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Pentateuco: novos paradigmas

Novos paradigmas no estudo do Pentateuco

 

leitura: 28 min

 

Resumo

Este artigo desenha um panorama das mudanças pelas quais vem passando os estudos do Pentateuco desde a década de 70 do século XX, aponta as dificuldades que a crise vem criando e propõe algumas pistas de leitura para os interessados no assunto.

 

O conceito de paradigma, que hoje invade todos os campos do conhecimento, é de Thomas S. Kuhn. Em sua obra A estrutura das revoluções científicas, Kuhn trabalha “a ideia de que cada disciplina científica resolve os próprios problemas dentro de uma estrutura preestabelecida por pressupostos metodológicos, convenções linguísticas e experimentos exemplares. Em seu desenvolvimento, a ‘ciência normal’ assim constituída se choca com situações de crise, ou seja, confronta-se com a impossibilidade de resolver um número sempre maior de problemas na base do paradigma vigente”[1].

Desta crise deve nascer um novo paradigma que possui as características da inovação radical, pois ele se amolda aos problemas que estavam na base da crise, permitindo a sua solução, e reproduz novamente a estrutura do paradigma, devolvendo-o para a ciência como uma potência constituinte[2].

KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2017Hoje muitos acreditam que esteja surgindo um novo paradigma nos estudos bíblicos. Em várias áreas dos estudos bíblicos. O tema é amplo. Entretanto, aqui abordarei apenas as questões relativas ao Pentateuco e, de passagem, alguns pontos da História de Israel.

Até meados da década de 70 do século XX havia razoável consenso nos estudos do Pentateuco e da História de Israel. Entre outras coisas, o consenso dizia que a Bíblia Hebraica era guia confiável para a reconstrução da história do antigo Israel. Dos Patriarcas a Esdras, tudo era histórico. Se algum dado arqueológico não combinava com o texto bíblico, arranjava-se uma interpretação diferente que o acomodasse ao testemunho dos textos, como no caso da destruição das (inexistentes) muralhas de Jericó pelo grupo de Josué[3].

É preciso lembrar, porém, que a historiografia alemã, desde W. de Wette, em 1806-7, passando por Julius Wellhausen, em 1894, até Martin Noth, em 1950, não participava integralmente deste consenso, negando, por exemplo, a historicidade dos patriarcas[4].

Mas, os estudos sobre o Pentateuco e a História de Israel estão tomando outros rumos. A teoria clássica das fontes JEP do Pentateuco, elaborada no século XIX por Hupfeld, Kuenen, Reuss, Graf e, especialmente, Wellhausen, vem sofrendo sérios abalos, de forma que hoje muitos pesquisadores consideram impossível assumir, sem mais, este modelo como ponto de partida. O consenso wellhauseniano sobre o Pentateuco foi rompido. As datas, origens e propostas das tradições que formam o Pentateuco estão sendo revistas. Por sua vez, a paráfrase racionalista do texto bíblico que constituía a base dos manuais de História de Israel não é mais aceita. A sequência patriarcas, José do Egito, escravidão, êxodo, conquista da terra, confederação tribal, império davídico-salomônico, divisão entre norte e sul, exílio e volta para a terra está despedaçada.

O uso dos textos bíblicos como fonte para a História de Israel é questionado por muitos. A arqueologia ampliou suas perspectivas e falar de ‘arqueologia bíblica’ hoje é proibido: existe uma ‘arqueologia da Palestina’, ou uma ‘arqueologia da Síria/Palestina’ ou mesmo uma ‘arqueologia do Levante’.

O uso de métodos literários sofisticados para explicar os textos bíblicos, afasta-nos cada vez mais do gênero histórico, e as ‘histórias bíblicas’ são abordadas com outros olhares. A ‘tradição’ herdada dos antepassados e transmitida oralmente até à época da escrita dos textos frequentemente não consegue provar sua existência.

A construção de uma História de Israel feita somente a partir da arqueologia e dos testemunhos escritos extrabíblicos é uma proposta cada vez mais tentadora. Uma História de Israel que dispense o pressuposto teológico de Israel como ‘povo escolhido’ ou ‘povo de Deus’ que sempre a sustentou. Uma ‘História de Israel e dos Povos Vizinhos’, melhor, uma ‘História da Síria/Palestina’ ou uma ‘História do Levante Sul’ parece ser o programa para os próximos anos.

E o Pentateuco?

Pois há pesquisadores de renome na área, como Rolf Rendtorff, que em 1993 já afirmava, com todas as letras: “Os problemas da interpretação do Pentateuco estão intimamente ligados aos problemas mais amplos da reconstrução da história de Israel e da história de sua religião (…) Não é por acaso que uma das mudanças mais importantes estejam ocorrendo com as hipóteses sobre as origens de Israel”. E completa: “Um dos muitos pontos de incerteza é a questão da identidade de Israel”[5].

Este artigo desenha um panorama destas mudanças pelas quais vem passando os estudos do Pentateuco (e da História de Israel) desde a década de 70 do século XX, aponta as dificuldades que a crise vem criando e propõe algumas pistas de leitura para os interessados no assunto[6].

 

1. Patriarcas? Que Patriarcas?

Em 1967, o norte-americano Thomas L. Thompson começou sua pesquisa na Universidade de Tübingen, na Alemanha. O tema: as narrativas patriarcais. Sua ideia fundamental: se algumas das narrativas sobre os patriarcas hebreus estavam se referindo historicamente ao segundo milênio a.C., como quase todos os arqueólogos e historiadores acreditavam naquela época, então Thompson poderia distinguir nelas as mais antigas histórias bíblicas da tradição posterior mais ampliada[7].

Quando Thompson começou seu trabalho, ele estava tão convencido da historicidade das narrativas sobre osThomas L. Thompson ( Detroit, Michigan, EUA, 1939) patriarcas no Gênesis, que aceitou, sem questionar, os paralelos feitos entre os costumes patriarcais e os contratos familiares encontrados na cidade de Nuzi, no norte da Mesopotâmia, e datados da época do Bronze Recente (ca. 1500-1200 a.C.).

Em Nuzi, habitada principalmente por hurritas, foram encontradas cerca de 3.500 tabuinhas cuneiformes, que cobrem a vida da comunidade e de cidades vizinhas ao longo de seis gerações. Especialmente significantes são as informações administrativas, sociais, econômicas e as descrições das práticas e estruturas jurídicas. É um material que ilustra brilhantemente a vida diária de uma comunidade da metade do segundo milênio a.C. [8].

Dois anos mais tarde, porém, em 1969, Thompson percebeu que os costumes familiares de Nuzi e as leis sobre propriedades não eram exclusivos nem de Nuzi, nem do segundo milênio, mas, mais provavelmente, refletiam práticas típicas do primeiro milênio a.C. Isto quebrava o paralelismo feito pelos autores entre Nuzi e o mundo patriarcal e tirava a garantia de que os costumes patriarcais refletiam práticas do segundo milênio.

Um bom exemplo desse paralelismo pode ser lido no comentário de SPEISER[9], na clássica coleção The Anchor Bible, no qual o autor discute cerca de 20 coincidências entre os costumes patriarcais e os costumes de Nuzi, como os casos da esposa-irmã Sara (Gn 12,10-20 e paralelos), a adoção de um estrangeiro, Eliezer, como herdeiro (Gn 15,2) ou a mãe de aluguel como Agar (Gn 16,1-6)[10].

Além do mais, examinando a ‘hipótese amorita’, segundo a qual teria havido grande migração de nômades vindos das fronteiras do deserto siro-arábico para a Mesopotâmia e para a Síria-Palestina no final do terceiro milênio, Thompson percebeu que não havia prova alguma para tal pressuposto, pois o que se descobriu nos últimos anos é que os amoritas são sedentários do norte da Mesopotâmia, vivendo da agricultura e da criação de gado. Isto é testemunhado pelas centenas de povoados espalhados do Eufrates até os vales dos rios Khabur e Balikh e datados pelos arqueólogos como existentes desde o Calcolítico. O crescimento populacional dos amoritas deve ter provocado a ampliação de seus territórios e a ocupação de várias cidades da região. Além do que, muitas das mudanças ocorridas em todo o Antigo Oriente Médio que antes eram atribuídas a invasões mal documentadas de povos, podem ser explicadas, hoje, mais cientificamente, pelas mudanças climáticas na região, sujeita a períodos de secas prolongadas e devastadoras[11].

Thompson passou, então, a defender que as narrativas patriarcais estavam refletindo muito mais o primeiro do que o segundo milênio, e a datação tradicional dos patriarcas e sua historicidade caíram por terra. Como comenta Walter Vogels, “após um século de pesquisa, voltou-se ao ponto de partida. Thompson afirma, em 1974, o que Wellhausen propusera em 1878. Poderíamos dizer que Thompson é um Wellhausen redivivus[12].

THOMPSON, T. L. The Historicity of the Patriarchal Narratives: The Quest for the Historical Abraham, Berlin: Walter de Gruyter [1974], 2016.O resultado de tal conclusão foi academicamente desastroso. Thompson, que terminou a pesquisa em 1971, não pôde defender sua tese na Europa. A tese só foi publicada em 1974 e Thompson só conseguiu seu PhD na Temple University, Philadelphia, Estados Unidos, em 1976[13].

John Van Seters, de quem falaremos mais detalhadamente no próximo item a propósito do Javista, pesquisando a historicidade dos patriarcas, independente de Thomas L. Thompson, chegou a conclusões semelhantes, não atribuindo qualquer valor histórico às histórias sobre Abraão.

Mais uma vez, citando Walter Vogels, conclui-se, a propósito da historicidade dos patriarcas: “Thompson e Van Seters concordam, portanto, em que não se pode afirmar que os relatos dos patriarcas remontam a tradições históricas, e que os patriarcas sejam personagens históricos. As tradições bíblicas sobre os patriarcas não têm uma perspectiva histórica, mas perspectivas ideológicas, sociológicas, políticas e religiosas[14]”.

Entretanto, salienta o autor, estes estudos não convenceram todos os historiadores: “Vários pesquisadores mostraram os pontos fracos das análises de Thompson e Van Seters e insistiram no caráter arcaico dos textos e em seu conteúdo histórico. Eles afirmam que os patriarcas não são meras invenções literárias. Mas os estudos de Thompson e Van Seters vêm com certeza frear e nuançar um entusiasmo demasiado rápido para ‘provar’ o valor histórico dos textos e a historicidade dos patriarcas”[15].

Em 1987 Thomas L. Thompson começou a trabalhar a questão das origens de Israel, retomando a argumentação publicada em um artigo de 1978, sob o título de “O Background dos Patriarcas” no Journal for the Study of the Old Testament, da editora Sheffield, Reino Unido[16]. Neste artigo, Thompson localizava as origens de um Israel histórico na região montanhosa ao norte de Jerusalém durante o século IX a.C. Isto implicava a exclusão de qualquer unidade política de Israel que abrangesse toda a Palestina, ou seja, não podia ter existido uma ‘Monarquia Unida’ sob Saul, Davi e Salomão em Jerusalém, no século X a.C.

O estudo completo resultou no livro Early History of the Israelite People from the Written and Archaeological Sources [Antiga História do Povo Israelita a partir de Fontes Escritas e Arqueológicas], Leiden, Brill, 1992 [2. ed.:1994]. Diz Thompson que a reação a este livro foi pior do que à tese sobre os patriarcas, levando ao afastamento do autor da Marquette University, nos Estados Unidos, onde trabalhava.

Mas em 1993 Thompson foi convidado para trabalhar no Departamento de Estudos Bíblicos da Universidade de Copenhague, onde até hoje se encontra, e onde encontrou um grupo com ideias avançadas sobre a ‘História de Israel’, os hoje chamados ‘minimalistas’.

 

2. Van Seters reinventa o javista

Ainda em 1964, o canadense John Van Seters aceita o desafio de um seu professor e começa a revisão da ‘Hipótese Documentária’ do Pentateuco, examinando as tradições sobre Abraão.

A ‘Hipótese Documentária’ afirmava, desde o século XIX, que o Pentateuco era composto pelas fontes JEDP – Javista, Eloísta, Deuteronômio e Sacerdotal, elaboradas desde o século X a.C. na corte davídico-salomônica até o século V a.C., com Esdras, na Jerusalém pós-exílica.

F. V. Winnet, professor de Van Seters, em conferência feita em 1964, levantou uma série de dúvidas sobre osJohn Van Seters (Hamilton, Ontario, Canadá, 1935) fundamentos da Hipótese Documentária. Winnet não aceitava a fonte E como um documento independente. Quando muito, admitia o pesquisador, ela poderia ser uma revisão de mais antiga tradição patriarcal e não poderia ser encontrada no Êxodo e Números. Isto porque o desenvolvimento literário do Gênesis teria ocorrido de modo independente de Êxodo e Números até o estágio final da composição do Pentateuco, quando então foram organizados e combinados pelo Sacerdotal (P). Assim, duas diferentes fontes deveriam ser vistas dentro do material J do Gênesis: uma mais antiga e outra da época do exílio. Com um detalhe: estas fontes não seriam documentos independentes, mas complementos de outras mais antigas. O mesmo deveria ser dito do P.

Embora a proposta de Winnet não tenha causado repercussão, Van Seters, examinando as tradições sobre Abraão, como dissemos, percebeu que episódios paralelos – como a história de Sara “irmã” de Abraão em Gn 12,10-20;20,1-18;26,1-11 – não são documentos independentes agrupados por redatores, mas sua relação é de complementação: Gn 12,1-20 corresponde ao J mais antigo de Winnet, Gn 20, 1-18 ao complemento E e Gn 26,1-11 ao J mais recente da proposta do professor.

VAN SETERS, J. Abraham in History and Tradition. Brattleboro, VT: Echo Point Books & Media, 2014.Van Seters concluiu também que o material atribuído ao J mais antigo era muito pequeno, que o E consistia de uma única estória e que todo o material não-P pertencia ao javista mais recente.

Percebendo igualmente a forte afinidade do J com o Dêutero-Isaías, e também que a forma da promessa da terra no J era um desenvolvimento posterior daquela encontrada no Deuteronômio e na tradição deuteronomista, Van Seters concluiu que o J deveria ser visto como um autor pós-D, e que a ‘Hipótese Documentária’ deveria ser totalmente revista. Van Seters publicou sua pesquisa em 1975[17].

 

3. Schmid e Rendtorff: a explosão da crise do Pentateuco

Em 1976 e em 1977 apareceram os livros de Hans Heinrich Schmid (1937-2014) e de Rolf Rendtorff (1925-2014) sobre o mesmo assunto. A crise do Pentateuco explodiu, então, em plena luz do dia e ninguém mais podia Hans Heinrich Schmid (Winterthur, Zürich, Suíça, 1937-2014)escapar da constatação de que a teoria clássica das fontes do Pentateuco, pelo menos em sua forma mais rígida, era insustentável.

H. H. Schmid, em 1976, contestou a tese de G. Von Rad de um ‘Iluminismo Salomônico’, do qual não se percebia nenhum sinal, como o ambiente no qual o javista teria nascido. Examinando uma série de textos amplamente aceitos como javistas, Schmid procurou mostrar que o J dependia fortemente da tradição profética e estava muito próximo da escola deuteronômica. A conclusão a que se chegou foi de que o Pentateuco era o produto do movimento profético, assim como o era o livro do Deuteronômio, e de que o J deveria ser visto em estreita associação com a escola deuteronômica nos últimos anos da monarquia ou na época do exílio[18].

Embora não tenha discutido a datação do J em relação ao D, seu discípulo Martin Rose, em 1981, chegou à conclusão de que o Deuteronômio e a Obra Histórica Deuteronomista eram anteriores ao javista[19].

SCHMID, H. H. Der sogenannte Jahwist. Zürich: Theologischer Verlag, 1976.Rolf Rendtorff, por sua vez, em 1977, retomando a ideia de M. Noth da formação do Pentateuco a partir de temas independentes, chega à conclusão de que tal independência não deve ser limitada ao período pré-literário, mas o alcança. Rendtorff não vê nenhuma conexão original entre Gênesis e Êxodo-Números, mas sim uma posterior costura deuteronomista ligando estas tradições. Donde se conclui que a ideia de fontes, tal como a J, deve ser abandonada, e que o desenvolvimento dos temas é que deve ser enfocado: “Cada unidade maior teve seu próprio processo de redação antes de ser colocada em contato com outras unidades”, defende[20]. Seu aluno Ehard Blum, mais tarde, confirma as intuições de seu mestre estudando as tradições patriarcais de Gn 12-50[21].

 

4. Van Seters amplia seu estudo sobre o javista

Van Seters, por seu lado, estendeu seu estudo sobre o J a todo o Tetrateuco e defendeu, em livros publicados em 1992 e 1994, que o Javista compõe uma obra unificada que vai da criação do mundo até a morte de Moisés. Rolf Rendtorff (Preetz, Alemanha, 1925-2014) O J faz o trabalho de um historiador – semelhante ao trabalho do historiador grego Heródoto – no qual ele se baseia em fontes orais e escritas, dando-lhe, porém um significado teológico próprio.

O objetivo da obra do J é o de corrigir o nacionalismo e o ritualismo da Obra Histórica Deuteronomista, da qual ela é uma espécie de introdução. Por isso, o Javista é posterior ao Deuteronômio e à Obra Histórica Deuteronomista, sendo contemporâneo do Dêutero-Isaías e tendo afinidades com Jeremias e com Ezequiel. Mas é anterior ao Sacerdotal (P), que, por sua vez, não é uma obra independente, mas uma série de suplementos pós-exílicos ao D+J. O Eloísta (E) não se sustenta como documento independente e desaparece[22].

