Autores judeus antigos 2

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4. Eupólemo: Moisés, o primeiro sábio

Eupólemo é o filho de João, da família de Acos que, segundo 1Mc 8,17-20 e 2Mc 4,11, Judas manda junto com Jasão, filho de Eleazar, para estabelecer uma aliança de amizade com Roma em 161 a.C.

“Tendo escolhido Eupólemo, filho de João, da família de Acos, e Jasão, filho de Eleazar, Judas enviou-os a Roma para travarem relações de amizade e aliança, e para conseguirem que os libertassem do jugo, visto que o reino dos gregos queria manter Israel na servidão” (1Mc 8,17-18).

A família de Acos é uma importante família sacerdotal de Jerusalém desde o começo do pós-exílio (1Cr 24; Esd 2,61; Ne 3,4; 7,63). O pai de Eupólemo, João, consegue, em 198 a.C., concessões de Antíoco III para os judeus (2Mc 4,11) e é membro da gerousia de Jerusalém. Talvez Eupólemo também o seja.

“A família então tornou-se fortemente alinhada com os Selêucidas, exercendo decisiva influência nos negócios externos e prosperando numa época e local favoráveis à helenização”, comenta C. R. Holladay[19].

Portanto, Eupólemo deve ser situado na Palestina, no ambiente aristocrático de Jerusalém, aí pela metade do século II a.C.

A obra de Eupólemo chama-se “Sobre os reis na Judeia” (Perì tôn en tê Ioudaía basiléôn), título dado por Clemente ao escrito no Fragmento 1. Ela inclui cálculos cronológicos de Adão até a época dos Macabeus, mas trata mesmo é da monarquia unida e do exílio.

Há 5 fragmentos: o primeiro e o segundo são preservados por Eusébio e Clemente, em versões diferentes; os fragmentos terceiro e quarto estão em Eusébio e o quinto em Clemente.

A obra de Eupólemo está escrita em grego, mas é um grego inferior ao dos clássicos. Depende, do ponto de vista bíblico, tanto da LXX quanto do Texto Massorético, mas vê-se que a língua de origem do autor é o hebraico e o aramaico. Usa livremente as tradições bíblicas, incorporando tradições hagádicas ao texto bíblico, que é frequentemente alterado ou contradito. Na historiografia, ele depende de 2 Crônicas, mas harmoniza-o com 1 Reis. Eupólemo conhece também fontes gregas, inclusive Heródoto e Ctésias[20].

C. R. Holladay comenta: “A obra pertence a uma tradição historiográfica bem estabelecida na época helenística, e representada por autores tais como Maneton e Beroso que procuram descrever sua própria história nacional em língua grega. Típico deste gênero são suas agudas tendências encomiásticas, através das quais a história de Israel, heróis e instituições são engrandecidas e apresentadas em termos gloriosos”[21].

Neste sentido:

. Moisés é o primeiro legislador, primeiro sábio e benfeitor cultural
. os limites do reino de Davi são ampliados, indo até o Eufrates
. as dimensões do Templo de Salomão são aumentadas e sua beleza interna – especialmente a  quantidade de ouro – é impressionante.

Os fragmentos estão cheios de anacronismos geográficos e cronológicos. Eis alguns exemplos de anacronismos geográficos, nos quais as divisões da época dos Macabeus são retroprojetadas para a monarquia unida e o exílio:

a) o reino de Davi compreende a Comagena e a Galadena, que são divisões geográficas helenistas
b) Davi luta contra os nabateus, que só estão na Palestina a partir do séc. IV a.C.
c) a Palestina de Salomão é descrita com a divisão geográfica da época dos Macabeus
d) Nabucodonosor conquista a Samaria, a Galileia e a cidade de Citópolis, nome grego de Beth-Shan…

Como se vê, é uma obra historicamente negligenciável, mas que revela tendências da época macabeia e isto nos interessa na definição do judaísmo em sua relação com o helenismo. Pois Eupólemo é o mais antigo historiador judeu-helenístico que conhecemos.

Aumentar o território de Davi e Salomão, por exemplo, é um modo de justificar a política expansionista dos Macabeus, ao mesmo tempo que a descrição do heroísmo destes dois reis serve para glorificar a dinastia asmoneia.

Mas olhemos um pouco o próprio texto de Eupólemo, nas versões de Clemente de Alexandria e Eusébio.

O primeiro fragmento é muito curto. Diz o seguinte:

“E Eupólemo diz em sua obra ‘Sobre os reis na Judeia’ que Moisés foi o primeiro sábio e que ele deu o alfabeto primeiro aos judeus; e que os fenícios receberam-no dos judeus, e os gregos receberam-no dos fenícios”[22].

Já a versão de Eusébio, na Praeparatio Evangelica IX, 26, 1, aqui parcialmente citada, diz:

“Eupólemo diz que Moisés foi o primeiro sábio e que ele deu o alfabeto para os judeus primeiro; então os fenícios receberam-no dos judeus e os gregos receberam-no dos fenícios. Além disso, Moisés foi o primeiro a escrever leis, e ele fez isso para os judeus”.

