SOTER 2000: Teologia latino-americana – prospectivas

SOTER 2000: Teologia latino-americana – prospectivas

 

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1. O Congresso

Realizou-se em Belo Horizonte, nos dias 24-28 de julho de 2000, o Congresso da SOTER, Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. O tema, neste ano de balanços, foi Teologia na América Latina: Prospectivas. Do Congresso, que contou, pela primeira vez, com a participação de vários países da América Latina, participaram 234 teólogos, teólogas e cientistas da religião. Destes, 77 vieram da Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Peru e Uruguai, além de convidados da Áustria, Canadá, Espanha, Estados Unidos e Itália.

Alguns nomes de destaque na Teologia Latino-Americana que se fizeram presentes: Leonardo Boff, Clodovis Boff, Gustavo Gutiérrez (Peru), José Comblin, João Batista Libânio, Antônio Moser, Benedito Ferraro, Marcelo Barros, Alberto Antoniazzi, Faustino Teixeira,  Pablo Richard (Costa Rica), Ronaldo Muñoz (Chile), Sergio Silva Gatica (Chile), Alberto Parra (Colômbia), José Duque (Costa Rica) e tantos outros. Sem nos esquecermos da presença do Vice-Presidente da Sociedade Europeia de Teologia e do Secretário da Sociedade Católica de Teologia dos Estados Unidos, ou do polêmico teólogo italiano Giulio Girardi, nem do fato inédito da participação e filiação à SOTER de Dom Emanuel Messias de Oliveira, Mestre em Bíblia, bispo da Diocese de Guanhães, MG [de 1998-2011 e, a partir de 2011, bispo de Caratinga, MG].

O Congresso organizou-se em torno de poucas palestras centrais, muitos trabalhos em grupo, painéis e comunicações científicas.

As palestras foram proferidas por Clodovis Boff, Teologia e Teologias: Método; Gustavo Gutiérrez, Teologia e Sociedade; Leonardo Boff, Ecoteologia; João Batista Libânio, Teologia e Religião e um Grupo de Mulheres, Teologias Feministas.

Duas publicações, uma em espanhol, outra em português, veiculam as principais contribuições do Congresso. O livro em português, publicado pelas Paulinas no final de 2000, e organizado por Luis Carlos Susin,  é A Sarça Ardente: Teologia na América Latina: Prospectivas.

Sobre as Comunicações Científicas, como exemplo, eis alguns dos temas apresentados: Douglas A. Rocha Pinheiro, A manifestação do arquétipo da deusa; Giulio Girardi, Insurgencia de los pueblos indígenas y negros como nuevos sujetos; Armando de Melo Lisboa, Liderança? Ibraim Vitor de Oliveira, Do niilismo axiológico e ontológico à mística; Uene José Gomes, As orientações pedagógicas nos documentos de Medellín, Puebla e Santo Domingo; Luis G. del Valle, Teología narrativa ante los nuevos sujetos o actores teológicos.

Conforme o Boletim n. 31 da SOTER, das avaliações pré-programadas pedidas pela organização do Congresso, 64 foram respondidas com o seguinte resultado: 62% considerou o Congresso muito bom, 17% ótimo, 14% bom, 2% regular. Abstenções: 5%. Ainda conforme o Boletim citado, “mais da metade sublinhou como nota mais positiva sua dimensão latino-americana. Em segundo lugar, as conferências proferidas e a presença dos ‘pais da teologia da libertação’, e alguns acentuaram a presença de jovens teólogos. Em terceiro lugar, foi elogiada a organização e a temática, sobretudo a dinâmica de grupos de trabalho e painéis. Alguns registraram o bom nível de reflexão, a ajuda prestada pelos assessores, o nível ecumênico, a intervenção de mulheres, o espaço e as perspectivas de teologias interativas”. Sinal do sucesso do Congresso da SOTER são as avaliações que pedem a realização de congressos desse nível, com participação latino-americana, entre três e cinco anos. No Editorial do Boletim n. 31, a direção da SOTER considerou o Congresso “uma presença expressiva, que significou um verdadeiro ‘encontro’ de diferentes partes, sobretudo um encontro de gerações e de sabedorias”.

