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7. O positivismo de Comte e Durkheim e a crítica marxista
Contudo, Comte e Durkheim são pensadores positivistas. Ambos acreditam que a sociedade possa ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza. A sociologia tem, assim, como tarefa, o esclarecimento de acontecimentos sociais constantes e recorrentes. O papel fundamental da sociologia seria o de explicar a sociedade para manter a ordem vigente.
Na clara síntese de Michael Löwy, o tipo ideal de positivismo pode ser dito em três ideias principais:
. a primeira é a hipótese fundamental do positivismo: “a sociedade humana é regulada por leis naturais”, leis invariáveis, independentes da vontade e da ação humana, como a lei da gravidade ou do movimento da terra em torno do sol, de modo que na sociedade reina “uma harmonia semelhante à da natureza, uma espécie de harmonia natural”.
. dessa primeira hipótese decorre, para o positivismo, a conclusão epistemológica de que “a metodologia das ciências sociais tem que ser idêntica à metodologia das ciências naturais, posto que o funcionamento da sociedade é regido por leis do mesmo tipo das da natureza”.
. a terceira ideia básica do positivismo, talvez a de maior consequência, reza que “da mesma maneira que as ciências da natureza são ciências objetivas, neutras, livres de juízos de valor, de ideologias políticas, sociais ou outras , as ciências sociais devem funcionar exatamente segundo esse modelo de objetividade científica”. Ou seja: o positivismo “afirma a necessidade e a possibilidade de uma ciência social completamente desligada de qualquer vínculo com as classes sociais, com as posições políticas, os valores morais, as ideologias, as utopias, as visões de mundo, pois este conjunto de opções são prejuízos, preconceitos ou prenoções que prejudicam a objetividade das Ciências Sociais”[21].
Entretanto, o marxismo dá um passo a mais: o conhecimento da realidade social é um instrumento político que pode orientar os grupos sociais na luta pela transformação da sociedade. É no terreno da prática que se deve demonstrar a verdade da teoria.
Na segunda de suas onze teses contra Feuerbach, de 1845, diz Karl Marx (1818-1883): “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento”. Para concluir na última tese: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; a questão, porém, é transformá-lo“[22].
Vista por este ângulo, a função da sociologia não é o restabelecimento da ordem social ou a determinação das normas do bom funcionamento da sociedade, como dizem os positivistas. Ela deve, antes de tudo, contribuir para a mudança social. É aí que reside sua função crítica, na medida em que apoia os movimentos de transformação da ordem existente.
Com isto, já conseguimos definir o discurso sociológico em relação à história como aquele que não se limita a descrevê-la como uma sucessão de fatos e acontecimentos, mas como um conjunto de situações, de normas, de usos, de instituições.
Mais ainda, nas palavras do exegeta alemão Gerd Theissen, as questões sociológicas “ganham significação central também onde se busca clarear as grandes transformações da história, suas revoluções e crises, declínios e renascimentos, em ligação com as tensões estruturais”[23].
Assim foi que, de 1830 às primeiras décadas do século XX, se consolidaram os principais métodos e conceitos sociológicos[24].
Por outro lado, a existência de interesses opostos e conflitantes na sociedade se manifesta igualmente no pensamento sociológico. Há diferentes tradições sociológicas e modos diversos de entender o papel da religião na sociedade.
Os especialistas costumam dizer, certamente com alguma simplificação, que as diversas sociologias podem ser reconduzidas a três tendências básicas: funcionalista, compreensiva e marxista.
8. A sociologia funcionalista
A sociologia funcionalista é hoje uma das mais difundidas nas sociedades capitalistas, em primeiro lugar nos Estados Unidos. O pensamento de Émile Durkheim foi retomado e desenvolvido especialmente por dois sociólogos americanos, Robert K. Merton e Talcott Parsons, sem dúvida os maiores responsáveis pelo desenvolvimento do funcionalismo moderno.
Na opinião de Peter Berger, “Robert K. Merton, da Universidade de Colúmbia, representa, juntamente com Talcott Parsons, de Harvard, o mais destacado teórico da sociologia americana contemporânea. A análise de Merton sobre as funções ‘manifesta’ e ‘latente’, bem como outras exposições importantes do que ele considera ser a abordagem funcionalista da sociedade, será encontrada em seu livro Social Theory and Social Structure. Chicago: Free Press, 1957”[25]. Funções manifestas são as funções conscientes e deliberadas dos processos sociais, enquanto que as funções latentes são inconscientes e involuntárias. Um exemplo dado por Berger nos ajuda a entender a distinção: “Missões cristãs em certas partes da África tentaram ‘manifestamente’ converter os africanos ao cristianismo, mas ajudaram ‘latentemente’ a destruir as culturas tribais, proporcionando condições para rápida transformação social”[26].
