baseada nas relações de parentesco é inviável na sociedade helenizada que agora domina a Palestina. Mas a solidariedade torna-se independente e é racionalizada em normas éticas, cuja validade fica assegurada através de um pacto rigoroso que insiste na construção de relações pessoais e recíprocas. Esse é o projeto dos essênios.

 

Bibliografia

ARANDA PÉREZ G. et al.  Literatura judaica intertestamentária. São Paulo: Ave-Maria, 2000, 524 p. – ISBN 8527606097. 

BOCCACCINI, G. Além da hipótese essênia: a separação entre Qumran e o judaísmo enóquico. São Paulo: Paulus, 2010, 280 p. – ISBN 9788534932356.

BOCCACCINI, G. (ed.) Enoch and Qumran Origins: New Light on a Forgotten Connection. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005, xviii + 472 p. – ISBN 9780802828781.

CHARLESWORTH, J. (ed.) The Bible and the Dead Sea Scrolls: The Princeton Symposium on the Dead Sea Scrolls. 3 vol. set. Waco, Tex.: Baylor University Press, 2006, I: xxxii + 319 p.; II: vi + 491 p.; III: vi + 734 p. – ISBN 9781932792348.

COLLINS, J. J. Beyond the Qumran Community: The Sectarian Movement of the Dead Sea Scrolls. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2009, 278 p. – ISBN 9780802828873. 

COLLINS, J. J. The “Dead Sea Scrolls”: A Biography. Princeton: Princeton University Press, 2012, 288 p. – ISBN: 9780691143675.

DA SILVA, A. J. Religião e formação de classes na antiga Judeia. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 120, p. 413-434, 2013.

FLINT, P. W.; VANDERKAM, J. C. The Dead Sea Scrolls After Fifty Years: A Comprehensive Assessment I-II. Leiden: Brill, 1998-1999, vol. I: xxii + 544 p.; vol. II: xxiv + 816 p. – ISBN 9789004110618.

GARCÍA MARTÍNEZ, F. Textos de Qumran: edição fiel e completa dos Documentos do Mar Morto. Petrópolis: Vozes, 1995, 582 p. – ISBN 8532612830.

GARCÍA MARTÍNEZ, F.; TIGCHELAAR, E. J. C. (ed.) The Dead Sea Scrolls Study Edition I-II. Leiden: Brill, 2000, vol I: xxiv + 628 p.; vol. II: v +734 p. – ISBN 9789004115477. 

GARMUS, L. et alii Qumran e Manuscritos do Deserto da Judeia. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 136, 2017.

GOLB, N. Quem escreveu os Manuscritos do Mar Morto? A busca do segredo de Qumran. Rio de Janeiro: Imago, 2004, 579 p. – ISBN 8531205174.

GROSSMAN, M. L. (ed.) Rediscovering the Dead Sea Scrolls: An Assessment of Old and New Approaches and Methods. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2010, 332 p. – ISBN 9780802840097.

HILHORST, A.; PUECH, E.; TIGCHELAAR, E. (eds.) Flores Florentino: Dead Sea Scrolls and Other Early Jewish Studies in Honour of Florentino García Martínez. Leiden: Brill, 2008, 836 p. – ISBN 9789004162921. 

JOSEFO, F. História dos Hebreus: Obra Completa. 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2007, 1568 p. – ISBN 8526306413. As obras de Flávio Josefo estão disponíveis online.

KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, 184 p. – ISBN 8505006798. Há um resumo no Observatório Bíblico.

KUGLER, R. A.; SCHULLER, E. M. (eds.) The Dead Sea Scrolls at Fifty: Proceedings of the 1997 Society of Biblical Literature Qumran Section Meetings. Atlanta: Scholars Press, 1999, viii + 227 p. – ISBN 0788505432.

LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto. Balance de 25 años de hallazgos y estudio. 2. ed. Madrid:  La Editorial Católica, 1973.

LIM, T. H. The Dead Sea Scrolls: A Very Short Introduction. 2. ed. New York: Oxford University Press, 2017, 168 p. – ISBN 9780198779520.

MAGNES, J. The Archaeology of Qumran and the Dead Sea Scrolls. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003, 238 p. – ISBN 9780802826879.

NICKELSBURG, G. W. E. Literatura judaica entre a Bíblia e a Mixná: uma introdução histórica e literária. São Paulo: Paulus, 2011, 664 p. – ISBN 9788534932318.

PARRY, D. W. ; TOV, E. (eds.) The Dead Sea Scrolls Reader. Leiden: Brill, 2004 (The Reader consists of six individual parts or titles: Part 1. Texts Concerned with Religious Law; Part 2. Exegetical Texts; Part 3. Parabiblical Texts; Part 4. Calendrial and Sapiental Texts; Part 5. Poetic and Liturgical Texts; Part 6. Additional Genres and Unclassified Texts). – ISBN 9789004126503 (vol. 1).

SCHIFFMAN, L. H.; TOV, E. ; VANDERKAM, J. C. (eds.) The Dead Sea Scrolls: Fifty Years after Their Discovery: Proceedings of the Jerusalem Congress, July 20-25, 1997. Jerusalem: Israel Exploration Society, 2000.

STACEY, D. ; DOUDNA, G. Qumran Revisited: A Reassessment of the Archaeology of the Site and Its Texts. Oxford: Archeopress, 2013, 150 p. – ISBN 9781407311388.

STEGEMANN, H. The Library of Qumran: On the Essenes, Qumran, John the Baptist, and Jesus. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998, 296 p. – ISBN 9780802861672.

STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976, xviii + 578 p. – ISBN 9652080357.

STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism II. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1980, xvii + 690 p. – ISBN 9652080373.

THACKERAY, H. St. J.; MARCUS, R.; WIKGREN, A.; FELDMAN, L. H. (eds.) Josephus I-XIII. Cambridge: Harvard University Press, 1926-1965. Vol I: ISBN 9780674992054.

TOV, E. (ed.) The Dead Sea Scrolls Electronic Library, a CD-Rom edition. Leiden: Brill, 2006. – ISBN 9789004150621.

TOV, E. ; The Orion Center (eds.) Discoveries in the Judaean Desert Index. Vols. I-XL. Oxford: Clarendon, 1955-2010.

TREVER, J. C. The Dead Sea Scrolls: A Personal Account. A Revised Edition of the Author’s Untold Story of Qumran. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2003, 268 p. – ISBN 1593330421.

TYLOCH, W. J. O socialismo religioso dos essênios. São Paulo: Perspectiva, 1990, 206 p. – ISBN 8527306190.

VANDERKAM, J. The Dead Sea Scrolls Today, 2. ed. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2010, 276 p. – ISBN 9780802864352.

VERMES, G. The Complete Dead Sea Scrolls in English. 7. ed. London: Penguin, 2012, 720 p. – ISBN 9780141197319.

VERMES, G. The Story of the Scrolls: The miraculous discovery and true significance of the Dead Sea Scrolls. London: Penguin, 2010, 272 p. – ISBN 9780141046150.

>> Bibliografia atualizada em 10.06.2018

Artigos


[56]. Cf. LAMADRID, A. G. Los descubrimientos del mar Muerto, p. 126.

[57]. Cf. 1QS VI, 13-23; JOSEFO, F. Bellum Iudaicum II, VIII, 137-142.

[58]. As penalidades estão elencadas em 1QS VI-VII.  As penalidades mais rigorosas certamente surgem com o crescimento da comunidade na época da perseguição de João Hircano I aos fariseus. Este crescimento deve ter dificultado a fidelidade aos objetivos originais. 

[59]. JOSEFO, F. Bellum Iudaicum II, VIII, 124.

[60]. FÍLON DE ALEXANDRIA Apologia pro Iudeis, § 1.

[61] Tais estruturas podem distorcer os conceitos religiosos do judaísmo e, às vezes, o fazem de fato. Por exemplo, o interesse da Igreja no papel messiânico de Jesus é capaz de atribuir uma importância maior ao messianismo na religião judaica do que o justifica a evidência histórica. Este alerta vem, com maior frequência, de estudiosos de origem judaica, como, por exemplo, VERMES, G. The Complete Dead Sea Scrolls in English. 7. ed. London: Penguin, 2012.

[62]. O contexto em que Jeremias fala é o da expectativa criada pelas conquistas de Josias no século VII a.C., que reintegra o antigo reino do norte de Israel ao território governado por Jerusalém. Jeremias vê a necessidade de um novo pacto javista, pacto que deve ser sincero, profundo, definitivo e não apenas formal.

[63]. As cinco contraposições básicas do texto são luz x trevas, verdade x falsidade, filhos da luz x filhos das trevas, príncipe da luz x anjo das trevas, espírito da verdade x espírito da falsidade.

[64]. Os edifícios de Qumran estão a cerca de mil metros da costa do Mar Morto e a 70 metros acima de seu nível, porém, a mais de 300 metros abaixo do Mediterrâneo. Ain Feshka fica a 3 km ao sul de Qumran e as construções que servem ao empreendimento agrícola essênio ficam a 200 metros da fonte e a 300 metros do Mar Morto. Do lado oeste, a uma distância que varia de 200 a 400 metros de Qumran e de Ain Feshka, estão as rochas calcárias que seguem de norte a sul ao longo do Mar Morto, terminando em Ras al-Feshka. Estas rochas estão a cerca de 200 metros acima das duas localidades, isolando todo o terreno abaixo e impedindo a passagem dos ventos ocidentais que trariam umidade e frescor. Assim, as chuvas alcançam apenas 100 milímetros anuais (em Jerusalém, por exemplo, chove 600 milímetros por ano), a temperatura média oscila entre 1 e 48º C e a umidade relativa do ar oscila entre 40 e 67%. Na primavera e no outono sopra do leste o “hamsin”, terrível vento quente do deserto. Cf. TYLOCH, W. J. O socialismo religioso dos essênios. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 125-127.

[65]. Idem, ibidem, p. 137.

[66]. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XVIII, I, 20.

[67]. Idem, Bellum Iudaicum II, VIII, 135.

[68]. Cf. LAMADRID, A. G., Los descubrimientos del mar Muerto, p. 149-160.

[69]. Os invasores são os kittin. Assim são designados originariamente os habitantes de Kittion, importante cidade de Chipre. Depois o nome passa a indicar todos os habitantes de Chipre e os da região oriental do Mediterrâneo (Nm 24,24; Ez 27,6; Jr 2,10). Já em 1Macabeus e no Livro dos Jubileus a expressão designa os gregos, e em Daniel, os romanos. Os especialistas divergem, mas muitos pensam que para os essênios os kittin sejam os romanos.

[70]. O que acontecerá nesta era messiânica não fica muito claro nos manuscritos, assim como confusas são as ideias sobre ressurreição e imortalidade da alma.

[71]. TYLOCH, W. J. O socialismo religioso dos essênios, p. 167.

[72]. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, p. 145-150.

Última atualização: 27.04.2019 – 11h57