 

2. O texto preparatório

Como texto preparatório do Congresso, foi publicado o livro organizado pelo Presidente da SOTER Luiz Carlos Susin, O mar se abriu: trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: SOTER/Loyola, 2000, 294 p. Vinte quatro teólogos latino-americanos e europeus participam desta obra, com textos curtos e muito interessantes. Em português e espanhol  ali podem ser lidos, entre outros, Clodovis Boff, Hugo Assmann, João Batista Libânio, Johann Baptist Metz, Jon Sobrino, Jorge Pixley, Carlos Palácio, José Comblin, José Gonsález Faus, Juan Carlos Scannone, Jürgen Moltmann, Leonardo Boff, Pablo Richard, Sergio Silva Gatica, Christian Duquoc, Diego Irarrazaval…

Na Apresentação de O mar se abriu, Luiz Carlos Susin, Presidente da SOTER, falando da organização deste Congresso em nível latino-americano pergunta: “Quais são as perspectivas [para o novo milênio]? Qual a agenda de trabalho para a teologia e para as ciências da religião? Com quais possibilidades, energias, recursos, métodos, poderemos contar? E, sobretudo, para que teologia?”[1]

E continua Susin: “Este período [os últimos trinta anos] está marcado, como assinalam quase todos os autores deste livro, por dois fatos maiores: pelo acontecimento da Conferência de Medellín como um novo ‘gênero literário’ no magistério dos bispos, um marco pós-conciliar de um novo gênero de eclesiologia e de teologia; e por uma teologia que começou a adquirir rosto latino-americano e que se chamou, em seu modo mais marcante, Teologia da Libertação. Nesse tempo, com esses fortes ventos, também em teologia ‘o mar se abriu’: é o começo histórico de um tempo ainda inacabado, ainda em êxodo, ainda em dores de parto, cada vez mais criativo, diversificado, com energias e cores locais”.[2]

Para concluir: “Pedimos [aos teólogos] que sintetizassem sua trajetória, sublinhando transformações, resultados, carências e mesmo erros e que concluíssem com os novos desafios que a realidade vai impondo à agenda da teologia. Mas sugerimos que o texto poderia ser marcadamente biográfico…”[3].

Acredito que esta obra pode ser de grande valia tanto para os jovens teólogos como para os atuais estudantes de teologia, porque, além de outros méritos, traça a trajetória dos principais conceitos da Teologia da Libertação, coisa útil para se fazer memória e compreender o ponto a que chegamos.

 

3. Abertura e painel: balanço do balanço

O Congresso teve início na noite do dia 24, com uma abertura, na qual Luiz Carlos Susin, presidente da SOTER, falou do sentido do evento. Em seguida, o painel presidido por Benedito Ferraro, da FTCR da PUC-Campinas, fez um balanço do balanço. Participaram deste balanço, Ênio Müller, luterano de São Leopoldo, Sergio Torres, do Chile, José Duque, metodista da Costa Rica e Giulio Girardi, italiano.

Cada teólogo destacou alguns aspectos deste momento histórico em que vive a Teologia da Libertação (=TdL). Como Sergio Torres que disse estar superada a crise da TdL e propôs 6 condições para o prosseguimento da reflexão: reafirmar a opção pelos pobres; atualizar o método; desenvolver a teologia de gênero e as teologias interativas; incorporar a simbologia dos pobres; cuidar da inculturação da fé e do diálogo com outras religiões e, finalmente, dialogar com a nova cultura emergente.

Giulio Girardi, por sua vez, tratou da relação da TdL com as revoluções socialistas da América Central, especialmente a revolução sandinista, salientando a angústia e o trauma de sua derrota. Criticou severamente a capitulação das esquerdas no mundo todo e sua acomodação. As pessoas estão sofrendo com a vitória neoliberal.

Ênio Müller, mais otimista, falou da identidade da TdL e salientou que o próprio Congresso que agora se iniciava mostra sua vitalidade. Mudanças ocorreram, mas elas são necessárias, e temos nos esforçado em acompanhá-las.

Uma dinâmica típica dos paineis: após as falas de cada participante, seguia-se um diálogo entre os painelistas e um debate com o plenário. O deste primeiro dia já prometia muito.

