SOTER ’99: Mysterium Creationis. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo
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1. O Congresso
O Congresso da SOTER, Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, trabalhando sobre o tema Mysterium Creationis. Um Olhar Interdisciplinar sobre o Universo foi realizado com sucesso em Cachoeira do Campo, MG, de 5 a 9 de julho de 1999. Cerca de 120 teólogos, teólogas, cientistas da religião e áreas afins estiveram presentes. Da FTCR da PUC-Campinas participaram os professores Paulo Sérgio Gonçalves, Sávio Carlos Desan Scopinho, José Arlindo de Nadai, Benedito Ferraro, Silvana Suaiden, Márcio Roberto Pereira Tangerino, Izalene Tiene, Adoniran Possan, Antonio Sagrado Bogaz, Márcio Couto e Airton José da Silva.
Além das palestras e debates em plenário, que ocuparam as manhãs e as tardes, ocorreram comunicações científicas, cujo objetivo foi partilhar as pesquisas recentes feitas pelos teólogos e cientistas da religião presentes no Congresso. Eis, como ilustração, alguns dos temas apresentados: “Brasil 500 anos: memória e teologia”, “Emergência duma nova concepção da missão evangelizadora, a partir duma experiência de convivência fraterna”, “Bíblia, mito, ciência e literatura: abordagem interdisciplinar da história das origens em Gênesis 1-11”, “Imaginário religioso na cidade de São Paulo: as devoções católicas”.
As palestras, que representam o conteúdo mais denso do Congresso, foram publicadas no livro organizado por SUSIN, L. C. Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas/SOTER, 1999, 326 p. O livro ganhou o prêmio Jabuti 2000 na categoria “Religião”. Uma resenha da obra pode ser lida na REB, Petrópolis, n. 244, 2001, feita por Antônio Alves de Melo.
Um encontro por Áreas de Especialidade – Ciências e Línguas Bíblicas, Teologia Fundamental, Teologia Dogmática, Teologia Moral, História da Igreja, Filosofia, Ciências da Religião etc. – foi realizado na 3a noite do Congresso, onde cada participante colocou em comum, para seus colegas, suas atividades, e onde se debateu a proposta do novo currículo de Teologia, recentemente enviada pela CNBB aos Institutos e Faculdades de Teologia de todo o país para estudo, com vistas à elaboração de Normas para o estudo da Teologia no Brasil.
Para o Congresso do ano 2000, a SOTER optou por fazer um balanço da teologia latino-americana, com o tema: Teologia e Ciências da Religião na América Latina: Balanços e Perspectivas. O Congresso será realizado em Belo Horizonte, MG, nos dias 24-28 de julho de 2000, com a participação de outras associações teológicas da América Latina.
Propôs-se um Congresso com poucas conferências – três ou quatro apenas, mas feitas pelos mais importantes teólogos da América Latina, como Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Clodovis Boff e João Batista Libânio – e muitas oficinas, organizadas com assessoria prévia para se chegar a painéis e a um “Relatório 2000” da teologia latino-americana. Dezoito temas foram elencados, alguns eixos propostos e discutiu-se sobre a abrangência e pertinência de tantos e tais temas.
2. O desafio proposto pelo tema
Conforme o Editorial do Boletim n. 26 da SOTER[1], ainda anunciando o Congresso de ’99, “Novos Paradigmas foi o título da complexa temática com que a SOTER se ocupou no Congresso de 1996. Foi um exame de diferentes áreas que apontam para modelos de conhecimento e cosmovisões novas. Se as convergências são impressionantes, as novas interrogações e os problemas novos são inquietantes. Se o primeiro momento consistiu numa abordagem mais formal, agora somos convidados para um exercício concreto, para um “estudo de caso”, ainda que seja um caso extremamente abrangente: a criação”.
Colocado o tema, uma série de questões emergem: “Pode-se casar a categoria teológica de ‘criação’ com a atual imagem do universo, com a evolução da vida? Há uma intencionalidade e uma promessa inscritas na realidade que possam ser compreendidas desde diferentes leituras? Ou permanece a teologia isolada em suas afirmações sobre o cosmos e sobre a vida? Como casar liberdade e organização, cultura e biologia, ou então aclarar antinomias como acaso, necessidade ou destinação? Quais as consequências para a antropologia, para a soteriologia, para a ética e até mesmo para a eclesiologia?”