Van Seters conclui: “Deste modo, eu procuro resolver o problema existente entre os argumentos de Noth a favor de um Tetrateuco separado do D/OHDtr e a insistência de Von Rad em um Hexateuco, com Josué como o objetivo das promessas patriarcais. Já que o J era posterior ao D/OHDtr, ele ligou as duas grandes obras e acrescentou sua própria conclusão final ao Hexateuco através do segundo discurso de Josué em Js 24”[23].

 

5. Finkelstein & Silberman colocam o Pentateuco na época de Josias

Israel Finkelstein, autor de importantes estudos no campo da arqueologia da Palestina, foi o Diretor do Instituto de Arqueologia Sonia e Marco Nadler da Universidade de Tel Aviv, Israel, de 1996 a 2003, e Diretor das RENDTORFF, R. Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch. Berlin: Walter de Gruyter, [1977] 2015.escavações de Tel Meguido. Ganhou em 2005 o prêmio Dan David. É o titular da Cátedra Jacob M. Alkow de Arqueologia de Israel nas Idades do Bronze e do Ferro da mesma Universidade. Neil Asher Silberman é Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Massachusetts-Amherst, nos Estados Unidos.

Pois estes dois são atualmente os autores do mais envolvente e debatido livro que trata da História de Israel e do Pentateuco[24]. A obra, de 385 páginas, publicada em 2001, contém 12 capítulos agrupados em três partes, um epílogo, 7 apêndices – que retomam e aprofundam temas tratados ao longo do texto – uma bibliografia, um índice de nomes e lugares, além dos tradicionais prólogo e introdução. Donos de prosa refinada, os autores tomam cuidadosamente o leitor pela mão e o conduzem em aventura fascinante através do mundo do Antigo Israel[25].

No Prólogo os autores propõem que o mundo em que a Bíblia nasceu foi o da Jerusalém da reforma do rei Josias no século VII a. C. O núcleo histórico da Bíblia, pelo menos – e isto implica o Pentateuco e a Obra Histórica Deuteronomista – nasceu nas ruas de Jerusalém, nos pátios do palácio real da dinastia davídica e no Templo do Deus de Israel, em parte de materiais tradicionais herdados, em parte de composições originais da época.

Nas palavras dos autores: “A saga histórica contida na Bíblia – do encontro de Abraão com Deus e sua jornadaIsrael Finkelstein (Tel Aviv, Israel, 1949) & Neil Asher Silberman (Boston, Massachusetts, EUA,1950) para Canaã, da libertação mosaica dos filhos de Israel da escravidão até a ascensão e queda dos reinos de Israel e Judá – não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana. Ela foi concebida pela primeira vez – como as recentes descobertas arqueológicas sugerem – no espaço de duas ou três gerações, a cerca de dois mil e seiscentos anos atrás. Seu berço foi o reino de Judá, uma região escassamente povoada por pastores e agricultores, governada por uma isolada cidade real precariamente encravada no coração da região montanhosa sobre um estreito cume, entre profundos, rochosos desfiladeiros”[26].

Uma cidade que pareceria extremamente modesta aos olhos de um observador moderno, com seus cerca de 15 mil habitantes, com bazares e casas amontoadas a oeste e sul de um modesto palácio real e seu Templo. Entretanto, no século VII a. C., esta cidade fervilhava com uma agitada população de oficiais reais, sacerdotes, profetas, refugiados e camponeses privados de suas terras. Uma cidade consciente de sua história, identidade, destino e relação direta com Deus.

Esta visão da antiga Jerusalém e das circunstâncias que deram origem à Bíblia, insistem os autores, é proveniente das recentes descobertas arqueológicas. Descobertas que “revolucionaram o estudo do Israel primitivo e lançaram sérias dúvidas sobre as bases históricas das tão famosas histórias bíblicas como as peregrinações dos patriarcas, o Êxodo do Egito, a conquista de Canaã e o glorioso império de Davi e Salomão”[27].

É isto que os autores deste livro pretendem contar: “A estória do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica”. Os autores pretendem separar história de lenda. Enfim, declaram, seu propósito não é simplesmente desmontar conhecimentos ou crenças, mas partilhar as mais recentes percepções arqueológicas “não apenas sobre o quando, mas também sobre o porquê a Bíblia foi escrita, e porque ela permanece tão poderosa ainda hoje” [28].

FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.Na Introdução, após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia oferece hoje evidência suficiente para que se sustente uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século VII a. C.

“Nós focalizaremos o Judá do final do século VIII e do século VII a. C., quando este processo literário começou para valer, e argumentaremos que a maior parte do Pentateuco é uma criação da monarquia recente, elaborado em defesa da ideologia e necessidades do reino de Judá, e, como tal, está intimamente associado à História Deuteronomista. E nos alinharemos com aqueles estudiosos que argumentam que a História Deuteronomista foi compilada, principalmente, no tempo do rei Josias [640-609 AEC], para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas”[29].

 

Bibliografia

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>> Bibliografia atualizada em 24.07.2024

> Uma primeira versão deste texto foi escrita em 2007.  Revisto e atualizado em 2024.

Artigos


  1. NEGRI, A. Revoluções de Kuhn. In: Folha de São Paulo, 28.07.96, 5.11. Cf. KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2017, especialmente as páginas 217-257.
  2. Cf. NEGRI, A. Idem, ibidem.
  3. Estou me inspirando no artigo de RENDSBURG, G. A. Down with History, Up with Reading: The Current State of Biblical Studies, em At the Cutting Edge of Jewish Studies, no qual o autor lamenta e critica, em conferência pronunciada no Departamento de Estudos Judaicos da McGill University, Canadá, em maio de 1999, a ruptura do consenso que passo a descrever.
  4. Cf., sobre isso, LEMCHE, N. P. The Israelites in History and Tradition. Louisville: Westminster John Knox Press, 1998, p. 150. Dos três autores citados, podem ser consultadas as seguintes obras: WETTE, W. M. L. DE Beiträge zur Einleitung in das Alte Testament, Zweiter Band. Halle: Schimmelpfennig und Compagnie, 1807; WELLHAUSEN, J. Prolegomena zur Geschichte Israel. Nachdruck der 6. Auflage. Berlin: Walter de Gruyter, 2001 (em inglês: Prolegomena to the History of Israel. Scholars Press, 1994; este texto pode ser lido online aqui; NOTH, M. Geschichte Israels. 10 ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, [1950] 1986 (em inglês: The History of Israel. 2. ed. New York: Harper & Brothers, 1960).
  5. RENDTORFF, R. The Paradigm is Changing: Hopes and Fears. In: LONG, V. P. (ed.) Israel’s Past in Present Research: Essays on Ancient Israelite Historiography. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1999, p. 60-61. O artigo de Rendtorff, exegeta alemão, professor em Heidelberg, foi reimpresso da revista Biblical Interpretation 1 (1993), p. 34-53.
  6. Para um tratamento mais detalhado do tema,  recomendo a leitura cuidadosa de meu artigo A História de Israel no debate atual, disponível na Ayrton’s Biblical Page.
  7. Cf. THOMPSON, T. L. The Mythic Past: Biblical Archaeology and the Myth of Israel. New York: Basic Books, 1999, p. XI.
  8. Cf. FREEDMAN, D. N. (ed.) The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM. New York: Doubleday & Logos Library System, [1992] 1997, verbete Nuzi.
  9. SPEISER, E. A. Genesis. Garden City, New York: Doubleday, 1964.
  10. Estes e outros exemplos podem ser mais facilmente vistos em VOGELS, W. Abraão e sua Lenda: Gênesis 12,1-25,11. São Paulo: Loyola, 2000, p. 38-45.
  11. Cf. FREEDMAN, D. N. (ed.) The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM, verbete Amorites; THOMPSON, T. L. The Mythic Past, p. 101-225. 
  12. VOGELS, W. Abraão e sua Lenda, p. 31.
  13. O livro de Thomas L. Thompson: The Historicity of the Patriarchal Narratives: The Quest for the Historical Abraham. Berlin: Walter de Gruyter, [1974] 2016. Leia mais sobre isto em On the Problem of Critical Scholarship: A Memoire, artigo de Thomas L. Thompson publicado na revista online The Bible and Interpretation em abril de 2011.
  14. VOGELS, W. Abraão e sua Lenda, p. 31.
  15. Idem, ibidem, p. 31. Vogels mantém uma postura moderada nesta questão: “Entre a atitude fundamentalista, que toma tudo ao pé da letra, como fatos históricos, e a atitude cética, que considera tudo como mera imaginação, as pesquisas sérias nos convidam a tomar uma posição intermediária”, diz o autor na p. 54 (o original deste livro foi publicado em 1996 em Montreal e Paris). Outra postura ‘prudente’ é a de Albert de Pury, que pode ser vista em seu texto A tradição patriarcal em Gênesis 12-35, em DE PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 206-216 (a obra original foi publicada em Genebra em 1989). Entre os defensores das posturas tradicionais sobre o Pentateuco (e a História de Israel!) podem ser citados Frank Moore Cross e Harvard School, herdeiros, nos Estados Unidos, de ideias albrightianas, conforme VAN SETERS, J. The Pentateuch: A Social-Science Commentary. 2. ed. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015, p. 53-57. Em sua autobiografia, publicada em 2018, diz Van Seters: “Os dois livros, o de Tom [Thomas L. Thompson] e o meu, ficaram conhecidos como o ataque de Thompson-Van Seters à história bíblica, e a Escola Albright e seus simpatizantes partiram para o contra-ataque. O livro muito popular, A História de Israel, de John Bright, aluno de Albright, teve uma nova edição após o aparecimento de nossos livros; ele os notou, mas os dispensou sem discussão e com o breve comentário de que “é duvidoso que suas posições obtenham aceitação geral ou duradoura”. Na verdade, ele estava completamente errado. Não demorou muito para que surgissem outras histórias e introduções nas quais nossa posição fosse prontamente aceita. A resistência mais duradoura veio da turma da arqueologia bíblica que vendia seus empreendimentos arqueológicos para apoiadores leigos, afirmando que eles estavam de fato descobrindo a história bíblica, e qualquer coisa que diminuísse a quantidade de conteúdo histórico da Bíblia era ruim para os negócios e para a arrecadação de fundos para suas atividades. Os cristãos e judeus conservadores, que faziam uso da arqueologia bíblica para apoiar a sua crença na historicidade da Bíblia, tendiam a difamar-me, embora soubessem pouco sobre mim ou sobre o meu passado evangélico” (VAN SETERS, J. My Life and Career as a Biblical Scholar. Eugene, OR: Cascade Books, 2018, Chapter 2: Toronto Years, 1970–1977).
  16. O estudo foi relançado em livro. Cf. THOMPSON, T. L. The Background of the Patriarchs: A Reply to William Dever and Malcolm Clark. In: ROGERSON, J. W. The Pentateuch: A Sheffield Reader. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996, p. 33-74.
  17. Cf. VAN SETERS, J. Abraham in History and Tradition. New Haven: Yale University Press, 1975. Cf., para a exposição acima, VAN SETERS, J. The Pentateuch: A Social-Science Commentary, p. 59-60. A conferência de F. V. Winnet, foi Re-Examining the Foundations. Journal of Biblical Literature, Vol. 84, No. 1 (Mar., 1965), p. 1-19. O texto foi apresentado como fala do presidente no Congresso da Society of Biblical Literature (SBL) de 1964 em Nova York e está disponível para download em pdf aqui.
  18. Cf. SCHMID, H. H. Der sogenannte Jahwist. Zürich: Theologischer Verlag, 1976. Cf. uma exposição do pensamento de Schmid em DE PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão, p. 63-65.
  19. ROSE, M. Deuternomist und Jahwist: Untersuchungen zu den Berührungspunkten beider Literaturwerke. Zürich: Theologischer Verlag, 1981. Cf. DE PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão, p. 65-67; VAN SETERS, J. The Pentateuch: A Social-Science Commentary, p. 62.
  20. E PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão, p. 68. RENDTORFF, R. Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch. Berlin: Walter de Gruyter, 1977 (tradução inglesa: The Problem of the Process of Transmission in the Pentateuch. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1990).
  21. Cf. BLUM, E. Die Komposition der Vätergeschichte. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1984; Studien zur Komposition des Pentateuch. Berlin: Walter de Gruyter, 1990.
  22. Cf. VAN SETERS, J. The Pentateuch: A Social-Science Commentary, p. 58-86.
  23. Idem, ibidem, p. 61-62.
  24. FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts [A Bíblia Não Tinha Razão. São Paulo: A Girafa, 2003]. New York: The Free Press, 2001.
  25. Cf. uma resenha do livro em https://airtonjo.com/site1/resenha-6.htm.
  26. FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. o. c., p. 1.
  27. Idem, ibidem, p. 3.
  28. Idem, ibidem, p. 3.
  29. Idem, ibidem, p. 14. A partir deste ponto convido o leitor a seguir o pensamento dos autores na resenha citada acima em https://airtonjo.com/site1/resenha-6.htm.

Deuteronomista

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O contexto da Obra Histórica Deuteronomista

 

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Königsberg, Alemanha, 1943: nesta ocasião, Martin Noth propõe, pela primeira vez, que os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam uma coletânea (Sammelwerk) de tradições, que deverá ser chamada de historiografia deuteronomista. Nome que lhe é atribuído por sua grande semelhança com as leis e os discursos exortativos do Deuteronômio. Livro este, que, por sua vez, em seus discursos iniciais, cumpre a função de introdução à coletânea. Para Noth, a OHDtr (= Obra Histórica Deuteronomista) teria sido redigida por um só autor, possivelmente na Palestina do século VI a.C., com o objetivo de explicar o fim do reino de Judá e o exílio babilônico então em curso como fruto da apostasia do povo1.

Hoje, mais de 70 anos após a “invenção” de Noth, dezenas de hipóteses sobre a OHDtr, espalhadas em milhares de estudos, são propostas pelos especialistas, destacando-se, entre elas, duas correntes: a de Cross e a de Smend.

Frank Moore Cross, em um artigo de 1968, reeditado em 1973, propõe duas edições da OHDtr: a primeira, elaborada na época de Josias (640-609 a.C.), é um escrito otimista que dá suporte e celebra a reforma político-religiosa deste rei de Jerusalém; a segunda, escrita durante o exílio, é marcada pela experiência da catástrofe de 586 a.C. e transforma o anterior escrito de propaganda em explicação teológica das causas da desgraça que atingiu Jerusalém e Judá. Seus discípulos R. D. Nelson e R. E. Friedman, além de muitos outros pesquisadores, seguem-no de perto2.

Saindo de Harvard, nos Estados Unidos, para Göttingen, na Alemanha, encontramos a hipótese de Rudolf Smend, feita em 1971 e retomada em 1978, e de seus discípulos W. Dietrich e T. Veijola. Eles propõem três redações para a OHDtr, todas escritas no tempo do exílio. Para Smend, à semelhança de M. Noth, o objetivo da OHDtr seria o de explicar a catástrofe do exílio. Muitos pesquisadores, sobretudo nos países de língua alemã, aderiram às suas explicações3.

É evidente que a maior parte das questões sobre a OHDtr ainda não foram satisfatoriamente respondidas. Como, por exemplo: quem escreveu esta obra? Quando? Quantas modificações sofreu? Onde começa? Qual o seu objetivo? E até: existe mesmo uma OHDtr? Também: não estaríamos atribuindo ao “deuteronomista” muitas coisas sobre as quais não conhecemos a origem? Existe, de fato, um “pandeuteronomismo”? Uma “invasão” de teologia deuteronomista em vários livros bíblicos, como muitos sugerem, é aceitável?

A proposta deste artigo é apontar, apesar de todas estas questões, o contexto em que a OHDtr foi escrita. Esta tentativa talvez suscite mais questões do que ofereça respostas. Entretanto, um bom ponto para começarmos a pensar a situação é o seguinte: do século XII a.C. (época da chegada dos “Povos do Mar”) até 745 a.C. (época do rei assírio Tiglat-Pileser III), quase nenhuma interferência duradoura de grandes impérios pode ser detectada na região de Canaã, permitindo aos povos da região uma relativa estabilidade e a construção de sua independência4. Mas a partir de 745 a.C…. Assim começaremos a delinear nosso contexto a partir da metade do século VIII a.C.

 

1. Israel é destruído pela Assíria

A Assíria parecia inerte, até que, em 745 a.C.,  subiu ao trono Tiglat-Pileser III (= Teglat-Falasar III), aquele que iria tornar-se um dos maiores reis da Assíria, o verdadeiro fundador de seu império. Desde sua ascensão, Tiglat-Pileser III empreendeu uma série de operações militares. Depois de garantir sua retaguarda e as grandes vias de comunicação com o Irã e o Golfo Pérsico, os exércitos assírios tomaram o caminho do sul. As conquistas de Tiglat-Pileser III são mal documentadas, mas sabe-se que de 743 a 738 a.C. ele desbaratou a coalizão siro-urártia e se impôs aos dinastas aramaicos.

