Profetas 2

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Mas existe outra forma de romantismo, mais atual, que se manifesta após a ruptura de 1848, quando o capitalismo não consegue mais ocultar as suas contradições que se tornam explosivas com o surgimento do proletariado como classe autônoma. O pensamento burguês torna-se, então, uma justificativa teórica do existente. O pensamento torna-se cada vez mais imediatista, centrado nas aparências fetichizadas da realidade[9].

O processo de fetichização ou alienação ocorre quando as relações sociais entre os homens aparecem como relações entre coisas, como realidades naturais e independentes de sua ação. Os produtos de sua atividade revelam-se alheios à sua essência: há uma cisão entre essência (práxis criadora) e existência (vida social). Ora, quando o pensamento não supera o imediatismo e o espontaneísmo, capta-se somente a forma aparente da realidade e não se atinge a sua essência.

Várias manifestações do pensamento moderno, sejam elas racionalistas ou irracionalistas, objetivistas ou subjetivistas, possuem esse traço fetichizador. Limitando-se à apreensão imediata da realidade, não elaborando as categorias a partir de sua essência econômica, o pensamento acaba servindo aos interesses da burguesia.

É então que surge um anticapitalismo romântico, pois no capitalismo se vê a dissolução da “plenitude natural do homem”, enquanto a socialização do trabalho constitui uma ameaça mortal para a subjetividade espiritual dos indivíduos.

Este pensamento elege a subjetividade como única fonte de valores autênticos, subjetividade que acaba negando o real contraditório ao procurar um absoluto pleno de sentido[10].

Ele rejeita a razão, pois esta é confundida com a práxis burocrática e técnica do capitalismo. Este pensamento cai no pessimismo e no conformismo provenientes da sensação de impotência do homem.

O profeta Habacuc - Aleijadinho - Congonhas do Campo, MG (entre 1794 e 1804)É um pensamento fetichizador: algumas formas particulares do mundo capitalista são tomadas, em sua imediaticidade, como “condição eterna do homem”. O protesto subjetivo transforma-se em conformismo real. É um pensamento reprodutor do mecanismo capitalista, pois ataca sua aparência, deixando intacta sua essência.

Nada mais fácil do que fazer uma leitura romântica dos profetas. Através de seus livros, podemos conhecer – melhor ainda, imaginar – a angústia da condição profética. Isto favorece uma leitura altamente subjetiva e interiorizada, valorizando o sentimento do profeta em detrimento da práxis profética.

Por outro lado, as formas particulares de opressão do Estado tributário são generalizadas e transferidas para o sistema capitalista de modo direto, sem mediação científica alguma.

O resultado é uma leitura profética deslocada e enfraquecida que nem arranha a nossa realidade. Pelo contrário, soma-se ela às várias outras formas de camuflagem das contradições atuais. É assim que se coopta e se inutiliza um profeta.

Este é um obstáculo especialmente encontrado nas leituras feitas pelas camadas médias da população brasileira. Como classe, estas camadas vivem contradições enormes. Os indivíduos destas camadas costumam ser portadores de típicos “desvios” alienantes na sua mundivisão. Tais como: perceber o capital sempre transfigurado em valor, os bens de consumo em status, as situações em oportunidades, as pessoas em degraus para a ascensão social e assim por diante.

Tais contradições são sublimadas na fuga do real através do discurso de valoração da existência, transformando o ressentimento (sentimento considerado negativo e inaceitável) em indignação moral (atitude considerada positiva e corajosa), através da subjetivização radical da realidade[11].

 

6. O teologismo

O fato de os profetas fazerem uma leitura teológica da realidade israelita facilita o aparecimento de outro obstáculo, o teologismo.

O teologismo consiste em considerar a interpretação teológica como a única versão verdadeira do real. Ele esvazia, assim, o Político e o Social de seus conteúdos e rejeita a sua autonomia, como se só a leitura teológica da realidade fosse a verdadeira. É, no mais das vezes, um discurso dogmático, ideológico, autoritário e anticientífico. Além do que conduz ao espiritualismo e ao dualismo[12].