E conclui o editorial: “Urge um exercício, um diálogo, uma abertura interdisciplinar. Vamos nos encontrar com autoridades nas áreas de Física, de Genética, em diferentes tradições religiosas. Os novos paradigmas e a interdisciplinaridade nos ajudam, certamente, a ver as questões desde horizontes muito amplos. Há quem suspeite de que se trata do global pulverizando o local, as estrelas nos distraindo do cotidiano, a imensidão e a complexidade paralisando nossas lutas. Ou seria uma nova contextualização e, portanto, uma nova localização e nova fecundidade de nossas lutas?”
E na Apresentação do volume que reúne as conferências, insiste Luiz Carlos Susin, Presidente da SOTER, de que há hoje uma exigência de ‘nova aliança’ entre os saberes, na expressão de Ilya Prigogine, “para um novo salto de patamar em nosso conhecimento e sobretudo em nossa forma de conhecimento e de aprendizagem de conhecimentos. Partindo da multidisciplinaridade, mas esforçando-se para chegar a uma verdadeira transdiciplinaridade, com a exigência de novos campos epistemológicos para dar conta da complexidade não só da realidade – que sempre foi complexa – mas de nossos conhecimentos da realidade, de processos e de redes de informações e aprendizagem, hoje a interdisciplinaridade é um exercício e um desafio do qual também a teologia não pode absolutamente se esquivar”[2].
3. Um olhar interdisciplinar sobre o Universo
No dia 5 à noite, após a Abertura feita pelo Presidente da SOTER Luiz Carlos Susin, o mestre José Comblin fez uma Análise de Conjuntura, traçando um panorama bastante sombrio dos dias em que vivemos, quer seja pela política de globalização, que é antes de tudo a circulação dos capitais norte-americanos, quer seja pela posição oficial da Igreja romana tal qual aparece no documento Ecclesia in America – onde 75% das propostas dos bispos são retomadas, mas as mais importantes desaparecem, especialmente a “opção preferencial pelos pobres” que se torna “amor preferencial pelos pobres” – ou pela posição da Igreja latino-americana que hoje se preocupa mais com sua visibilidade do que com qualquer outra questão.
Nos três dias seguintes, 6, 7 e 8 de julho, os conferencistas abordaram o tema dentro da seguinte lógica: no primeiro dia, a criação foi enfocada sob o ponto de vista da epistemologia e do ponto de vista científico, com falas de teólogos, filósofos, físicos e geneticistas; no segundo dia, três tradições sobre a criação – budista, judaica e cristã – foram o assunto de quatro conferências e no terceiro dia se ensaiou uma abordagem teológica mais sistemática do tema da criação. Finalmente, no dia 9, para encerrar o Congresso, Frei Betto falou de espiritualidade à luz dos princípios da indeterminação de Heisenberg e da complementaridade de Niels Bohr.
3.1. A perspectiva da ciência
No dia 6, o Mysterium Creationis foi abordado pelo teólogo João Batista Libânio, do CES, Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus de Belo Horizonte, pelo físico Marcelo B. Ribeiro, do Instituto de Física da UFRJ, pelo filósofo das ciências Antonio A. Passos Videira, do Observatório Nacional/CNPq e do Dep. de Filosofia da UERJ e pelo médico, geneticista e sociobiólogo da UFRGS Renato Zamora Flores.
Segundo João Batista Libânio o tema Teologia e Interdisciplinaridade – Problemas Epistemológicos, Questões Metodológicas no Diálogo com as Ciências é amplo e levanta três grandes questões: 1. Em que horizonte cultural se coloca a problemática da interdisciplinaridade entre as ciências e a teologia? 2. Que implicações têm para o diálogo interdisciplinar as diversas compreensões de ser, de saber e de agir? 3. A partir dessas compreensões, que modelos existem de diálogo interdisciplinar?
