O discurso socioantropológico 6

O discurso socioantropológico 6

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10. A sociologia marxista

Um resumo da sociologia de Marx pode ser encontrado no célebre “Prefácio” da Contribuição à Crítica da Economia Política, escrito em janeiro de 1859: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciênciasKarl Marx (1818-1883) físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até ao fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que faz de si mesmo, tampouco se pode julgar uma tal época de transformação pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir. Em grandes traços, podem ser designados, como outras tantas épocas progressivas da formação econômica da sociedade, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições de existência sociais dos indivíduos; as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver este antagonismo. Com esta formação social termina, pois, a pré-história da sociedade humana”[45].

Comentando o “Prefácio” de Marx, na Introdução da coletânea citada, diz Florestan Fernandes que “o que emerge é uma refinada teoria sociológica da revolução social, esbatida sobre o pano de fundo das correntes históricas que atravessam as estruturas da sociedade”. Este texto “exibe a consciência revolucionária da história sob a forma acabada de teoria científica, desvendando como se produz historicamente a revolução social e o quanto ela não passa de um processo natural nas sociedades de forma antagônica”[46].

Raymond Aron, por sua vez, diz que “encontramos nesta passagem [transcrita acima] todas as ideias essenciais da interpretação econômica da história, com a única reserva de que nem a noção de classes nem o conceito de luta de classes aparecem aí explicitamente. No entanto é fácil reintroduzi-los nessa concepção geral”[47]. Vamos percorrer, com R. Aron, as sete “ideias essenciais” do pensamento de Marx sobre a sociedade, ideias que formam o arcabouço do chamado materialismo histórico.

1. A primeira ideia é a de que “na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais“. Ou seja, para compreender as sociedades é necessário analisar suas estruturas, as forças de produção e as relações de produção que nelas se encontram. A compreensão do processo histórico está condicionada à compreensão destas relações sociais que ultrapassam os indivíduos, pois as relações sociais se lhes impõem, com frequência, sem levar em conta suas preferências. Se adotarmos o modo de pensar dos homens de determinada sociedade como o único ponto de partida para entendê-la, não teremos uma compreensão suficiente de todas as suas determinações.

2. A segunda ideia diz que “a totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual.“. O que significa que em toda sociedade podemos distinguir a base econômica ou infraestrutura, constituída pelas forças e pelas relações de produção e a superestrutura que é constituída pelas instituições jurídicas e políticas, assim como pelos modos de pensar ou pela consciência social, se quisermos.

3. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência“, do que decorre que para explicar a maneira de pensar dos homens é preciso analisar as relações sociais às quais eles estão integrados.

4. “Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social“. Aqui é preciso definir o que Marx entendia por forças produtivas e por relações de produção. O conceito de forças produtivas abrange os meios de produção, como o desenvolvimento tecnológico, as fontes de energia disponíveis, a organização do trabalho coletivo, entre outros, enquanto que as relações de produção são constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas, como a burguesia que detém, no capitalismo, o controle dos meios de produção dos bens de uma determinada sociedade. R. Aron explica assim: “Em outras palavras, a dialética da história é constituída pelo movimento das forças produtivas, que entram em contradição, em certas épocas revolucionárias, com as relações de produção, isto é, tanto as relações de propriedade como a distribuição de renda entre os indivíduos ou grupos da coletividade”[48].

5. Embora este texto do “Prefácio” não faça alusão à luta de classes, nesta contradição entre forças e relações de produção é fácil introduzir o conceito: na contradição existente entre forças e relações de produção, uma classe está associada às antigas relações de produção que constituem um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas, enquanto que outra classe representa as novas relações de produção que favorecem o desenvolvimento dessas forças. Segundo o Manifesto do Partido  Comunista, “A história de todas as sociedades existentes até hoje é a história das lutas de classe. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta[49].

6. “Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir“. As revoluções não acontecem por acaso, são expressão de uma necessidade histórica.

7. “Em grandes traços, podem ser designados, como outras tantas épocas progressivas da formação econômica da sociedade, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno”. Marx distingue as etapas da histórica humana a partir de sua estrutura econômica, falando destes quatro modos de produção. Cada um deles se caracteriza por determinado tipo de relações entre os homens na produção da riqueza. O modo de produção antigo caracteriza-se pela escravidão; o modo de produção feudal, pela servidão; o modo de produção burguês, pelo trabalho assalariado e, mais problemático na sua definição, o modo de produção asiático ou tributário, pela submissão dos trabalhadores ao tributo estatal e ao trabalho forçado[50].

Este resumo dá apenas uma rápida ideia da complexidade, do alcance e das inúmeras polêmicas que o pensamento de Marx gera, necessariamente, tanto entre os estudiosos como entre os homens engajados em qualquer ação social.

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[45]. MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política, em FERNANDES, F. (org.) K. MARX & F. ENGELS: História. São Paulo: Ática, 1983, p. 233-234. 

[46]. FERNANDES, F. (org.) o. c., p. 46.

[47]. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, p. 140. Cf. para o que se segue Idem, ibidem, p. 140-204. Cf. também BOTTOMORE, T. (ed.) Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, verbetes forças produtivas e relações de produção, base e superestrutura, classe, luta de classes. Sobre Marx e o marxismo podem ser lidos com proveito também: HOBSBAWM, E. J. et al. História do Marxismo, 12 vols. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979-1989; MCLELLAN, D. Karl Marx: Vida e Pensamento. Petrópolis: Vozes, 1990; IANNI, O. (org.) Karl Marx: Sociologia. 4. ed. São Paulo: Ática, 1984; KARL MARX, 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção “Os Pensadores”; WRIGHT, E. O. et al. Reconstruindo o Marxismo: Ensaios sobre a Explicação e Teoria da História. Petrópolis: Vozes, 1993. A leitura da principal obra de Marx, O Capital: Crítica da Economia Política, vols. I-III, pode ser feita na edição da Abril Cultural, São Paulo, 1983-1985, Coleção “Os Economistas”.

[48]. ARON, R. o. c.,  p. 141.

[49]. MARX, K. ; ENGELS, F., Manifesto do Partido Comunista, em FERNANDES, F. (org.), o. c., p. 365-366.

[50]. Sobre o modo de produção “asiático” ou tributário, cf. CARDOSO, C. F. S. (org.) Modo de produção asiático: Nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990. GEBRAN, Ph. (org.) Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.


O discurso socioantropológico 5

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9. A sociologia compreensiva

Foram os alemães, sobretudo, os defensores de uma atitude antipositivista nas ciências sociais, herdeiros que eram dos filósofos da época do Romantismo. Os neokantianos, por exemplo, estabeleceram algumas distinções fundamentais entre as ciências humanas e as ciências da natureza. Importante é a distinção formulada pelo filósofo e historiador Wilhelm Dilthey (1833-1911) entre explicação (Erklären) e compreensão (Verstehen).

As ciências naturais procuram explicar as relações causais entre os fenômenos, enquanto que as ciências humanas precisam compreender processos da experiência humana que são vivos, mutáveis, que precisam ser interpretados para que se extraia deles o seu sentido. Ao aplicar o método da compreensão aos fatos humanos sociais, M. Weber elabora os fundamentos de uma sociologia compreensiva ou interpretativa[39].

Ao contrário de Durkheim, Weber não pensa que a ordem social tenha que se opor e se distinguir dos indivíduos como uma realidade exterior a eles, mas que as normas sociais se concretizam exatamente quando se manifestam em cada indivíduo sob a forma de motivação. E Weber distingue quatro tipos de ação social que orientam o sujeito:

. a ação racional com relação a um objetivo (Zweckrational), como, por exemplo, a de um engenheiro que constrói uma estrada, onde a racionalidade é medida pelos conhecimentos técnicos do indivíduo visando alcançar uma meta.

. a ação racional com relação a um valor (Wertrational), como um indivíduo que prefere morrer a abandonar determinada atitude, onde o que se busca não é um resultado externo ao sujeito mas a fidelidade a uma convicção.

. a ação afetiva, que é aquela definida pela reação emocional do sujeito quando submetido a determinadas circunstâncias.

. a ação tradicional que é motivada pelos costumes, tradições, hábitos, crenças, quando o indivíduo age movido pela obediência a hábitos fortemente enraizados em sua vida[40].

Max Weber (1864-1920)Weber vê como objetivo primordial da sociologia a captação da relação de sentido da ação humana, ou seja, chegamos a conhecer um fenômeno social quando o compreendemos como fato carregado de sentido que aponta para outros fatos significativos. O sentido, quando se manifesta, dá à ação concreta o seu caráter, quer seja ele político, econômico ou religioso. O objetivo do sociólogo é compreender este processo, desvendando os nexos causais que dão sentido à ação social em determinado contexto.

Por isso, para Weber, há profunda ligação entre as ciências históricas e a sociologia. Raymond Aron assim explica esta característica do pensamento de Weber: “Nas ciências da realidade humana deve-se distinguir duas orientações: uma no sentido da história, do relato daquilo que não acontecerá uma segunda vez, a outra no sentido da sociologia, isto é, da reconstrução conceitual das instituições sociais e do seu funcionamento. Estas duas orientações são complementares. Max Weber nunca diria, como Durkheim, que a curiosidade histórica deve subordinar-se à investigação de generalidades. Quando o objeto do conhecimento é a humanidade, é legítimo o interesse pelas características singulares de um indivíduo, de uma época ou de um grupo, tanto quanto pelas leis que comandam o funcionamento e o desenvolvimento das sociedades (…) A ciência weberiana se define, assim, como um esforço destinado a compreender e a explicar os valores aos quais os homens aderiram, e as obras que construíram”[41].

Mas este processo nunca é acabado, pois “o conhecimento é uma conquista que nunca chega ao seu termo”[42], fazendo da ciência um vir a ser constante. Aqui, vê-se como Max Weber se distancia de A. Comte, quando julga impossível que a sociologia possa um dia formular um quadro claro e definitivo das leis fundamentais da sociedade humana. E se distancia também de Marx, quando defende que um mesmo acontecimento pode ter causas econômicas, políticas e religiosas, sendo que nenhuma dessas causas pode ser considerada superior em relação às outras. O que garante a objetividade da explicação sociológica é o seu método e não a objetividade pura dos fatos.

É impossível fazer um resumo do pensamento de M. Weber em poucas linhas, mas quero lembrar aqui somente que a sociologia compreensiva de M. Weber, para chegar ao objetivo proposto acima, trabalha com um instrumento teórico chamado “tipo ideal”. O tipo ideal é um conceito sociológico construído e testado previamente, antes de ser aplicado às diferentes situações onde se acredita que ele tenha ocorrido. É um modelo teórico fabricado a partir de fenômenos isolados ou da ligação entre eles, e que é testado, em seguida, empiricamente.

A. Giddens diz que “um tipo ideal é construído pela abstração e combinação de um indefinido número de elementos que, embora encontrados na realidade, são raramente ou nunca descobertos nesta forma específica… Um tipo ideal assim não é nem uma ‘descrição’ de um aspecto definido da realidade, nem, segundo Weber, é uma hipótese; mas ele pode ajudar tanto na descrição como na explicação. Um tipo ideal não é, naturalmente, ideal em sentido normativo: ele não traz a conotação de que sua realização seja desejável… Um tipo ideal é um puro tipo no sentido lógico e não exemplar… A criação de tipos ideais não é um fim em si mesmo… o único propósito de construí-los é para facilitar a análise de questões empíricas”[43].

Weber assim define o tipo ideal na obra A “Objetividade” do Conhecimento nas Ciências Sociais: “Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois se trata de uma utopia. A atividade historiográfica defronta-se com a tarefa de determinar, em cada caso particular, a proximidade ou afastamento entre a realidade e o quadro ideal (…) Ora, desde que cuidadosamente aplicado, esse conceito cumpre as funções específicas que dele se esperam, em benefício da investigação e da representação”[44].

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[39]. Cf. WEBER, M. Textos Selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980, Coleção “Os Pensadores”; COHN, G. (org.) Max Weber: Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1982; WEBER, M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva, Vol. 1. Brasília: Editora da UnB, 2004; Idem, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira/Editora da UnB, 1981; ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, p. 461-540. A contribuição de Weber se estende por todas as áreas das Ciências Sociais, com exceção da Antropologia, sendo muito difundida no Brasil.

[40]. Cf. WEBER, M. Economia e Sociedade, p. 15-16.

[41]. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, p. 469-470.

[42]. Idem, ibidem, p. 467.

[43]. GIDDENS, A. Capitalism and Modern Social Theory: An Analysis of the Writings of Marx, Durkheim and Max Weber. Cambridge: Cambridge University Press, 1971, p. 141-142. Citado em CARTER, C. E. & MEYERS, C. L.(eds.) Community, Identity and Ideology, p. 260.

[44]. WEBER, M. A “Objetividade” do Conhecimento nas Ciências Sociais, em COHN, G. Max Weber: Sociologia, p. 106.


O discurso socioantropológico 4

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7. O positivismo de Comte e Durkheim e a crítica marxista

Contudo, Comte e Durkheim são pensadores positivistas. Ambos acreditam que a sociedade possa ser analisada da mesma forma que os fenômenos da natureza. A sociologia tem, assim, como tarefa, o esclarecimento de acontecimentos sociais constantes e recorrentes. O papel fundamental da sociologia seria o de explicar a sociedade para manter a ordem vigente.

Na clara síntese de Michael Löwy, o tipo ideal de positivismo pode ser dito em três ideias principais:Michael Löwy
. a primeira é a hipótese fundamental do positivismo: “a sociedade humana é regulada por leis naturais”, leis invariáveis, independentes da vontade e da ação humana, como a lei da gravidade ou do movimento da terra em torno do sol, de modo que na sociedade reina “uma harmonia semelhante à da natureza, uma espécie de harmonia natural”.
. dessa primeira hipótese decorre, para o positivismo, a conclusão epistemológica de que “a metodologia das ciências sociais tem que ser idêntica à metodologia das ciências naturais, posto que o funcionamento da sociedade é regido por leis do mesmo tipo das da natureza”.
. a terceira ideia básica do positivismo, talvez a de maior consequência, reza que “da mesma maneira que as ciências da natureza são ciências objetivas, neutras, livres de juízos de valor, de ideologias políticas, sociais ou outras , as ciências sociais devem funcionar exatamente segundo esse modelo de objetividade científica”. Ou seja: o positivismo “afirma a necessidade e a possibilidade de uma ciência social completamente desligada de qualquer vínculo com as classes sociais, com as posições políticas, os valores morais, as ideologias, as utopias, as visões de mundo, pois este conjunto de opções são prejuízos, preconceitos ou prenoções que prejudicam a objetividade das Ciências Sociais”[21].