Neste enfoque a fé é frequentemente colocada em oposição ao conhecimento racional. É dito que este não resolve e ilustra-se o discurso com a persistente crise nacional, a perversão moral e as injustiças praticadas pelo mundo afora.

Processa-se uma mistificação do não acesso ao saber, que de questão política transforma-se em questão moral, enquanto se contrapõe o homem simples, o-que-nada-sabe, mas tem fé, ao homem cultivado, o-que-tudo-sabe, é estudado, mas não tem fé.

Este raciocínio legitima, em última instância, a dominação e a dependência do povo, revestido de uma aura de simplicidade, identificada à bondade.

Esta leitura não vê a abordagem teológica da realidade israelita feita pelos profetas como uma determinação/limitação histórica, mas como a superação de um discurso racional e científico.

Por isso, tal leitura simplesmente repete as ameaças dos profetas israelitas, sem se aperceber de que o está fazendo diante de um mundo secularizado que nem se dá ao trabalho de escutá-la.

 

7. O populismo

Ainda um último obstáculo, dos mais insistentes, precisa ser abordado. É o conhecido populismo.

Vários estudos sociológicos chamam a atenção para as características autoritárias que, historicamente, marcam as relações do Estado com a sociedade no Brasil.

Como na sociedade brasileira não se formaram grupos autônomos capazes de formular e canalizar institucionalmente seus interesses específicos, a participação política está voltada prioritariamente para a conquista de posições de poder e prestígio dentro da esfera burocrático-administrativa[13].

O Estado brasileiro exerce uma óbvia política de clientelismo. As elites brasileiras, que sempre consideraram o Estado como negócio seu, agem de modo paternalista. O paternalismo conduz à ideologia da benevolência e, concretamente, ao favor como forma de ação política.

Daí que, com a emergência política das massas populares, especialmente a partir de 1945, são criadas as condições para o aparecimento do populismo.

O populismo surge:
. Quando há “massificação”, provocada pela proletarização de amplas camadas da população – proletarização que é, por sua vez, provocada pela expansão do capital
. Quando a “classe dirigente” perde sua representatividade e se transforma em “classe dominante”
. Quando aparece um líder carismático.

Observam os sociólogos que nas sociedades em processo de desenvolvimento capitalista, como a brasileira, as camadas médias da população são sempre numerosas. Só que, pela lógica da expansão capitalista, elas tendem à condição de massa, enquanto os indivíduos são desvinculados de seu meio social de origem e esmagados pela expansão dos grandes capitais. Nesta importância histórica das camadas médias da população está a raiz da demagogia populista[14].

É assim que o populismo permanece limitado pelo horizonte das camadas médias, traindo as classes populares. Na sua visão, historicamente limitada, o mundo é constituído por “pobres” e “ricos”. A única maneira do pobre (leia-se, neste caso, “classe média”) ascender socialmente é através do paternalismo do Estado, que é um negócio bem sucedido das elites.

Mas o que tem isso a ver com a leitura dos profetas?

É que o populismo tem sua contrapartida religiosa e se faz presente também nas igrejas. Quando a leitura dos textos proféticos para nos seusJeremias de Michelangelo - Capela Sistina, Vaticano (1511) aspectos religiosos e sacraliza a figura do profeta, ela se torna vítima das atrações do populismo.

Na medida em que as igrejas dão voz e vez ao povo através da intervenção da consciência crítica hierarquizada e institucionalizada, elas se legitimam em sua prática religiosa pelo processo de identificação do “povo brasileiro” com “povo de Deus”.

Esta atitude é paralela à do populismo político que explora a ideia de unidade nacional para manter o domínio da burguesia sobre as classes populares. Os dois jogos se completam e se amparam na relação entre o político e o religioso.

Esta atitude soteriológica tem suas regras: cada ato humano, mais ou menos político, pouco importa, é transfigurado pela leitura teológica que o insere no plano divino global de salvação do homem. De certo modo, são as igrejas recriando a sociedade brasileira mediante o filtro teológico.