O sucesso da expansão imperialista assíria nesta época se explica, pelo menos em parte, pela agressiva política de Tiglat-Pileser III, que não se limitava apenas a recolher tributos, como seus antecessores, Tiglat-Pileser III (745-727 a.C.)mas submetia permanentemente os territórios conquistados. As rebeliões eram punidas com invasão, destruição, deportação e incorporação do território ao império assírio.

Ou seja, com Tiglat-Pileser III a guerra converteu-se em guerra de conquista: o território ocupado era incluído nos limites da terra de Assur e dividido em províncias dirigidas por governadores (bel pihati) que dispunham de guarnições permanentes. As tropas assírias estavam, portanto, sempre a postos para sufocar as dissidências e empreender novas operações. Por outro lado, o rei deportou numerosas populações para regiões distantes, a fim de separá-las de seu meio natural e impedir quaisquer veleidades de rebelião. Isto criou um amálgama de populações de diferentes origens e culturas, submetidas, entretanto, a uma única jurisdição, pois Tiglat-Pileser III computou-as entre os habitantes da terra de Assur, obrigando-as, como tais, às mesmas contribuições e corveias. Em todo o império praticou-se essa política de conquista e assimilação. Liverani calcula que esta prática assíria de “deportação cruzada” de populações, envolveu, ao longo de três séculos, algo como 4 milhões e meio de pessoas. Quebrava-se, deste modo, a resistência política e se preservava a economia local5.

E esta política envolveu Israel, quando grande instabilidade tomou conta do reino nos seus últimos 30 anos, pois de 753 a 722 a.C. seis reis se sucederam no trono de Samaria, abalado por as­sassinatos e golpes sangrentos. Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Me­nahem, Pecah e Oseias) e 4 assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah). Como estaremos lidando com mais de uma dezena de nomes, um quadro cronológico dos reis de Israel pode ser útil aqui6.

NomeDataDuração
Jeroboão I931-910/9 a.C.21 anos
Nadab910-9092 anos
Baasa909/8-88622 anos
Ela886/5-8852 anos
Zimri885/47 dias
Omri885/4-87411 anos
Acab874/3-85321 anos
Ocozias853-8522 anos
Jorão852-84111 anos
Jeú841-81328 anos
Joacaz813-79716 anos
Joás797-78215 anos
Jeroboão II782/1-75329 anos
Zacarias7536 meses
Salum753/21 mês
Menahem753/2-74211 anos
Pecahia742/1-7402 anos
Pecah740/39-7319 anos
Oseias731-7229 anos

Em 738 a.C. Tiglat-Pileser III já submetera grande parte da Síria e da Fenícia e Israel começou a pagar-lhe tributo quando governava Menahem (2Rs 15,19-20). Contudo, grupos anti-assírios assassinaram Pecahia, filho e sucessor de Menahem, e Pecah, o golpista que subiu ao poder, associou-se a Rason, rei de Damasco, para enfrentar a interferência assíria na região. Desta campanha deveria participar Acaz, rei de Jerusalém, que ao se recusar, teve seu governo ameaçado com uma invasão de Judá por Pecah e Rason (Is 7,1-17; 2Rs 16,5-18). Acreditando não poder se defender sozinho, Acaz, para desgosto do profeta Isaías que o aconselhava, chamou em seu socorro o rei assírio Tiglat-Pileser III, dando-lhe, assim, a oportunidade de que necessitava para ampliar o seu poder na região siro-palestina.

Tiglat-Pileser III destruiu e incorporou ao seu território a Síria e destruiu boa parte do território de Israel a partir de 734 a.C., além de conseguir o assassinato de Pecah e sua substituição por Oseias, um rei submisso à Assíria. Samaria não foi, desta vez, anexada nem destruída, mas, sobre o território restante os assírios constituíram as províncias de Dor (na costa), Meguido (Galileia) e Galaad (Transjordânia). Embora a lista detalhada dos israelitas deportados esteja corrompida nos anais de Tiglat-Pileser III, tanto Liverani quanto Finkelstein/Silberman consideram razoável o número total de 13.520 pessoas. A destruição dos territórios é arqueologicamente documentada em Hasor, Dan, Tel Kinneret, Bet-shean e outras localidades7.

Entretanto, isso não era tudo. Israel só se submetera à Assíria porque não tinha outra opção. Quando Tiglat-Pileser III foi sucedido por Salmanasar V (727/6-722 a.C.), Oseias pensou ser o momento adequado para a revolta. Negou o pagamento do tributo à Assíria e aliou-se ao Egito. Foi um suicídio. O Egito estava todo dividido e muito fraco. Não veio a ajuda esperada. Salmanasar V atacou, prendeu o rei, ocupou o país e cercou Samaria em 724 a.C. (2Rs 17,3-6).

Samaria caiu em 722 a.C. e o irmão de Salmanasar V, Sargão II (721-705 a.C.), foi quem se en­carregou daSargão II (721-705 a.C.) deportação e substituição da população israelita por outros povos que fo­ram ali instalados. A destruição de Samaria pela Assíria é bem documentada pela arqueologia. Segundo os anais de Sargão II, o número de deportados samaritanos foi de 27.290 pessoas8.

Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, explicam, por outro lado, que a interpretação bíblica do trágico destino de Israel é muito mais teológica do que histórica: segundo a OHDtr, a devastação de Israel pelos exércitos estrangeiros fazia parte de um preciso plano divino, que puniu o povo e seus líderes por sua recusa do culto a Iahweh no Templo de Jerusalém e por sua adesão a outros deuses (2Rs 17,7-41). Mas a arqueologia traz uma perspectiva diferente: Israel foi invadido pelos assírios por ter sido um reino bem sucedido que, vivendo à sombra do grande império, suscitou sua cobiça. A Assíria ambicionava a região siro-palestina basicamente por causa de seus recursos naturais, do controle do comércio do Mediterrâneo e, não por último, por causa do Egito, ferrenho adversário dos impérios da Mesopotâmia na luta pela hegemonia geopolítica do Antigo Oriente Médio9.

 

2. Judá na época de Ezequias: reforma e invasão assíria

Pode ser útil observar, neste ponto, um quadro cronológico dos reis de Judá.

NomeDataDuração
Roboão931-914 a.C17 anos
Abian914-9123 anos
Asa912-87141 anos
Josafá871/0-84823 anos
Jorão848-8417 anos
Ocozias8411 ano
Atalia841-8356 anos
Joás835-79640 anos
Amasias796-76729 anos
Ozias767-73928 anos
Joatão739-7345 anos
Acaz734/3-71618 anos
Ezequias716/15-699/817 anos
Manassés698-643/255 anos
Amon643/2-6402 anos
Josias640-60931 anos
Joacaz6093 meses
Joaquim609-59811 anos
Joaquin598/73 meses
Sedecias597-58611 anos

Judá teve a proteção assíria, mas perdeu sua independência. Acaz acabou vassalo da Assíria, pagando-lhe tributo e rendendo homenagem aos deuses assírios. A esperança reapareceu com seu filho Ezequias. Associado ao trono desde criança, em 728/7 a.C., ao ser coroado em 716/15 a.C. este rei começou uma reforma no país para tentar debelar a crise.

Um dos alvos da reforma teria sido a ruptura com práticas cultuais não-javistas dos agricultores. Entre outras coisas, teria abolido os lugares altos (bâmôt), quebrado as estelas (matsêbôt), cortado o poste sagrado (‘asherâh). Até mesmo do Templo de Jerusalém Ezequias teria retirado símbolos dos cultos da fertilidade, como uma serpente de bronze. É o que nos conta 2Rs 18,4, embora aqui a OHDtr tente apresentar uma justificativa para a presença desta serpente de bronze no Templo (“que Moisés havia feito, pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso” – cf. Nm 21,8-9).

Entretanto, há autores, como Finkelstein/Silberman e Liverani, que apresentam uma perspectiva um pouco diferente: a “reforma” de Ezequias não teria sido a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos. A reforma sinaliza na direção da transformação de Iahweh de Deus nacional, convivendo com os deuses regionais, em Deus exclusivo10.

A destruição de Samaria levou refugiados de Israel para Jerusalém, pois novas estruturas foram construídas, como bairros novos, ampliação de muralhas e o túnel que levava as águas da fonte Gihon para o reservatório de Siloé. Sobre este último feito testemunham 2Rs 20,20 e a Inscrição de Siloé, que celebra o encontro das duas turmas de escavadores11.

O fato é que Jerusalém superou seu antigo isolamento e, ancorada na política assíria, cresceu de 5 para 60 hectares e de cerca de 1000 para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII a.C., podem ser contados cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. A fortaleza de Laquis, na Shefelá, se desenvolveu extraordinariamente. Outros fortalezas foram construídas na mesma região. Surge portanto, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado. Todas estas mudanças trazem consigo o fenômeno do profetismo, bem mais antigo no reino de Israel, mas só a partir deste momento tomando forma bem definida em Jerusalém, com Isaías (Is 1-39) e Miqueias, duas vozes formidáveis em defesa do javismo12.

Enquanto isso, na Assíria, Senaquerib subiu ao trono em 705 a.C. e imediatamente teve que enfren­tar Senaquerib (705-681 a.C.)nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do oeste então se levantaram. Acredi­tavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias; Ascalon e Ekron, com algumas ci­dades filisteias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos líderes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se cuidadosamente para esperar a Assí­ria. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701 a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab, Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib. Somente Ascalon e Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Testemunhos arqueológicos da devastação foram encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Laquis encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive – hoje está no British Museum – e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade do reino e protegia a entrada de Judá13.

Entretanto, por motivos ainda hoje desconhecidos, talvez uma peste, Senaquerib levantou o cerco de Jerusalém e retornou à Assíria. A cidade voltou a respirar, no último minuto, mas teve que pagar forte tributo aos assírios. Não se sabe porque Jerusalém se salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaquerib foram ataca­dos por ratos (peste bubônica?). Talvez Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. Ou ainda: há autores que pensam que Jerusalém nem precisou ser sitiada para ser vencida. Nos Anais de Senaquerib se diz o seguinte: “Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (…) Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola…”.

Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na Pa­lestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo: “Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade se­nhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, an­timônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão”14.

Informação que concorda, em geral, com a de 2Rs 18,13-16: “No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, subiu contra todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: ‘Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres’. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talen­tos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iahweh, que… rei de Judá, havia revestido de metal, e o entregou ao rei da Assíria”.

Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a “maldade” de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.

Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) – as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época – e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza. Entretanto, o filho de Manassés, Amon, ao sucedê-lo, foi assassinado, certamente por grupos prejudicados com o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas oito anos, é declarado rei de Judá15.

 

3. A reforma de Josias

A Assíria estava nos seus estertores finais, enfrentando uma violência proveniente de vários pontos do império. Povos dominados e oprimidos pela extrema violência e crueldade assírias levantaram as cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 609 a.C. Foi um momento bom para Judá. Sob a influência de um forte espírito nacionalista, o rei Josias deu início a uma ampla reforma, descrita em pormenores em 2Rs 22,3-23,25 como o obra mestra deste rei. Parece que a reforma começou aí pelo ano de 629 a.C., décimo segundo do reinado de Josias, que contaria então com 20 anos de idade.

Do Templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, “o livro da Lei” (sêfer hattôrâh), como se lê em 2Rs 22,8. Ao ser promulgado por Josias em 622 a.C. como lei oficial do reino de Judá, este “livro da Aliança” (2Rs 23,2) deu vida à reforma, mostrando que era preciso reviver as antigas tradições mosaicas, pois só elas valiam a pena. “Todo o povo aderiu à Aliança”, diz 2Rs 23,3.

Aproveitando a fraqueza assíria, Josias ocupou algumas partes do antigo reino de Israel, aumentando seus tributos e melhorando suas defesas. Houve uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e os vários modos de adivinhação, banidos. Santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, arrasados, com especial destaque, no texto de 2Rs 23,4-20, para a destruição do santuário de Betel.

Mas esta é uma reconstrução fundada na OHDtr. Até que ponto ela é confiável? O que fez Josias e que chamamos hoje de “reforma”?

Apesar de algumas sugestões mais antigas de Padres da Igreja, sabemos que foi o alemão W. M. L. de Wette quem, em 1805, sugeriu que o “livro da Lei”, que impulsionou a reforma de Josias, deveria corresponder ao Deuteronômio, ou, pelo menos, a uma forma mais primitiva deste livro. Mas, mais importante ainda foi a sua conclusão de que este Deuteronômio original foi composto na época de Josias, guardado no Templo e, em seguida, utilizado como documento de propaganda para a reforma deste rei. Além disso, De Wette dividiu o Pentateuco em Tetrateuco e Deuteronômio, considerando este último como o livro mais recente deste conjunto e chamando a atenção para seu parentesco com o livro de Josué16.

De lá para cá esta tem sido a opinião dominante sobre a identidade do “livro da Lei”, embora não exista acordo entre os especialistas sobre a data do escrito original, sobre a identidade de seus autores e nem sobre o número de reedições pelas quais o livro do Deuteronômio passou. Alguns defendem sua origem em Israel, antes da queda de Samaria, nos meios levítico-proféticos, outros sua primeira redação por refugiados (levitas?) do reino do norte vindos para Jerusalém na época de Ezequias, outros, ainda, sua escrita na época de Josias por escribas reais… Só existe relativo consenso quanto ao seu conteúdo: o Deuteronômio original compreenderia os capítulos 12,1-26,15 – um código de leis – ornamentados por uma introdução, os atuais capítulos 4,44-11,32, e uma conclusão, os capítulos 26,16-28,68.

Uma citação de Richard H. Lowery nos dá bem a dimensão do problema: “A procura pelos profissionais da teologia deuteronômica é tão confusa quanto a busca de uma motivação para a reforma de Josias. É certamente estranha uma literatura que leva seus leitores críticos a concluir que é antimonárquica e pró-monárquica, de origem setentrional e meridional, produto de levitas rurais, sacerdotes de Jerusalém, escribas reais, emigrados recentes, pessoas próximas da corte, mestres sapienciais e círculos proféticos. Todas essas propostas foram apresentadas, no entanto, porque cada uma delas tem certa justificação na literatura. Um exame melhor da reforma de Josias estabelece o contexto para classificar algumas dessas características contraditórias da teologia deuteronômica”17.

Quanto à época e finalidade da obra, Finkelstein/Silberman, por exemplo, colocam tanto o Pentateuco quanto a OHDtr na época de Josias. Na Introdução de seu livro de 2001, nas páginas 15-41, sob o título A Arqueologia e a Bíblia, após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia oferece hoje evidência suficiente para que se sustente uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século VII a.C.

E dizem: “Dessa forma, direcionaremos o foco para Judá, no final do século VIII e no século VII a.C., quando esse processo literário começou de verdade, e discutiremos que muito do Pentateuco é criação tardia do final do período monárquico, defendendo a ideologia e as necessidades do reino de Judá e, como tal, intimamente relacionado à história deuteronomista. E nos alinharemos com os estudiosos que argumentam que a história deuteronomista foi compilada, em sua parte principal, na época do rei Josias, com a intenção de prover validação ideológica para ambições políticas específicas e reformas religiosas”18.

Também Liverani é de opinião que “chama a atenção o estratagema da descoberta de um manuscrito ‘antigo’ para dar o aval da autoridade tradicional àquela que deveria ser, no entanto, um reforma inovadora”. Mas, para ele, o mais importante é constatar que a reforma acontece justamente quando a autoridade assíria na região está em decadência, pois o que Josias percebeu foi a oportunidade de substituir “uma dependência e fidelidade ao senhor terreno, o imperador, por uma dependência e fidelidade ao senhor divino, Iahweh”19.

Seguindo esta linha de raciocínio, Liverani considera que a centralização do culto em Jerusalém e a ortodoxia javista da reforma pode até ser o seu conceito mais “operacional”, mas o mais importante é o estabelecimento de uma relação de “aliança” entre Iahweh e seu “povo eleito”, fundando-a na Lei de Moisés. É que esta teologia adquire, neste momento, grande importância política. Através da ideia de uma libertação do Egito – embora esta seja, nas palavras do autor, uma memória “deformada pela interpretação migratória” – e do pleno controle sobre o território de Canaã, projeta-se o futuro do país: o mesmo Deus que os livrara da escravidão egípcia os livrará agora de qualquer outra escravidão, seja a egípcia que novamente os ameaça, seja a assíria, duradoura, mas, neste momento, em crise20.

Na mesma direção de elemento legitimador da reforma vai a afirmação sobre a celebração da Páscoa em 2Rs 23,21-22. Mas, quanto ao restante, há muitas incertezas: a arqueologia não tem dados sobre uma reforma do antigo Templo (dito “salomônico”), até hoje inacessível, nem sobre a extensão do território de Israel que teria sido anexado, sendo improvável que o controle de Jerusalém passasse muito ao norte de Betel. Nem mesmo o templo de Betel foi encontrado, as estatuetas da deusa da fertilidade Asherá foram achadas em grande quantidade nas residências… embora os sinetes da época não contenham mais figuras divinas astrais, como antes! Por outro lado, os sinais da expansão territorial de Judá sob Josias são visíveis, a população aumentou, fortalezas, como Laquis, foram restauradas. Talvez Josias tenha conseguido um território semelhante ao de Manassés, embora com outras características.

Ainda sobre as incertezas que cercam a reforma de Josias, não se pode esquecer o profeta Jeremias, que vivia em Jerusalém na época de Josias e que, segundo aparece em seu livro, embora opinasse sobre os acontecimentos políticos e as práticas religiosas de maneira veemente, aparentemente não deixou uma palavra sequer sobre a reforma de Josias, por mais que os comentaristas se esforcem em encontrar a sua avaliação sobre o que teria sido o fato mais importante de sua época21.