Entretanto, o marxismo dá um passo a mais: o conhecimento da realidade social é um instrumento político que pode orientar os grupos sociais na luta pela transformação da sociedade. É no terreno da prática que se deve demonstrar a verdade da teoria.

Na segunda de suas onze teses contra Feuerbach, de 1845, diz Karl Marx (1818-1883): “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento”. Para concluir na última tese: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; a questão, porém, é transformá-lo[22].

Vista por este ângulo, a função da sociologia não é o restabelecimento da ordem social ou a determinação das normas do bom funcionamento da sociedade, como dizem os positivistas. Ela deve, antes de tudo, contribuir para a mudança social. É aí que reside sua função crítica, na medida em que apoia os movimentos de transformação da ordem existente.

Com isto, já conseguimos definir o discurso sociológico em relação à história como aquele que não se limita a descrevê-la como uma sucessão de fatos e acontecimentos, mas como um conjunto de situações, de normas, de usos, de instituições.

Mais ainda, nas palavras do exegeta alemão Gerd Theissen, as questões sociológicas “ganham significação central também onde se busca clarear as grandes transformações da história, suas revoluções e crises, declínios e renascimentos, em ligação com as tensões estruturais”[23].

Assim foi que, de 1830 às primeiras décadas do século XX, se consolidaram os principais métodos e conceitos sociológicos[24].

Por outro lado, a existência de interesses opostos e conflitantes na sociedade se manifesta igualmente no pensamento sociológico. Há diferentes tradições sociológicas e modos diversos de entender o papel da religião na sociedade.

Os especialistas costumam dizer, certamente com alguma simplificação, que as diversas sociologias podem ser reconduzidas a três tendências básicas: funcionalista, compreensiva e marxista.

 

8. A sociologia funcionalista

A sociologia funcionalista é hoje uma das mais difundidas nas sociedades capitalistas, em primeiro lugar nos Estados Unidos. O pensamento de Émile Durkheim foi retomado e desenvolvido especialmente por dois sociólogos americanos, Robert K. Merton e Talcott Parsons, sem dúvida os maiores responsáveis pelo desenvolvimento do funcionalismo moderno.

Na opinião de Peter Berger, “Robert K. Merton, da Universidade de Colúmbia, representa, juntamente com Talcott Parsons, de Harvard, o mais destacado teórico da sociologia americana contemporânea. A análise de Merton sobre as funções ‘manifesta’ e ‘latente’, bem como outras exposições importantes do que ele considera ser a abordagem funcionalista da sociedade, será encontrada em seu livro Social Theory and Social Structure. Chicago: Free Press, 1957”[25]. Funções manifestas são as funções conscientes e deliberadas dos processos sociais, enquanto que as funções latentes são inconscientes e involuntárias. Um exemplo dado por Berger nos ajuda a entender a distinção: “Missões cristãs em certas partes da África tentaram ‘manifestamente’ converter os africanos ao cristianismo, mas ajudaram ‘latentemente’ a destruir as culturas tribais, proporcionando condições para rápida transformação social”[26].

O funcionalismo, ao analisar qualquer elemento de um sistema social, procura saber de que maneira este elemento se relaciona com os outros elementos do mesmo sistema social e com o sistema social como um todo, para daí tirar as consequências que interferem no sistema, provocando sua disfunção, ou, por outro lado, contribuem para a sua manutenção, sendo, portanto, funcionais.

Estes conceitos foram desenvolvidos a partir do pensamento de Durkheim, que, como vimos, se esforçou para mostrar a existência própria e independente dos fatos sociais em relação aos indivíduos particulares. Durkheim chamou de consciência coletiva as formas padronizadas de conduta e de pensamento que se observa no interior de um grupo social: “Sem dúvida, é evidente que nada existe na vida social que não esteja nas consciências individuais; mas, quase tudo que se encontra nestas últimas vem da sociedade. A maior parte de nossos estados de consciência não seriam produzidos pelos indivíduos isolados, mas seriam produzidos pelos indivíduos agrupados de outra maneira. Eles derivam, portanto, não da natureza psicológica do homem em geral, mas da maneira segundo a qual os homens, uma vez associados, interagem mutuamente, dependendo de serem mais ou menos numerosos, de estarem mais ou menos próximos. Sendo produtos da vida em grupo, somente a natureza do grupo pode explicá-los”[27].

Citando ainda uma vez Peter Berger: “Segundo a perspectiva durkheimiana, viver em sociedade significa existir sob a dominação da lógica da sociedade. Com muita frequência, as pessoas agem segundo essa lógica sem o perceber. Portanto, para descobrir essa dinâmica interna da sociedade, o sociólogo terá muitas vezes de desprezar as respostas que os próprios atores sociais dariam a suas perguntas e procurar as explicações de que eles próprios não se dão conta. Esta atitude essencialmente durkheimiana foi levada à abordagem teórica hoje chamada de funcionalismo. Na análise funcional, a sociedade é analisada em termos de seus próprios mecanismos como sistema, e que muitas vezes se apresentam obscuros ou opacos àqueles que atuam dentro do sistema”[28].

Segundo o pensamento de Durkheim, a função da sociologia “seria a de detectar e buscar soluções para os ‘problemas sociais’, restaurando a ‘normalidade social’ e se convertendo dessa forma numa técnica de controle social e de manutenção do poder vigente”, explica C. B. MARTINS[29].

Com efeito, no início do segundo capítulo de seu livro As regras do método sociológico, E. Durkheim define seu princípio metodológico fundamental: “A primeira regra e a mais fundamental é a de considerar os fatos sociais como coisas“. Para acrescentar mais adiante, neste mesmo capítulo: “De fato, Comte proclamou que os fenômenos sociais são fatos naturais, submetidos a leis naturais. Reconheceu, assim, o seu caráter de coisas, visto que na natureza só há coisas”[30].

Michael Löwy observa que esta abordagem de Durkheim é perfeitamente homóloga à desenvolvida pela economia política burguesa e explica: “É aqui que provavelmente se encontram as raízes do naturalismo positivista enquanto discurso ideológico típico da nova ordem industrial (burguesa)”. E, citando Durkheim, no texto La science et l’action, Paris, PUF, 1970, p. 80-81, Michael Löwy acrescenta que “o próprio Durkheim apresenta a economia política como precursora da démarche positivista nas ciências sociais: ‘Os economistas foram os primeiros a proclamar que as leis sociais são tão necessárias como as leis físicas. Segundo eles, é tão impossível a concorrência não nivelar pouco a pouco os preços… como os corpos não caírem de forma vertical…. Estenda este princípio a todos os fatos sociais e a sociologia estará fundada’ “[31].

Ainda citando Durkheim, M. Löwy mostra que “desde os seus primeiros escritos em 1867, o pensamento de Durkheim exprime com precisão, clareza, coerência e rigor exemplares esta nova função social: ‘É ainda ao professor de filosofia que cabe despertar nos espíritos que lhe são confiados a ideia do que é uma lei; de lhes fazer compreender que os fenômenos físicos e sociais são fatos como os outros, submetidos a leis que a vontade humana não pode interromper à sua vontade, e que, por consequência, as revoluções no sentido próprio do termo são coisas tão impossíveis como os milagres’ “[32].

Finalmente, diz Löwy: “Entre as leis naturais da sociedade que seria vão, utópico, ilusório – em uma palavra: anticientífico – querer ‘interromper’ ou transformar, Durkheim situa com destaque a desigualdade social[33]. Os argumentos estão na obra Da divisão do trabalho social, de 1893: as sociedades “são constituídas, não por uma repetição de segmentos semelhantes e homogêneos, mas por um sistema de órgãos diferentes, onde cada um tem um papel particular, sendo eles mesmos formados de partes diferenciadas”. Isto é absolutamente normal, pois se encontra em qualquer organismo, como, por exemplo, “nos animais, [onde] a predominância do sistema nervoso sobre os outros sistemas se reduz ao direito, se se pode falar assim, de receber um alimento mais seleto e de receber sua parte antes dos outros”[34]. E ainda: “Pois, se nada entrava ou nada favorece injustamente os concorrentes que disputam entre as tarefas, é inevitável que apenas os que são os mais aptos a cada gênero de atividade a alcancem”[35].

O próprio Durkheim não faz segredo do conservadorismo do seu método positivista: “O nosso método não tem, portanto, nada de revolucionário. É até, num certo sentido, essencialmente conservador, uma vez que considera os fatos sociais como coisas cuja natureza, por mais elástica e maleável que seja, não é, no entanto, modificável à nossa vontade”[36].

Lendo esta afirmação, Michael Löwy chega, finalmente, ao âmago do problema quando diz que é inútil ficar discutindo, como o fazem alguns sociólogos hoje, quais são os elementos formais e doutrinários do conservadorismo de Durkheim: o seu problema está “na sua própria concepção do método. É seu método positivista que permite legitimar constantemente, através de argumentos científico-naturais, a ordem (burguesa) estabelecida”. Isto lhe possibilita passar “sem hesitação das leis da seleção natural às ‘leis naturais’ da sociedade, e dos organismos vivos aos ‘organismos sociais'”. O apoio para este enfoque? “A homogeneidade epistemológica dos diferentes domínios e, por consequência, das ciências que os tomam como objeto”[37].

Raymond Aron, escrevendo em 1966, olha com desgosto para a sociologia funcionalista americana, herdeira deste pensamento, e classifica-a como essencialmente analítica e empírica. Multiplicando questionários para saber como vivem os homens em sociedade, transformando-se, deste modo, em mera sociografia, caricatura de uma autêntica ciência social, ela deixa de ser crítica, no sentido marxista do termo, não questionando a ordem social nos seus traços fundamentais e admitindo implicitamente a visão de mundo da sociedade norte-americana[38].

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[21]. LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 1985, p. 35-36; cf. Idem, As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987, p. 17-18.

[22]. MARX, K. Teses sobre Feuerbach, em MARX, K. ; ENGELS, F. Obras escolhidas, Tomo I. Lisboa: Avante, 1982, p. 1-3.

[23]. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva: Estudos. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 9.

[24]. Cf. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, onde este autor diz que “tendo partido em busca da sociologia moderna, cheguei, de fato, a uma galeria de retratos individuais” (p. 11). Raymond Aron divide estes 7 “retratos” em dois grupos: os fundadores, que são, no seu entender, Montesquieu, Comte, Marx e Tocqueville e a geração da passagem do século, constituída por Durkheim, Pareto e Weber.

[25]. BERGER, P. Perspectivas sociológicas: Uma visão humanística. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 197. Merton nasceu em 1910.

[26]. Idem, ibidem, p. 51. Allan G. Johnson, em Dicionário de Sociologia: Guia Prático da Linguagem Sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, verbete Merton, Robert, K., observa que “sua dissertação de doutorado sobre o desenvolvimento da ciência no século XVII é em geral creditada por ter provocado uma grande mudança nos métodos sociológicos de estudar a ciência, que influencia desde então o trabalho nesse campo”. Sua tese tem por título Science, Technology and Society in Seventeenth-Century England, e data de 1938.

[27]. DURKHEIM, E. De la division de travail social. Paris: PUF, 1960, p. 342.

[28]. BERGER, P. Perspectivas sociológicas. Uma visão humanística, p. 50-51.

[29]. MARTINS, C. B. O que é sociologia, p. 50.

[30]. DURKHEIM, E. As regras do método sociológico, p. 94 e 96.

[31]. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, p. 26.

[32]. Idem, ibidem, p. 27. Löwy cita o texto de DURKHEIM, E. La philosophie dans les Universités Allemandes, 1866-67, em Textes 3, Fonctions sociales et institutions. Paris: Ed. de Minuit 1975, p. 485. Esta é também a perspectiva funcionalista de Peter Berger, em Perspectivas sociológicas: Uma visão humanista, p. 58, quando diz que “a percepção sociológica é refratária a ideologias revolucionárias, não porque traga consigo alguma espécie de preconceito conservador, e sim porque ela enxerga não só através das ilusões do status quo atual como também através das expectativas ilusórias concernentes a possíveis futuros, sendo tais expectativas o costumeiro alimento espiritual dos revolucionários. Em nossa opinião, essa sobriedade não revolucionária e moderadora da sociologia é altamente valiosa”.

[33]. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, p. 27.

[34]. DURKHEIM, E. De la division de travail social, p. 157-158. 

[35]. Idem, ibidem, p. 369-370.

[36]. DURKHEIM, E. As regras do método sociológico, em o. c., p. 74.

[37]. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen, p. 29. O sublinhado no texto é de Michael Löwy.

[38]. Cf. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico, p. 4-5. E na p. 6 ele diz: “Os norte-americanos são reformistas quando se trata de sua própria sociedade e, implicitamente pelo menos, com relação a todas as sociedades”.


O discurso socioantropológico 3

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6. Durkheim propõe uma teoria do fato social

Por sua vez, E. Durkheim, em Da Divisão do Trabalho Social, de 1893, coloca duas questões sobre as relações entre os indivíduos e a coletividade[16]:
. como pode um conjunto de indivíduos constituir uma sociedade?
. como este conjunto de indivíduos consegue obter um consenso para a convivência?

Segundo Durkheim, duas formas de solidariedade social podem ser constatadas: a solidariedade mecânica, típica das sociedades pré-capitalistas, onde os indivíduos se identificam através da família, da religião, da tradição, dos costumes. É uma sociedade que tem coerência porque os indivíduos ainda não se diferenciam. Reconhecem os mesmos valores, os mesmos sentimentos, os mesmos objetos sagrados, porque pertencem a uma coletividade. E a solidariedade orgânica, característica das sociedades capitalistas, onde, através da divisão do trabalho social, os indivíduos tornam-se interdependentes, garantindo, assim, a união social, mas não pelos costumes, tradições etc. Os indivíduos não se assemelham, são diferentes e necessários, como os órgãos de um ser vivo. Assim, o efeito mais importante da divisão do trabalho não é o aumento da produtividade, mas a solidariedade que gera entre os homens.

Algumas ideias fundamentais decorrem desta análise, como o conceito de consciência coletiva: “O conjunto de crenças e de sentimentos comuns entre os membros de uma mesma sociedade, forma um sistema determinado que tem sua vida própria; podemos chamá-la de consciência coletiva Émile Durkheim (1858-1917)ou comum. Sem dúvida, ela não tem como substrato um órgão único; é, por definição, difusa, ocupando toda a extensão da sociedade; mas nem por isso deixa de ter características específicas, que a tornam uma realidade distinta. Com efeito, ela é independente das condições particulares em que se situam os indivíduos. Estes passam, ela fica. É a mesma no Norte e no Sul, nas grandes e nas pequenas cidades, nas diferentes profissões. Por outro lado, não muda em cada geração, mas ao contrário liga as gerações que se sucedem. Portanto, não se confunde com as consciências particulares, embora se realize apenas nos indivíduos. É o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, condições de existência, seu modo de desenvolvimento, exatamente como os tipos individuais, embora de outra maneira”[17].