Respondendo à primeira questão, Libânio diz que o diálogo interdisciplinar se faz possível na modernidade, quando se realiza a passagem da hermenêutica especular, como a escolástica clássica de Santo Tomás ou o cientismo do Círculo de Viena, para a hermenêutica crítica, segundo a qual conhecer é interpretar. Diz Libânio em seu texto: “A hermenêutica especular revela uma compreensão da realidade em que o conhecimento é a reprodução e cópia exata da realidade de que quer dar conta. O termo ‘especular’ origina-se da imagem do ‘espelho’- lat. speculum. O conhecimento espelha a realidade. Evidentemente se o espelho é perfeito, não se pode discutir sobre a exatidão da imagem. E se há defeitos no espelho, eles devem ser corrigidos. Subjaz a tal concepção, no fundo, a consciência de que o conhecimento goza de uma neutralidade reflexiva de tal modo que a única coisa que pode ser discutida é a exatidão ou não do que foi refletido por causa de algum defeito exterior. Nunca, porém, a natureza mesma do ato de refletir, de conhecer”. Por outro lado, “a tomada de consciência de que o modo humano de conhecer é interpretar e de que na interpretação jogam inúmeros elementos das mais diversas origens, leva necessariamente a uma dupla atitude básica no diálogo interdisciplinar. Em relação à sua própria ciência, uma vigilância epistemológica procura denotar o mais possível as conotações que se imiscuem no objeto do conhecimento. Em relação às outras, manter uma perspicuidade crítica”[3].
Para responder à segunda questão, Libânio faz sete perguntas, que no seu roteiro, distribuído aos congressistas, está assim:
1a. Qual a condição prévia em relação ao conhecimento da realidade para o diálogo interdisciplinar? As ciências e a teologia devem ter consciência da identidade e da diferença de suas abordagens da realidade. A condição positiva para o diálogo interdisciplinar vem do correto manejo da dialética da identidade e da diferença. Os diversos saberes necessitam ter uma clareza sobre sua própria episteme, métodos, objetos etc. Para isso ajuda muito um diálogo intradisciplinar. Ao reivindicar para si a autonomia de seu saber, segue-se necessariamente o reconhecimento da autonomia do outro saber. Assim temos estabelecida a dialética da identidade e da diferença.
2a. De maneira concreta, quais as concepções de realidade no nível do ser, nível ontológico, que as ciências têm? Há duas concepções básicas: uma clássica e outra moderna. A ontologia clássica defendia que o real é todo objeto que cai sob nossa ação direta ou indiretamente, numa visão pré-científica ou empirismo ingênuo. Já a concepção moderna, levando em conta as descobertas da mecânica quântica, percebe que, na descrição das micropartículas é necessário levar em consideração dados não localizáveis, correlações instantâneas à distância[4].
3a. Quais são as principais tendências de concepção de realidade por parte das ciências modernas? As tendências são 1) de identificação do real físico com toda a realidade, 2) de perceber um processo de emergência na realidade e 3) de considerar a ciência como um determinado olhar da realidade.
4a. Qual é o pressuposto fundamental de concepção de realidade no nível do conhecer, nível epistemológico, para o diálogo interdisciplinar? A interdisciplinaridade pressupõe a unidade e pluralidade da verdade. Na base do diálogo interdisciplinar está uma dupla convicção: há uma unicidade da verdade, embora ela tenha muitas faces (pluralidade)[5].
5a. Quais são as concepções de realidade no nível do conhecer existentes no diálogo interdisciplinar? As concepções de exclusivismo teológico, que pensa a filosofia e a teologia como as únicas que realmente tocam a realidade; de reducionismo científico, por outro lado, que reduz a realidade a tudo e a somente o que as ciências conhecem; e de criticismo realista, que defende serem as verdades científicas produzidas historicamente pelas ciências, segundo a dinâmica de um processo, como explica o filósofo das ciências Gaston Bachelard em suas obras: o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão[6].
6a. Quais as atitudes que interferem no diálogo interdisciplinar, dificultando-o? As atitudes conscientes e inconscientes de ortodoxia, de dominação e de insegurança.
7a. Que relações as ciências estabelecem com a ética? As ciências envolvem-se com a ética por meio de diversos aspectos: da sua negação, do seu próprio modo de conhecer, dos financiamentos, de seu caráter experimental, operatório e da condição do cientista-sujeito.
Finalmente, para dizer que modelos podem ser pensados de diálogo interdisciplinar, a última das 3 questões, Libânio lembra os modelos de continuidade (o concordismo bíblico, por exemplo), de descontinuidade (colocar as ciências em confronto com a teologia é uma postura que pode ser assim classificada) e, finalmente, de mediação: ciências, filosofia e teologia buscam um campo comum onde podem se encontrar. Consideram a filosofia a mediação privilegiada para o diálogo. Ela oferece uma base teórica suficientemente aberta que supera o empirismo das ciências e permite a teologia inserir-se com sua especificidade.