Apesar de tudo isto, calculam Finkelstein/Silberman que a população de Judá não tenha ultrapassado os 75 mil habitantes, “com ocupação relativamente densa nas zonas rurais das áreas montanhosas judaicas, com uma rede de assentamentos nas regiões áridas ao leste e ao sul e com um povoamento consideravelmente esparso na Shefelá. De muitas maneiras, era um Estado denso sob o aspecto dos assentamentos, e a capital detinha cerca de 20 por cento da população. A vida urbana em Jerusalém atingiu um pico que só seria igualado no período romano (…) Em termos de seu desenvolvimento religioso e da expressão literária de sua identidade, a era de Josias marcou novo estágio significativo na história de Judá”22.

Contudo, a situação se complicou. É que em 612 a.C. a Assíria teve seu império assaltado e sua capital destruída pelos medos e babilônios. Seu rei fugiu para Harã e resistiu ainda dois anos. Diz a Crônica Babilônica: “No décimo sexto ano de Nabopolassar, no mês de ayyar, o rei da Babilônia mobilizou suas tropas e marchou contra a Assíria (…) No mês de arahsammu os medos vieram em auxílio do rei da Babilônia; eles uniram suas tropas e marcharam para Harã contra Assur-ubalit, que se tinha assentado no trono da Assíria23.

Em 610 a.C. o rei da Assíria é desalojado de Harã. Em 609 a.C. os assírios tentam retomar Harã. Sem sucesso. Os egípcios foram ajudá-los. Josias, rei de Judá, foi encontrar o faraó Necao II em Meguido e acabou morto. 2Cr 35,20-24 fala de um conflito militar, hipótese simpática a muitos historiadores, que a adotam. Contudo, há autores que pensam que Necao II teria simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de Josias.

De qualquer maneira, a OHDtr, que idealizara Josias de maneira quase messiânica, atribuindo-lhe características das figuras de Moisés (que fizera a Aliança), Josué (que ocupara Canaã), Davi (que unificara politicamente o território) e Salomão (que construíra o Templo), não consegue explicar como essa catástrofe histórica pôde acontecer, levando o povo de Israel, mais uma vez, à submissão ao Egito. 2Rs 23,29-30 é lacônico: “No seu tempo, o Faraó Necao, rei do Egito, partiu para junto do rei da Assíria, às margens do rio Eufrates. O rei Josias marchou contra ele, mas Necao matou-o em Meguido, no primeiro encontro. Seus servos transportaram seu corpo de carro desde Meguido, e o conduziram para Jerusalém e o sepultaram no seu túmulo. O povo da terra tomou Joacaz, filho de Josias, ungiu-o e o constituiu rei em lugar de seu pai”.

 

4. Os últimos dias de Judá

Como assírios e egípcios nada conseguiram contra os babilônios, o faraó Necao II procurou consolidar seu poder na Palestina. Chama Joacaz até seu quartel-general na Síria, depõe o rei e deporta-o para o Egito. Coloca no trono de Judá o irmão de Joacaz, Joaquim, que tinha 25 anos de idade. Joacaz reinara três meses. Judá passou então a pagar pesado tributo ao Egito, o que durou até 605 a.C., quando o rei babilônio Nabucodonosor derrotou as forças egípcias e desceu até a Palestina. Joaquim fez com ele um acordo e Judá não foi destruído.

Mas não durou nada. Em 600 a.C. Nabucodonosor tentou invadir o Egito e não conseguiu. Judá rebelou-Crônica Babilônica que menciona a tomada de Jerusalém em 597 a.C.se, acreditando na libertação. Seu erro foi fatal. Enquanto os babilônios marchavam para Jerusalém, morreu Joaquim (provavelmente assassinado), em dezembro de 598 a.C. e foi substituído por seu filho Joaquin, de 18 anos, que capitulou no dia 16 de março de 597 a.C. O rei foi deportado para a Babilônia com a corte e toda a classe dirigente. Segundo a Crônica Babilônica “No sétimo ano, no mês de kismilu [18.12.598-15.1.597], o rei da Babilônia mobilizou suas tropas e marchou para Hattu. Ele se estabeleceu na cidade de Judá e no mês de addar, no segundo dia [16.3.597], ele tomou a cidade; aprisionou o rei e colocou outro, de sua escolha, no lugar dele, e exigiu uma pesada renda que levou para a Babilônia24.

No lugar de Joaquin os babilônios deixaram o tio, Sedecias, então com 21 anos de idade. Judá estava mesmo arruinado. Com várias cidades destruídas, sua economia desorganizada e o melhor da nação exilado, pouco restava ao fraco Sedecias que pudesse ser feito. Algumas tentativas de revolta foram abafadas. Finalmente, em 588 a.C., Judá começou uma clara rebelião contra a Babilônia, que o levou à destruição final. Os babilônios destruíram, em 588 mesmo, as cidades fortificadas de Judá, assediando a desesperada Jerusalém em 587 a.C., no mês de janeiro. Na fortaleza de Laquis foram encontrados, em 1935 e 1938, vinte e um óstraca. Testemunhos dramáticos da invasão babilônica de 588 a.C., os óstraca [pedaços de cerâmica sobre os quais se escrevia uma mensagem] falam do cerco, da situação crítica em que se encontram e das medidas tomadas25.

Durante um breve período, o cerco de Jerusalém foi levantado: havia a esperança egípcia. Que não se concretizou. Finalmente, em 19 de julho de 586 a.C., Jerusalém cedeu. Sedecias fugiu na direção de Amon. Não adiantou. Foi preso e levado diante de Nabucodonosor a Rebla, na Síria, assistiu à execução de seus filhos, foi cegado, acorrentado e levado para a Babilônia, onde morreu. Em agosto, o comandante da guarda de Nabucodonosor entrou em Jerusalém, incendiou tudo, derrubou o Templo, as muralhas, levou as pessoas de maior destaque que executou em Rebla, diante de Nabucodonosor, enquanto deportava outro grupo para a Babilônia. Calcula-se que cerca de 4.600 homens da classe dirigente judaica tenham ido para o exílio. Somadas as mulheres e as crianças, seu número poderia chegar a quase vinte mil pessoas. A população restante, camponesa, foi deixada no país.

Estes dados estão em Jr 52,27-30, que documenta três deportações: a de 597 a.C., sob Joaquin; a de 586Carta IV de Laquis a.C., sob Sedecias; e uma última, de 582 a.C., talvez em represália ao assassinato de Godolias. Porque, de fato, na Judeia, os babilônios colocaram Godolias como governador. Godolias acabou assassinado pelo nacionalista Ismael, em outubro do mesmo ano. Acabara-se Judá. A história do povo, e sua literatura, vão continuar no exílio, que durou mais de 50 anos.

Uma observação sobre esta deportação numericamente modesta: enquanto os assírios deportavam grandes contingentes da população, os babilônios deportavam apenas a classe dirigente. Tanto assírios quanto babilônios obtinham, com esta estratégia, mão de obra especializada e quebravam a resistência política dos vencidos. Mas, enquanto os assírios buscavam uma uniformidade “assíria” nas províncias, com rigoroso controle político-militar, os babilônios deixavam as terras conquistadas nas mãos das populações locais – sem chance de se rebelar porque politicamente desorganizadas – ao mesmo tempo que permitiam às elites deportadas a manutenção de sua identidade. Pode ser que isto explique o destino bem diferente dos israelitas, que nunca mais voltaram, em relação aos judaítas, que irão reconstruir o seu país quando terminar o exílio26.

Mas como foi o exílio? Esta é uma questão complexa, porque conhecemos razoavelmente bem o que aconteceu antes da destruição e temos dados que nos permitem tentar reconstruir o que aconteceu depois, na época persa. Mas e durante o exílio? Existe documentação sobre como viviam os exilados e sobre como viviam os remanescentes na terra de Judá? E isto é importante, pois foi neste contexto que parte ou mesmo toda a OHDtr foi elaborada.

 

5. O exílio babilônico

No Segundo Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, realizado em Lausanne, Suíça, de 27 a 30 de julho de 1997, os pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades que fazem parte do grupo discutiram o tema do exílio babilônico. Os debates foram publicados, em 1998, no livro Conduzindo um Cativo ao Cativeiro. ‘O Exílio’ como História e Ideologia27.

Por que julgaram importante debater o exílio? Porque o exílio é um forte símbolo na Bíblia e na pesquisa veterotestamentária. Quando história de Israel e literatura bíblica são discutidas, as coisas costumam ser classificadas em pré-exílicas e pós-exílicas. O conceito de culpa-exílio (castigo)-restauração teve grande impacto tanto no Antigo Testamento quanto na discussão teológica sobre o Antigo Testamento. Sem dúvida, ‘o exílio’ é um divisor de águas nas discussões sobre o Antigo Testamento. Mas pouco sabemos sobre ele. Até mesmo de sua existência já se duvidou: estamos lidando com um evento histórico ou não? Os judaítas foram de fato para a Babilônia no século VI a.C. e voltaram (seus descendentes) para reconstruir sua capital e seu país? Ou não estaríamos lidando com um conceito teológico e literário que serviu muito bem às necessidades dos judeus oprimidos, dos líderes religiosos, pregadores, teólogos e escritores, mas que teria sido totalmente inventado?

Segundo Lester L. Grabbe, coordenador do grupo, em dois pontos todos concordaram: 1. Ocorreram uma ou mais deportações dos reinos de Israel e Judá; 2. O termo exílio é fortemente marcado por significados teológicos e ideológicos e não é, de modo algum, um termo neutro para se referir a uma época ou a um episódio históricos.

Daí que uma das principais questões debatidas no Seminário foi se o uso do termo exílio deveria ser banido ou não do meio acadêmico, já que sua carga teológica e ideológica é um problema para o estudo deste fenômeno ou época. Alguns sugeriram deportação ou diáspora no lugar de exílio, alegando ser este um termo neutro, enquanto outros discordaram também deste termo, porque isto seria assumir ainda uma agenda bíblica e não histórica. Mas qual é a diferença real entre estes termos, se o hebraico usa a mesma palavra (gôlâh) tanto para exílio quanto para diáspora e deportação? Não houve consenso quanto a este ponto.

Outro ponto de desacordo foi a questão da ‘volta’ do exílio. Alguns acham que não houve continuidade entre os deportados da época babilônica e os que se estabeleceram na Judeia na época persa. Outros acham que se pode falar de uma ‘volta do exílio’. E foi preciso discutir o que significa ‘continuidade’, que não precisa ser necessariamente biológica, pode ser cultural. Discutiu-se aí o significado de etnia. Mas e se foram outros povos que vieram para Judá na época persa, deportados, por sua vez, de suas terras de origem? Ainda: se nem todos os judaítas foram exilados – apesar do mito da ‘terra vazia’ –, por que falar de ‘restauração’, outro conceito extremamente problemático?

Esta é apenas uma pequena amostra do que o exílio babilônico pode provocar no meio acadêmico. Apesar de toda esta incerteza, alguns dados sobre o exílio poderiam ser deduzidos, se usarmos o conhecimento que temos do mundo babilônico comparado com os escassos dados bíblicos.

Por exemplo: o rei Joaquin viveu na Babilônia, onde criou seus filhos, e era respeitado pelo grupo exilado, pois seu neto Zorobabel aparecerá como um dos líderes da reconstrução do Templo por volta de 520 a.C., na época persa. Do mesmo modo, a classe dirigente deportada, incluindo chefes de família, sacerdotes e profetas tinham uma certa liberdade para se organizarem e manter sua identidade na região das cidades em que viviam, como Babilônia e Nippur, e nos povoados que reconstruíram ao longo de rios e canais. É razoável pensar também que os deportados foram usados como colonos na agricultura local, que teve grande crescimento neste período, como atestam tanto a arqueologia da Baixa Mesopotâmia quanto arquivos de templos babilônicos. Não é descartada inclusive uma certa atividade comercial e financeira por parte de algumas famílias judaítas, como aparece nos arquivos familiares dos Murashu de Nippur. Além disso, a língua aramaica já teria começado a ser usada, segundo uma tendência geral no império, e os nomes “cananeus” dos meses vão sendo substituídos por nomes babilônicos28.

 

Conclusão

Uma conclusão? Não há conclusão. A história de Israel está passando atualmente por profundas mudanças e tudo o que se pode fazer hoje são tentativas abertas à discussão. Como faz exemplarmente Mario Liverani que, na obra citada neste artigo, propõe uma história normal seguida por uma história inventada.

É conveniente, porém, lembrarmos aqui que estas mudanças não são de hoje. Começaram, na verdade, em meados da década de 70 do século XX com a crise da teoria documentária do Pentateuco, modelo explicativo para a origem dos cinco primeiros livros da Bíblia vigente desde o século XIX, e atingiram o campo da História de Israel, como era de se prever.

De lá para cá, nem no campo dos estudos do Pentateuco e muito menos na área da História de Israel se chegou a um consenso em relação a dezenas de questões. O mesmo vale para a Obra Histórica Deuteronomista. É aquilo que escreveu o exegeta britânico Philip R. Davies em 1992: para quem se empenha numa pesquisa histórica, a única certeza é que o Israel bíblico é um problema e não um dado29.

 

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> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88, p. 11-27, 2005

>> Bibliografia atualizada em 19.09.2024

Artigos


1 . O livro de M. Noth chama-se Überlieferungsgeschichtliche Studien [Estudos de história das tradições]. Cf. DE PURY, A.; RÖMER, T.; MACCHI, J.-D. (éds.) Israël construit son histoire: l’historiographie deutéronomiste à la lumière des recherches récentes. Genève: Labor et Fides, 1996, p. 18-39.

2 . O artigo de CROSS, F. M. The Themes of the Book of Kings and the Structure of the Deuteronomistic History pode ser lido em seu livro Canaanite Myth and Hebrew Epic: Essays in the History of the Religion of Israel. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1973, p. 274-289 (Reprint Edition: 1997).

3 . Cf. SMEND, R. Die Entstehung des Alten Testaments. Stuttgart: Kohlhammer, 1978 [1990].

4 . Autores tão diferentes como John Bright e Mario Liverani concordam neste ponto. Cf. BRIGHT, J. História de Israel. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 327; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 185.

5 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 193-194. Para saber mais sobre Tiglat-Pileser III e seu governo, cf. GARELLI, P.; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático: impérios Mesopotâmicos-Israel. São Paulo: Pioneira-Edusp, 1982, p. 87-96. Cf. sobre o imperialimso assírio, LIVERANI, M. Antico Oriente: Storia, società, economia. 4. ed. Bari: Laterza, 2011, p. 665-728 [Em português: Antigo Oriente: História, Sociedade e Economia. São Paulo: EDUSP, 2016]; LIVERANI, M. Assiria: La preistoria dell’imperialismo. Bari: Laterza, 2017. Cf. ainda Assíria: a pré-história do imperialismo, post publicado no Observatório Bíblico em 8 de junho de 2017.

6 . Há várias cronologias possíveis para o período dos reis. Estou seguindo a de PAVLOVSKY, V.; VOGT, E. Die Jahre der Könige von Juda und Israel. Biblica, Roma, n. 45, p. 321-347, 1964. Outra muito respeitada é a de GALIL, G. The Chronology of the Kings of Israel and Judah. Leiden: Brill, 1996. Para os problemas da cronologia do Antigo Oriente Médio, cf. MANNING, S. W. et alii Integrated Tree-Ring-Radiocarbon High-Resolution Timeframe to Resolve Earlier Second Millennium BCE Mesopotamian Chronology. PLOS ONE 11(7): e0157144. Published: July 13, 2016; VAN DE MIEROOP , M. A History of the Ancient Near East ca. 3000–323 BC. 3. ed. Chichester, West Sussex, UK: Wiley Blackwell, 2016.

7 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 185-86; FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 295-297. Os anais de Tiglat-Pileser III podem ser consultados em TADMOR, H. The Inscriptions of Tiglath-Pileser III King of Assyria: Critical Edition, with Introductions, Translations and Commentary by Hayim Tadmor. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1994. Para esta e outras fontes assírias, veja esta bibliografia.

8 . PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (= ANET). 3. ed. Princeton: Princeton University Press, 1969, p. 284-285; FUCHS, A. Die Inschriften Sargons II. aus Khorsabad. Göttingen: Cuvillier, 1994, p. 313-314.

9 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 304-307. Cf. também FINKELSTEIN, I. O reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015; KAEFER, J. A. A Bíblia, a arqueologia e a história de Israel e Judá. São Paulo: Paulus, 2015

10 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 318; LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 199-200.

11 . A Inscrição de Siloé, em hebraico arcaico, do século VIII a.C., tem seis linhas. Foi descoberta em 1880 e, alguns anos depois, removida para o Museu de Istambul. Cf. foto, texto, tradução, explicação, bibliografia e links em HANSON, K. C. Siloam Inscription; BiblePlaces.com Hezekiah’s Tunnel. Também em FREEDMAN, D. N. (ed.) The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM. New York: Doubleday & Logos Research Systems, [1992], 1997, verbete Siloam Inscription.

12 . Neste ponto Finkelstein/Silberman e Liverani defendem, na esteira de Morton Smith, o nascimento do movimento só-Iahweh, fenômeno sobre o qual ainda não me convenci. Cf., para isso, DA SILVA, A. J. Resenha de FINKELSTEIN, I; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001 (Tradução brasileira: A Bíblia não tinha razão).