Nas sociedades dominadas pela solidariedade mecânica a consciência coletiva abrange a maior parte dos membros desta sociedade. Nas sociedades dominadas pela solidariedade orgânica há uma redução desta consciência coletiva porque os indivíduos são diferenciados. Por isso, nestas últimas, em oposição às primeiras, ocorre um enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proibições sociais e há, especialmente, uma margem maior na interpretação individual dos imperativos sociais.

Durkheim defende também o primado da sociedade sobre o indivíduo:
. as sociedades têm prioridade histórica sobre os indivíduos
. as sociedades têm prioridade lógica sobre os indivíduos, porque se a solidariedade mecânica precede a solidariedade orgânica, não se pode explicar a diferenciação social a partir dos indivíduos, pois a consciência de individualidade não pode existir antes da solidariedade orgânica e da divisão do trabalho social.

Daí que os fenômenos individuais devem ser explicados a partir da coletividade, e não a coletividade pelos fenômenos individuais. Donde a divisão do trabalho ser um fenômeno social que só pode ser explicado por outro fenômeno social, como a combinação do volume, densidade material e moral de uma sociedade, sendo que o único grupo social que pode proporcionar a integração dos indivíduos na coletividade é a corporação profissional.

Em outra importante obra, publicada em 1912, As Formas Elementares da Vida Religiosa, E. Durkheim propõe a elaboração de uma teoria geral da religião fundamentada nas formas mais simples e primitivas das instituições religiosas. Durkheim acredita, assim, que se possa apreender a essência de um fenômeno social observando suas formas mais elementares. Por isso parte do estudo do totemismo nas tribos australianas, chegando à conclusão de que os homens adoram uma realidade que os ultrapassa, que sobrevive a eles, mas que esta realidade é a própria sociedade sacralizada como força superior. Nem as forças naturais, nem os espíritos, nem as almas são sagradas por si mesmas. Só a sociedade é uma realidade sagrada por si mesma. Pertence à ordem da natureza, mas a ultrapassa. É ao mesmo tempo causa do fenômeno religioso e justificativa da distinção entre sagrado e profano. Para Durkheim, qualquer crença ou prática religiosa é semelhante às práticas totêmicas.

Mas por que a própria sociedade torna-se objeto de crença e culto? Durkheim explica: “De maneira geral, não há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, unicamente pela ação que ele exerce sobre eles, a sensação do divino; porque ela é para os seus membros o que um deus é para os seus fiéis. Um deus, com efeito, é antes de tudo um ser que o homem imagina, em determinados aspectos, como superior a si mesmo e de quem acredita depender. Quer se trate de personalidade consciente, como Zeus ou Javé, ou então de forças abstratas como as que estão presentes no totemismo, o fiel, tanto num caso como no outro, acredita-se obrigado a determinadas maneiras de agir que lhe são impostas pela natureza do princípio sagrado com o qual se sente em relação. Ora, a sociedade também alimenta em nós a sensação de contínua dependência. Como tem natureza que lhe é própria, diferente da nossa natureza de indivíduo, ela visa a fins que lhe são igualmente especiais: mas, como só pode atingi-los por nosso intermédio, reclama imperiosamente nosso concurso. Ela exige que, esquecidos de nossos interesses, nos tornemos seus servidores e nos impõe toda espécie de incômodos, de privações e de sacrifícios sem os quais a vida social seria impossível. É por isso que a cada instante somos obrigados a nos submeter a regras de comportamento e de pensamento que não fizemos nem quisemos, e que às vezes são até contrárias às nossas tendências e aos nossos instintos fundamentais.

Todavia, se a sociedade só obtivesse de nós essas concessões e esses sacrifícios por imposição material, não poderia despertar em nós senão a ideia de força física à qual devemos ceder por necessidade, e não a ideia de força moral do gênero das que as religiões adoram. Mas na realidade, o domínio que ela exerce sobre as consciências vincula-se muito menos à supremacia física de que tem o privilégio do que à autoridade moral de que está investida. Se nos submetemos às suas ordens, não é simplesmente porque está armada de maneira a triunfar das nossas resistências, é, antes de tudo, porque constitui o objeto de autêntico respeito”[18].

Em As Regras do Método Sociológico, de 1895, Durkheim propõe, com sua sociologia formular uma teoria do fato social, demonstrando que pode haver uma ciência sociológica objetiva e científica, como nas ciências físico-matemáticas.

Para que haja tal ciência são necessárias duas coisas: um objeto específico que se distinga dos objetos das outras ciências e um objeto que possa ser observado e explicado, como se faz nas ciências.

Daí duas outras importantes afirmações de Durkheim:
. os fatos sociais devem ser considerados como coisas
. os fatos sociais exercem uma coerção sobre os indivíduos.

E explica: “É um fato social toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior; ou ainda, que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais”[19].

E na conclusão deste mesmo livro resume as características deste método sociológico: “Em primeiro lugar, é independente de qualquer filosofia (…) Em segundo lugar, o nosso método é objetivo. É totalmente dominado pela ideia de que os fatos sociais são coisas e devem ser tratados como tais (…) Mas, se consideramos os fatos sociais como coisas, consideramo-los como coisas sociais. A terceira característica do nosso método é ser exclusivamente sociológico (…) Mostramos que um fato social só pode ser explicado por um outro fato social e, simultaneamente, como este tipo de explicação é possível assinalando no meio social interno o motor principal da evolução coletiva (…) Tais nos parecem ser os princípios do método sociológico”[20].

Página 4


[16]. Cf. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes/Editora da UnB, 1987, p. 295-375.

[17]. DURKHEIM, E. De la division de travail social. Paris: PUF, 1960, p. 46.

[18]. DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa, p. 260-261.

[19]. DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico, p. 92-93.

[20]. Idem, ibidem, p. 159-161.


O discurso socioantropológico 2

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No plano dos fatos, temos classes sociais antagônicas em luta: é a revolução. No plano do pensamento, temos dois polos contraditórios que, através de contínua superação, constituem o avançar histórico, encarnação da ideia em contínua tensão. A dialética é a revolução vitoriosa, em forma conceitual! O mundo, a história, não são réplicas imperfeitas de um mundo transcendente e estático na sua perfeição. Eles são a ideia, fazendo-se, procurando a perfeição. É a superação da metafísica[7].

Estes são, resumidamente, alguns dos pressupostos nos quais as Ciências Sociais se fundamentam. Entre os vários tipos de abordagens das sociedades humanas e de suas instituições que podemos chamar de Ciências Sociais estão, entre outras, a sociologia, a antropologia, a arqueologia, a economia, a psicologia, as ciências políticas…. Vamos nos restringir aqui à sociologia e à antropologia.

 

4. A sociologia, ciência da sociedade humana e de suas instituições

Quando Auguste Comte (1798-1857)[8] e Émile Durkheim (1858-1917)[9] procuram formular as leis que regem a organização social, a especulação filosófica sobre a sociedade transforma-se em sociologia, ciência que pode ser sumariamente definida como o estudo da sociedade humana e de suas instituições.

Podemos, assim, verificar que a sociologia nasce mesmo é como consequência das profundas transformações geradas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial. É a formação da sociedade capitalista “que impulsiona uma reflexão sobre a sociedade, sobre suas transformações, suas crises, seus antagonismos de classe”[10].

Ou seja: na Europa, duas condições precedem o aparecimento do pensamento sociológico:
. uma secularização de atitudes e dos modos de compreender a natureza humana, a origem e o fundamento das instituições
. um processo de racionalização que projeta na esfera da ação coletiva a ambição de conhecer, explicar e dirigir os acontecimentos e a vida social[11].

 

5. Comte e a instauração do espírito positivo

Vamos exemplificar este processo com uma síntese do pensamento de Comte, que, abalado com a os resultados mais radicais da Revolução Francesa, e considerando que a humanidade se encontrava numa fase de desorganização social perigosa, propõe uma nova ordem social que deve nascer de um sólido espírito positivo em oposição ao espírito negativo do Iluminismo, segundo seu parecer.

Comte estrutura seu pensamento em torno de três temas básicos que são: uma filosofia da história, uma classificação das ciências e uma reforma das instituições.

Comte (1798-1857)A filosofia da história de Comte pode ser resumida na sua lei dos três estágios ou três fases pelas quais o espírito humano passou historicamente: a teológica, a metafísica e a positiva. Na fase teológica, o homem, impotente diante dos fenômenos naturais, apela para seres sobrenaturais aos quais atribui sua origem. Isto se dá na Idade Antiga. Na fase metafísica, o homem, mais habituado ao manejo da racionalidade, passa a atribuir a causa dos fenômenos naturais a forças da natureza, incontroláveis do ponto de vista prático, mas passíveis de serem pensadas de modo abstrato. Isto ocorre na Idade Média. Na fase positiva, já presente entre os gregos e que agora reaparece com Bacon, Galileu e Descartes, o homem abandona a consideração das causas dos fenômenos, que era uma atitude teológica ou metafísica, e põe-se a pesquisar as suas leis, entendidas como relações constantes entre os fenômenos.

Em suas palavras: “O caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços (…) Cada um sabe que, em nossas explicações positivas, até mesmo as mais perfeitas, não temos de modo algum a pretensão de expor as causas geradoras dos fenômenos, posto que nada mais faríamos então além de recuar a dificuldade. Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e de similitude”[12].

A classificação das ciências é o segundo tema básico de Comte, que, partindo da que julga mais simples, as ordena de acordo com sua complexidade: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. A sociologia, no topo da classificação, é para Comte “a única meta essencial de toda filosofia positiva, considerada de agora em diante como formando, por sua natureza, um sistema verdadeiramente indivisível, em que toda decomposição é radicalmente artificial, sem ser aliás, de modo algum, arbitrária, já que tudo se reporta finalmente à Humanidade, única concepção plenamente universal”[13].

O terceiro tema básico da filosofia de Comte é a reforma das instituições que tem seus fundamentos teóricos na sociologia. Diz Comte que “conforme o sentimento, cada vez mais desenvolvido, de igual insuficiência social que hoje oferecem o espírito teológico e o espírito metafísico, os únicos até agora a disputar ativamente um lugar ao sol, a razão pública deve encontrar-se implicitamente disposta a acolher o espírito positivo como a única base possível para uma verdadeira resolução da anarquia intelectual e moral, que caracteriza sobremaneira a grande crise moderna”[14].

E acrescenta um pouco mais adiante: “Não se pode primeiramente desconhecer a aptidão espontânea dessa filosofia a constituir diretamente a conciliação fundamental, ainda procurada de tão vãs maneiras, entre as exigências simultâneas da ordem e do progresso (…) Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental do progresso e, reciprocamente, o progresso vem a ser a meta necessária da ordem (…) Especialmente considerado, em seguida, no que respeita à ordem, o espírito positivo apresenta-lhe hoje, em sua extensão social, poderosas garantias diretas, não somente científicas mas também lógicas, que poderão logo ser julgadas muito superiores às vãs pretensões duma teologia retrógrada…”[15].

Ou seja: para o conservador Comte, como a Revolução Francesa destruíra as instituições sociais por ter sido negativa e metafísica em seus pressupostos, mas ao mesmo tempo tinha sido necessária para superar as anacrônicas instituições políticas e sociais ainda teológicas, só uma nova elite científico-industrial seria capaz de instaurar o espírito positivo na organização social e política, fazendo com que as ciências se tornassem bem comum.

Este anseio por uma reforma intelectual e social levou Comte a desenvolver, nos últimos quinze anos de sua vida, uma religião da humanidade, com novo calendário, cujos meses tinham os nomes de grandes figuras da história do pensamento, com dias santos, em que se deveriam comemorar as obras de Dante, Shakespeare, Adam Smith e outros, e com novo catecismo, que substitui Deus pela Humanidade. A Igreja Positivista do Brasil existe até hoje no Rio de Janeiro, nossa bandeira tem o lema comteano “Ordem e Progresso” e a Constituição de 1891 foi fortemente influenciada pelos positivistas.

Página 3


[7]. Cf. LARA, T. A. o. c. , p. 64-69. De Hegel deve ser lida a Fenomenologia do Espírito, de 1807, em “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1980 (esta tradução traz apenas o Prefácio, a Introdução e os capítulos I e III); outra edição da Fenomenologia do Espírito: Petrópolis: Vozes, 1997 (volume I) e 1993 (volume II).

[8]. De A. Comte devem ser lidos o Curso de filosofia positiva, de 1839/42 e o Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, de 1848, que contêm suas principais ideias sobre o positivismo. Ambos estão em “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1978.

[9]. De E. Durkheim pode ser lido na mesma coleção “Os Pensadores” As regras do método sociológico, de 1895. Fundamental também é o livro As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulus, 1989. É importante observarmos que Durkheim ocupou, a partir de 1887, na Universidade de Bordéus, a primeira cátedra exclusivamente dedicada ao estudo da sociologia no ensino superior francês.

[10]. MARTINS, C. B. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 16.

[11]. FERNANDES, F. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 25.

[12]. COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva, em o. c., p. 7. Cf. uma síntese do pensamento de Comte em LARA, T. A. Caminhos da Razão no Ocidente, p. 82-85; MARTINS, C. B. O que é Sociologia, p. 43-46; COMTE, A. Introdução, em “Os Pensadores”, p. VI-XVIII.

[13] . COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo, em “Os Pensadores”, o. c., p. 90.

[14]. COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo, p. 68-69.

[15]. Idem, ibidem, p. 69.


Os Congressos da SOTER de 2002 até hoje

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Os Congressos da SOTER de 2002 até hoje

 

O Congresso de 2002 teve como tema Gênero/Teologia Feminista: Interpelações e Perspectivas para a Teologia. Foi realizado em Cachoeira do Campo, MG, de 8 a 12 de julho de 2002.

O Congresso de 2004, realizado em Belo Horizonte, de 12 a 16 de julho, teve como tema Corporeidade e Teologia.

O Congresso de 2005 foi realizado de 11 a 14 de julho, tendo como tema Relevância e Funções da Teologia na Sociedade.

Leia sobre os Congressos da SOTER de 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2021, 2022, 2023, 2024.

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Vale a pena ler os profetas hoje?

 

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ABSTRACT
The article proposes the investigation of some of the more frequent hermeneutic obstacles in the reading of the prophetic texts and recommends a resolute ideological surveillance.