O que a Cosmologia afirma sobre a criação do Universo? Foi a pergunta colocada, em seguida, pelo físico Marcelo B. Ribeiro e pelo filósofo das ciências Antonio A. Passos Videira. Marcelo Ribeiro traçou um rápido panorama do desenvolvimento da cosmologia moderna, desde as suas definições fundamentais até a formulação do modelo cosmológico padrão de Freedman, Lemaître, Robertson e Walker (FLRW) e suas características, com um universo que está em expansão, podendo, entretanto, ser representado, segundo três tipos conhecidos, como aberto, plano e fechado. Tratou do Big Bang como singularidade matemática e de suas evidências observacionais, para chegar, finalmente, aos fundamentos conceituais da cosmologia, tais como a relatividade geral de Einstein, o conceito de horizonte, os teoremas das singularidades de Hawking-Penrose, e o conceito, ainda em formação, da cosmologia quântica.
Não é possível explicar tudo isso aqui, mas podemos ver o processo da exposição como consta da ementa da conferência publicada no Boletim n. 27 da SOTER: “Apresentaremos quais são os principais argumentos empíricos, físicos e matemáticos empregados pelos cientistas a fim de, ao menos, lançar alguma luz sobre ele. Num segundo momento de nossa apresentação, analisaremos o desenvolvimento histórico, desde Galileu até os dias de hoje, relativo ao problema da criação e, mais geralmente, do surgimento da cosmologia enquanto disciplina autenticamente científica (…) Finalmente, na terceira e última parte, discutiremos de que modo o problema que escolhemos exige uma perspectiva filosófica. No que diz respeito às relações entre ciência e filosofia determinadas pelo problema cosmológico da criação faremos uma abordagem deste problema a partir das ideias defendidas por Ludwig Boltzmann (1844-1906), Einstein e, mais recentemente, William Stoeger”[7].
Esta terceira parte foi o assunto abordado por Antonio A. Passos Videira, reafirmando que as teorias físicas representam a natureza, mas não a essência do real. Talvez outras formas de conhecimento o possam, o que abre a perspectiva para o diálogo interdisciplinar, que deve, na linha defendida por William Stoeger – padre jesuíta e astrônomo do Observatório do Vaticano que leciona na Universidade do Arizona – ser mediada pela filosofia.
No debate que se seguiu, o teólogo Hugo Assmann salientou que o diálogo com as biociências e com as ciências da informação constitui tema fundamental. Por outro lado, tenta-se hoje superar a simetria do modelo padrão, como aparece na cosmologia, pois se fala muito, nas biociências, da convivência entre a ordem e o caos. A transdiciplinaridade é hoje a palavra da moda, mas é um projeto que tenta situar-se para além da relação causa-efeito, para além da linearidade, buscando o caminho da complexidade, da auto-organização e da emergência. Fala-se muito da vida como sistemas de “aprendência”[8].
Na tarde do dia 6 o geneticista e sociobiólogo Renato Zamora Flores trabalhou questões relativas à biogenética, explicando o conceito de vida segundo o modelo darwiniano e a definição de Maturana, de autopoise. Em palestra muito rica e interessante, Renato conduziu à plateia ao raciocínio de que não só a vida pode ser explicada a partir da não vida, mas também muitas das características humanas que temos foram desenvolvidas por seleção natural. Mas Renato chamou a atenção para o seguinte fato: a sociobiologia não é competente para determinar a ética humana. O certo e o errado não são determinados pelo conhecimento da evolução do homem[9].
O debatedor Hubert Lepargneur considerou a crítica a Maturana severa demais e chamou a atenção para alguns dos temas que devemos prestar atenção neste final de milênio, como as teorias do caos, a união das tecnologias da informação e do ser vivo, os alimentos transgênicos.
3.2. Três tradições sobre a criação
No dia 7 foram apresentadas três tradições sobre a criação por quatro especialistas. A tradição budista foi apresentada pela monja Cláudia Coen Murayama, a tradição judaica pelo judeu Alexandre Goes Leone e a tradição cristã pelo luterano Nélio Schneider e pelo jesuíta Johan Konings.
A monja zen budista Cláudia Coen Murayama da Comunidade Budista Soto Zenshu da América do Sul e do Templo Busshinji de São Paulo nos apresentou um breve histórico do Budismo, das suas principais correntes e alguns de seus conceitos básicos, como os Três Tesouros (Buda, Dharma e Sangha), os Selos da Lei [Impermanência, Não Self (Não Eu, Vazio e Não Ser), Sofrimento, Nirvana], a Lei da Origem Interdependente (Causalidade), as Quatro Nobres Verdades e as classificações para descrever existência material e mental (cinco agregados, doze campos dos sentidos e dezoito elementos da existência).