13 . Cf. as ruínas de Laquis ou Tell ed-Duweir em BiblePlaces.com Lachish. Links levam a fotos do relevo assírio da tomada da cidade. Texto e fotos podem ser vistos também em MAZAR, A. Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000-586 a.C. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 408-414. Cf. também os posts sobre a tomada de Laquis por Senaquerib em 701 a.C., publicados no Observatório Bíblico em 27.04.2020: 1, 2 e 3

14 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 76.

15 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 356-369.

16 . A tese de W. M. L. de Wette foi publicada em 1805 em sua Dissertatio criticoexegetica… Em seguida, ele retoma suas idéias em suas Beiträge zur Einleitung in das Alte Testament [Contribuições para a Introdução ao Antigo Testamento] 2 Bde. Halle: Schimmelpfennig, 1806-1807 (reimpressão em 1 volume: Hildesheim: George Olms, 1971). Cf. SKA, J.-L. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2014, p. 120-121.

17 . LOWERY, R. H. Os reis reformadores: culto e sociedade no Judá do Primeiro Templo. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 296. Cf. também DA SILVA, A. J. A descoberta do Livro da Lei na época de Josias e O Código Deuteronômico seria pós-josiânico? posts publicados no Observatório Bíblico, respectivamente, em 27 de janeiro de 2007 e 15 de setembro de 2009.

18 . FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 29.

19 . LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 222.

20 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p.223.

21 . Sobre Jeremias, cf. DA SILVA, A. J. Perguntas mais frequentes sobre o profeta Jeremias. Philip R. Davies, por exemplo, não admite nem a existência de uma reforma na época de Josias. Cf. VV.AA. Recenti tendenze nella ricostruzione della storia antica d’Israele. Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2005, p. 139-155; DAVIES, P. R. Josiah and the Law Book. In: GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, p. 65-77. Também negando a existência das reformas de Ezequias e Josias pode ser lido o ensaio de  PAKKALA, J. Why the Cult Reforms in Judah Probably Did not Happen. In: KRATZ, R. G.; SPIECKERMANN, H. (eds.) One God, One Cult, One Nation: Archaeological and Biblical Perspectives. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 201-235. Apresentei este texto de Juha Pakkala no Observatório Bíblico, em As reformas de Ezequias e Josias podem não ter acontecido, post publicado em 18.09.2024.

22 . FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 388-389.

23 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 81-82. Cf. também DA SILVA, A. J. História de Israel.

24 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 84.

25 . Para fotos e textos dos óstraca, faça uma busca no Google pela expressão “lachish letters”, ou, em português, “cartas de laquis”. Em BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 85-86, há dois textos das cartas de Laquis.

26 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 243-246. Vale lembrar que, na página 241, Liverani mostra como a destruição de Judá é bem documentada pela arqueologia, listando mais de vinte localidades arrasadas pela guerra nesta época.

27 . GRABBE, L.L. (ed.) Leading Captivity Captive: ‘The Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998.

28 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 267-272. Cf. também DA SILVA, A. J. O paradigma bíblico exílio-restauração caducou? e Abordando Yehud, posts publicados no Observatório Bíblico, respectivamente, em 8 e 12 de agosto de 2009.

29 . Cf. DA SILVA, A. J. Resenha de DAVIES, Philip R., In Search of ‘Ancient Israel’. 2. ed. London: T & T Clark, 2015. Cf. também VV.AA. Recenti tendenze nella ricostruzione della storia antica d’Israele, Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2005.


Essênios 2

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Comentários bíblicos

Os comentários bíblicos de Qumran são do gênero pesher, palavra hebraica que quer dizer “explicação”, “significado”. O método pesher consiste em comentar o texto bíblico versículo por versículo, procurando aplicá-lo às circunstâncias vividas pela comunidade, como se os textos bíblicos, especialmente os proféticos, estivessem falando diretamente da realidade atual. Os livros resultantes são conhecidos como pesharim, “comentários”.

Após citar um versículo ou mesmo trechos menores, o comentarista diz: “A explicação (pesher) disto diz respeito a…”.

Estes livros são classificados como 1QpHab, 1QpMq, 4QpOs etc, respectivamente, Comentário (= pesher) de Habacuc, Comentário de Miqueias, Comentário de Oseias e assim por diante. Estão identificados cerca de uma dúzia destes comentários entre os manuscritos de Qumran[23].

Os pesharim, além de exemplificarem um método exegético só usado pela comunidade de Qumran e pelos cristãos, são importantes igualmente como testemunhos históricos da organização e vicissitudes da comunidade.

O pesher mais importante de Qumran é o 1QpHab, Comentário de Habacuc, escrito provavelmente no começo do séc. I a.C., por suas constantes referências à história da comunidade.

Outro tipo de trabalho exegético encontrado em Qumran é o targum. Targum significa “tradução” e indica as traduções aramaicas dos livros bíblicos (= targumim) que se fazem nas sinagogas da época. Só que o targum não é uma tradução literal, mas uma paráfrase explicativa e atualizada do texto hebraico. É ótimo para se saber como os judeus interpretam o texto bíblico.

Na gruta número 11 de Qumran os arqueólogos encontram vários fragmentos de origem targúmica, entre eles um Targum de Jó. É o mais antigo dos targumim conhecidos, sendo do final do séc. II a.C[24].

Outro tipo de exegese é o que os editores dos manuscritos chamam de Florilégio: consiste em agrupar vários trechos bíblicos, que possuam alguma homogeneidade, para que eles se completem e sejam explicados. O fragmento 4Q174, por exemplo, reúne trechos de 2Sm 7 com Sl 1 e 2 que são interpretados, em seguida, segundo o padrão do pesher.

 

Regras da comunidade

De extrema importância são os livros que trazem as normas de constituição e atividades da comunidade de Qumran.

1QS: Serek hayahad - Regra da ComunidadeA Regra da Comunidade ou Manual de Disciplina, em hebraico, Serek hayahad (1QS), é o principal livro da comunidade de Qumran. É o manuscrito que contém as normas que governam a comunidade. Provavelmente seu autor é o próprio fundador da comunidade, conhecido nos textos como o Mestre da Justiça. Sua composição pode ser situada entre 150 e 125 a.C., enquanto que o manuscrito completo é dos anos 100-75 a.C.

Além da cópia completa encontrada em 1Q, fragmentos de outras 11 cópias es­tão entre os textos de 4Q e 5Q.

A Regra pode ser dividida em três seções:
. Normas para o ingresso na Comunidade (I-IV)
. Estatutos referentes ao Conselho da Comunidade (V-IX)
. Diretrizes para o Mestre e o Hino do Mestre (IX-XI).

A Regra da Congregação, em hebraico, Serek ha’edat (1QSa), e a Coleção de Bênçãos (1QSb) são dois anexos à Regra da Comunidade. A primeira é da metade do séc. I a.C. e a segunda pode ser datada por volta de 100 a.C. A Regra da Congregação é um escrito de tipo escatológico que descreve a vida e o banquete da comunidade no fim dos tempos. A Coleção de Bênçãos é uma antologia de fórmulas para abençoar os membros da comunidade.

Os Cânticos de Louvor, em hebraico, Hôdayôt (1QH), são cânticos de ação de graças ou hinos de louvor, parecidos com o “Magnificat” e o “Benedictus” de Lucas. Inspiram-se principalmente nos Salmos e em Isaías. Devem ter sido compostos entre 150 e 125 a.C., e, pelo menos em parte, pelo Mestre da Justiça. O manuscrito de 1Q provém dos anos 1 a 50 d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais 6 cópias.

A Regra da Guerra, em hebraico, Serek hamilhamah, também conhecida como “A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas”, compreende uma espécie de compêndio da ciência bélica e das celebrações cultuais que deveriam ser observadas por ocasião de uma guerra com vistas à luta final que precederia a era da salvação[25] . Os filhos da luz contam com a ajuda dos anjos Miguel, Rafael e Sariel, enquanto que os filhos das trevas contam com Belial. A vitória, é claro, é dos filhos da luz. O original é composto entre os anos 50 a.C. e 25 d.C., enquanto que o manuscrito encontrado em 1Q é do séc. I d.C. Em 4Q são encontrados fragmentos de mais cinco cópias deste livro.

O Documento de Damasco (CD) é uma obra conhecida desde 1896-97, quando dois manuscritos são encontrados num depósito de rolos velhos (genizá) de uma antiga sinagoga do Cairo. Um dos manuscritos é do século X d.C. e o outro do séc. XII d.C. Publicados em 1910, continuam, então, um enigma: não se sabe a que grupo judeu o texto se refere e que certamente compôs a obra. Os estudiosos sugerem os saduceus, os fariseus, os ebionitas, os caraítas… e apenas um diz que é dos essênios!

Agora, acontece que fragmentos de nove cópias do Documento de Damasco são encontrados nas grutas de Qumran (7 fragmentos em 4Q, 1 em 5Q, 1 em 6Q): sem dúvida é uma obra criada na comunidade essênia.

Muitos especialistas defendem que “Damasco” deve ser entendido em sentido literal e que representaria uma primeira fase da comunidade, anterior ao seu estabelecimento em Qumran. Outros pensam que “Damasco” seja apenas um modo velado de se falar de Qumran, a partir de Am 5,26-27. E o Documento pode ser também a regra de outra ala da organização, que viveria fora de Qumran. Mas discutirei isso mais para a frente.

A obra compõe-se de uma exortação e de uma lista de estatutos. Na exortação o pregador (talvez uma autoridade da comunidade) tem por objetivo encorajar os sectários a permanecer fiéis e, com este fim em vista, ele se empenha em demonstrar, por meio da história de Israel e da comunidade, que a fidelidade é sempre recompensada e a apostasia castigada[26].

Os estatutos reinterpretam as leis bíblicas relativas a votos e juramentos, tribunais, purificação, sábado, pureza ritual etc. Trazem também os estatutos da comunidade. O Documento de Damasco deve ter sido escrito por volta de 100 a.C.

O Rolo do Templo, encontrado na gruta 11, (11QT), só aparece em junho de 1967, durante a “Guerra dos Seis Dias”, quando o Estado de Israel o retira das mãos de um antiquário da parte árabe de Jerusalém, a quem os ta’amireh o vendera.

É o maior dos manuscritos de Qumran, com mais de oito metros e meio de comprimento e 66 colunas. Trata do Templo e do culto, e embora se trate de uma reinterpretação da legislação bíblica do Êxodo, Levítico e Deuteronômio, o autor apresenta sua mensagem como fruto de revelação divina direta. O Rolo do Templo é do séc. II a.C. São encontrados fragmentos deste livro nas grutas 4Q e 11Q.

O Rolo de Cobre (3Q15) – que tem de ser cortado para ser aberto, de tão oxidado que está – fala de um tesouro escondido em 64 lugares diferentes da Palestina, em ouro, prata, perfumes etc. O montante alcançaria a fabulosa quantia de 65 toneladas de prata e 26 toneladas de ouro.

Seria um tesouro de fato ou só uma ficção? Até hoje nada foi achado deste pretenso tesouro. Os estudiosos se dividem na suas opiniões: seria um tesouro da comunidade de Qumran? Ou pertenceria ao Templo de Jerusalém? Neste último caso, quando e porquê o documento vai parar em Qumran?[27].

4QMMT pode parecer meio esotérico, mas é apenas a sigla de Miqsat Ma’aseh ha-Torah ou “Alguns dos Preceitos da Torá”, também conhecida como “Carta Halákica”. Seis cópias deste escrito são encontradas na gruta 4.

Os editores sugeriram que se trata de uma carta do grupo de Qumran, talvez redigida pelo Mestre da Justiça e seus companheiros, dirigida a seus oponentes em Jerusalém, incluindo o sumo sacerdote (= o Sacerdote Ímpio). O propósito da carta era esmiuçar as diferenças entre os dois partidos e convocar os oponentes para uma retificação da vida[28].

A carta é de grande importância para a compreensão dos essênios, pois apresenta 22 pontos da Lei em que os dois partidos divergem. A carta termina do seguinte modo: “E também nós te escrevemos alguns dos preceitos da Torá que pensamos bons para ti e para o teu povo, pois vimos em ti inteligência e conhecimento da Torá. Considera todas estas coisas e busca diante dele que ele confirme o teu conselho e afaste de ti a maquinação malvada e o conselho de Belial, de maneira que possas alegrar-te no final do tempo no descobrimento de que algumas de nossas palavras são verdadeiras. E te será contado em justiça quando fizeres o que é reto e bom diante dele, para o teu bem e o de Israel” (4QMMT 112-118).

 

3. A publicação

A leitura, tradução e publicação dos manuscritos mais ou menos completos não é um grande problema para os especialistas. Mesmo os fragmentos das grutas menores são publicados até os anos 70.

O problema está nos milhares de fragmentos de mais de 500 manuscritos da gruta 4. A maioria está muito deteriorada: corroídos, curvados, enrugados, retorcidos, cobertos por mofo e elementos químicos.

John Strugnell (1930-2007)Para trabalhar nestes fragmentos é constituída em 1952 uma equipe internacional no Museu Arqueológico da Palestina, em Jerusalém Oriental, pertencente à Jordânia.

O chefe da equipe é o dominicano Roland de Vaux. Com ele trabalham Frank Moore Cross, americano, presbiteriano; J. T. Milik, polonês, católico; John Allegro, inglês, agnóstico; Jean Starcky, francês, católico; Patrick Skehan, americano, católico; John Strugnell, inglês, presbiteriano, depois católico; Claus-Hunno Hunziger, alemão, luterano. Predominam especialistas de Harvard (USA), École Biblique (Jerusalém) e Oxford (Inglaterra). Nota-se, nesta lista, a ausência de pesquisadores judeus. Dizem os especialistas que foi uma exigência do governo jordaniano.

Os trabalhos avançam em bom ritmo, já que são financiados por J. D. Rockfeller Jr., magnata americano. Mas, dois fatos intervêm: morre Rockfeller e Israel, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, anexa Jerusalém Oriental e toma o Museu Arqueológico da Palestina onde estão os manuscritos da gruta 4. O projeto de publicação perde o compasso.

Com a morte de Roland de Vaux em setembro de 1971, a função de editor-geral passa para seu colega dominicano Pierre Benoit, que por sua vez, ao morrer em 1987, passa o cargo para John Strugnell [os preparativos para esta sucessão vinham desde 1984]. Durante todos estes anos, a equipe continua pequena. Quando um pesquisador morre ou se retira, é substituído por outro e pronto. Strugnell, porém, lutará por duas coisas: pela expansão do pequeno grupo original encarregado dos manuscritos e pela inclusão nesta equipe de pesquisadores judeus[29].

Entretanto, cresce no meio acadêmico mundial a insatisfação com a demora na publicação dos documentos. Alguns nomes se destacam neste protesto: Robert Eisenman, da Universidade do Estado da Califórnia e Philip R. Davies da Universidade de Sheffield, Reino Unido. Eles tentam o acesso aos manuscritos, mas são barrados por J. Strugnell. É então que entra em cena Hershel Shanks, fundador da Biblical Archaeology Society. Através da Biblical Archaeology Review, ele inicia, a partir de 1985, poderosa campanha em favor do livre acesso dos pesquisadores aos manuscritos ainda não publicados.

Após polêmica entrevista aos jornais, em dezembro de 1990, John Strugnell é demitido do cargo pela Israel Antiquities Authority (IAA), que indica Emanuel Tov como editor-chefe e amplia a equipe para cerca de 50 pesquisadores. John Strugnell faleceu em 30 de novembro de 2007 aos 77 anos.

Contudo, dois novos fatos mudam o rumo das coisas. Em setembro de 1991 Ben Zion Wacholder e Martin Abegg do Hebrew Union College, emEmanuel Tov Cincinati, publicam A Preliminary Edition of the Unpublished Dead Sea Scrolls. Baseados no glossário elaborado pelos pesquisadores oficiais, e utilizando um computador, os dois estudiosos reconstroem textos inteiros da gruta 4. No mesmo mês, a Biblioteca Huntigton, de San Marino, Califórnia, que possui as fotos de todos os manuscritos, coloca a coleção à disposição dos estudiosos.

Em novembro de 1991 a Biblical Archaeology Society publica a Edição Fac-símile dos Manuscritos do Mar Morto, com cerca de 1800 fotografias dos manuscritos.

Neste meio tempo a IAA autoriza aos fotógrafos o acesso aos manuscritos. Estas fotografias estão disponíveis em 5 lugares: Jerusalém, Claremont e San Marino (as duas últimas na Califórnia), Cincinati e Oxford. E, finalmente, em 1993, sob os auspícios da IAA, sai a edição completa em microfilmes de todos os manuscritos do Mar Morto: The Dead Sea Scrolls on Microfiche. A Comprehensive Facsimile Edition of the Texts from the Judaean Desert, edited by Emanuel Tov with the collaboration of Stephen J. Pfann, E. J. Brill-IDC, Leiden 1993.

Em novembro de 2001 a publicação dos Manuscritos do Mar Morto foi concluída. Hoje há várias edições impressas e eletrônicas dos Manuscritos, além das páginas que os disponibilizam online, como aqui e aqui.