 

4. Teologia, método, sociedade: Clodovis Boff e Gustavo Gutiérrez

No dia 25, o Congresso começou com a palestra de Clodovis Boff, Teologia e Teologias: Método e prosseguiu com a de Gustavo Gutiérrez sobre Teologia e Sociedade, o que ocupou toda a manhã. À tarde foi ocupada por dois blocos temáticos, Teologias e Método e Teologia e Sociedade Latino-Americana, num total de 8 grupos. Comunicações foram feitas no final da tarde e, à noite, a apresentação e o debate, em plenário, do tema Teologias e Método. Falemos das palestras.

Clodovis trabalhou o tema da Fé como princípio e fundamento da Teologia, confrontando este princípio com a exclusão e o sentido. Para Clodovis, a Fé é arqué, “princípio”, de onde arranca, e permanece ancorada, a Teologia. A Fé determina o método e o método ajuda a determinar a Fé. Dessa colocação surgem duas consequências epistemológicas: o saber teológico é um saber de uma inteligência convertida e a teologia é um saber espiritual.

Confrontando esta tese de fundo com a exclusão, Clodovis colocou, em seguida, a fé, vista como arqué, como fundamento da opção pelos pobres. E, confrontada com a questão do sentido, esta tese obriga a Teologia a voltar às suas fontes, neste momento em que a busca de sentido é intensa.

Para Clodovis, finalmente, os jovens teólogos precisam ter três cuidados epistemológicos ao fazer Teologia no século XXI: que a Teologia se faça sob a referência da Fé; que a Teologia mantenha sua vitalidade espiritual e que a Teologia seja sabedoria, casando razão e coração.

Gutiérrez, por sua vez, tomou outro rumo. Começou lembrando os mártires latino-americanos e a difícil situação da América Latina durante as ditaduras militares, chamando a atenção dos congressistas para três pontos:

1) A complexidade do mundo do pobre: “pobre” é uma categoria socioeconômica, bíblica, cultural, de gênero, cor… mas pobreza é, antes de qualquer coisa, “morrer no começo”: pobreza é morte, fome, doença, mortalidade infantil, catástrofes da natureza, como ‘el Niño’ e os pobres no Peru, enfim, é a negação do dom da vida.

2) O esforço para silenciar o mundo do pobre: o engano da globalização que alarga a brecha entre ricos e pobres (países e pessoas), o fenômeno da exclusão, a imposição do “pensamento único”, que nivela para calar o pobre, a economia colocada acima da ética, dispensando a política, a pregação da “morte das ideologias” como tentativa de calar as vozes e as construções do passado… estes foram alguns dos elementos críticos colocados por um dos principais “pais” da TdL. Mas Gutiérrez ainda vê esperança na crítica moderna ao “pensamento único” dentro do próprio Ocidente, na crítica bíblica à idolatria e na crítica econômica ao neoliberalismo.

3) A espiritualidade: terreno da esperança, sendo fundamental a construção de uma hermenêutica da esperança, pois a razão fundamental da opção preferencial pelos pobres é o amor gratuito de Deus.

 

5. Ecoteologia: o paradigma proposto por Leonardo Boff

O dia 26 começou com a palestra de Leonardo Boff trabalhando o desafio que a nova cosmologia lança à Teologia. Leonardo logo alertou os congressistas de que a opção pelos pobres em favor da libertação e da vida deve incluir “gaia”, a Terra como organismo vivo. Tal olhar sobre a Terra põe a grande questão: qual é o futuro do planeta Terra e da humanidade?

Se não questionarmos o “pensamento único” neoliberal, podemos ter o destino dos dinossauros. Como a Teologia pode pensar isto para evitar o desastre que se anuncia? Pois, diante das análises nada otimistas de cientistas e personalidades sensíveis no mundo todo acerca da catástrofe que estamos construindo, a Teologia tem hoje que nos ajudar a salvar a nossa casa, o planeta. Devemos passar do paradigma da violência contra a natureza para o paradigma da convivência com a totalidade: afinal, nós, os seres humanos, somos Terra que anda, pensa, transforma.