“O Universo é uma maravilhosa joia redonda”: citando esta frase do famoso mestre zen budista da China Gensha Shibi (835-908), que dá título a um dos capítulos do Shôbôgenzô, escrito pelo fundador da Escola Soto Zen no Japão, Mestre Zen Eihei Dôgen (1200-1253), escola a que pertence, Cláudia explicou que no Budismo não existe a noção de um Deus Criador, Controlador, Juiz ou Redentor, sendo a interdependência da existência a Lei Verdadeira. Nós criamos o Universo em que vivemos e somos responsáveis por sua organização. Nós temos dentro de nós a memória de todo o Universo (um paralelo possível com o DNA?). Nós somos a vida deste Universo em uma de suas múltiplas manifestações e constantes transformações. Nossas ações, palavras e pensamentos são alternadamente e/ou simultaneamente causas, condições e efeitos modificando e transformando o Universo. Por isso o Budismo se recusa a responder a questões ontológicas e afirma que é no mundo dos fenômenos – temporal e espacial – compreendido pelas sensações, percepção e consciência, que a existência é reconhecida e julgada[10].
O budismo progressista proposto por Cláudia afirma que para se ler os textos do Buda histórico, o primeiro Buda, que viveu há 2600 anos atrás, é preciso fazer uma hermenêutica adequada, distinguindo entre a essência de seu ensinamento e as circunstâncias histórico-sociais da época. Buda, na sua época, rompeu com o sistema de castas na Índia e com várias discriminações então existentes, deixando-nos uma lição importante, cada vez mais pertinente neste mundo em conflito de final de milênio.
Em seguida, o judeu Alexandre Goes Leone, de São Paulo, partiu do relato de Gênesis 1 para apresentar a interpretação judaica da criação baseado em três fontes rabínicas: o Midrash, o sábio medieval Maimônedes e, especialmente, a interpretação mística baseada no Zohar, que vê a criação como um processo constante e o ser humano como parceiro de Deus na criação.
Os místicos quando falam da criação ou “obra primordial” dizem que Deus, na Torah, possui 10 nomes, que são as 10 manifestações da divindade, não sua essência que é inatingível pelo pensamento. Deus é o “nada” de onde tudo surge, é o infinito, é o “Deus atrás das cortinas”. Os 10 nomes são o único meio de se chegar até Deus. Deus não é um ser entre os seres, por isso só é atingível através de sua atividade. Os 10 nomes são as 10 irradiações vindo do “nada”. No Zohar se discute, nessa linha, se a criação é criação ou emanação do divino.
Nélio Schneider, luterano e Doutor em S. Escritura, da Faculdade de Teologia de São Leopoldo, falou, por sua vez, da criação em Paulo através da análise do texto de Rm 8, 18-25. Destacou quatro aspectos: a) a dimensão holística da renovação da realidade, a inclusão da criação como um todo no projeto de libertação de Deus; b) a solidariedade entre criação e humanidade no sofrimento causado pelo pecado humano; c) a solidariedade entre criação e humanidade na esperança da libertação do pecado e consequente redenção tanto da humanidade como de toda a criação, tendo como base a concepção da ressurreição de Cristo como nova criação; d) a noção paulina de graça e justiça como postura adequada diante do Mysterium Creationis.
Nélio propôs o seguinte: com Paulo “proponho ensaiar uma nova maneira ‘ecoteológica’ de ver as coisas: tomando-nos, os humanos, como parte destacada, mas não essencial, no todo da criação de Deus e não como deuses a dispor de tudo a nosso bel-prazer e, com isso, cortando o galho no qual estamos sentados”[11].
Johan Konings, por outro lado, abordou a temática da criação nos textos joaninos. Caracterizou, em primeiro lugar, as teologias joaninas, com as semelhanças e as diferenças mais visíveis existentes entre o quarto evangelho e o Apocalipse. E tratou da visão sobre “o mundo” em João e no Apocalipse, especialmente a partir do prólogo do evangelho.