Ainda vale a pena ler os profetas hoje? Que valor têm as suas palavras para nós hoje? O mundo mudou muito, e nós o que temos a ver com os problemas e as propostas de profetas israelitas que viveram há mais de 2500 anos?

O mundo mudou muito, mas as crises vividas pelos profetas ainda acontecem. Em contextos diferentes, é claro. Entretanto, os problemas da opressão, do domínio, do poder despótico, da manipulação da religião, da falsa consciência são mais atuais do que nunca. E é aí que entram os profetas: eles podem, com suas palavras tão antigas e tão atuais, nos ajudar a enfrentar as agudas situações de crise neste terceiro milênio.

Isto depende, porém, de um enfoque correto, de uma abordagem adequada dos textos dos profetas israelitas. O que nem sempre é fácil. Persistem ainda muitos obstáculos. Que, curiosamente, não vêm da antiguidade e da complexidade dos textos dos profetas. Vêm de nossa época e de nosso olhar: são os condicionamentos culturais ocidentais os que mais nos afastam de uma leitura proveitosa dos profetas.

É toda uma mentalidade, uma secular visão de mundo que nos domina, de tal modo que quase sempre a sobrepomos ao texto bíblico, ocultando o seu sentido original e inutilizando-o frente aos problemas reais do mundo atual.

Por isso, o que aqui proponho é a abordagem de alguns dos obstáculos hermenêuticos mais comuns, nos quais constantemente tropeçamos. Obstáculos hermenêuticos são armadilhas do pensamento. Isto servirá de alerta e alarme para nós. Pois só uma constante vigilância ideológica manterá aberta a nossa mente para a experiência do nascimento do sentido que acontece na operação de leitura dos textos proféticos[1].

 

1. A visão idealista da realidade

Como herdeiros do pensamento grego, somos profundamente marcados pela visão idealista da realidade, em seu sentido filosófico. Na história do pensamento há vários tipos de idealismos, mas seu ponto comum é a prioridade dada à ideia ou ao espírito humano em relação à matéria.

O idealismo metafísico ou ontológico, por exemplo, entende a realidade como constituída ou dependente do espírito ou das ideias. O ser é a própria ideia, segundo tal idealismo. Já o idealismo histórico vê na consciência humana ou nas ideias os agentes fundamentais do processo histórico. Enquanto que o idealismo ético “projeta um estado empiricamente infundado (‘superior’ ou ‘melhor’) como uma maneira de julgar ou racionalizar a ação”[2].

O idealismo moderno tem suas raízes no idealismo grego. Nas suas origens platônicas, o idealismo afirma que o mundo real é o mundo das ideias, segundo o célebre mito da caverna[3]. E no seu dualismo característico, ele garante que é o espírito que conta, sendo a matéria um peso morto do qual os homens devem se livrar para alcançarem a plenitude.

Na origem grega e na persistência ocidental desta visão de mundo está a realidade social da divisão de classes, onde o trabalho intelectual é separado do trabalho material.

Prisioneiros desta visão de mundo, costumamos ler a Bíblia como um catálogo de formulações doutrinais, um elenco de verdades abstratas queEl Profeta, de Pablo Gargallo - Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madrid (1933) explicam e regulam a realidade. Ora, ao serem retirados de seu contexto e usados de maneira absoluta e moralizante, os acontecimentos bíblicos perdem sua referência real. Iahweh e os valores do javismo desaparecem, assim como desaparece o “homem humano”.

É assim que os profetas acabam tornando-se adivinhos, conhecedores que seriam de uma verdade supratemporal e a-histórica que determinaria a natureza e o mundo dos homens. O profeta, segundo a ótica idealista, é aquele que pode prever o futuro, porque ele tem uma iluminação ou revelação divina e sobrenatural. Assim, o profeta conhece e revela a nós, pobres mortais comuns, os acontecimentos e planos futuros, ocultos e misteriosos[4].

De acordo com esta visão, o profeta nada, ou quase nada, tem a dizer aos seus contemporâneos, já que ele está voltado é para o futuro, muito mais importante, ao qual pertencemos. Segundo este raciocínio idealista a verdade é anterior ao acontecimento e está situada no mundo das ideias. No caso dos profetas, no mundo divino.

Acontece que para o profeta a verdade da palavra está contida no próprio acontecimento. Pois o que conta, na mentalidade bíblica, é o mundo real em toda a sua materialidade. Se, segundo os profetas, Israel está condenado à destruição, não é devido a um misterioso e secreto decreto divino. É graças aos seus próprios atos históricos. Foram os descaminhos políticos, sociais, religiosos que arrasaram o país.

Pode-se observar que os profetas jamais falam de Iahweh de maneira abstrata. É sempre um Deus que age e que exige ação, quer seja na proteção ao povo, quer seja na destruição dos inimigos. Iahweh não é uma ideia fora da realidade, mas a manifestação de uma presença dentro da história.

Por isso, de acordo com os profetas, a salvação dos homens concretos de seu tempo é uma tarefa histórica, não uma fuga para outro mundo. E é uma tarefa social, pois o que está em jogo é o povo de Israel, não o indivíduo isolado.

 

2. O individualismo

O idealismo, obstáculo pai, dá frutos, conduzindo ao individualismo. “Com a desvalorização do concreto e da História, o intelectualismo quebra os laços pelos quais unicamente os homens podem relacionar-se entre si”[5].

Isto porque os homens estão é no mundo concreto. E só no mundo concreto os homens podem relacionar-se entre si. No mundo abstrato por nós criado, eles são apenas “pensados como existentes”… não são reais.

Aliás, o individualismo é uma das mais evidentes características da sociedade capitalista de nossa época.

Ora, a visão individualista da realidade é um poderoso obstáculo para a leitura dos profetas. Quem se dirigir aos textos proféticos com este olhar só vai procurar ali normas para a vida íntima e moral do indivíduo. Jamais enxergará a essencial dimensão social presente em todos os textos.

Um exemplo pode nos ajudar a compreender o que se está afirmando: é a leitura corrente do tema da responsabilidade individual em Jr 31,29-30 e Ez 18,1-32.

Profetas - Aleijadinho - Congonhas do Campo - MG (entre 1794 e 1804)Muitos comentaristas concluem por um grande passo no desenvolvimento teológico do Antigo Testamento ao analisarem estas passagens que remodelam o conceito de responsabilidade coletiva, mais primitivo, afirmando, a partir do exílio, a responsabilidade individual.

Não acredito em “grande progresso teológico”. Vejo apenas uma adaptação teológica a realidades novas. O conceito de responsabilidade coletiva – segundo o qual a ação de cada membro influencia no conjunto da sociedade para o bem e para o mal – é superior e não inferior ao da responsabilidade individual – cada homem é responsável por sua conduta e nada tem a ver com as condutas alheias – que inaugura o “cada um por si”, ideologia corrente nas sociedades divididas e estratificadas em classes sociais antagônicas.

O que profetas como Jeremias e Ezequiel fizeram foi reconhecer que a sociedade de sua época não funcionava mais segundo os moldes “democráticos” tribais, onde tudo era comum ou coletivo, onde as ações, más ou boas, influenciavam no conjunto da sociedade e da nação.

A sociedade monárquica estava altamente estratificada em classes sociais. E apoiavam-se os responsáveis pelas desgraças, a que uma política desastrosa levara a nação, em uma noção arcaica e desatualizada, como meio fácil de se eximirem dos crimes praticados. No final das contas, o oprimido é que se sentia culpado pelos crimes do opressor.

Isto servia também à classe dominante para manter as estruturas faustosas e falsas do culto nacional, usado há muito como meio oficial de controle da divindade e como mascaramento piedoso, frente às camadas populares, das espoliações às quais a população estava submetida.

Portanto, ao afirmar a validade da responsabilidade individual, Jeremias e Ezequiel estão “puxando o tapete” ideológico pisado pela classe dominante de sua época. E não afirmando uma ética individualista e intimista e muito menos construindo um suporte ideológico religioso para as falcatruas das atuais classes dominantes.

 

3. O moralismo, irmão gêmeo do individualismo

Irmão gêmeo do individualismo, o moralismo é também uma consequência de nossa prisão idealista.

Quando as dimensões concretas da sociedade não são levadas em conta, as questões políticas sofrem uma redução de seu conteúdo, perdendo sua autonomia. São consideradas de maneira abstrata, conduzidas ao espaço da ética, restritivamente, e resolvidas no moralismo.

Clodovis Boff afirma: “Deste modo, a teologia tradicional, de um lado, não conseguiu tratar dos problemas políticos a não ser sob a forma de questões vinculadas à ética. De outro lado, a própria perspectiva ética, por causa de sua natureza abstrata, conduzia necessariamente a reflexão teológica ao moralismo”. E ainda: “Por não ter-se dado conta da consistência profana do Político e de sua possível significação teológica, a abordagem da ‘teologia social’ se satisfazia com uma transposição pura e simples da moral privada para o âmbito do Político”[6].

É uma típica solução moralista, por exemplo, afirmar que “a raiz de todos os males é o egoísmo”, deixando intocadas suas causas estruturais. Esta é uma maneira absolutamente incorreta de ler os profetas. Conhecemos demais as suas consequências.

 

4. Dualismo e espiritualismo

Um dos resultados mais desastrosos do idealismo é a fuga do real e a consequente construção mítica de um mundo totalmente dualista, onde se opõem espírito e matéria, alma e corpo, religioso e secular, sagrado e profano, história da salvação e história humana etc.

Para o idealismo de raiz grega, como dissemos acima, o espírito é superior e prevalece sobre a matéria. Os vínculos materiais devem assim ser quebrados para que o homem se realize.

Ora, como os homens só se relacionam entre si através de laços concretos, que são históricos, sociais, materiais, o espiritualismo nos conduz de volta ao isolamento individualista.

Acontece que a mundivisão profética não funciona segundo esquemas metafísicos, mas históricos: o ser das coisas resulta da história real das próprias coisas e “a consciência é consciência daquilo que acontece na história real”[7].

Os profetas não concebem o homem como uma alma encarnada (que é a nossa maneira de ver as coisas), mas como um corpo vivificado. Daí não admitirem duas histórias, uma sagrada, outra profana. Há uma só história, aquela que se constitui na própria revelação da presença de Iahweh em favor do seu povo. O Deus dos profetas não se dirige à “alma” do homem: dirige-se ao homem todo, com todos os componentes de sua materialidade.

 

5. A armadilha do romantismo

A leitura dos profetas, por si só, pode não ajudar muito. Apesar de fascinantes em seu engajamento em favor do povo, os profetas têm sérios limites. Atualizar a palavra profética não é tarefa fácil.

Como o discurso dos profetas é teológico – aliás, naquele momento histórico outro discurso seria impossível – eles tendem a ficar na aparência da estrutura social israelita e não conseguem atingir o seu núcleo estrutural, que é econômico.

Se suas projeções são generalizantes e utópicas é porque seu modelo é a passada sociedade tribal sem divisão acentuada de classes, seus instrumentos são as tradições populares da fé javista e sua autoridade é a força da palavra de Iahweh codificada nas relações sociais pré-estatais.

Gaston Bachelard (1884-1962)Como os profetas não possuem um instrumental teórico científico nem uma estratégia definida de mudança social, sua leitura precisa ser associada a uma teoria revolucionária moderna que nos sirva de mediação científica para o conhecimento da estrutura social. Porque, do contrário, cairemos noutra armadilha: a armadilha do romantismo.

O pensamento romântico tende a oferecer soluções saudosistas e passadistas para os problemas da atualidade. Se o mundo da monarquia israelita se apresenta como constante conflitividade, arrastando as pessoas num turbilhão de sofrimentos, sonha-se com a paz e harmonia da sociedade tribal pré-monárquica. Se o mundo capitalista urbano espolia e elimina os excluídos, não lhes permitindo ter acesso às imensas riquezas hoje produzidas, sonha-se com a tranquilidade e a solidariedade das sociedades rurais pré-capitalistas.

Historicamente, o pensamento romântico se manifestou fortemente no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, quando as contradições da nova ordem burguesa se aprofundaram. Por um lado, o romantismo foi uma reação à ordem burguesa que se instalou no poder após a Revolução Francesa; por outro lado, foi consequência do próprio processo revolucionário que tomou toda a Europa nesta época.

O romantismo apresenta, porém, sua crítica da racionalidade burguesa como crítica de toda a racionalidade. Toma contradições históricas limitadas e situadas por impossibilidades definitivas. Defende que o homem é mais do que a razão. O homem é sentimento, é imaginação, é interioridade. A fé na tradição deve corrigir os excessos da razão. É preciso reabilitar a Idade Média, pregam alguns românticos.

O romantismo tende a se resolver em termos de religião, por causa de seu enorme impulso em direção à unidade que a ordem burguesa percebia como fragmentada. O romantismo encaminha-se para a formação de uma nova cristandade inspirada na Idade Média[8].

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[1]. O filósofo francês da ciência Gaston Bachelard (1884-1962) trabalhou de maneira muito interessante a questão dos obstáculos epistemológicos, noção na qual me inspirei para falar de obstáculos hermenêuticos. Bachelard explica: “Quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência, logo se chega à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado. E não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos. É aí que mostraremos causas de estagnação e até de regressão, detectaremos causas de inércia às quais daremos o nome de obstáculos epistemológicos. O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é ‘o que se poderia achar’ mas é sempre o que se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. Ao retomar um passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico arrependimento intelectual. No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos”. Este texto de Bachelard está em sua obra La formation de l’esprit scientifique: contribution à une psychanalyse de la connaissance objective. 15. ed. Paris: Vrin, 2000 [1. ed.: 1938], mas pode ser lido, em português, em BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003, p. 17.

[2]. BOTTOMORE, T. (ed.) Dicionário do pensamento marxista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, verbete Idealismo

[3]. O mito da caverna está no início do livro sétimo de “A República” de Platão. Cf. PLATÃO, Diálogos, vols. VI-VII: A República. Belém: Editora da Universidade Federal do Pará, 1976 [3. ed. rev.: 2000], p. 285-289.

[4]. Na Bíblia a palavra hebraica original que foi traduzida pelo grego profêtês, dando, em português, profeta, é nâbhî’. E nâbhî’ significa aquele que anuncia ou aquele que proclama a mensagem de outrem. O profeta, no sentido bíblico original, é, portanto, um arauto, um porta-voz de alguém que lhe confia uma mensagem, que autoriza sua comunicação e garante sua veracidade. Assim em Is 6,8-9a;Jr 1,7;Ez 2,3a.4b.7a. Cf. DA SILVA, A. J. A voz necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998, p. 11-12. Livro revisado em 2011 e disponível para download.

[5]. GAMELEIRA SOARES, S. A. Reler os profetas. Notas sobre a releitura da profecia bíblica. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 4, p. 14, 3. ed. 1987.