Roberto Romano, analisando a Igreja católica, vê um jogo hegeliano nesta atitude: a Igreja sempre se vê como essência desenvolvida e idêntica a si mesma (instituição de origem divina) exteriorizada no outro (o povo).

A sustentação do jogo tem o referencial simbólico da encarnação: “A Igreja se faz povo, torna-se povo com o povo, e se recolhe na afirmação universal de Si como  consciência do Homem enquanto ser genérico e absoluto. Todo este movimento, que se dá na consciência de si da Igreja, aparece como se fosse produzido pela consciência de si dos homens”[15].

Neste caso, a leitura dos profetas é usada pela hierarquia como “chave sagrada” para entrar na consciência do povo e lhe dar a medida da realidade.

As consequências políticas de tal atitude soteriológica são evidentes: potencializam-se as estruturas eclesiásticas para atingir a estrutura social e “salvar” o povo. Salvando-se o povo, salvam-se as igrejas.

 

Concluindo

Para terminar, gostaria de fazer menção de uma experiência pessoal, acontecida em mediana cidade do interior de Minas Gerais no final da década de 70.

Ao mesmo tempo em que, como exegeta assessorando a Igreja católica local, lia os profetas com pessoas das camadas médias da cidade, dirigia o semanário mais influente naquele meio, também pertencente à Igreja.

Através do jornal pude chegar à cidade real, com seus interesses e conflitos, enquanto a leitura dos profetas, na verdade, ocultava a cidade real, via discurso de legitimação.

Explico: os conflitos eram perfeitamente aceitáveis… no passado! Serviam, aliás, para ocultar os conflitos do presente, estes “inexistentes”, porque intocáveis para as camadas médias. Eram sistematicamente camuflados na prática política e na prática religiosa.

Houve reação (repressiva e violenta – estávamos em plena ditadura militar instituída em 1964) ao debate promovido pelo jornal, não à aparentemente mais radical leitura dos profetas.

Esta experiência comprova, mais uma vez, ser necessário o desenvolvimento de uma análise social prévia à atuação profética. Não se pode hoje, diante da complexidade da realidade, contentar-se com uma apreensão imediata da realidade social.

Aliás, as ciências sociais nos ensinam que a realidade social não é o que aparenta ser. A sua fachada é maquiada para ocultar o real que está no processo de geração da riqueza.

 

Bibliografia

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WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

>> Bibliografia atualizada em 22.08.2015

Este texto foi adaptado de meu livro Nascido Profeta: a vocação de Jeremias. São Paulo: Paulus, 1992, p. 110-122.

Artigos


[9]. Cf. COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da Razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 7-46; HOBSBAWM, E. J. A era do capital: 1848-1875. 15. ed. revista, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

[10]. “Mas essa subjetividade inteiramente vazia, convertida em mera negação abstrata do real, procura desesperadamente encontrar um Absoluto pleno de sentido. Nessa busca, as filosofias da subjetividade revelam um traço profundamente religioso (ainda que se trate de uma religiosidade ateia) e, desse modo, uma vinculação espiritual com formas de vida pré-capitalistas”, diz COUTINHO, C. N. o. c., p. 33.

[11]. “O ressentimento, sob os disfarces da indignação moral, está historicamente associado a uma posição inferior na escala social, ou em termos mais precisos, à pertinência à camada inferior das classes médias”, comenta BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 7.

[12]. “O teologismo é o correspondente teórico da atitude prática que se conveio chamar ‘sobrenaturalismo’, ‘espiritualismo’, ou simplesmente ‘mitologia’, explica BOFF, C. Teologia e Prática, p. 77.

[13]. Retomo aqui alguns elementos de meu artigo A denúncia profética da corrupção (Salmo 12). Vida Pastoral, São Paulo, n. 141, p. 2-6, 1988. Disponível online.

[14]. Cf. WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, p. 34.

[15]. ROMANO, R. Brasil: Igreja contra Estado: crítica ao populismo católico. São Paulo:  Kairós, 1979, p. 38. Cf. também as p. 183-223.

Última atualização: 30.04.2020 – 18h28

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