No prólogo, segundo Konings, o autor nos remete a Gn 1,1, às obras primordiais, que são ligadas à “Palavra” (Verbo, lógos), como nos escritos sapienciais: as obras e as palavras de Jesus são as obras e as palavras de Deus. A “Palavra”, que é Jesus, é a mediadora da criação. No prólogo reconhecemos uma articulação cristocêntrica de toda a criação, assim como em outros textos esparsos do evangelho. Konings chamou a atenção para a lógica que está presente no evangelho de João sobre o viver no mundo, onde cósmos tem quase sempre sentido antropológico e não cósmico. Viver no mundo é bom ou mau dependendo da postura do cristão em relação a Jesus. O cristão está no mundo e não é do mundo: o ser do mundo (pertencer ao mundo) não é o âmbito de Jesus que pertence ao Pai (Cristo e os seus pertencem a Deus).
Konings nos lembrou também de que a “escatologia presente” de João dá uma boa pista para a teologia da criação: o novo céu e a nova terra já estão presentes e somos responsáveis por eles. Segundo João e o Apocalipse podemos amar o mundo físico, cósmico, mas não o mundo do orgulho humano da sociedade do Império Romano. Finalmente, Konings concluiu que João não idolatra a criação, pois não está preocupado com a conservação desta criação, mas com a nova criação. Sua visão é radicalmente cristocêntrica.
3.3. A perspectiva da teologia sistemática
No dia 8, Juan Noemi Callejas, teólogo da PUC de Santiago do Chile, tratou das possibilidades de uma abordagem teológico-pastoral da realidade enquanto criação de Deus. O filósofo da Universidade Federal do Ceará Manfredo Araújo de Oliveira e o também filósofo da PUC-SP Eduardo Rodriguez da Cruz debateram com Juan Noemi a temática apresentada. Finalmente, João Batista Libânio e Juan Noemi fizeram uma tentativa de síntese de todo o Congresso.
Juan Noemi falou inicialmente da centralidade que adquiriu o tema da criação na teologia atual através do deslocamento terminológico que se pode observar na teologia sistemática. Em seguida tentou uma descrição da teologia da criação, citando muitos teólogos alemães, como Metz, Kasper, Pannenberg, Rahner ou Ganoczy, em relação a três coordenadas: histórico-salvífica, ecológica e científico-técnica. Finalmente, propôs requisitos fundamentais para pensar uma teologia da criação hoje, especialmente a) pensar Deus como um acontecimento escatológico; b) pensar uma cristologia cósmica e c) pensar a fé “na razão”.
Em todo o seu discurso notou-se a dificuldade da teologia em elaborar um discurso coerente sobre a realidade onde o saber empírico domina e onde a racionalidade é “procedimental”, como notou Manfredo de Oliveira. Sentiu-se também uma ausência flagrante da teologia latino-americana na sua fala, como se uma teologia da criação jamais tivesse sido pensada neste continente. Do mesmo modo, o mundo dos pobres e dos excluídos não foi contemplado com uma palavra sequer da teologia sistemática sobre a criação que se propôs “uma abordagem teológico-pastoral”.
Tanto Manfredo quando Eduardo Cruz procuraram, em seguida, no debate, chamar a atenção para uma filosofia e uma teologia da natureza que devem falar do absoluto, como meio válido para se quebrar a barreira existente entre o discurso científico e o discurso filosófico. E Eduardo Cruz concluiu que podemos dialogar com a ciência através dos símbolos que aparecem nos mitos[12].
4. Elementos para uma espiritualidade holística
Na manhã do dia 9, último dia do Congresso da SOTER, o conhecido escritor Frei Betto falou sobre a mudança de paradigmas ocorrida na física com as descobertas da mecânica quântica nos anos 20, especialmente a partir do princípio da indeterminação ou incerteza de Werner Heisenberg e do princípio da complementaridade de Niels Bohr. E propôs uma nova visão de realidade que supere os dualismos presentes em nosso saber e fazer, convocando-nos rumo a uma visão holística do universo que integre mente e espírito, observador e observado, sujeito e objeto como aspectos de um mesmo existir.
Segundo a ementa de sua palestra, “Os paradigmas da modernidade sustentam-se na filosofia de Descartes e na física de Newton. Racionalismo e determinismo seriam as chaves para se chegar ao conhecimento científico, livre de interferências subjetivas, preconceitos e superstições. A transposição da mecânica clássica às ciências sociais sugeriu que um determinismo histórico regeria as sociedades para formas mais perfeitas de convivência humana, porém a queda do Muro de Berlim derrubou também tal aplicação.