O funcionalismo, ao analisar qualquer elemento de um sistema social, procura saber de que maneira este elemento se relaciona com os outros elementos do mesmo sistema social e com o sistema social como um todo, para daí tirar as consequências que interferem no sistema, provocando sua disfunção, ou, por outro lado, contribuem para a sua manutenção, sendo, portanto, funcionais.
Estes conceitos foram desenvolvidos a partir do pensamento de Durkheim, que, como vimos, se esforçou para mostrar a existência própria e independente dos fatos sociais em relação aos indivíduos particulares. Durkheim chamou de consciência coletiva as formas padronizadas de conduta e de pensamento que se observa no interior de um grupo social: “Sem dúvida, é evidente que nada existe na vida social que não esteja nas consciências individuais; mas, quase tudo que se encontra nestas últimas vem da sociedade. A maior parte de nossos estados de consciência não seriam produzidos pelos indivíduos isolados, mas seriam produzidos pelos indivíduos agrupados de outra maneira. Eles derivam, portanto, não da natureza psicológica do homem em geral, mas da maneira segundo a qual os homens, uma vez associados, interagem mutuamente, dependendo de serem mais ou menos numerosos, de estarem mais ou menos próximos. Sendo produtos da vida em grupo, somente a natureza do grupo pode explicá-los”[27].
Citando ainda uma vez Peter Berger: “Segundo a perspectiva durkheimiana, viver em sociedade significa existir sob a dominação da lógica da sociedade. Com muita frequência, as pessoas agem segundo essa lógica sem o perceber. Portanto, para descobrir essa dinâmica interna da sociedade, o sociólogo terá muitas vezes de desprezar as respostas que os próprios atores sociais dariam a suas perguntas e procurar as explicações de que eles próprios não se dão conta. Esta atitude essencialmente durkheimiana foi levada à abordagem teórica hoje chamada de funcionalismo. Na análise funcional, a sociedade é analisada em termos de seus próprios mecanismos como sistema, e que muitas vezes se apresentam obscuros ou opacos àqueles que atuam dentro do sistema”[28].
Segundo o pensamento de Durkheim, a função da sociologia “seria a de detectar e buscar soluções para os ‘problemas sociais’, restaurando a ‘normalidade social’ e se convertendo dessa forma numa técnica de controle social e de manutenção do poder vigente”, explica C. B. MARTINS[29].
Com efeito, no início do segundo capítulo de seu livro As regras do método sociológico, E. Durkheim define seu princípio metodológico fundamental: “A primeira regra e a mais fundamental é a de considerar os fatos sociais como coisas“. Para acrescentar mais adiante, neste mesmo capítulo: “De fato, Comte proclamou que os fenômenos sociais são fatos naturais, submetidos a leis naturais. Reconheceu, assim, o seu caráter de coisas, visto que na natureza só há coisas”[30].
Michael Löwy observa que esta abordagem de Durkheim é perfeitamente homóloga à desenvolvida pela economia política burguesa e explica: “É aqui que provavelmente se encontram as raízes do naturalismo positivista enquanto discurso ideológico típico da nova ordem industrial (burguesa)”. E, citando Durkheim, no texto La science et l’action, Paris, PUF, 1970, p. 80-81, Michael Löwy acrescenta que “o próprio Durkheim apresenta a economia política como precursora da démarche positivista nas ciências sociais: ‘Os economistas foram os primeiros a proclamar que as leis sociais são tão necessárias como as leis físicas. Segundo eles, é tão impossível a concorrência não nivelar pouco a pouco os preços… como os corpos não caírem de forma vertical…. Estenda este princípio a todos os fatos sociais e a sociologia estará fundada’ “[31].
Ainda citando Durkheim, M. Löwy mostra que “desde os seus primeiros escritos em 1867, o pensamento de Durkheim exprime com precisão, clareza, coerência e rigor exemplares esta nova função social: ‘É ainda ao professor de filosofia que cabe despertar nos espíritos que lhe são confiados a ideia do que é uma lei; de lhes fazer compreender que os fenômenos físicos e sociais são fatos como os outros, submetidos a leis que a vontade humana não pode interromper à sua vontade, e que, por consequência, as revoluções no sentido próprio do termo são coisas tão impossíveis como os milagres’ “[32].
Finalmente, diz Löwy: “Entre as leis naturais da sociedade que seria vão, utópico, ilusório – em uma palavra: anticientífico – querer ‘interromper’ ou transformar, Durkheim situa com destaque a desigualdade social“[33]. Os argumentos estão na obra Da divisão do trabalho social, de 1893: as sociedades “são constituídas, não por uma repetição de segmentos semelhantes e homogêneos, mas por um sistema de órgãos diferentes, onde cada um tem um papel particular, sendo eles mesmos formados de partes diferenciadas”. Isto é absolutamente normal, pois se encontra em qualquer organismo, como, por exemplo, “nos animais, [onde] a predominância do sistema nervoso sobre os outros sistemas se reduz ao direito, se se pode falar assim, de receber um alimento mais seleto e de receber sua parte antes dos outros”[34]. E ainda: “Pois, se nada entrava ou nada favorece injustamente os concorrentes que disputam entre as tarefas, é inevitável que apenas os que são os mais aptos a cada gênero de atividade a alcancem”[35].