Depois de falar da cosmologia como o conjunto dos novos saberes que vão da física às novas antropologias que vê, à maneira de Werner Heisenberg e Niels Bohr, o mundo como relação, Leonardo fez breve história do universo como uma grande peça em cinco atos, para concluir que precisamos superar todo tipo de antropocentrismo, pois nascemos apenas no último minuto do “ano cósmico”. A vida é um fenômeno quântico, que surge da dialética caos e cosmos. Como leitura esclarecedora recomendou Carl Sagan, Um Pálido Ponto Azul, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Teologicamente, Leonardo falou da Trindade como jogo de relações e do Espírito como a força do Universo, uma força em ação que apela para uma espiritualidade cósmica: abraçando o Universo, estamos abraçando Deus. Lembrou, nesse sentido, aquela que classificou como a grande frase do Papa João Paulo II em Puebla: “A essência de Deus não é solidão, é comunhão”.

 

6. Teologias feministas e a relação teologia-religião

Ainda na manhã do dia 26, quatro teólogas – Bárbara (Rio de Janeiro), Claudete (São Paulo) Luiza Tomita (São Paulo), Lúcia Weiler (Rio Grande do Sul) e o teólogo peruano Diego Irarrazaval – falaram sobre vários aspectos das Teologias Feministas e de sua contribuição para a Teologia da Libertação. Tais como os pressupostos teológicos de uma TdL feminista (Tomita), os critérios hermenêuticos na leitura feminista da Bíblia, especialmente no CEBI (Lúcia), e as várias propostas hoje existentes para a teologia de gênero (Diego).

Na tarde deste mesmo dia, a última grande palestra foi feita pelo teólogo jesuíta, João Batista Libânio, de Belo Horizonte. Libânio tratou do tema Teologia e Religião. Falou de três aspectos: da autonomia dos conceitos, da relação entre o teológico e o religioso e da TdL e Religião. Salientou a distinção e tensão existente entre os dois conceitos e concluiu com um apelo à TdL para que seja crítica em relação às experiências religiosas portadoras de uma “teologia fraca”, como, por exemplo, a RCC.

 

7. Painéis e mapeamento teológico da América Latina

A quinta-feira, dia 27 de julho, foi tomada pelos Painéis dos Grupos que haviam debatido os muitos temas nos dois dias anteriores e por um Mapeamento Teológico da América Latina, feito por países e, no caso do Brasil, por regiões.

Como resultado desse dia, em que muitas ideias surgiram e foram debatidas, gostaria de observar apenas o seguinte: todo o debate deu-me a impressão de uma Teologia que corre o risco de girar em torno de si mesma, de seus conceitos e de seus próprios fundamentos. Estão ausentes, ou pelo menos fracamente presentes, as mediações socioantropológicas, a hermenêutica bíblica e a perspectiva histórica dos conceitos. As categorias genéricas “Deus”, “Fé” e “Religião”, por exemplo, assumiram o primeiro plano nos discursos. Por outro lado, tudo isto não deixa de ser um “caldeirão de ideias” importantíssimo.

Quanto ao mapeamento das escolas, recursos e produção teológica latino-americana, observa-se nítida superioridade, pelo menos numérica, do Estado de São Paulo sobre qualquer outra região brasileira e sobre os outros países latino-americanos.

 

8. Prospectivas da teologia na América Latina: o painel final

Na última manhã do Congresso, dia 28, foi feito um painel sobre as Prospectivas da Teologia na América Latina, com a participação de quatro teólogos e uma teóloga: Alberto Parra (Colômbia), Márcio Fabri (São Paulo), Silvana Suaiden (Campinas), José Comblin (Paraíba) e Sergio Silva (Chile). Ao final deste painel sentimos que agora é que estávamos preparados para começar o Congresso. O que não deixa de ser positivo: o que foi debatido durante a semana fomentou ideias e traçou rumos.

Alberto Parra, jesuíta colombiano, chamou a atenção dos congressistas para três pontos: para o lugar primordial da tradição na reflexão teológica da América Latina, tradição que nos abre os horizontes para o futuro; para o método da TdL, que é o que a caracteriza; para a enganosa propaganda neoliberal que procura desacreditar os projetos de libertação, quando se percebe, pelo contrário, que muitos estão construindo o futuro nas suas várias áreas profissionais. Eles e elas são sacramentos de libertação de “Nuestra América”, concluiu.