[6]. BOFF, C. Teologia e Prática: Teologia do Político e suas mediações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 48-49.

[7]. SILVA GOTAY, S. O pensamento cristão revolucionário na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulus, 1985, p. 67.

[8]. Cf. BORNHEIM, G. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 75-112.


SOTER 2001: práticas sociais e pensar teológico

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SOTER 2001: práticas sociais, modelos de sociedade e pensar teológico

 

leitura: 3 min

A proposta

No Boletim n. 33, distribuído aos sócios em abril de 2001, se diz que “no Congresso 2001, a SOTER se une em diálogo com o movimento social: político, econômico, movimentos de gênero, de cultura, movimento pela terra, pelo pão. Práticas sociais, modelos de sociedade e pensar teológico, uma questão de fidelidade criativa. A assembleia de 2000 pediu uma revisitação crítica do compromisso cristão com movimentos de transformação social no passado latino-americano e brasileiro. Pediu também uma aproximação de conhecimento e diálogo com movimentos sociais específicos e significativos em curso. E pediu o exercício ou ao menos alguns critérios para pensar de novo e melhor teologicamente a realidade social em movimento. Na programação que aqui apresentamos estão contemplados estes três momentos. Esperamos nos encontrar em Belo Horizonte”.

 

O programa

16.07.2001
Abertura e Instalação do Congresso
Análise de Conjuntura – José Comblin

17.07.2001
Revisão do compromisso cristão com o socialismo no passado da América Latina – Xavier Gorostiaga
Modelos de Sociedade, administração política e questões éticas – Paul Singer
Painel: Revisão da militância cristã no Brasil – Ivo Lesbaupin, Francisco Whitaker, Benedito Ferraro
Comunicações
Reunião por grupos de interesse

18.07.2001
Modelo de sociedade, práticas sociais e questões éticas:
a) A partir do MST – João Pedro Stédile
b) A partir do Movimento Negro – M. Aparecida da Silva (Geledés – SP)
c) A partir de movimentos feministas – Almira Rodrigues (Cfemea)
Painel: Possibilidades de nova militância cristã – Manfredo de Oliveira, Jung Mo Sung, Paulo Fernando C. de Andrade, Armando Lisboa
Comunicações
Reuniões dos Regionais para a Assembleia

19.07.2001
Práticas Sociais e pensar teológico – Jon Sobrino
Mesa Redonda – Jon Sobrino, Carlos Palacio, Márcio F. dos Anjos, Nilo Agostini
Painel: Agenda para a Teologia – Júlio Lancelotti, Maria Clara Bingemer, Rui Josgrilberg
Grupos e debates – Plenária
Celebração
Confraternização

20.07.2001
Assembleia eletiva da SOTER
Encerramento

 

O congresso

O Congresso da SOTER 2001 contou com a participação de 135 teólogos/as e cientistas da religião, dos quais 90 são sócios da SOTER, sendo os outros de diversos países das Américas e da Europa e 23 assessores.

Avaliando o Congresso, “diversos participantes julgaram que sofremos de fragmentação, que não sabemos articular bem as análises das práticas sociais e o momento teológico”, diz o Boletim n. 35.  A teologia estaria, neste momento, sofrendo de “dupla orfandade”: orfandade em relação aos movimentos sociais e orfandade em relação à Igreja, o que a levaria  a cair “na tentação ora de tomar linguagem emprestada de outras áreas de conhecimento, ora de permanecer numa linguagem intra-eclesiástica e docética, desarticulada não só da interdisciplinaridade mas sobretudo da realidade social”. Segundo o Boletim, “esta foi uma tremenda sensação de uma porção de participantes, o que dá muito a pensar. Teria se tornado a teologia um ‘verniz’ de luxo, dispensável tanto para a sociedade como para a Igreja?”.

Mas há vários pontos positivos na avaliação dos participantes: entre outros aspectos, o testemunho dos mártires, por exemplo, “que interpelam a sociedade, as Igrejas e a teologia, pois deram a sua vida nessa relação entre fé e vida em sociedades concretas, injustas e violentas”. Jon Sobrino, que concentrou sua conferência no ‘encarregar-se da realidade’, insistiu “na responsabilidade cristã pela justiça social a ponto de amar até o fim, conforme o exemplo dos mártires ‘jesuânicos'”.

O livro, organizado por L. C. Susin, Terra Prometida: Movimento Social, Engajamento Cristão e Teologia, Petrópolis, Vozes/SOTER, 2001, 379 p., traz os textos de conferências e painéis do Congresso.

Artigos


SOTER 2000: Teologia latino-americana – prospectivas

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SOTER 2000: Teologia latino-americana – prospectivas

 

leitura: 19 min

1. O Congresso

Realizou-se em Belo Horizonte, nos dias 24-28 de julho de 2000, o Congresso da SOTER, Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. O tema, neste ano de balanços, foi Teologia na América Latina: Prospectivas. Do Congresso, que contou, pela primeira vez, com a participação de vários países da América Latina, participaram 234 teólogos, teólogas e cientistas da religião. Destes, 77 vieram da Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru e Uruguai, além de convidados da Áustria, Canadá, Espanha, Estados Unidos e Itália.

Alguns nomes de destaque na Teologia Latino-Americana que se fizeram presentes: Leonardo Boff, Clodovis Boff, Gustavo Gutiérrez (Peru), José Comblin, João Batista Libânio, Antônio Moser, Benedito Ferraro, Marcelo Barros, Alberto Antoniazzi, Faustino Teixeira,  Pablo Richard (Costa Rica), Ronaldo Muñoz (Chile), Sergio Silva Gatica (Chile), Alberto Parra (Colômbia), José Duque (Costa Rica) e tantos outros. Sem nos esquecermos da presença do Vice-Presidente da Sociedade Europeia de Teologia e do Secretário da Sociedade Católica de Teologia dos Estados Unidos, ou do polêmico teólogo italiano Giulio Girardi, nem do fato inédito da participação e filiação à SOTER de Dom Emanuel Messias de Oliveira, Mestre em Bíblia, bispo da Diocese de Guanhães, MG [de 1998-2011 e, a partir de 2011, bispo de Caratinga, MG].

O Congresso organizou-se em torno de poucas palestras centrais, muitos trabalhos em grupo, painéis e comunicações científicas.

As palestras foram proferidas por Clodovis Boff, Teologia e Teologias: Método; Gustavo Gutiérrez, Teologia e Sociedade; Leonardo Boff, Ecoteologia; João Batista Libânio, Teologia e Religião e um Grupo de Mulheres, Teologias Feministas.

Duas publicações, uma em espanhol, outra em português, veiculam as principais contribuições do Congresso. O livro em português, publicado pelas Paulinas no final de 2000, e organizado por Luis Carlos Susin,  é A Sarça Ardente: Teologia na América Latina: Prospectivas.

Sobre as Comunicações Científicas, como exemplo, eis alguns dos temas apresentados: Douglas A. Rocha Pinheiro, A manifestação do arquétipo da deusa; Giulio Girardi, Insurgencia de los pueblos indígenas y negros como nuevos sujetos; Armando de Melo Lisboa, Liderança? Ibraim Vitor de Oliveira, Do niilismo axiológico e ontológico à mística; Uene José Gomes, As orientações pedagógicas nos documentos de Medellín, Puebla e Santo Domingo; Luis G. del Valle, Teología narrativa ante los nuevos sujetos o actores teológicos.

Conforme o Boletim n. 31 da SOTER, das avaliações pré-programadas pedidas pela organização do Congresso, 64 foram respondidas com o seguinte resultado: 62% considerou o Congresso muito bom, 17% ótimo, 14% bom, 2% regular. Abstenções: 5%. Ainda conforme o Boletim citado, “mais da metade sublinhou como nota mais positiva sua dimensão latino-americana. Em segundo lugar, as conferências proferidas e a presença dos ‘pais da teologia da libertação’, e alguns acentuaram a presença de jovens teólogos. Em terceiro lugar, foi elogiada a organização e a temática, sobretudo a dinâmica de grupos de trabalho e painéis. Alguns registraram o bom nível de reflexão, a ajuda prestada pelos assessores, o nível ecumênico, a intervenção de mulheres, o espaço e as perspectivas de teologias interativas”. Sinal do sucesso do Congresso da SOTER são as avaliações que pedem a realização de congressos desse nível, com participação latino-americana, entre três e cinco anos. No Editorial do Boletim n. 31, a direção da SOTER considerou o Congresso “uma presença expressiva, que significou um verdadeiro ‘encontro’ de diferentes partes, sobretudo um encontro de gerações e de sabedorias”.

 

2. O texto preparatório

Como texto preparatório do Congresso, foi publicado o livro organizado pelo Presidente da SOTER Luiz Carlos Susin, O mar se abriu: trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: SOTER/Loyola, 2000, 294 p. Vinte quatro teólogos latino-americanos e europeus participam desta obra, com textos curtos e muito interessantes. Em português e espanhol  ali podem ser lidos, entre outros, Clodovis Boff, Hugo Assmann, João Batista Libânio, Johann Baptist Metz, Jon Sobrino, Jorge Pixley, Carlos Palácio, José Comblin, José Gonsález Faus, Juan Carlos Scannone, Jürgen Moltmann, Leonardo Boff, Pablo Richard, Sergio Silva Gatica, Christian Duquoc, Diego Irarrazaval…

Na Apresentação de O mar se abriu, Luiz Carlos Susin, Presidente da SOTER, falando da organização deste Congresso em nível latino-americano pergunta: “Quais são as perspectivas [para o novo milênio]? Qual a agenda de trabalho para a teologia e para as ciências da religião? Com quais possibilidades, energias, recursos, métodos, poderemos contar? E, sobretudo, para que teologia?”[1]

E continua Susin: “Este período [os últimos trinta anos] está marcado, como assinalam quase todos os autores deste livro, por dois fatos maiores: pelo acontecimento da Conferência de Medellín como um novo ‘gênero literário’ no magistério dos bispos, um marco pós-conciliar de um novo gênero de eclesiologia e de teologia; e por uma teologia que começou a adquirir rosto latino-americano e que se chamou, em seu modo mais marcante, Teologia da Libertação. Nesse tempo, com esses fortes ventos, também em teologia ‘o mar se abriu’: é o começo histórico de um tempo ainda inacabado, ainda em êxodo, ainda em dores de parto, cada vez mais criativo, diversificado, com energias e cores locais”.[2]

Para concluir: “Pedimos [aos teólogos] que sintetizassem sua trajetória, sublinhando transformações, resultados, carências e mesmo erros e que concluíssem com os novos desafios que a realidade vai impondo à agenda da teologia. Mas sugerimos que o texto poderia ser marcadamente biográfico…”[3].

Acredito que esta obra pode ser de grande valia tanto para os jovens teólogos como para os atuais estudantes de teologia, porque, além de outros méritos, traça a trajetória dos principais conceitos da Teologia da Libertação, coisa útil para se fazer memória e compreender o ponto a que chegamos.

 

3. Abertura e painel: balanço do balanço

O Congresso teve início na noite do dia 24, com uma abertura, na qual Luiz Carlos Susin, presidente da SOTER, falou do sentido do evento. Em seguida, o painel presidido por Benedito Ferraro, da FTCR da PUC-Campinas, fez um balanço do balanço. Participaram deste balanço, Ênio Müller, luterano de São Leopoldo, Sergio Torres, do Chile, José Duque, metodista da Costa Rica e Giulio Girardi, italiano.

Cada teólogo destacou alguns aspectos deste momento histórico em que vive a Teologia da Libertação (=TdL). Como Sergio Torres que disse estar superada a crise da TdL e propôs 6 condições para o prosseguimento da reflexão: reafirmar a opção pelos pobres; atualizar o método; desenvolver a teologia de gênero e as teologias interativas; incorporar a simbologia dos pobres; cuidar da inculturação da fé e do diálogo com outras religiões e, finalmente, dialogar com a nova cultura emergente.

Giulio Girardi, por sua vez, tratou da relação da TdL com as revoluções socialistas da América Central, especialmente a revolução sandinista, salientando a angústia e o trauma de sua derrota. Criticou severamente a capitulação das esquerdas no mundo todo e sua acomodação. As pessoas estão sofrendo com a vitória neoliberal.

Ênio Müller, mais otimista, falou da identidade da TdL e salientou que o próprio Congresso que agora se iniciava mostra sua vitalidade. Mudanças ocorreram, mas elas são necessárias, e temos nos esforçado em acompanhá-las.

Uma dinâmica típica dos paineis: após as falas de cada participante, seguia-se um diálogo entre os painelistas e um debate com o plenário. O deste primeiro dia já prometia muito.

 

4. Teologia, método, sociedade: Clodovis Boff e Gustavo Gutiérrez

No dia 25, o Congresso começou com a palestra de Clodovis Boff, Teologia e Teologias: Método e prosseguiu com a de Gustavo Gutiérrez sobre Teologia e Sociedade, o que ocupou toda a manhã. À tarde foi ocupada por dois blocos temáticos, Teologias e Método e Teologia e Sociedade Latino-Americana, num total de 8 grupos. Comunicações foram feitas no final da tarde e, à noite, a apresentação e o debate, em plenário, do tema Teologias e Método. Falemos das palestras.

Clodovis trabalhou o tema da Fé como princípio e fundamento da Teologia, confrontando este princípio com a exclusão e o sentido. Para Clodovis, a Fé é arqué, “princípio”, de onde arranca, e permanece ancorada, a Teologia. A Fé determina o método e o método ajuda a determinar a Fé. Dessa colocação surgem duas consequências epistemológicas: o saber teológico é um saber de uma inteligência convertida e a teologia é um saber espiritual.

Confrontando esta tese de fundo com a exclusão, Clodovis colocou, em seguida, a fé, vista como arqué, como fundamento da opção pelos pobres. E, confrontada com a questão do sentido, esta tese obriga a Teologia a voltar às suas fontes, neste momento em que a busca de sentido é intensa.

Para Clodovis, finalmente, os jovens teólogos precisam ter três cuidados epistemológicos ao fazer Teologia no século XXI: que a Teologia se faça sob a referência da Fé; que a Teologia mantenha sua vitalidade espiritual e que a Teologia seja sabedoria, casando razão e coração.

Gutiérrez, por sua vez, tomou outro rumo. Começou lembrando os mártires latino-americanos e a difícil situação da América Latina durante as ditaduras militares, chamando a atenção dos congressistas para três pontos:

1) A complexidade do mundo do pobre: “pobre” é uma categoria socioeconômica, bíblica, cultural, de gênero, cor… mas pobreza é, antes de qualquer coisa, “morrer no começo”: pobreza é morte, fome, doença, mortalidade infantil, catástrofes da natureza, como ‘el Niño’ e os pobres no Peru, enfim, é a negação do dom da vida.