Florentino García MartínezTambém já foram feitas exposições dos Manuscritos em alguns países. Pergaminhos do Mar Morto: Um Legado Para a Humanidade foi o nome da mostra dos Manuscritos do Mar Morto no Brasil que começou dia 20 de agosto de 2004 e permaneceu até 23 de outubro, no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Em seguida, a exposição foi para a Estação Pinacoteca, em São Paulo, onde permaneceu de 26 de novembro de 2004 a 27 de fevereiro de 2005.

E textos em português?

No Brasil temos a importante obra de Florentino García Martínez, Textos de Qumran: edição fiel e completa dos Documentos do Mar Morto. Petrópolis: Vozes, 1995, 582 p. – ISBN 9788532612830. É uma acurada tradução dos 250 textos mais importantes de Qumran. A tradução do espanhol para o português é de Valmor da Silva[30].

Página 3


[23]. São os Comentários de Habacuc, Oseias, Miqueias, Sofonias, Naum, Isaías (4 comentários), Salmos (3 comentários).

[24]. Sobre os targumim, cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 485-511.

[25]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 58-69.

[26]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 41-48.

[27]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p. 213-215.

[28]. Cf. ARANDA PÉREZ, G. et al. Literatura judaica intertestamentária, p.20-27.

[29]. Sobre a data em que Strugnell assumiu a direção da equipe, circulam na imprensa duas datas: 1984 e 1987. Foi em 1987, mas em 1984 os preparativos já tinham sido feitos. 

[30]. “Este livro pretende oferecer ao leitor uma tradução dos 250 manuscritos mais importantes procedentes de Qumran, isto é, uma tradução praticamente completa dos manuscritos não bíblicos ali encontrados”, comenta o autor no prólogo à edição brasileira de sua obra. Uma resenha da obra de Florentino García Martínez, feita por J. C. Vanderkam, pode ser lida em The Catholic Biblical Quarterly 56 (july 1994), Washington, p. 545-546. Diz Vanderkam: “Seu Textos de Qumrán é a mais completa tradução dos manuscritos em uma língua moderna (…) Ele sustenta, contra N. Golb, que os manuscritos de Qumran fazem parte de uma biblioteca religiosa sectária, e ele discute também a identificação, origem e história da comunidade de Qumran (…) Ao contrário do irritante costume da largamente divulgada tradução inglesa de G. Vermes de uma quantidade bem menor de manuscritos, García Martínez fornece a numeração das linhas para todos os textos; e no final ele traz uma lista de todos os manuscritos de Qumran junto com informação bibliográfica sobre onde eles foram publicados, caso tenham sido (…) O resultado é uma fascinante e útil  apresentação dos  textos de Qumran, traduzidos por uma das mais importantes autoridades mundiais nos manuscritos”. 


A Bíblia desenterrada

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FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, xii + 385 p. – ISBN 9780684869124

 

leitura: 54 min

Israel Finkelstein, autor de importantes estudos no campo da arqueologia da Palestina, foi o Diretor do Instituto de Arqueologia Sonia e Marco Nadler da Universidade de Tel Aviv, Israel, de 1996 a 2003, e Diretor das escavações de Tel Meguido. Ganhou em  2005 o prêmio Dan David. É o titular da Cátedra Jacob M. Alkow de Arqueologia de Israel nas Idades do Bronze e do Ferro da mesma Universidade. Neil Asher Silberman é Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Massachusetts-Amherst, nos Estados Unidos.

Este envolvente livro, A Bíblia desenterrada: Uma nova visão arqueológica do antigo Israel e da origem de seus textos sagrados (no Brasil: A The Bible Unearthed - A Bíblia não tinha razãoBíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003; A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018), contém 12 capítulos agrupados em três partes, um epílogo, 7 apêndices – que retomam e aprofundam temas tratados ao longo do texto – uma bibliografia, um índice de nomes e lugares, além dos tradicionais prólogo e introdução. Donos de prosa refinada, os autores tomam cuidadosamente o leitor pela mão e o conduzem em aventura fascinante através do mundo do Antigo Israel.

Mesmo antes do prólogo, nos agradecimentos feitos pelos autores àqueles que colaboraram na produção da obra, os autores já explicam a razão da publicação do livro.

O livro, dizem, foi pensado cerca de oito anos antes de sua publicação. E o motivo foi o debate sobre a historicidade da Bíblia, que então começava a atrair o público leigo. Os autores concluíram, ainda no começo da década de 90, que “um livro atualizado sobre este tema para os leitores em geral se fazia necessário” (p. V).

Finkelstein e Silberman observam que, nestes últimos anos, a controvérsia arqueológica sobre a questão bíblica cresceu muito, inclusive com acusações pessoais de motivações políticas inconfessáveis [os autores devem estar se referindo às possíveis implicações da pesquisa acadêmica para as reivindicações atuais de determinados grupos em Israel sobre o território palestino].

Houve um êxodo? Existiu uma conquista de Canaã? Davi e Salomão governaram um grande império? Questões como estas atraíram jornalistas, chegaram ao grande público e, ao ultrapassarem os círculos acadêmicos da arqueologia e da exegese bíblica, criaram polêmicos debates teológicos, resultando até em discussões sobre a crença religiosa deste ou daquele estudioso.

Por tudo isso é que declaram os autores: “Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior” (p. V-VI). Sua proposta no livro: apresentar evidências que sustentam esta afirmação e reconstruir uma história do antigo Israel bem diferente das habituais. Os autores deixam, finalmente, aos leitores, o julgamento de sua empreitada.

No Prólogo os autores propõem que o mundo em que a Bíblia nasceu foi o da Jerusalém da reforma do rei Josias no século VII AEC [antes da Era Comum, o mesmo que a.C.= antes de Cristo]. O núcleo histórico da Bíblia, pelo menos, nasceu nas ruas de Jerusalém, nos pátios do palácio real da dinastia davídica e no Templo do Deus de Israel, em parte de materiais tradicionais herdados, em parte de composições originais da época.

Nas palavras dos autores: “A saga histórica contida na Bíblia – do encontro de Abraão com Deus e sua jornada para Canaã, da libertação mosaica dos filhos de Israel da escravidão até a ascensão e queda dos reinos de Israel e Judá – não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana. Ela foi concebida pela primeira vez – como as recentes descobertas arqueológicas sugerem – no espaço de duas ou três gerações, a cerca de dois mil e seiscentos anos atrás. Seu berço foi o reino de Judá, uma região escassamente povoada por pastores e agricultores, governada por uma isolada cidade real precariamente encravada no coração da região montanhosa sobre um estreito cume, entre profundos, rochosos desfiladeiros” (p. 1).

Uma cidade que pareceria extremamente modesta aos olhos de um observador moderno, com seus cerca de 15 mil habitantes, com bazares e casas amontoadas a oeste e sul de um modesto palácio real e seu Templo. Entretanto, no século VII AEC, esta cidade fervilhava com uma agitada população de oficiais reais, sacerdotes, profetas, refugiados e camponeses privados de suas terras. Uma cidade consciente de sua história, identidade, destino e relação direta com Deus.

Esta visão da antiga Jerusalém e das circunstâncias que deram origem à Bíblia, insistem os autores, é proveniente das recentes descobertas arqueológicas. Descobertas que “revolucionaram o estudo do Israel primitivo e lançaram sérias dúvidas sobre as bases históricas das tão famosas histórias bíblicas como as peregrinações dos patriarcas, o Êxodo do Egito, a conquista de Canaã e o glorioso império de Davi e Salomão” (p. 3).

É isto que os autores deste livro pretendem contar: “A história do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica” (p. 3). Os autores pretendem separar história de lenda. Enfim, declaram, seu propósito não é simplesmente desmontar conhecimentos ou crenças, mas partilhar as mais recentes percepções arqueológicas “não apenas sobre o quando, mas também sobre o porquê a Bíblia foi escrita, e porque ela permanece tão poderosa ainda hoje” (p. 3).

Na Introdução, p. 4-24, sob o título A Arqueologia e a Bíblia, os autores nos informam que foram os estudos detalhados dos textos bíblicos e as pesquisas arqueológicas realizadas na Palestina nos dois últimos séculos que nos ajudaram a reconstruir a real história escondida atrás da Bíblia.

Em seguida, ao oferecerem algumas definições básicas do que é a Bíblia Hebraica [= Antigo Testamento] e explicar a sua estrutura – “O coração da Bíblia Hebraica é uma história épica que descreve o surgimento do povo de Israel e sua contínua relação com Deus” (p. 8) -, Finkelstein e Silberman dizem que este livro examina as principais obras ‘históricas’ da Bíblia, ou seja, a Torá [= Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio] e os Profetas Anteriores [= OHDtr – Obra Histórica Deuteronomista: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis].

E explicam: “Nós comparamos esta narrativa com a riqueza dos dados arqueológicos que foram coletados nas últimas décadas. O resultado é a descoberta de uma relação complexa e fascinante entre o que realmente aconteceu na terra da Bíblia durante o período bíblico (…) e os conhecidos detalhes da elaborada narrativa histórica contida na Bíblia Hebraica” (p. 8).

Após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia oferece hoje evidência suficiente para que se sustente uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século VII AEC.

“Nós focalizaremos o Judá do final do século VIII e do século VII AEC, quando este processo literário começou para valer, e argumentaremos que a maior parte do Pentateuco é uma criação da monarquia recente, elaborado em defesa da ideologia e necessidades do reino de Judá, e, como tal, está intimamente associado à História Deuteronomista. E nos alinharemos com aqueles estudiosos que argumentam que a História Deuteronomista foi compilada, principalmente, no tempo do rei Josias [640-609 AEC], para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas” (p. 14).

Finalmente, depois de brevemente resenhar a história da arqueologia da Palestina, Finkelstein e Silberman concluem, na p. 23, que “a maior parte daquilo que é normalmente considerado como história acurada (…) são, na verdade, as criativas expressões de um poderoso movimento de reforma religiosa que floresceu no reino de Judá na Idade Recente do Ferro”.

Isto não implica, para os autores, que o antigo Israel não tenha uma história genuína, nem que os relatos bíblicos devam ser descartados, mas que, amparados pelos achados arqueológicos e pelos testemunhos extrabíblicos, se verá como as narrativas bíblicas são, elas mesmas, parte da história, e não o inquestionável quadro histórico dentro do qual deveriam se encaixar cada achado arqueológico ou conclusão da pesquisa.

A Bíblia é, nesta perspectiva, um artefato específico que, juntamente com a cerâmica, a arquitetura e as inscrições, nos ajuda a compreender a sociedade na qual ela foi produzida.

“Nossa história se afastará dramaticamente da familiar narrativa bíblica. Será a história não de um, mas de dois reinos escolhidos, que juntos contêm as raízes históricas do povo de Israel”, concluem os autores ao término da Introdução, na p. 23.


 

A Primeira Parte do livro – A Bíblia como História? – tem cinco capítulos, que tratam, respectivamente, dos patriarcas (p. 27-47), do êxodo (p. 48-71), da conquista de Canaã (p. 72-96), da identidade dos israelitas (p. 97-122) e da monarquia sob Davi/Salomão (p. 123-145).

No capítulo sobre os patriarcas, após sintetizarem as tradições bíblicas sobre estas figuras, os autores se perguntam: reais ou fictícias?

Para responder a isso, eles explicam as razões da busca dos estudiosos pelos patriarcas, nos últimos séculos, e como a historiografia bíblica ficou convencida de sua historicidade. Entre os nomes mais conhecidos estão, por exemplo, Albright, De Vaux, Speiser, Gordon e Benjamin Mazar.

Entretanto, lembram os autores, um acordo nunca foi alcançado, especialmente na questão da datação dos patriarcas. E questionam: onde está o erro desta busca? O erro está em que todos eles acreditavam que a época patriarcal deveria ser vista, de qualquer modo, como a primeira fase de uma história sequencial de Israel, concluem na p. 36. E se esta sequência – patriarcas, êxodo, conquista, monarquia unida, reinos divididos, exílio etc – não for considerada?

Em seguida, os autores expõem a posição de especialistas que, analisando de modo diferente as tradições, não acreditam na historicidade dos patriarcas. Destacam Wellhausen, Van Seters e Thomas L. Thompson, todos mostrando que as narrativas são compilações bem recentes. E, mais uma vez, perguntas: mas estas compilações teriam ocorrido quando?

Buscando na arqueologia as respostas, Finkelstein e Silberman mostram as inconsistências existentes nas tradições patriarcais. E defendem que detalhes como a presença impossível de camelos e filisteus no mundo patriarcal são ‘anacronismos’ a serem seriamente considerados, pois não são inserções posteriores em narrativas antigas, mas indícios de que as narrativas são bem mais recentes do que alguns estudiosos pensavam. E tudo aponta para os séculos VIII/VII AEC, concluem na p. 38, quando estes elementos não eram, de modo algum, anacrônicos.

E é a partir desse pressuposto que os autores vão mostrar como o exame das genealogias e dosFINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018, 392 p. costumes patriarcais “oferecem um colorido mapa humano do Antigo Oriente Médio de um inquestionável ponto de vista dos reinos de Israel e Judá nos séculos oitavo e sétimo AEC. Estas histórias oferecem um comentário altamente sofisticado dos negócios políticos nesta região nos períodos assírio e neobabilônico”, dizem nas p. 38-39.

Finkelstein e Silberman consideram que a caracterização de muitos termos e nomes de lugares das tradições patriarcais combinam perfeitamente com a relação de Israel e Judá com os reinos e povos vizinhos desta época. Para demonstrar isto, tratam dos arameus, de Amon e Moab, Edom, dos descendentes de Ismael e de nomes de lugares mencionados em Gn 14 e outros textos.

Na sequência, os autores lembram a posição de M. Noth de que os patriarcas seriam originariamente ancestrais isolados que foram agrupados como uma família para criar uma história unificada. E mostram, então, nesta perspectiva, que a escolha de Abraão e sua ligação com Hebron e Jerusalém (Salém em Gn 14,18), cidades reais davídicas, foi feita para enfatizar a primazia de Judá. Escolha esta feita nos séculos VIII/VII AEC, mas retroprojetadas para o começo, para legitimar Judá como projeto divino. “Então, a ideia pan-israelita, com Judá no centro, nasceu”, sentenciam na p. 44.

Concluem, assim, Finkelstein e Silberman a questão patriarcal: as narrativas patriarcais são provavelmente, baseadas em antigas tradições locais, mas “a ordem em que elas foram agrupadas as transformam em uma poderosa expressão dos sonhos judaítas do século sétimo” (p. 45). Por isso, as tradições patriarcais devem ser lidas como uma espécie de piedosa ‘pré-história’ de Israel, na qual Judá exerce um papel decisivo. Sob tal perspectiva, devemos considerar a versão javista (J) das narrativas patriarcais como uma tentativa de redefinir a unidade do povo de Israel, muito mais do que a recuperação de vidas de personagens que teriam vivido um milênio antes.

Finkelstein e Silberman consideram, finalmente, que a grande genialidade dos criadores deste épico nacional do século sétimo AEC foi ter transformado os filhos de Abraão, Isaac e Jacó numa grande família, unidos pelo poder da lenda, muito mais forte do que poderiam ser tênues lembranças de alguns indivíduos nômades perambulando pelas montanhas de Canaã.

No capítulo sobre o êxodo, os autores fazem quatro perguntas: O êxodo tem credibilidade histórica? A arqueologia pode ajudar a reconstruí-lo? É possível traçar a rota do êxodo? O êxodo aconteceu como descrito na Bíblia?

Após uma síntese da narrativa bíblica, Finkelstein e Silberman confirmam que as migrações de Canaã para o Egito são bem documentadas pela arqueologia e por textos da época. Para muitos habitantes de Canaã, região periodicamente sujeita a severas secas, a única saída era ir para o Egito. Pinturas e textos egípcios testemunham a presença de semitas no delta do Nilo ao longo das Idades do Bronze e do Ferro.

Por outro lado, há intrigantes paralelos entre a história bíblica de José e o êxodo e a história egípcia escrita por Maneton, sobre a invasão do Egito pelos hicsos e sua posterior expulsão após um século. “Invasão” que escavações arqueológicas recentes revelaram ter sido muito mais uma ocupação cananeia gradual e pacífica do delta do que uma operação militar. “As descobertas feitas em Tell ed-Daba [a antiga Avaris, capital dos hicsos] constituem evidência de um longo e gradual desenvolvimento da presença cananeia no delta e um controle pacífico da região”, concluem na p. 55.

Estes paralelismos entre a história bíblica de José e a história egípcia dos hicsos indicam a possibilidade do êxodo. Entretanto, duas questões permanecem: Quem eram este imigrantes semitas? E será que a data de sua permanência no Egito [1670-1570 AEC] combina com a cronologia bíblica?

A Bíblia colocou o êxodo em torno de 1440 AEC, data que se obtém pela comparação de dados bíblicos com fontes extrabíblicas. Entretanto, esta data não coincide com a expulsão dos hicsos. Por isto, muitos estudiosos consideram-na simbólica apenas, e datam  o êxodo no século XIII AEC, na época de Ramsés II, fundados em testemunhos egípcios indiretos, como a construção da cidade de Pi-Ramsés no delta, na qual trabalharam semitas, e na estela de Merneptah, filho e sucessor de Ramsés II, que fala da presença de uma entidade de nome ‘Israel’ presente em Canaã, no final do século XIII AEC.

Mas quem eram estes semitas presentes no Egito na construção de cidades e que ‘Israel’ é este da estela de Merneptah? Ainda não há respostas definitivas para estas perguntas. E mais: um êxodo em massa teria sido possível na época de Ramsés II?