Márcio Fabri, redentorista de São Paulo e ex-presidente da SOTER, apontou quatro pontos: a esperança como horizonte permanece mais do que viva, embora possamos perceber certo sentimento de impotência diante das exclusões; o pobre como lugar teológico permanece, pois percebemos que houve clara resistência em esconder o rosto do pobre; a questão metodológica mostra que é preciso valorizar o “arqué” (fundamento) e o “axé” (vida), pois ainda estamos enfrentando o desafio de construir maior precisão metodológica na TdL; é necessário maior investimento financeiro para formar uma comunidade científica teológica mais consistente, especialmente entre os leigos.

A intervenção de Silvana Suaiden, professora de Bíblia da FTCR da PUC-Campinas, refletiu a preocupação do grupo de mulheres, quando salientou que a questão do gênero cria tensões positivas: há um desconforto dos homens quando as mulheres falam, há desconfiança em relação ao jovem e à mulher, mas percebe-se uma expansão e transformação do universo teológico, tornando a teologia grávida de sentidos.

O conhecido teólogo belga José Comblin, residente no Brasil há muitos anos e um dos maiores conhecedores dos problemas teológicos e eclesiais da América Latina, fez, em minha opinião, a mais contundente e interessante análise do Congresso da SOTER.

Para Comblin é preciso resgatar a noção de Teologia como reflexão crítica sobre os discursos religiosos, pois, no Congresso, Teologia foi muito usada no sentido de “discurso religioso”. E mais: não se fez uma análise crítica da relação do sandinismo com a TdL; não se ouviu aqui a palavra “socialismo”; parece também que se perdeu de vista o projeto inicial da TdL que era o de formar uma nova sociedade. Será que os teólogos não estão sucumbindo ao capitalismo norte-americano, típico em seu individualismo e ausente na construção de projetos de sociedade? Disse Comblin:

“Com a mudança do sentido da palavra teologia, corre-se o perigo de ver desaparecer a reflexão crítica sobre a prática cristã. Tem-se a impressão de que há uma penetração insensível ou inconsciente das preocupações, do modo de pensar e dos modos de expressão da cultura norte-americana atual, toda imbuída de individualismo. No individualismo extremo dos Estados Unidos a sociedade não é problema. O mercado resolve todos os problemas sociais. Na experiência imediata, o que há, e o que deve haver, é a luta de todos para sobreviver, vencer e permanecer num lugar de destaque. Por isso, o discurso que prevalece, é o discurso de afirmação de identidade. Cada grupo humano, desde que tenha uma pequena diferença, luta para defender a sua identidade e para que esta seja respeitada pelos outros. Daí uma imensa diversidade de discursos paralelos que nunca se encontram, e lutam para conquistar mais espaço. São, essencialmente, discursos de defesa de direitos. Não é em vão que há 2 milhões de advogados nos Estados Unidos. Cada um e cada grupo devem permanentemente defender os seus direitos. A vida social fica dominada por essa necessidade de salvar a própria identidade, a identidade do grupo.

O discurso de identidade é também religioso. Cada grupo quer fazer a sua teologia e defender os direitos da sua teologia no mercado de todos os discursos teológicos, no grande mercado religioso.

Diante de tal multiplicidade de discursos a sociedade real desaparece porque o mercado não cria sociedade, não cria solidariedade, não cria colaboração a serviço do bem comum. O único bem comum é o próprio mercado.

Ora, o desafio assumido pela teologia da libertação foi o desafio de refletir sobre o movimento de mudança da sociedade. Havia que ajudar o povo cristão a construir uma nova sociedade. Dada a terrível herança da sociedade latino-americana, o desafio era criar uma sociedade onde ainda não havia verdadeira sociedade. Tratava-se de criar laços sociais fundados em compromissos mútuos”[4].