2) O esforço para silenciar o mundo do pobre: o engano da globalização que alarga a brecha entre ricos e pobres (países e pessoas), o fenômeno da exclusão, a imposição do “pensamento único”, que nivela para calar o pobre, a economia colocada acima da ética, dispensando a política, a pregação da “morte das ideologias” como tentativa de calar as vozes e as construções do passado… estes foram alguns dos elementos críticos colocados por um dos principais “pais” da TdL. Mas Gutiérrez ainda vê esperança na crítica moderna ao “pensamento único” dentro do próprio Ocidente, na crítica bíblica à idolatria e na crítica econômica ao neoliberalismo.

3) A espiritualidade: terreno da esperança, sendo fundamental a construção de uma hermenêutica da esperança, pois a razão fundamental da opção preferencial pelos pobres é o amor gratuito de Deus.

 

5. Ecoteologia: o paradigma proposto por Leonardo Boff

O dia 26 começou com a palestra de Leonardo Boff trabalhando o desafio que a nova cosmologia lança à Teologia. Leonardo logo alertou os congressistas de que a opção pelos pobres em favor da libertação e da vida deve incluir “gaia”, a Terra como organismo vivo. Tal olhar sobre a Terra põe a grande questão: qual é o futuro do planeta Terra e da humanidade?

Se não questionarmos o “pensamento único” neoliberal, podemos ter o destino dos dinossauros. Como a Teologia pode pensar isto para evitar o desastre que se anuncia? Pois, diante das análises nada otimistas de cientistas e personalidades sensíveis no mundo todo acerca da catástrofe que estamos construindo, a Teologia tem hoje que nos ajudar a salvar a nossa casa, o planeta. Devemos passar do paradigma da violência contra a natureza para o paradigma da convivência com a totalidade: afinal, nós, os seres humanos, somos Terra que anda, pensa, transforma.

Depois de falar da cosmologia como o conjunto dos novos saberes que vão da física às novas antropologias que vê, à maneira de Werner Heisenberg e Niels Bohr, o mundo como relação, Leonardo fez breve história do universo como uma grande peça em cinco atos, para concluir que precisamos superar todo tipo de antropocentrismo, pois nascemos apenas no último minuto do “ano cósmico”. A vida é um fenômeno quântico, que surge da dialética caos e cosmos. Como leitura esclarecedora recomendou Carl Sagan, Um Pálido Ponto Azul, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Teologicamente, Leonardo falou da Trindade como jogo de relações e do Espírito como a força do Universo, uma força em ação que apela para uma espiritualidade cósmica: abraçando o Universo, estamos abraçando Deus. Lembrou, nesse sentido, aquela que classificou como a grande frase do Papa João Paulo II em Puebla: “A essência de Deus não é solidão, é comunhão”.

 

6. Teologias feministas e a relação teologia-religião

Ainda na manhã do dia 26, quatro teólogas – Bárbara (Rio de Janeiro), Claudete (São Paulo) Luiza Tomita (São Paulo), Lúcia Weiler (Rio Grande do Sul) e o teólogo peruano Diego Irarrazaval – falaram sobre vários aspectos das Teologias Feministas e de sua contribuição para a Teologia da Libertação. Tais como os pressupostos teológicos de uma TdL feminista (Tomita), os critérios hermenêuticos na leitura feminista da Bíblia, especialmente no CEBI (Lúcia), e as várias propostas hoje existentes para a teologia de gênero (Diego).

Na tarde deste mesmo dia, a última grande palestra foi feita pelo teólogo jesuíta, João Batista Libânio, de Belo Horizonte. Libânio tratou do tema Teologia e Religião. Falou de três aspectos: da autonomia dos conceitos, da relação entre o teológico e o religioso e da TdL e Religião. Salientou a distinção e tensão existente entre os dois conceitos e concluiu com um apelo à TdL para que seja crítica em relação às experiências religiosas portadoras de uma “teologia fraca”, como, por exemplo, a RCC.

 

7. Painéis e mapeamento teológico da América Latina

A quinta-feira, dia 27 de julho, foi tomada pelos Painéis dos Grupos que haviam debatido os muitos temas nos dois dias anteriores e por um Mapeamento Teológico da América Latina, feito por países e, no caso do Brasil, por regiões.

Como resultado desse dia, em que muitas ideias surgiram e foram debatidas, gostaria de observar apenas o seguinte: todo o debate deu-me a impressão de uma Teologia que corre o risco de girar em torno de si mesma, de seus conceitos e de seus próprios fundamentos. Estão ausentes, ou pelo menos fracamente presentes, as mediações socioantropológicas, a hermenêutica bíblica e a perspectiva histórica dos conceitos. As categorias genéricas “Deus”, “Fé” e “Religião”, por exemplo, assumiram o primeiro plano nos discursos. Por outro lado, tudo isto não deixa de ser um “caldeirão de ideias” importantíssimo.

Quanto ao mapeamento das escolas, recursos e produção teológica latino-americana, observa-se nítida superioridade, pelo menos numérica, do Estado de São Paulo sobre qualquer outra região brasileira e sobre os outros países latino-americanos.

 

8. Prospectivas da teologia na América Latina: o painel final

Na última manhã do Congresso, dia 28, foi feito um painel sobre as Prospectivas da Teologia na América Latina, com a participação de quatro teólogos e uma teóloga: Alberto Parra (Colômbia), Márcio Fabri (São Paulo), Silvana Suaiden (Campinas), José Comblin (Paraíba) e Sergio Silva (Chile). Ao final deste painel sentimos que agora é que estávamos preparados para começar o Congresso. O que não deixa de ser positivo: o que foi debatido durante a semana fomentou ideias e traçou rumos.

Alberto Parra, jesuíta colombiano, chamou a atenção dos congressistas para três pontos: para o lugar primordial da tradição na reflexão teológica da América Latina, tradição que nos abre os horizontes para o futuro; para o método da TdL, que é o que a caracteriza; para a enganosa propaganda neoliberal que procura desacreditar os projetos de libertação, quando se percebe, pelo contrário, que muitos estão construindo o futuro nas suas várias áreas profissionais. Eles e elas são sacramentos de libertação de “Nuestra América”, concluiu.

Márcio Fabri, redentorista de São Paulo e ex-presidente da SOTER, apontou quatro pontos: a esperança como horizonte permanece mais do que viva, embora possamos perceber certo sentimento de impotência diante das exclusões; o pobre como lugar teológico permanece, pois percebemos que houve clara resistência em esconder o rosto do pobre; a questão metodológica mostra que é preciso valorizar o “arqué” (fundamento) e o “axé” (vida), pois ainda estamos enfrentando o desafio de construir maior precisão metodológica na TdL; é necessário maior investimento financeiro para formar uma comunidade científica teológica mais consistente, especialmente entre os leigos.

A intervenção de Silvana Suaiden, professora de Bíblia da FTCR da PUC-Campinas, refletiu a preocupação do grupo de mulheres, quando salientou que a questão do gênero cria tensões positivas: há um desconforto dos homens quando as mulheres falam, há desconfiança em relação ao jovem e à mulher, mas percebe-se uma expansão e transformação do universo teológico, tornando a teologia grávida de sentidos.

O conhecido teólogo belga José Comblin, residente no Brasil há muitos anos e um dos maiores conhecedores dos problemas teológicos e eclesiais da América Latina, fez, em minha opinião, a mais contundente e interessante análise do Congresso da SOTER.

Para Comblin é preciso resgatar a noção de Teologia como reflexão crítica sobre os discursos religiosos, pois, no Congresso, Teologia foi muito usada no sentido de “discurso religioso”. E mais: não se fez uma análise crítica da relação do sandinismo com a TdL; não se ouviu aqui a palavra “socialismo”; parece também que se perdeu de vista o projeto inicial da TdL que era o de formar uma nova sociedade. Será que os teólogos não estão sucumbindo ao capitalismo norte-americano, típico em seu individualismo e ausente na construção de projetos de sociedade? Disse Comblin:

“Com a mudança do sentido da palavra teologia, corre-se o perigo de ver desaparecer a reflexão crítica sobre a prática cristã. Tem-se a impressão de que há uma penetração insensível ou inconsciente das preocupações, do modo de pensar e dos modos de expressão da cultura norte-americana atual, toda imbuída de individualismo. No individualismo extremo dos Estados Unidos a sociedade não é problema. O mercado resolve todos os problemas sociais. Na experiência imediata, o que há, e o que deve haver, é a luta de todos para sobreviver, vencer e permanecer num lugar de destaque. Por isso, o discurso que prevalece, é o discurso de afirmação de identidade. Cada grupo humano, desde que tenha uma pequena diferença, luta para defender a sua identidade e para que esta seja respeitada pelos outros. Daí uma imensa diversidade de discursos paralelos que nunca se encontram, e lutam para conquistar mais espaço. São, essencialmente, discursos de defesa de direitos. Não é em vão que há 2 milhões de advogados nos Estados Unidos. Cada um e cada grupo devem permanentemente defender os seus direitos. A vida social fica dominada por essa necessidade de salvar a própria identidade, a identidade do grupo.

O discurso de identidade é também religioso. Cada grupo quer fazer a sua teologia e defender os direitos da sua teologia no mercado de todos os discursos teológicos, no grande mercado religioso.

Diante de tal multiplicidade de discursos a sociedade real desaparece porque o mercado não cria sociedade, não cria solidariedade, não cria colaboração a serviço do bem comum. O único bem comum é o próprio mercado.

Ora, o desafio assumido pela teologia da libertação foi o desafio de refletir sobre o movimento de mudança da sociedade. Havia que ajudar o povo cristão a construir uma nova sociedade. Dada a terrível herança da sociedade latino-americana, o desafio era criar uma sociedade onde ainda não havia verdadeira sociedade. Tratava-se de criar laços sociais fundados em compromissos mútuos”[4].

Por outro lado, observou Comblin, a espiritualidade apareceu muito no Congresso, como se isto fosse a função do projeto teológico. Entretanto, construir a espiritualidade não é a função do teólogo, que tem como dever examinar e julgar, à luz do evangelho, as espiritualidades existentes. Em suas palavras:

“As espiritualidades respondem à necessidade de desenvolver o aspecto subjetivo da fé, como experiência vivida e consciente. Hoje em dia, com o desenvolvimento extremo da subjetividade e a ruína de todas as instituições religiosas, a espiritualidade torna-se quase a totalidade da religião e da fé. Nasce uma abundância de espiritualidades. Ao lado das espiritualidades cristãs surgem centenas de espiritualidades de outras religiões que muitas vezes se misturam com espiritualidades cristãs.

Tudo isso é sinal dos tempos. Diante de uma imensa procura de espiritualidade, os cristãos devem valorizar as suas próprias, criar novas expressões e transmiti-las ao mundo de hoje.

No entanto precisam levar em conta que é pouco provável que um teólogo ou uma teóloga possa criar uma espiritualidade. Os dons espirituais são diferentes. A sensibilidade, a imaginação, os dons de comunicação, a experiência autêntica de realidades religiosas não são necessariamente características dos teólogos. Inclusive analfabetos podem fundar uma espiritualidade. Há pessoas dotadas de uma intuição religiosa muito forte, mesmo sem nenhum conhecimento teológico, que têm o dom de saber mostrar o caminho a outros.

Os teólogos ou as teólogas não podem pensar que têm a responsabilidade de criar uma espiritualidade. A sua tarefa consiste em refletir criticamente sobre as espiritualidades julgando-as a partir da Bíblia lida e vivida por 2000 anos de vida cristã. Pois, o teólogo é a pessoa que deve aprender a Bíblia e a história da leitura da Bíblia, o que constitui os critérios que permitem dar uma apreciação sobre o que acontece hoje em dia.

O teólogo e a teóloga devem viver uma espiritualidade, mas esta não será criada por eles e sim recebida de outras pessoas dotadas de dons espirituais ainda que não tenham formação teológica. De um professor de teologia espera-se que ensine teologia e não que ensine uma espiritualidade, ainda que seja recomendável que possa mostrar que ele ou ela também vivem uma espiritualidade recebida de outros. É bom ele ou ela ter uma espiritualidade, mas não é o que se espera dele ou dela porque há outras pessoas que podem fazer isso muito melhor. As faculdades e escolas de teologia não preparam de modo algum para produzir uma espiritualidade. Há outros cristãos que o fazem e o fazem muito bem. Não aprenderam numa escola e sim na vida”[5].

A última intervenção, de Sergio Silva Gatica, da PUC de Santiago do Chile, apontou alguns desafios que se colocam hoje à TdL, como: teremos que pensar mais profundamente a questão da sensibilidade coletiva, pois estas sensibilidades marcam as várias características das teologias apresentadas no Congresso. Por outro lado, a criticidade da Teologia é necessária e tem que ser conjugada com estas sensibilidades, sem com elas se confundir. Mas, para isso, é preciso que os latino-americanos escutem mais seus colegas de continente, pois ainda somos muito voltados para a Europa.

 

Conclusão

Concluiu-se o evento com uma reunião dos sócios da SOTER para definir o Congresso de 2001. Este será realizado em Belo Horizonte, como de costume, de 16 a 20 de julho de 2001, ocasião em que ocorrerá também uma Assembleia para eleição da nova diretoria da SOTER. Foi sugerido um Congresso com cerca de 120 participantes, com jovens teólogos encarregados das palestras e muito espaço para o debate.

Os temas sugeridos para o próximo Congresso, dos quais a Diretoria escolherá um, foram:

. Reflexão teológica sobre as novas práticas sociais no Brasil
. Teologia da Terra
. Balanço do Cristianismo
. Ser Igreja no Novo Milênio
. A Questão Indígena.

Artigos


[1]. SUSIN, L. C. (org.) O mar se abriu: trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: SOTER/Loyola, 2000, p. 7.

[2]. Idem, ibidem, p. 7-8.

[3]. Idem, ibidem, p. 8.

[4]. COMBLIN, J. A teologia na presente perspectiva.

[5]. Idem, ibidem.


SOTER ’99: Um olhar interdisciplinar sobre o Universo

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SOTER ’99: Mysterium Creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo

 

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1. O Congresso

O Congresso da SOTER, Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, trabalhando sobre o tema Mysterium Creationis. Um Olhar Interdisciplinar sobre o Universo foi realizado com sucesso em Cachoeira do Campo, MG, de 5 a 9 de julho de 1999. Cerca de 120 teólogos, teólogas, cientistas da religião e áreas afins estiveram presentes. Da FTCR da PUC-Campinas participaram os professores Paulo Sérgio Gonçalves, Sávio Carlos Desan Scopinho, José Arlindo de Nadai, Benedito Ferraro, Silvana Suaiden, Márcio Roberto Pereira Tangerino, Izalene Tiene, Adoniran Possan, Antonio Sagrado Bogaz, Márcio Couto e Airton José da Silva.