O próprio Durkheim não faz segredo do conservadorismo do seu método positivista: “O nosso método não tem, portanto, nada de revolucionário. É até, num certo sentido, essencialmente conservador, uma vez que considera os fatos sociais como coisas cuja natureza, por mais elástica e maleável que seja, não é, no entanto, modificável à nossa vontade”[36].
Lendo esta afirmação, Michael Löwy chega, finalmente, ao âmago do problema quando diz que é inútil ficar discutindo, como o fazem alguns sociólogos hoje, quais são os elementos formais e doutrinários do conservadorismo de Durkheim: o seu problema está “na sua própria concepção do método. É seu método positivista que permite legitimar constantemente, através de argumentos científico-naturais, a ordem (burguesa) estabelecida”. Isto lhe possibilita passar “sem hesitação das leis da seleção natural às ‘leis naturais’ da sociedade, e dos organismos vivos aos ‘organismos sociais'”. O apoio para este enfoque? “A homogeneidade epistemológica dos diferentes domínios e, por consequência, das ciências que os tomam como objeto”[37].
Raymond Aron, escrevendo em 1966, olha com desgosto para a sociologia funcionalista americana, herdeira deste pensamento, e classifica-a como essencialmente analítica e empírica. Multiplicando questionários para saber como vivem os homens em sociedade, transformando-se, deste modo, em mera sociografia, caricatura de uma autêntica ciência social, ela deixa de ser crítica, no sentido marxista do termo, não questionando a ordem social nos seus traços fundamentais e admitindo implicitamente a visão de mundo da sociedade norte-americana[38].
[21]. LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 1985, p. 35-36; cf. Idem, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987, p. 17-18.
[22]. MARX, K. Teses sobre Feuerbach, em MARX, K. ; ENGELS, F. Obras escolhidas, Tomo I. Lisboa: Avante, 1982, p. 1-3.
[23]. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva: Estudos. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 9.
[24]. Cf. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, onde este autor diz que “tendo partido em busca da sociologia moderna, cheguei, de fato, a uma galeria de retratos individuais” (p. 11). Raymond Aron divide estes 7 “retratos” em dois grupos: os fundadores, que são, no seu entender, Montesquieu, Comte, Marx e Tocqueville e a geração da passagem do século, constituída por Durkheim, Pareto e Weber.
[25]. BERGER, P. Perspectivas sociológicas: Uma visão humanística. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 197. Merton nasceu em 1910.
[26]. Idem, ibidem, p. 51. Allan G. Johnson, em Dicionário de Sociologia: Guia Prático da Linguagem Sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, verbete Merton, Robert, K., observa que “sua dissertação de doutorado sobre o desenvolvimento da ciência no século XVII é em geral creditada por ter provocado uma grande mudança nos métodos sociológicos de estudar a ciência, que influencia desde então o trabalho nesse campo”. Sua tese tem por título Science, Technology and Society in Seventeenth-Century England, e data de 1938.
[27]. DURKHEIM, E. De la division de travail social. Paris: PUF, 1960, p. 342.
[28]. BERGER, P. Perspectivas sociológicas. Uma visão humanística, p. 50-51.
[29]. MARTINS, C. B. O que é sociologia, p. 50.
[30]. DURKHEIM, E. As regras do método sociológico, p. 94 e 96.
[31]. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, p. 26.
[32]. Idem, ibidem, p. 27. Löwy cita o texto de DURKHEIM, E. La philosophie dans les Universités Allemandes, 1866-67, em Textes 3, Fonctions sociales et institutions. Paris: Ed. de Minuit 1975, p. 485. Esta é também a perspectiva funcionalista de Peter Berger, em Perspectivas sociológicas: Uma visão humanista, p. 58, quando diz que “a percepção sociológica é refratária a ideologias revolucionárias, não porque traga consigo alguma espécie de preconceito conservador, e sim porque ela enxerga não só através das ilusões do status quo atual como também através das expectativas ilusórias concernentes a possíveis futuros, sendo tais expectativas o costumeiro alimento espiritual dos revolucionários. Em nossa opinião, essa sobriedade não revolucionária e moderadora da sociologia é altamente valiosa”.
[33]. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, p. 27.
[34]. DURKHEIM, E. De la division de travail social, p. 157-158.
[35]. Idem, ibidem, p. 369-370.
[36]. DURKHEIM, E. As regras do método sociológico, em o. c., p. 74.
[37]. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, p. 29. O sublinhado no texto é de Michael Löwy.
[38]. Cf. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, p. 4-5. E na p. 6 ele diz: “Os norte-americanos são reformistas quando se trata de sua própria sociedade e, implicitamente pelo menos, com relação a todas as sociedades”.
Última atualização: 05.04.2022 – 10h36