Aqui vale um comentário: descrever Moisés como um sábio anterior e maior do que os sábios gregos – especialmente Platão – torna-se tema comum na literatura judaico-helenística e depois na apologética cristã. Assim em Artápano, Aristóbulo, Fílon de Alexandria, Flávio Josefo…

Outra coisa: já na antiguidade é bem estabelecida a tradição de que os inventores do alfabeto são os fenícios[23]. Inverter isso, como o faz Eupólemo, é extremamente apologético.

O Fragmento nº 2 é o mais longo dos cinco. Sintetiza a história de Israel de Moisés a Davi; descreve especialmente as realizações de Salomão, dando detalhada descrição dos preparativos e da construção do Templo. Traz cartas trocadas entre Salomão e Hiram, rei de Tiro (cf. 1Rs 5,15-26; 2Cr 2,2-9), mas traz também a correspondência entre Salomão e Vafres, rei (desconhecido) do Egito.

O Fragmento nº 4 relata fatos da vida do profeta Jeremias e fala da destruição de Jerusalém por Nabucodonosor. Diz Eupólemo que Jeremias resgata a Arca e as Tábuas da Lei do Templo e Nabucodonosor não consegue levá-las, detalhe que não combina com o relato bíblico (cf. 2Cr 36,18-19).

 

5. O Samaritano Anônimo ou Pseudo-Eupólemo

São dois fragmentos, citados por Eusébio, que os encontra em Alexandre Poliístor. A figura central nos dois fragmentos é Abraão e, em segundo lugar, Henoc, lembrando episódios do Gênesis.

O autor é chamado de Samaritano anônimo, e situado aí pela metade do séc. II a.C., porque Abraão aparece, nos fragmentos, ligado ao templo samaritano do Garizim, destruído por João Hircano I em 128 a.C. É chamado também de Pseudo-Eupólemo porque Poliístor diz que o primeiro fragmento é de Eupólemo, opinião hoje contestada pelos especialistas. Eupólemo é um judeu que realça o papel do Templo de Jerusalém. Este fragmento chama, entretanto, o Garizim de “montanha do Altíssimo” e o encontro de Abraão com Melquisedec realiza-se ali.

“É possível que o autor dos fragmentos fosse um judeu, mas, graças à ênfase dada ao Monte Garizim, é possível que esta seja uma obra anônima de um samaritano, na qual lendas gregas e babilônicas foram fundidas com a história bíblica, com a intenção apologética de mostrar que os judeus levaram a cultura para todos os povos ocidentais, inclusive para os gregos. Esta é uma obra inteiramente dentro do gênero da historiografia helenística, na sua historicização de mitos e no seu interesse na difusão da cultura”[24].

O autor usa a LXX (e talvez o TM) como fonte básica, mas intercala tradições hagádicas e mitológicas, estas tiradas de fontes gregas e babilônicas, como:

. a colonização do mundo por gigantes no período pós-diluviano
. a construção da torre de Babel pelo herói babilônico Belos (Bêlos) ou Bel (= Marduk)[25].
. Abraão é um benfeitor cultural, descobre a astrologia enquanto está na Babilônia e transmite esta “ciência caldeia” aos fenícios e egípcios
. no Fragmento 1, § 5, Abraão aparece associado ao templo do Garizim
. Sara tem sua castidade miraculosamente protegida por ocasião de seu casamento com o faraó (cf. Gn 12,10-20)
. Abraão desenvolve atividades civilizatórias em Heliópolis, instruindo os sacerdotes desta cidade  egípcia em astrologia e coisas afins (Fragmento 1, § 8)

A obra é importante por representar antigas tradições midrashicas samaritanas, além de ser importante testemunho da historiografia israelita na época helenística[26].

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[19]. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors I , p. 100.

[20]. Ctésias é um médico grego de Cnidos, na Ásia Menor, do século IV a.C. Escreve a “Pérsica” e a “Índica”. Na primeira narra a história da Pérsia em 23 livros; da “Índica” há, atualmente, apenas fragmentos. Cf. HARVEY, P. o. c., verbete Ctésias.

[21]. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors I, p. 95. Cf. também SCHÜRER, E. The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ III.1, p. 517-521.

[22]. CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata I, 23, 153, 4. Este e os textos seguintes podem ser lidos, em grego e inglês, em HOLLADAY, C. R. o. c., p. 112-135.

[23]. Por exemplo: HERÓDOTO História 5,58; PLÍNIO História Natural 7,192-193; DIODORO SÍCULO Bibliotheca Historica 3, 67,1;5,74,1.

[24]. SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ III.1, p. 529.

[25]. Bel, em acádico Bêlu = “senhor”, é o mesmo Enlil, deus da cidade de Nippur e que forma com Anu e Ea a tríade suprema dos deuses sumero-acádicos. Após o domínio dos amorreus no começo do II milênio, Marduk é elevado à condição de deus supremo dos babilônios e Bel é identificado com ele.

[26]. Cf. HOLLADAY, C. R. Fragments from Hellenistic Jewish Authors I, p. 157-160.

Última atualização: 26.04.2019 – 22h16