Além das palestras e debates em plenário, que ocuparam as manhãs e as tardes, ocorreram comunicações científicas, cujo objetivo foi partilhar as pesquisas recentes feitas pelos teólogos e cientistas da religião presentes no Congresso. Eis, como ilustração, alguns dos temas apresentados: “Brasil 500 anos: memória e teologia”, “Emergência duma nova concepção da missão evangelizadora, a partir duma experiência de convivência fraterna”, “Bíblia, mito, ciência e literatura: abordagem interdisciplinar da história das origens em Gênesis 1-11”, “Imaginário religioso na cidade de São Paulo: as devoções católicas”.

As palestras, que representam o conteúdo mais denso do Congresso, foram publicadas no livro organizado por SUSIN, L. C. Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas/SOTER, 1999, 326 p. O livro ganhou o prêmio Jabuti 2000 na categoria “Religião”. Uma resenha da obra pode ser lida na REB, Petrópolis, n. 244, 2001, feita por Antônio Alves de Melo.

Um encontro por Áreas de Especialidade – Ciências e Línguas Bíblicas, Teologia Fundamental, Teologia Dogmática, Teologia Moral, História da Igreja, Filosofia, Ciências da Religião etc. – foi realizado na 3a noite do Congresso, onde cada participante colocou em comum, para seus colegas, suas atividades, e onde se debateu a proposta do novo currículo de Teologia, recentemente enviada pela CNBB aos Institutos e Faculdades de Teologia de todo o país para estudo, com vistas à elaboração de Normas para o estudo da Teologia no Brasil.

Para o Congresso do ano 2000, a SOTER optou por fazer um balanço da teologia latino-americana, com o tema: Teologia e Ciências da Religião na América Latina: Balanços e Perspectivas. O Congresso será realizado em Belo Horizonte, MG, nos dias 24-28 de julho de 2000, com a participação de outras associações teológicas da América Latina.

Propôs-se um Congresso com poucas conferências – três ou quatro apenas, mas feitas pelos mais importantes teólogos da América Latina, como Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Clodovis Boff e João Batista Libânio – e muitas oficinas, organizadas com assessoria prévia para se chegar a painéis e a um “Relatório 2000” da teologia latino-americana. Dezoito temas foram elencados, alguns eixos propostos e discutiu-se sobre a abrangência e pertinência de tantos e tais temas.

 

2. O desafio proposto pelo tema

Conforme o Editorial do Boletim n. 26 da SOTER[1], ainda anunciando o Congresso de ’99, “Novos Paradigmas foi o título da complexa temática com que a SOTER se ocupou no Congresso de 1996. Foi um exame de diferentes áreas que apontam para modelos de conhecimento e cosmovisões novas. Se as convergências são impressionantes, as novas interrogações e os problemas novos são inquietantes. Se o primeiro momento consistiu numa abordagem mais formal, agora somos convidados para um exercício concreto, para um “estudo de caso”, ainda que seja um caso extremamente abrangente: a criação”.

Colocado o tema, uma série de questões emergem: “Pode-se casar a categoria teológica de ‘criação’ com a atual imagem do universo, com a evolução da vida? Há uma intencionalidade e uma promessa inscritas na realidade que possam ser compreendidas desde diferentes leituras? Ou permanece a teologia isolada em suas afirmações sobre o cosmos e sobre a vida? Como casar liberdade e organização, cultura e biologia, ou então aclarar antinomias como acaso, necessidade ou destinação? Quais as consequências para a antropologia, para a soteriologia, para a ética e até mesmo para a eclesiologia?”

E conclui o editorial: “Urge um exercício, um diálogo, uma abertura interdisciplinar. Vamos nos encontrar com autoridades nas áreas de Física, de Genética, em diferentes tradições religiosas. Os novos paradigmas e a interdisciplinaridade nos ajudam, certamente, a ver as questões desde horizontes muito amplos. Há quem suspeite de que se trata do global pulverizando o local, as estrelas nos distraindo do cotidiano, a imensidão e a complexidade paralisando nossas lutas. Ou seria uma nova contextualização e, portanto, uma nova localização e nova fecundidade de nossas lutas?”

E na Apresentação do volume que reúne as conferências, insiste Luiz Carlos Susin, Presidente da SOTER, de que há hoje uma exigência de ‘nova aliança’ entre os saberes, na expressão de Ilya Prigogine, “para um novo salto de patamar em nosso conhecimento e sobretudo em nossa forma de conhecimento e de aprendizagem de conhecimentos. Partindo da multidisciplinaridade, mas esforçando-se para chegar a uma verdadeira transdiciplinaridade, com a exigência de novos campos epistemológicos para dar conta da complexidade não só da realidade – que sempre foi complexa – mas de nossos conhecimentos da realidade, de processos e de redes de informações e aprendizagem, hoje a interdisciplinaridade é um exercício e um desafio do qual também a teologia não pode absolutamente se esquivar”[2].

 

3. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo

No dia 5 à noite, após a Abertura feita pelo Presidente da SOTER Luiz Carlos Susin, o mestre José Comblin fez uma Análise de Conjuntura, traçando um panorama bastante sombrio dos dias em que vivemos, quer seja pela política de globalização, que é antes de tudo a circulação dos capitais norte-americanos, quer seja pela posição oficial da Igreja romana tal qual aparece no documento Ecclesia in America – onde 75% das propostas dos bispos são retomadas, mas as mais importantes desaparecem, especialmente a “opção preferencial pelos pobres” que se torna “amor preferencial pelos pobres” – ou pela posição da Igreja latino-americana que hoje se preocupa mais com sua visibilidade do que com qualquer outra questão.

Nos três dias seguintes, 6, 7 e 8 de julho, os conferencistas abordaram o tema dentro da seguinte lógica: no primeiro dia, a criação foi enfocada sob o ponto de vista da epistemologia e do ponto de vista científico, com falas de teólogos, filósofos, físicos e geneticistas; no segundo dia, três tradições sobre a criação – budista, judaica e cristã – foram o assunto de quatro conferências e no terceiro dia se ensaiou uma abordagem teológica mais sistemática do tema da criação. Finalmente, no dia 9, para encerrar o Congresso, Frei Betto falou de espiritualidade à luz dos princípios da indeterminação de Heisenberg e da complementaridade de Niels Bohr.

 

3.1. A perspectiva da ciência

No dia 6, o Mysterium Creationis foi abordado pelo teólogo João Batista Libânio, do CES, Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus de Belo Horizonte, pelo físico Marcelo B. Ribeiro, do Instituto de Física da UFRJ, pelo filósofo das ciências Antonio A. Passos Videira, do Observatório Nacional/CNPq e do Dep. de Filosofia da UERJ e pelo médico, geneticista e sociobiólogo da UFRGS Renato Zamora Flores.

Segundo João Batista Libânio o tema Teologia e Interdisciplinaridade – Problemas Epistemológicos, Questões Metodológicas no Diálogo com as Ciências é amplo e levanta três grandes questões: 1. Em que horizonte cultural se coloca a problemática da interdisciplinaridade entre as ciências e a teologia? 2. Que implicações têm para o diálogo interdisciplinar as diversas compreensões de ser, de saber e de agir? 3. A partir dessas compreensões, que modelos existem de diálogo interdisciplinar?

Respondendo à primeira questão, Libânio diz que o diálogo interdisciplinar se faz possível na modernidade, quando se realiza a passagem da hermenêutica especular, como a escolástica clássica de Santo Tomás ou o cientismo do Círculo de Viena, para a hermenêutica crítica, segundo a qual conhecer é interpretar. Diz Libânio em seu texto: “A hermenêutica especular revela uma compreensão da realidade em que o conhecimento é a reprodução e cópia exata da realidade de que quer dar conta. O termo ‘especular’ origina-se da imagem do ‘espelho’- lat. speculum. O conhecimento espelha a realidade. Evidentemente se o espelho é perfeito, não se pode discutir sobre a exatidão da imagem. E se há defeitos no espelho, eles devem ser corrigidos. Subjaz a tal concepção, no fundo, a consciência de que o conhecimento goza de uma neutralidade reflexiva de tal modo que a única coisa que pode ser discutida é a exatidão ou não do que foi refletido por causa de algum defeito exterior. Nunca, porém, a natureza mesma do ato de refletir, de conhecer”. Por outro lado, “a tomada de consciência de que o modo humano de conhecer é interpretar e de que na interpretação jogam inúmeros elementos das mais diversas origens, leva necessariamente a uma dupla atitude básica no diálogo interdisciplinar. Em relação à sua própria ciência, uma vigilância epistemológica procura denotar o mais possível as conotações que se imiscuem no objeto do conhecimento. Em relação às outras, manter uma perspicuidade crítica”[3].

Para responder à segunda questão, Libânio faz sete perguntas, que no seu roteiro, distribuído aos congressistas, está assim:

1a. Qual a condição prévia em relação ao conhecimento da realidade para o diálogo interdisciplinar? As ciências e a teologia devem ter consciência da identidade e da diferença de suas abordagens da realidade. A condição positiva para o diálogo interdisciplinar vem do correto manejo da dialética da identidade e da diferença. Os diversos saberes necessitam ter uma clareza sobre sua própria episteme, métodos, objetos etc. Para isso ajuda muito um diálogo intradisciplinar. Ao reivindicar para si a autonomia de seu saber, segue-se necessariamente o reconhecimento da autonomia do outro saber. Assim temos estabelecida a dialética da identidade e da diferença.

2a. De maneira concreta, quais as concepções de realidade no nível do ser, nível ontológico, que as ciências têm? Há duas concepções básicas: uma clássica e outra moderna. A ontologia clássica defendia que o real é todo objeto que cai sob nossa ação direta ou indiretamente, numa visão pré-científica ou empirismo ingênuo. Já a concepção moderna, levando em conta as descobertas da mecânica quântica, percebe que, na descrição das micropartículas é necessário levar em consideração dados não localizáveis, correlações instantâneas à distância[4].

3a. Quais são as principais tendências de concepção de realidade por parte das ciências modernas? As tendências são 1) de identificação do real físico com toda a realidade, 2) de perceber um processo de emergência na realidade e 3) de considerar a ciência como um determinado olhar da realidade.

4a. Qual é o pressuposto fundamental de concepção de realidade no nível do conhecer, nível epistemológico, para o diálogo interdisciplinar? A interdisciplinaridade pressupõe a unidade e pluralidade da verdade. Na base do diálogo interdisciplinar está uma dupla convicção: há uma unicidade da verdade, embora ela tenha muitas faces (pluralidade)[5].

5a. Quais são as concepções de realidade no nível do conhecer existentes no diálogo interdisciplinar? As concepções de exclusivismo teológico, que pensa a filosofia e a teologia como as únicas que realmente tocam a realidade; de reducionismo científico, por outro lado, que reduz a realidade a tudo e a somente o que as ciências conhecem; e de criticismo realista, que defende serem as verdades científicas produzidas historicamente pelas ciências, segundo a dinâmica de um processo, como explica o filósofo das ciências Gaston Bachelard em suas obras: o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão[6].

6a. Quais as atitudes que interferem no diálogo interdisciplinar, dificultando-o? As atitudes conscientes e inconscientes de ortodoxia, de dominação e de insegurança.

7a. Que relações as ciências estabelecem com a ética? As ciências envolvem-se com a ética por meio de diversos aspectos: da sua negação, do seu próprio modo de conhecer, dos financiamentos, de seu caráter experimental, operatório e da condição do cientista-sujeito.

Finalmente, para dizer que modelos podem ser pensados de diálogo interdisciplinar, a última das 3 questões, Libânio lembra os modelos de continuidade (o concordismo bíblico, por exemplo), de descontinuidade (colocar as ciências em confronto com a teologia é uma postura que pode ser assim classificada) e, finalmente, de mediação: ciências, filosofia e teologia buscam um campo comum onde podem se encontrar. Consideram a filosofia a mediação privilegiada para o diálogo. Ela oferece uma base teórica suficientemente aberta que supera o empirismo das ciências e permite a teologia inserir-se com sua especificidade.

O que a Cosmologia afirma sobre a criação do Universo? Foi a pergunta colocada, em seguida, pelo físico Marcelo B. Ribeiro e pelo filósofo das ciências Antonio A. Passos Videira. Marcelo Ribeiro traçou um rápido panorama do desenvolvimento da cosmologia moderna, desde as suas definições fundamentais até a formulação do modelo cosmológico padrão de Freedman, Lemaître, Robertson e Walker (FLRW) e suas características, com um universo que está em expansão, podendo, entretanto, ser representado, segundo três tipos conhecidos, como aberto, plano e fechado. Tratou do Big Bang como singularidade matemática e de suas evidências observacionais, para chegar, finalmente, aos fundamentos conceituais da cosmologia, tais como a relatividade geral de Einstein, o conceito de horizonte, os teoremas das singularidades de Hawking-Penrose, e o conceito, ainda em formação, da cosmologia quântica.

Não é possível explicar tudo isso aqui, mas podemos ver o processo da exposição como consta da ementa da conferência publicada no Boletim n. 27 da SOTER: “Apresentaremos quais são os principais argumentos empíricos, físicos e matemáticos empregados pelos cientistas a fim de, ao menos, lançar alguma luz sobre ele. Num segundo momento de nossa apresentação, analisaremos o desenvolvimento histórico, desde Galileu até os dias de hoje, relativo ao problema da criação e, mais geralmente, do surgimento da cosmologia enquanto disciplina autenticamente científica (…) Finalmente, na terceira e última parte, discutiremos de que modo o problema que escolhemos exige uma perspectiva filosófica. No que diz respeito às relações entre ciência e filosofia determinadas pelo problema cosmológico da criação faremos uma abordagem deste problema a partir das ideias defendidas por Ludwig Boltzmann (1844-1906), Einstein e, mais recentemente, William Stoeger”[7].

Esta terceira parte foi o assunto abordado por Antonio A. Passos Videira, reafirmando que as teorias físicas representam a natureza, mas não a essência do real. Talvez outras formas de conhecimento o possam, o que abre a perspectiva para o diálogo interdisciplinar, que deve, na linha defendida por William Stoeger – padre jesuíta e astrônomo do Observatório do Vaticano que leciona na Universidade do Arizona – ser mediada pela filosofia.