Por outro lado, observou Comblin, a espiritualidade apareceu muito no Congresso, como se isto fosse a função do projeto teológico. Entretanto, construir a espiritualidade não é a função do teólogo, que tem como dever examinar e julgar, à luz do evangelho, as espiritualidades existentes. Em suas palavras:

“As espiritualidades respondem à necessidade de desenvolver o aspecto subjetivo da fé, como experiência vivida e consciente. Hoje em dia, com o desenvolvimento extremo da subjetividade e a ruína de todas as instituições religiosas, a espiritualidade torna-se quase a totalidade da religião e da fé. Nasce uma abundância de espiritualidades. Ao lado das espiritualidades cristãs surgem centenas de espiritualidades de outras religiões que muitas vezes se misturam com espiritualidades cristãs.

Tudo isso é sinal dos tempos. Diante de uma imensa procura de espiritualidade, os cristãos devem valorizar as suas próprias, criar novas expressões e transmiti-las ao mundo de hoje.

No entanto precisam levar em conta que é pouco provável que um teólogo ou uma teóloga possa criar uma espiritualidade. Os dons espirituais são diferentes. A sensibilidade, a imaginação, os dons de comunicação, a experiência autêntica de realidades religiosas não são necessariamente características dos teólogos. Inclusive analfabetos podem fundar uma espiritualidade. Há pessoas dotadas de uma intuição religiosa muito forte, mesmo sem nenhum conhecimento teológico, que têm o dom de saber mostrar o caminho a outros.

Os teólogos ou as teólogas não podem pensar que têm a responsabilidade de criar uma espiritualidade. A sua tarefa consiste em refletir criticamente sobre as espiritualidades julgando-as a partir da Bíblia lida e vivida por 2000 anos de vida cristã. Pois, o teólogo é a pessoa que deve aprender a Bíblia e a história da leitura da Bíblia, o que constitui os critérios que permitem dar uma apreciação sobre o que acontece hoje em dia.

O teólogo e a teóloga devem viver uma espiritualidade, mas esta não será criada por eles e sim recebida de outras pessoas dotadas de dons espirituais ainda que não tenham formação teológica. De um professor de teologia espera-se que ensine teologia e não que ensine uma espiritualidade, ainda que seja recomendável que possa mostrar que ele ou ela também vivem uma espiritualidade recebida de outros. É bom ele ou ela ter uma espiritualidade, mas não é o que se espera dele ou dela porque há outras pessoas que podem fazer isso muito melhor. As faculdades e escolas de teologia não preparam de modo algum para produzir uma espiritualidade. Há outros cristãos que o fazem e o fazem muito bem. Não aprenderam numa escola e sim na vida”[5].

A última intervenção, de Sergio Silva Gatica, da PUC de Santiago do Chile, apontou alguns desafios que se colocam hoje à TdL, como: teremos que pensar mais profundamente a questão da sensibilidade coletiva, pois estas sensibilidades marcam as várias características das teologias apresentadas no Congresso. Por outro lado, a criticidade da Teologia é necessária e tem que ser conjugada com estas sensibilidades, sem com elas se confundir. Mas, para isso, é preciso que os latino-americanos escutem mais seus colegas de continente, pois ainda somos muito voltados para a Europa.

 

Conclusão

Concluiu-se o evento com uma reunião dos sócios da SOTER para definir o Congresso de 2001. Este será realizado em Belo Horizonte, como de costume, de 16 a 20 de julho de 2001, ocasião em que ocorrerá também uma Assembleia para eleição da nova diretoria da SOTER. Foi sugerido um Congresso com cerca de 120 participantes, com jovens teólogos encarregados das palestras e muito espaço para o debate.

Os temas sugeridos para o próximo Congresso, dos quais a Diretoria escolherá um, foram:

. Reflexão teológica sobre as novas práticas sociais no Brasil
. Teologia da Terra
. Balanço do Cristianismo
. Ser Igreja no Novo Milênio
. A Questão Indígena.

Artigos


[1]. SUSIN, L. C. (org.) O mar se abriu: trinta anos de teologia na América Latina. São Paulo: SOTER/Loyola, 2000, p. 7.

[2]. Idem, ibidem, p. 7-8.

[3]. Idem, ibidem, p. 8.

[4]. COMBLIN, J. A teologia na presente perspectiva.

[5]. Idem, ibidem.

Última atualização: 27.04.2019 – 13h25