O que se sabe é que não existe nas fontes egípcias da época menção alguma da presença de israelitas no Egito. Nem ligados aos hicsos (séculos XVII-XVI AEC), nem aos grupos cananeus mencionados nas Cartas de Tell el-Amarna (século XIV AEC), nem a um fuga para Canaã (século XIII AEC).

Trabalhando a partir desta lógica, Finkelstein e Silberman vão concluir pela impossibilidade do êxodo no século XIII AEC. Entre outras coisas, eles alegam que, nesta época, a fronteira do Egito com Canaã era severamente controlada, como a arqueologia comprovou na década de 70; que não existe nenhum sinal de ocupação do Sinai na época de Ramsés II ou predecessores imediatos; que não existe sinal do êxodo em Kadesh-Barnea ou Ezion-Geber, nem nos outros lugares mencionados na narrativa do êxodo, como Tel Arad, Tel Hesbon ou Edom. Convém considerar, também, que as narrativas bíblicas do êxodo jamais mencionam o nome do faraó que os israelitas enfrentaram.

E concluem: “Os locais mencionados na narrativa do êxodo são reais. Alguns eram bem conhecidos e aparentemente estavam ocupados em épocas mais antigas e em épocas mais recentes – após o estabelecimento do reino de Judá, quando a narrativa bíblica foi pela primeira vez escrita. Infelizmente, para os defensores da historicidade do êxodo, estes locais estavam desocupados exatamente na época em que aparentemente eles exerceram algum papel nas andanças dos israelitas pelo deserto” (p. 64).

E é então que se verifica estarem as condições do sétimo século AEC, época da escrita, bem mais presentes na história do êxodo, do que uma realidade do século XIII AEC. E aqui Finkelstein e Silberman vão adotar a tese do egiptólogo Donald B. REDFORD, exposta no livro Egypt, Canaan, and Israel in Ancient Times. Princeton: Princeton University Press, 1992.

Falando de maneira muito simplificada, a proposta é a seguinte: a memória da invasão e expulsão dos hicsos foi incorporada em Canaã como uma memória de confronto, vitória e libertação. Israel, ao surgir de Canaã, será o herdeiro dessa memória. Quando, no século VII AEC, Psamético I, faraó do Egito e Josias, rei de Judá tentam ocupar o espaço deixado pela Assíria na região da Palestina, e se confrontam – Josias será vencido por Necao II, filho de Psamético I -, esta memória serve de pano de fundo para a narrativa do êxodo. Êxodo impossível na época de Ramsés II, mas um paradigma de resistência na luta de Josias para reunificar o grande Israel.

Para finalizar: “A saga do êxodo de Israel do Egito não é uma verdade histórica, nem uma ficção literária. Ela é uma poderosa expressão de memória e esperança nascida em um mundo em transformação. O confronto entre Moisés e o faraó espelha o crucial confronto entre o jovem rei Josias e o recém-coroado faraó Necao. Fixar esta imagem bíblica em uma data anterior é subtrair da história seu mais profundo significado. A Páscoa se revela, assim, não como um simples evento, mas como uma experiência contínua de resistência nacional contra os poderes estabelecidos” (pp.70-71).

No capítulo sobre a conquista de Canaã, a questão básica é: história ou mito? Para responder a isto, os autores, após resumir a saga bíblica da conquista narrada no livro de Josué, dizem que as Cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, mostram um Canaã bem diferente daquele de Josué, ou seja, como uma província egípcia, governada por fracos chefes nas cidades. Realidade que a arqueologia confirma, ao escavar cidades pequenas e fracas, algumas abandonadas ou diminuídas em população e povoados sem muralhas.

E no século XIII AEC? Não temos dados como os das Cartas de Tell el-Amarna, mas o forte governo de Ramsés II estava presente em Canaã, como se pode ver na fortaleza egípcia de Bet-Shean e em Meguido, do que os autores deduzem que os egípcios em Canaã não ficariam indiferentes a uma destruição tal como a de Josué.

Após repassar a arqueologia da conquista – quer dizer, os defensores da versão de Josué – na primeira metade do século XX, com as escavações de Albright em Tell Beit Mirsim/Debir (1926-1932), dos britânicos em Tell ed-Duweir/Laquis (1930ss) e do israelense Yigael Yadin em Tell el-Waqqas/Hasor (1956), Finkelstein e Silberman explicam como a euforia desta teoria entrou em crise com as pesquisas de Jericó, Ai, Gabaon e outras cidades que nem existiam no século XIII AEC, fazendo cair o consenso sobre a conquista de Canaã.

Em seguida, alertam que, para se compreender Canaã, é preciso olharmos o Mundo Mediterrâneo como um todo no século XIII AEC. E aí apontam transformações dramáticas, tais como o grandioso Egito de Ramsés II que se enfrenta com o império de Hatti na batalha de Cades, levando ao tratado egípcio-hitita; o mundo de Micenas; Chipre…

E, então, aconteceu o grande ‘terremoto’ da migração dos Povos do Mar que arrasaram Hatti, Ugarit e Chipre, e a sua tentativa de invasão do Egito na época de Ramsés III [por volta de 1177 AEC]. Foi constatada a presença dos filisteus, um dos Povos do Mar, em Ashdod e Ekron. E  é documentada a destruição de outras cidades cananeias como Hasor, Afek, Laquis e Meguido, destruição lenta e gradual ao longo de um século ou mais, talvez provocada por uma convergência de fatores, como invasões, conflitos regionais e revoltas internas. Enfim, o que se conclui é que não pode ter sido Josué o destruidor destas cidades.

Lembram também os autores como a escola alemã de Alt e Noth já mostrava, antes da atual posição da arqueologia, a inconsistência de uma conquista, tal como narrada em Josué, e a maior coerência da narrativa de Jz 1. Para concluir disto o seguinte: o livro de Josué pode trazer, sim, memórias populares e lendas sobre esta época de profundas transformações, mas o que deve ter sido uma destruição caótica provocada por diferentes fatores e grupos diversos, ficou na tradição como uma poderosa saga de uma brilhante conquista territorial comandada pelas bênçãos divinas.

Ainda: a lista de cidades de Js 15,21-62 corresponde às fronteiras do reino de Judá na época de Josias. E algumas localidades estiveram habitadas somente nas décadas finais do século VII AEC. Assim, o que a OHDtr narra das batalhas de Josué cabe melhor na época de Josias, como o caso de Jericó, Ai (na região de Betel), o caso dos gabaonitas, a conquista da Shefelá e a conquista do norte, especialmente Hasor.

Donde os autores concluem que as conquistas de Josué são uma ‘mascara’ para as conquistas de Josias: e isto está bem entranhado na OHDtr, onde os paralelismos entre as figuras de Josué e Josias não são apenas convencionais, mas “paralelismos diretos na linguagem e na ideologia – além dos idênticos objetivos de conquista dos dois personagens” (p. 85).

No capítulo sobre a identidade dos israelitas, a questão é: se, como a arqueologia sugere, as sagas dos patriarcas e do êxodo são lendárias, compostas em épocas bem mais recentes, e se não houve uma conquista unificada de Canaã sob o comando de Josué, quem é este Israel que reivindica uma identidade nacional desde tempos antigos?

Ora, “a arqueologia, surpreendentemente, nos revela que este povo que vivia nestes povoados, eram habitantes nativos de Canaã que somente gradualmente desenvolveram uma identidade étnica que poderia ser chamada de israelita”, dizem os autores na p. 98.

Após repassarem uma síntese bíblica da divisão do território entre as tribos, segundo o livro de Josué, e as lutas do livro dos Juízes, mais questões são colocadas por Finkelstein e Silberman: a Bíblia está narrando algo que realmente aconteceu? Cultuava Israel um só Deus, mas caía, às vezes, no politeísmo? Como viviam estes israelitas no seu cotidiano? Sabemos de suas fronteiras e batalhas, mas como eram os assentamentos e como se sustentavam? Como nômades do deserto aprenderam a ser agricultores tão rapidamente?

Em seguida, os autores falam do ‘Israel’ citado na estela de Merneptah no final do século XIII AEC, da diferença entre as culturas cananeia e a dos invasores ‘seminômades’ percebida pelos arqueólogos, da teoria da infiltração pacífica de A. Alt e dos testemunhos egípcios sobre os apiru e os shoshu. Criticam, por um lado, a teoria da infiltração pacífica e, por outro, a proposta da revolta camponesa de Mendenhall e Gottwald, esta última, pela falta de suporte arqueológico, para chegar onde sempre chegam: a resposta às questões colocadas deve ser buscada na arqueologia.

Mas, dizem Finkelstein e Silberman, os arqueólogos até os anos 60 procuravam Israel nos lugares errados, nos grandes sítios das maiores cidades cananeias. E isto porque acreditavam em Josué. A exceção foi Y. Aharoni que fez escavações na Alta Galileia. Entretanto, lembram, desde os anos 40 os arqueólogos já reconheciam a necessidade da pesquisa de uma região e não apenas de uma localidade.

E, então, a partir de 1967, os territórios das tribos de Judá, Benjamin, Efraim e Manassés foram intensivamente pesquisados, revolucionando o estudo do antigo Israel, pois uma densa rede de povoados montanheses foi descoberta: cerca de 250 comunidades habitando as colinas apareceram. “Aqui estavam os primeiros israelitas”, comemoram os autores na p. 107.

Como assim? Neste ponto do capítulo, eles passam a descrever as características de um típico povoado da Idade do Ferro I, oferecendo inclusive desenhos ilustrativos e afirmando que a população de todos estes povoados por volta do ano 1000 AEC não ultrapassava em muito as 45 mil pessoas. Descrevem o modo de vida nos povoados, usando como exemplo Izbet Sartah que foi bem pesquisado.

Disto concluem: a principal luta dos primeiros israelitas não era com outros povos, mas com as duras condições da natureza onde viviam. E parece que viviam em relativa paz e com uma economia auto-suficiente, isolados das principais rotas comerciais da região e razoavelmente distantes uns dos outros, não havendo sinais de comércio entre os povoados. “Por isso, não nos surpreende que inexistam evidências de significativa estratificação social nestes povoados, nenhum sinal de edifícios administrativos, nem grandes residências de dignitários ou produtos especializados de hábeis artesãos”, dizem os autores na p. 110.

Entretanto, uma pergunta permanece: de onde eles vieram? Ora, a partir da pesquisa de Izbet Sartah, que preservou bastante bem suas estruturas originais, pode-se acompanhar a evolução dos povoados. E tudo indica que uma grande parte dos primeiros israelitas veio do meio pastoril. Pastores nômades, mas que estavam passando por profundas transformações, tornando-se, gradualmente, agricultores.

Outra coisa interessante que a arqueologia mostra também é que esta transformação no século XII AEC não foi nem a primeira, nem a única: duas outras ondas de ocupação da região montanhosa de Canaã ocorreram antes.

A primeira onda foi na Idade do Bronze Antigo, por volta de 3500 AEC, com cerca de 100 povoados e pequenas cidades, acontecendo o abandono da maior parte das povoações nas montanhas por volta de 2200 AEC. A segunda onda ocorreu na Idade do Bronze Médio, por volta de 2000 AEC, com cerca de 220 assentamentos, que iam desde povoados até cidades e centros regionais fortificados, chegando a população a um total de 40 mil pessoas. Esta onda terminou no século XVI AEC.

A terceira onda, a dos assentamentos israelitas, ocorreu por volta de 1200 AEC, com uma população de aproximadamente 45 mil habitantes em cerca de 250 localidades. O ápice desta ocupação foi no século VIII AEC, após a constituição dos reinos de Judá e de Israel, com cerca de 500 localidades e uma população de aproximadamente 160 mil habitantes.

Agora, uma questão interessante é colocada pelos autores: existe algum padrão nestas três ocupações? Existe, sim, respondem. A parte norte da região montanhosa sempre foi mais populosa do que a parte sul; cada onda de crescimento demográfico parece ter começado no leste e se expandido para o oeste; as três ondas possuem uma cultura material comum (na cerâmica, na arquitetura e na estrutura dos povoados), resultado provável de condições ambientais e econômicas semelhantes.

Interessante, porém, é o que a arqueologia revelou ao escavar ossos de animais: nos períodos entre estas ondas de ocupação não acontecia um abandono da região, mas uma mudança de atividade: da agricultura e criação de gado para o pastoreio. Este, aliás, parece ter sido, ao longo dos séculos, um comportamento típico das populações da região: em períodos de intenso povoamento, há maior dedicação à agricultura, enquanto que, nos períodos de crise, as pessoas praticam mais o pastoreio, o que lhes dá maior mobilidade.

E isto tem importância para a identificação dos primeiros israelitas? Tem. O que se observa é que agricultores e pastores nômades sempre tiveram uma relação de interdependência nas sociedades do Antigo Oriente Médio, complementando-se na troca de seus produtos. Entretanto, esta troca não é inteiramente equilibrada, pois os habitantes dos povoados podem sobreviver apenas com seus próprios produtos, o mesmo não acontecendo com os pastores nômades: eles precisam de grãos para complementar sua dieta, totalmente dependente do rebanho. E assim, quando não há povoados com os quais comerciar, eles são obrigados a produzir, eles mesmos, seus grãos. Aparentemente, foi isto o que aconteceu no século XII AEC, quando teria ocorrido a ausência do controle egípcio sobre Canaã e a economia da região entrou em colapso.

Assim concluem os autores na p. 118: “O processo que nós descrevemos aqui é, na verdade, o oposto daquele que temos na Bíblia: a emergência do Israel primitivo foi uma consequência do colapso da cultura cananeia, não a sua causa. E a maior parte dos israelitas não veio de fora de Canaã – eles emergiram de dentro desta terra. Não ocorreu um êxodo em massa do Egito. Não houve uma conquista violenta de Canaã. A maior parte das pessoas que formaram o primitivo Israel eram moradores locais – as mesmas pessoas que vemos nas montanhas nas Idades do Bronze e do Ferro. Os israelitas primitivos eram – ironia das ironias – eles mesmos originariamente cananeus!”

O mesmo processo poderia ser, segundo os autores, testemunhado na Transjordânia, com populações locais formando os povos de Amon, Moab e Edom.

Finalmente, terminam Finkelstein e Silberman este capítulo com duas especulações: os israelitas, já nas suas origens, não consumiam carne de porco – não se sabe a razão -, não tendo sido encontrados ossos deste animal nos povoados das montanhas, e isto seria sua marca distintiva; e o livro dos Juízes, parte da OHDtr, reflete, não as lutas dos primeiros tempos de Israel, mas a época de Josias, quando este, controlando o antigo território do reino de Israel e centralizando o culto em Jerusalém, quebrou o círculo vicioso de apostasia e desastre que atingia periodicamente Israel.

De minha parte, considero a especulação sobre a ausência de consumo da carne de porco como elemento distintivo dos israelitas primitivos especialmente frágil…

No capítulo sobre a monarquia davídico-salomônica, os autores lembram como, para os leitores da Bíblia, Davi e Salomão representam uma idade de ouro, enquanto que para os estudiosos representavam, até recentemente, o primeiro período bíblico realmente histórico. Hoje, a crise se abateu sobre o “império” davídico-salomônico. E se perguntam: Davi e Salomão existiram?

Mostram como os minimalistas dizem: “não”, os argumentos pró e contra a postura dos minimalistas, para chegarem à questão chave: o que diz a arqueologia sobre Davi/Salomão?

Para Finkelstein e Silberman a evolução dos primeiros assentamentos para modestos reinos é um processo possível e até necessário na região. Descrevendo as características do território de Judá, concluem que este permaneceu pouco desenvolvido, escassamente habitado e isolado no período atribuído pela Bíblia a Davi/Salomão: é o que a arqueologia descobriu.

E Jerusalém? As escavações de Yigal Shiloh, da Universidade Hebraica de Jerusalém, nas décadas de 70 e 80, na Jerusalém das Idades do Bronze e do Ferro mostram que não há nenhuma evidência de uma ocupação no século X AEC. A postura mais otimista aponta para um vilarejo no século décimo, enquanto que o resto de Judá, na mesma época seria composto por cerca de 20 pequenos povoados e poucos milhares de habitantes, tendo havido, portanto, dificilmente, um grande império davídico.

Mas e as conquistas davídicas? Até recentemente, em qualquer lugar em que se encontravam cidades destruídas por volta do ano 1000 AEC isto era atribuído a Davi por causa das narrativas de Samuel. Teoricamente é possível que os israelitas da região montanhosa tenham controlado pequenas cidades filisteias como Tel Qasile, escavada por Benjamin Mazar em 1948-1950, ou até mesmo cidades cananeias maiores como Gezer, Meguido ou Bet-Shean. Mas será que o fizeram?

Israel FinkelsteinE o glorioso reino de Salomão? Em Jerusalém, nada foi encontrado, mas e Meguido, Hasor e Gezer? Em Meguido, P. L. O. Guy, da Universidade de Chicago, descobriu, nas décadas de 20 e 30, os “estábulos” de Salomão. Sua interpretação dos edifícios achados se baseou em 1Rs 7,12;9,15.19. Na década de 50, Yigael Yadin descobriu, ou identificou nas descobertas de outros, as “portas salomônicas” de Hasor, Gezer e Meguido. Também a chave aqui foi 1Rs 9,15, que diz: “Eis o que se refere à corveia que o rei Salomão organizou para construir o Templo de Iahweh, seu palácio, o Melo e o muro de Jerusalém, bem como Hasor, Meguido, Gazer [=Gezer]“.