No debate que se seguiu, o teólogo Hugo Assmann salientou que o diálogo com as biociências e com as ciências da informação constitui tema fundamental. Por outro lado, tenta-se hoje superar a simetria do modelo padrão, como aparece na cosmologia, pois se fala muito, nas biociências, da convivência entre a ordem e o caos. A transdiciplinaridade é hoje a palavra da moda, mas é um projeto que tenta situar-se para além da relação causa-efeito, para além da linearidade, buscando o caminho da complexidade, da auto-organização e da emergência. Fala-se muito da vida como sistemas de “aprendência”[8].

Na tarde do dia 6 o geneticista e sociobiólogo Renato Zamora Flores trabalhou questões relativas à biogenética, explicando o conceito de vida segundo o modelo darwiniano e a definição de Maturana, de autopoise. Em palestra muito rica e interessante, Renato conduziu à plateia ao raciocínio de que não só a vida pode ser explicada a partir da não vida, mas também muitas das características humanas que temos foram desenvolvidas por seleção natural. Mas Renato chamou a atenção para o seguinte fato: a sociobiologia não é competente para determinar a ética humana. O certo e o errado não são determinados pelo conhecimento da evolução do homem[9].

O debatedor Hubert Lepargneur considerou a crítica a Maturana severa demais e chamou a atenção para alguns dos temas que devemos prestar atenção neste final de milênio, como as teorias do caos, a união das tecnologias da informação e do ser vivo, os alimentos transgênicos.

 

3.2. Três tradições sobre a criação

No dia 7 foram apresentadas três tradições sobre a criação por quatro especialistas. A tradição budista foi apresentada pela monja Cláudia Coen Murayama, a tradição judaica pelo judeu Alexandre Goes Leone e a tradição cristã pelo luterano Nélio Schneider e pelo jesuíta Johan Konings.

A monja zen budista Cláudia Coen Murayama da Comunidade Budista Soto Zenshu da América do Sul e do Templo Busshinji de São Paulo nos apresentou um breve histórico do Budismo, das suas principais correntes e alguns de seus conceitos básicos, como os Três Tesouros (Buda, Dharma e Sangha), os Selos da Lei [Impermanência, Não Self (Não Eu, Vazio e Não Ser), Sofrimento, Nirvana], a Lei da Origem Interdependente (Causalidade), as Quatro Nobres Verdades e as classificações para descrever existência material e mental (cinco agregados, doze campos dos sentidos e dezoito elementos da existência).

“O Universo é uma maravilhosa joia redonda”: citando esta frase do famoso mestre zen budista da China Gensha Shibi (835-908), que dá título a um dos capítulos do Shôbôgenzô, escrito pelo fundador da Escola Soto Zen no Japão, Mestre Zen Eihei Dôgen (1200-1253), escola a que pertence, Cláudia explicou que no Budismo não existe a noção de um Deus Criador, Controlador, Juiz ou Redentor, sendo a interdependência da existência a Lei Verdadeira. Nós criamos o Universo em que vivemos e somos responsáveis por sua organização. Nós temos dentro de nós a memória de todo o Universo (um paralelo possível com o DNA?). Nós somos a vida deste Universo em uma de suas múltiplas manifestações e constantes transformações. Nossas ações, palavras e pensamentos são alternadamente e/ou simultaneamente causas, condições e efeitos modificando e transformando o Universo. Por isso o Budismo se recusa a responder a questões ontológicas e afirma que é no mundo dos fenômenos – temporal e espacial – compreendido pelas sensações, percepção e consciência, que a existência é reconhecida e julgada[10].

O budismo progressista proposto por Cláudia afirma que para se ler os textos do Buda histórico, o primeiro Buda, que viveu há 2600 anos atrás, é preciso fazer uma hermenêutica adequada, distinguindo entre a essência de seu ensinamento e as circunstâncias histórico-sociais da época. Buda, na sua época, rompeu com o sistema de castas na Índia e com várias discriminações então existentes, deixando-nos uma lição importante, cada vez mais pertinente neste mundo em conflito de final de milênio.

Em seguida, o judeu Alexandre Goes Leone, de São Paulo, partiu do relato de Gênesis 1 para apresentar a interpretação judaica da criação baseado em três fontes rabínicas: o Midrash, o sábio medieval Maimônedes e, especialmente, a interpretação mística baseada no Zohar, que vê a criação como um processo constante e o ser humano como parceiro de Deus na criação.

Os místicos quando falam da criação ou “obra primordial” dizem que Deus, na Torah, possui 10 nomes, que são as 10 manifestações da divindade, não sua essência que é inatingível pelo pensamento. Deus é o “nada” de onde tudo surge, é o infinito, é o “Deus atrás das cortinas”. Os 10 nomes são o único meio de se chegar até Deus. Deus não é um ser entre os seres, por isso só é atingível através de sua atividade. Os 10 nomes são as 10 irradiações vindo do “nada”. No Zohar se discute, nessa linha, se a criação é criação ou emanação do divino.

Nélio Schneider, luterano e Doutor em S. Escritura, da Faculdade de Teologia de São Leopoldo, falou, por sua vez, da criação em Paulo através da análise do texto de Rm 8, 18-25. Destacou quatro aspectos: a) a dimensão holística da renovação da realidade, a inclusão da criação como um todo no projeto de libertação de Deus; b) a solidariedade entre criação e humanidade no sofrimento causado pelo pecado humano; c) a solidariedade entre criação e humanidade na esperança da libertação do pecado e consequente redenção tanto da humanidade como de toda a criação, tendo como base a concepção da ressurreição de Cristo como nova criação; d) a noção paulina de graça e justiça como postura adequada diante do Mysterium Creationis.

Nélio propôs o seguinte: com Paulo “proponho ensaiar uma nova maneira ‘ecoteológica’ de ver as coisas: tomando-nos, os humanos, como parte destacada, mas não essencial, no todo da criação de Deus e não como deuses a dispor de tudo a nosso bel-prazer e, com isso, cortando o galho no qual estamos sentados”[11].

Johan Konings, por outro lado, abordou a temática da criação nos textos joaninos. Caracterizou, em primeiro lugar, as teologias joaninas, com as semelhanças e as diferenças mais visíveis existentes entre o quarto evangelho e o Apocalipse. E tratou da visão sobre “o mundo” em João e no Apocalipse, especialmente a partir do prólogo do evangelho.

No prólogo, segundo Konings, o autor nos remete a Gn 1,1, às obras primordiais, que são ligadas à “Palavra” (Verbo, lógos), como nos escritos sapienciais: as obras e as palavras de Jesus são as obras e as palavras de Deus. A “Palavra”, que é Jesus, é a mediadora da criação. No prólogo reconhecemos uma articulação cristocêntrica de toda a criação, assim como em outros textos esparsos do evangelho. Konings chamou a atenção para a lógica que está presente no evangelho de João sobre o viver no mundo, onde cósmos tem quase sempre sentido antropológico e não cósmico. Viver no mundo é bom ou mau dependendo da postura do cristão em relação a Jesus. O cristão está no mundo e não é do mundo: o ser do mundo (pertencer ao mundo) não é o âmbito de Jesus que pertence ao Pai (Cristo e os seus pertencem a Deus).

Konings nos lembrou também de que a “escatologia presente” de João dá uma boa pista para a teologia da criação: o novo céu e a nova terra já estão presentes e somos responsáveis por eles. Segundo João e o Apocalipse podemos amar o mundo físico, cósmico, mas não o mundo do orgulho humano da sociedade do Império Romano. Finalmente, Konings concluiu que João não idolatra a criação, pois não está preocupado com a conservação desta criação, mas com a nova criação. Sua visão é radicalmente cristocêntrica.

 

3.3. A perspectiva da teologia sistemática

No dia 8, Juan Noemi Callejas, teólogo da PUC de Santiago do Chile, tratou das possibilidades de uma abordagem teológico-pastoral da realidade enquanto criação de Deus. O filósofo da Universidade Federal do Ceará Manfredo Araújo de Oliveira e o também filósofo da PUC-SP Eduardo Rodriguez da Cruz debateram com Juan Noemi a temática apresentada. Finalmente, João Batista Libânio e Juan Noemi fizeram uma tentativa de síntese de todo o Congresso.

Juan Noemi falou inicialmente da centralidade que adquiriu o tema da criação na teologia atual através do deslocamento terminológico que se pode observar na teologia sistemática. Em seguida tentou uma descrição da teologia da criação, citando muitos teólogos alemães, como Metz, Kasper, Pannenberg, Rahner ou Ganoczy, em relação a três coordenadas: histórico-salvífica, ecológica e científico-técnica. Finalmente, propôs requisitos fundamentais para pensar uma teologia da criação hoje, especialmente a) pensar Deus como um acontecimento escatológico; b) pensar uma cristologia cósmica e c) pensar a fé “na razão”.

Em todo o seu discurso notou-se a dificuldade da teologia em elaborar um discurso coerente sobre a realidade onde o saber empírico domina e onde a racionalidade é “procedimental”, como notou Manfredo de Oliveira. Sentiu-se também uma ausência flagrante da teologia latino-americana na sua fala, como se uma teologia da criação jamais tivesse sido pensada neste continente. Do mesmo modo, o mundo dos pobres e dos excluídos não foi contemplado com uma palavra sequer da teologia sistemática sobre a criação que se propôs “uma abordagem teológico-pastoral”.

Tanto Manfredo quando Eduardo Cruz procuraram, em seguida, no debate, chamar a atenção para uma filosofia e uma teologia da natureza que devem falar do absoluto, como meio válido para se quebrar a barreira existente entre o discurso científico e o discurso filosófico. E Eduardo Cruz concluiu que podemos dialogar com a ciência através dos símbolos que aparecem nos mitos[12].

 

4. Elementos para uma espiritualidade holística

Na manhã do dia 9, último dia do Congresso da SOTER, o conhecido escritor Frei Betto falou sobre a mudança de paradigmas ocorrida na física com as descobertas da mecânica quântica nos anos 20, especialmente a partir do princípio da indeterminação ou incerteza de Werner Heisenberg e do princípio da complementaridade de Niels Bohr. E propôs uma nova visão de realidade que supere os dualismos presentes em nosso saber e fazer, convocando-nos rumo a uma visão holística do universo que integre mente e espírito, observador e observado, sujeito e objeto como aspectos de um mesmo existir.

Segundo a ementa de sua palestra, “Os paradigmas da modernidade sustentam-se na filosofia de Descartes e na física de Newton. Racionalismo e determinismo seriam as chaves para se chegar ao conhecimento científico, livre de interferências subjetivas, preconceitos e superstições. A transposição da mecânica clássica às ciências sociais sugeriu que um determinismo histórico regeria as sociedades para formas mais perfeitas de convivência humana, porém a queda do Muro de Berlim derrubou também tal aplicação.

Para não cairmos no caos e acaso, torna-se necessário formular novos paradigmas levando em conta dois parâmetros fundamentais derivados da física quântica: o princípio da indeterminação ou da incerteza, de Werner Heisenberg, e o princípio da complementaridade, de Niels Bohr. Heisenberg pretendeu demonstrar que jamais poderemos conhecer tudo sobre os movimentos de uma partícula. Pode-se conhecer a posição exata de uma partícula ou a sua velocidade, mas não as duas coisas ao mesmo tempo. As imutáveis e previsíveis leis da natureza em sua dimensão macroscópica não se aplicam à dimensão microscópica. Isso significa que jamais teremos pleno conhecimento do mundo subatômico. No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e dialógica, como ressaltava Bohr, numa interação de complementaridade. Articulou as duas concepções que, à luz da física clássica, são contraditórias e aplicou tal princípio a outras áreas do conhecimento. Sobre essa interação, entre observador e observado ergue-se a visão holística do universo: há uma íntima e indestrutível conexão entre tudo o que existe. Ocorre uma migração de sentido que nos faz pensar que a incerteza quântica se faz presente não só nas partículas subatômicas. Revoluciona nossa percepção da natureza e da história.

O princípio da indeterminação aplica-se também à história. Em cada um de nós essa dimensão dual também se manifesta, sobrepondo-se, como análise e intuição, razão e coração, inteligência e fé. Não há leis ou cálculos que prevejam o que fará um ser humano. A ótica quântica resgata a liberdade humana e reinstaura o ser humano como sujeito histórico, superando toda tentativa de atomização e realçando a sua inter-relação com a natureza e com os seus semelhantes. Na prática ainda estamos longe da unidade. A pluridisciplinaridade, rumo à epistemologia holística, permanece como desafio e meta, mas há sinais de otimismo: a cartesiana medicina ocidental abre-se à acupuntura; na política fala-se cada vez mais em ética; nas religiões recupera-se a dimensão mística; só falta fazer com que o capital esteja a serviço da felicidade humana. Então reencontraremos as veredas do Éden”[13].

> Este artigo foi publicado inicialmente em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 6, p. 133-148, 1999.

Artigos


[1]. Os Boletins da SOTER são regularmente distribuídos aos sócios(as) em forma impressa.

[2]. SUSIN, L. C. Apresentação, em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas/SOTER, 1999, p. 5.

[3]. LIBÂNIO, J. B. Teologia e Interdisciplinaridade: Problemas epistemológicos, questões metodológicas no diálogo com as ciências. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 12 e 13.

[4]. Cf. Idem, ibidem, p. 17-18.

[5]. Cf. Idem, ibidem, p. 19-20.

[6]. Cf. BACHELARD, G. O Novo Espírito Científico. Lisboa: Edições 70, 2008; A Formação do Espírito Científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003; JAPIASSÚ, H. Para Ler Bachelard. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

[7]. RIBEIRO, M. B. ; VIDEIRA, A. A. P. O que a Cosmologia afirma sobre a criação do Universo? Em Boletim n. 27 da SOTER. Cf. RIBEIRO, M. B. ; VIDEIRA, A. A. P. O problema da criação na cosmologia moderna. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 45-83.

[8]. Cf. ASSMANN, H. Teologia e Ciências: interdisciplinaridade e transdiciplinaridade. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 85-102.

[9]. Cf. FLORES, R. Z. Evolução: da origem da vida à mente humana. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 103-114.

[10]. Cf. a ementa da palestra no Boletim n. 27 da SOTER. Cf. também MURAYAMA, C. C. O Universo na tradição budista. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 143-159.

[11]. SCHNEIDER, N. Solidariedade no sofrimento e na esperança: em busca da relação justa entre o humano e o criado coram Deo. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 179.

[12]. Cf. DE OLIVEIRA, M. A. Questões sistemáticas sobre a relação entre Teologia e Ciências Modernas. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 249-279; DA CRUZ, E. R. Criação e Ciências da Natureza: um breve guia para teólogos perplexos. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 281-299.

[13]. BETTO, Frei Indeterminação e Complementaridade. Boletim n. 27 da SOTER; cf. também BETTO, Frei Espiritualidade Holística. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 301-319.