Para não cairmos no caos e acaso, torna-se necessário formular novos paradigmas levando em conta dois parâmetros fundamentais derivados da física quântica: o princípio da indeterminação ou da incerteza, de Werner Heisenberg, e o princípio da complementaridade, de Niels Bohr. Heisenberg pretendeu demonstrar que jamais poderemos conhecer tudo sobre os movimentos de uma partícula. Pode-se conhecer a posição exata de uma partícula ou a sua velocidade, mas não as duas coisas ao mesmo tempo. As imutáveis e previsíveis leis da natureza em sua dimensão macroscópica não se aplicam à dimensão microscópica. Isso significa que jamais teremos pleno conhecimento do mundo subatômico. No mundo quântico, a natureza é, portanto, dual e dialógica, como ressaltava Bohr, numa interação de complementaridade. Articulou as duas concepções que, à luz da física clássica, são contraditórias e aplicou tal princípio a outras áreas do conhecimento. Sobre essa interação, entre observador e observado ergue-se a visão holística do universo: há uma íntima e indestrutível conexão entre tudo o que existe. Ocorre uma migração de sentido que nos faz pensar que a incerteza quântica se faz presente não só nas partículas subatômicas. Revoluciona nossa percepção da natureza e da história.
O princípio da indeterminação aplica-se também à história. Em cada um de nós essa dimensão dual também se manifesta, sobrepondo-se, como análise e intuição, razão e coração, inteligência e fé. Não há leis ou cálculos que prevejam o que fará um ser humano. A ótica quântica resgata a liberdade humana e reinstaura o ser humano como sujeito histórico, superando toda tentativa de atomização e realçando a sua inter-relação com a natureza e com os seus semelhantes. Na prática ainda estamos longe da unidade. A pluridisciplinaridade, rumo à epistemologia holística, permanece como desafio e meta, mas há sinais de otimismo: a cartesiana medicina ocidental abre-se à acupuntura; na política fala-se cada vez mais em ética; nas religiões recupera-se a dimensão mística; só falta fazer com que o capital esteja a serviço da felicidade humana. Então reencontraremos as veredas do Éden”[13].
> Este artigo foi publicado inicialmente em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 6, p. 133-148, 1999.
[1]. Os Boletins da SOTER são regularmente distribuídos aos sócios(as) em forma impressa.
[2]. SUSIN, L. C. Apresentação, em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: Paulinas/SOTER, 1999, p. 5.
[3]. LIBÂNIO, J. B. Teologia e Interdisciplinaridade: Problemas epistemológicos, questões metodológicas no diálogo com as ciências. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 12 e 13.
[4]. Cf. Idem, ibidem, p. 17-18.
[5]. Cf. Idem, ibidem, p. 19-20.
[6]. Cf. BACHELARD, G. O Novo Espírito Científico. Lisboa: Edições 70, 2008; A Formação do Espírito Científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003; JAPIASSÚ, H. Para Ler Bachelard. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
[7]. RIBEIRO, M. B. ; VIDEIRA, A. A. P. O que a Cosmologia afirma sobre a criação do Universo? Em Boletim n. 27 da SOTER. Cf. RIBEIRO, M. B. ; VIDEIRA, A. A. P. O problema da criação na cosmologia moderna. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 45-83.
[8]. Cf. ASSMANN, H. Teologia e Ciências: interdisciplinaridade e transdiciplinaridade. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 85-102.
[9]. Cf. FLORES, R. Z. Evolução: da origem da vida à mente humana. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 103-114.
[10]. Cf. a ementa da palestra no Boletim n. 27 da SOTER. Cf. também MURAYAMA, C. C. O Universo na tradição budista. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 143-159.
[11]. SCHNEIDER, N. Solidariedade no sofrimento e na esperança: em busca da relação justa entre o humano e o criado coram Deo. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 179.
[12]. Cf. DE OLIVEIRA, M. A. Questões sistemáticas sobre a relação entre Teologia e Ciências Modernas. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 249-279; DA CRUZ, E. R. Criação e Ciências da Natureza: um breve guia para teólogos perplexos. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 281-299.
[13]. BETTO, Frei Indeterminação e Complementaridade. Boletim n. 27 da SOTER; cf. também BETTO, Frei Espiritualidade Holística. Em SUSIN, L. C. (org.) Mysterium Creationis: um olhar interdisciplinar sobre o Universo, p. 301-319.
Última atualização: 08.07.2019 – 22h46