Mas, na década de 60, Y. Yadin escava novamente Meguido e faz a descoberta de um belo palácio que parecia ligado à porta da cidade e abaixo dos “estábulos”, o que o leva à seguinte conclusão : os palácios [a Universidade de Chicago encontrara outro antes] e a porta de Meguido são salomônicas, enquanto que os “estábulos” seriam da época de Acab, rei de Israel do norte no século IX AEC.

Durante muitos anos, estas “portas salomônicas” de Hasor, Gezer e Meguido foram o mais poderoso suporte arqueológico ao texto bíblico. Mas o modelo arquitetônico dos palácios salomônicos veio dos palácios bit hilani da Síria, e estes, se descobriu, só aparecem no século IX AEC, pelo menos meio século após a época de Salomão. “Como poderiam os arquitetos de Salomão ter adotado um estilo arquitetônico que ainda não existia?”, se perguntam os autores na p. 140. E o contraste entre Meguido e Jerusalém? Como um rei constrói fabulosos palácios em uma cidade provincial e governa a partir de um modesto povoado?

Pois bem, dizem Finkelstein e Silberman na p. 140: “Agora nós sabemos que a evidência arqueológica para a grande extensão das conquistas davídicas e para a grandiosidade do reino salomônico foi o resultado de datações equivocadas”.

Dois tipos de evidência fundavam os argumentos em favor de Davi e Salomão: o fim da típica cerâmica filisteia por volta de 1000 AEC fundamentava as conquistas davídicas; e as construções das monumentais portas e palácios de Hasor, Gezer e Meguido testemunhavam o reino de Salomão. Nos últimos anos, entretanto, estas evidências começaram a desabar [aqui os autores remetem o leitor ao Apêndice D, p. 340-344, onde os seus argumentos são mais detalhados].

Primeiro, a cerâmica filisteia continua após Davi e não serve mais para datar suas conquistas; segundo, os estilos arquitetônicos e as cerâmicas de Hasor, Gezer e Meguido atribuídos à época salomônica são, de fato, do século IX AEC; e, por último, testes com o Carbono 14 em Meguido e outras localidades apontam para datas da metade do século IX AEC.

Enfim: a arqueologia mostra hoje que é preciso “abaixar” as datas em cerca de um século [anoto aqui que esta “cronologia baixa” de Finkelstein tem dado muito o que falar nos meios acadêmicos!]. O que se atribuía ao século XI é da metade do século X e o que era datado na época de Salomão deve ser visto como pertencendo ao século IX AEC.

Dizem os autores: “Não há razões para duvidarmos da historicidade de Davi e Salomão. Há, sim, muitos motivos para questionarmos as dimensões e o esplendor de seus reinos. Mas, e se não existiu um grande império, nem monumentos, nem uma magnífica capital, qual era a natureza do reino de Davi?” (p. 142).

O quadro é o seguinte: região rural… nenhum documento escrito… nenhum sinal de uma estrutura cultural necessária em uma monarquia… do ponto de visto demográfico, de Jerusalém para o norte, povoamento mais denso; de Jerusalém para o sul, mais escasso… estimativa populacional: dos 45 mil habitantes da região montanhosa, cerca de 40 mil habitariam os povoados do norte e apenas 5 mil se distribuíam entre Jerusalém, Hebron e mais uns 20 pequenos povoados de Judá, com grupos continuando o pastoreio…

Davi e seus descendentes? “No século décimo, pelo menos, seu governo não possuía nenhum império, nem cidades com palácios, nem uma espetacular capital. Arqueologicamente, de Davi e Salomão só podemos dizer que eles existiram – e que sua lenda perdurou” (p. 143).

Entretanto, quando o Deuteronomista escreveu sua obra no século VII AEC, Jerusalém tinha todas as estruturas de uma sofisticada capital  monárquica. Então, o ambiente desta época é que serviu de pano de fundo para a narrativa de uma mítica idade de ouro. Uma bem elaborada teologia ligava Josias e o destino de todo o povo de Israel à herança davídica: ele unificara o território, acabara com o ciclo idolátrico da época dos Juízes e concretizara a promessa feita a Abraão de um vasto e poderoso reino. Josias era o novo Davi e Iahweh cumprira suas promessas “O que o historiador deuteronomista queria dizer é simples e forte: existe ainda uma maneira de reconquistar a glória do passado” (p. 144).


 

A Segunda Parte do livro – A Ascensão e Queda do Antigo Israel – tem três capítulos, que tratam, respectivamente, do surgimento do reino de Israel (p. 149-168), da dinastia de Omri (p. 169-195) e do domínio assírio sobre Israel (p. 196-225).

No capítulo sobre o surgimento do reino de Israel, os autores começam lembrando o relato bíblico sobre a rebelião do norte, onde Judá e Simeão aparecem em forte contraste com o condenável comportamento das 10 tribos do norte.

Este esquema bíblico, de uma monarquia unida, que se desintegra após a morte de Salomão, sempre foi aceito por arqueólogos e historiadores, mas está errado. Não há evidências de uma monarquia unida governada por Jerusalém, mas há boas razões para se acreditar que sempre houve duas diferentes entidades políticas na região montanhosa de Canaã, garantem os autores.

A pesquisa arqueológica nos anos 80 retrata uma situação bem diferente do relato bíblico. Em cada uma das ondas de ocupação das montanhas Neil Asher Silberman (Idade Antiga do Bronze: 3500-2200; Idade Média do Bronze: 2000-1550 AEC) sempre aparecem duas sociedades distintas, norte e sul, assim como no Ferro I (1150-900 AEC) existe a distinção entre Israel e Judá. A região norte sempre aparece mais povoada, com uma complexa hierarquia de grandes, médios e pequenos sítios arqueológicos e sempre mais fortemente ligada à agricultura. A região sul sempre aparece como mais escassamente povoada, com pequenos sítios arqueológicos e uma população de grupos nômades mais significativa.

No Bronze Antigo dois únicos centros se destacam em Canaã: no sul, Khirbet et-Tell (Ai) e no norte Tell el-Farah (Tirsá). No Bronze Médio, dois centros se destacam no sul, Jerusalém e Hebron, e um centro no norte, Siquém. Além destas pistas arqueológicas, os Textos de Execração egípcios mencionam, para este período, apenas dois centros nas montanhas de Canaã: Siquém e Jerusalém.

Uma inscrição egípcia do século XIX AEC, falando das ações de um general egípcio chamado Khu-Sebek na região montanhosa de Canaã, menciona a ‘terra’, e não a cidade, de Siquém em paralelo com Retenu (um dos nomes egípcios para Canaã). No Bronze Recente, as Cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, indicam duas cidades líderes na região das montanhas: Siquém e Jerusalém.

Assim, Siquém e Jerusalém, Israel e Judá, parecem ter sido sempre dois territórios distintos e rivais, concluem os autores.

Norte e sul possuem, de fato, dois ecossistemas bem diferentes sob qualquer aspecto: topografia, formação rochosa, clima, vegetação e potencial econômico. O sul é mais isolado por barreiras topográficas, enquanto que o norte possui vales férteis com maior potencial econômico. O maior desenvolvimento do norte pode ter proporcionado o surgimento de instituições econômicas mais complexas, levando ao surgimento de instituições políticas mais sofisticadas, nascendo daí um ‘Estado’.

“A evolução das colinas de Canaã em duas distintas entidades políticas foi um desenvolvimento natural. Não há evidência arqueológica em lugar algum de que esta situação de norte e sul tenha surgido de uma anterior unidade política – muito menos de uma localizada no sul”, dizem os autores na p. 158.

Judá, nos séculos X e IX AEC, era pastoril e pouco significativo. Jerusalém era um pequeno povoado na época de Salomão e Roboão, enquanto que o norte já era mais populoso e desenvolvido. Israel (do norte) já era um Estado no século IX AEC, enquanto que a sociedade e economia de Judá pouco tinham mudado desde suas origens nas montanhas.

Sem dúvida, Israel e Judá da Idade do Ferro tinham muito em comum: ambos cultuavam Iahweh (além de outros deuses) e seus povos partilhavam muitas histórias sobre um passado comum. Falavam línguas semelhantes, ou dialetos do hebraico, e, por volta do século VIII AEC, partilhavam da mesma escrita. Mas experimentaram diferentes histórias e desenvolveram culturas distintas, sendo Israel mais desenvolvido do que Judá.

O norte pode ter se desenvolvido mais do que o sul, mas não era tão próspero e urbanizado como as cidades-estado cananeias das planícies e da região costeira. Foi a derrocada destas cidades na Idade Recente do Bronze – quer tenha sido causada pelos Povos do Mar, ou por rivalidades entre elas ou, ainda, por desordens sociais – que possibilitou a sua independência.

Mas no século XI AEC houve nova onda de prosperidade nas regiões das planícies: filisteus na costa sul e fenícios na norte. Meguido é um bom exemplo deste processo. Entretanto, este renascimento durou pouco: o faraó Shishaq (ou Sheshonq, nas inscrições egípcias), fundador da Décima Segunda Dinastia, fez agressivo ataque, no final do século X AEC, à região: Meguido, Taanach, Rehov e Bet-Shean, no vale de Jezreel, foram alvos das forças egípcias. Embora os motivos e detalhes desta destruição sejam problemas não respondidos até hoje… Mas isto tem importantes implicações: abriu caminho para a ocupação israelita do Vale de Jezreel…

Entretanto: por que a Bíblia narra tudo diferente, surgindo Israel (do norte) de uma ruptura com Judá? A resposta está em quatro profecias ligadas pela narrativa bíblica à queda da monarquia unida: Salomão como responsável pela quebra da unidade (1Rs 11,4-13); Jeroboão como ‘herdeiro do norte, segundo o profeta Aías de Silo (1Rs 11,31-39); Jeroboão recebendo, em Betel, a profecia de “um homem de Deus” sobre Josias que destruirá o altar de Betel (1Rs 13,1-2); Aías de Silo falando à esposa de Jeroboão do extermínio de sua dinastia e do exílio de Israel (1Rs 14,7-16). O argumento de Finkelstein e Silberman aqui pareceu-me meio “circular” e pouco convincente…

Entretanto, segundo eles, a inevitabilidade da queda de Israel e o triunfo de Josias tornou-se um tema central para o redator deuteronomista no século VII AEC. Betel, a ameaça ao santuário de Jerusalém, cai sob Josias…

O historiador deuteronomista transmite ao leitor a seguinte mensagem, segundo os autores, na p. 167: “De um lado ele descreve Judá e Israel como Estados irmãos; de outro lado, ele mostra forte antagonismo entre eles. Era ambição de Josias expandir-se para o norte e tomar posse dos territórios montanhosos que outrora pertenceram ao reino do norte. Assim, a Bíblia legitima esta ambição, explicando que o reino do norte se estabelecera sobre os territórios da mítica monarquia unida, que fora governada a partir de Jerusalém; que havia um reino israelita irmão; que sua população era composta de israelitas que haviam prestado culto em Jerusalém; que os israelitas ainda vivendo nestes territórios deveriam voltar seus olhos para Jerusalém; e que Josias, o herdeiro do trono davídico e da promessa eterna feita a Davi, era o único legítimo herdeiro dos territórios do vencido Israel. Por outro lado, os autores da Bíblia precisavam deslegitimar o culto do norte – especialmente o santuário de Betel – e mostrar que as típicas tradições religiosas do reino do norte eram todas más, que elas deveriam ser eliminadas e substituídas pelo culto centralizado no Templo de Jerusalém”.

No capítulo sobre a dinastia de Omri, os autores começam lembrando que, segundo o texto bíblico, os omríadas foram os piores: o casal Acab e Jezabel é acusado de idolatria, assassinatos brutais, confisco de terras de herança, tudo na mais perfeita impunidade.

Mas, lembram Finkelstein e Silberman, a arqueologia hoje aponta noutra direção, mostrando que Acab foi um poderoso rei, seu casamento com Jezabel, filha do rei fenício Etbaal, foi uma grande vitória diplomática para Israel, suas construções foram magníficas, seu poder militar e suas conquistas territoriais foram brilhantes.

Em seguida, após repassarem a descrição bíblica dos governos do reino de Israel de Nadab a Jorão, ou seja, do segundo ao nono rei, os autores passam a mostrar as inconsistências e anacronismos da Obra Histórica Deuteronomista. Isto porque a narrativa bíblica, segundo eles, está por demais influenciada pela teologia dos escritores do século VII AEC. Estaríamos, nesta perspectiva, muito mais diante de uma novela histórica do que de posse de uma acurada crônica histórica.

Entretanto, os testemunhos extrabíblicos nos permitem ver os omríadas sob diferente perspectiva, exercendo forte papel aí a Estela de Mesha, a Inscrição de Tel Dan e os testemunhos assírios, como a Inscrição de Salmanasar III, que cita os dois mil carros de combate de Acab – número impressionante! – usados como parte de uma coalizão da Síria, Israel e Fenícia contra as suas investidas na região.

Além disso, as escavações de Samaria, Meguido, Hasor e Dan mostram os omríadas como grandes administradores e construtores arrojados.

Para os autores, o que até então era atribuído a Salomão pode tranquilamente ser considerado como omríada. E eles mostram características comuns nas cidades de Samaria, Jezreel, Hasor, Meguido e Gezer, para eles, todas resultantes de atividades da dinastia de Omri. Como consequência, Salomão e Jerusalém ficam bastante diminuídos.

O poder dos omríadas impressiona também por sua presença na Transjordânia, e bem ao sul, no território de Moab, em Ataroth (=Khirbet Atarus)  e em Jahaz (talvez Khirbet el-Mudayna, sítio que está sendo escavado por Michèle Daviau, da Wilfrid Laurier University, Canadá).

Neste ponto, Finkelstein & Silberman se perguntam: de onde vinham os recursos para estas realizações?

Eles acreditam que possam haver vários elementos em jogo. Como a destruição dos centros cananeus pelo faraó Shishaq no final do século X AEC, que teria aberto o caminho para que Omri tomasse posse dos territórios de Meguido, Hasor e Gezer.

Mas especialmente a diversidade de populações no território – cananeus, israelitas, arameus e fenícios – seria um elemento importante, porque integrava vários ecossistemas e mecanismos econômicos que só fortaleciam o país. As duas capitais seriam representativas desta diversidade: Samaria seria mais israelita, enquanto Jezreel seria mais cananeia. A estimativa demográfica para o século nono é difícil, mas no século VIII AEC, segundo eles, seria de 350 mil habitantes em Israel, fazendo deste território o mais densamente povoado do Levante. Seu único rival possível seria o reino de Damasco.

Este era um Estado “israelita”? Dificilmente… a identidade israelita atribuída ao território do norte parece ser muito mais a obra de escritores de uma monarquia judaíta mais recente!

E uma última pergunta: por que, então, o Deuteronomista, séculos mais tarde, faz de tudo para deslegitimar os omríadas? Exatamente porque Omri, o primeiro rei verdadeiro do reino de Israel, ofuscou o pobre, marginalizado e rural território de Judá…

No capítulo oitavo o livro trata do domínio assírio sobre Israel. Os autores começam mostrando como a interpretação bíblica do trágico destino do reino de Israel, destruído pela Assíria, é muito mais teológica do que histórica: segundo o Deuteronomista, a devastação de Israel pelos exércitos estrangeiros fazia parte de um preciso plano divino, que puniu o povo e seus líderes por sua recusa do culto a Iahweh no Templo de Jerusalém e por sua adesão a outros deuses. Veja-se, por exemplo: Jeú: 2Rs 10,28-33; Joás: 2Rs 13,22-25; Jeroboão II: 2Rs 14,23-27; o motivo do fim do reino do norte: 2Rs 17,7-41. Mas a arqueologia apresenta uma perspectiva diferente: Israel foi invadido pelos assírios por ter sido um reino bem sucedido que, vivendo à sombra do grande império, suscitou sua cobiça.

Após mostrar os equívocos da arqueologia tradicional na pesquisa do reino de Israel, os autores colocam lado a lado os dados do Deuteronomista e da inscrição de Tel Dan, alertando o leitor para a tremenda importância de Aram no declínio de Israel, embora seja complicado decidir se foi Jeú, o general israelita (como diz o Dtr), ou Hazael, o rei arameu (como diz a inscrição de Tel Dan), o responsável pela queda dos omríadas. De qualquer maneira, detalham como Israel teve seu território destruído e parcialmente ocupado por Aram – leia-se por Hazael – por um período significativo.

Entretanto, a chegada ao poder do assírio Adad-nirari III decretou o fim da hegemonia de Damasco na região e fez com que o fiel vassalo assírio que era Israel começasse a se expandir sob Joás e Jeroboão II. Testemunhos arqueológicos desse crescimento, durante o governo de Jeroboão II, no século VIII AEC, segundo os autores, não faltam.

Citam como exemplo os óstraca de Samaria que testemunham a grande produção e exportação de óleo de oliva e de vinho para a Assíria e Egito, o aumento da população que pode ter chegado a 350 mil habitantes – enquanto Judá teria cerca de 100 mil – as construções em Meguido, Hasor e Gezer, a criação de cavalos treinados para a guerra e exportados para a Assíria – possível interpretação para a origem dos controvertidos “estábulos” encontrados em Meguido – a riqueza de Samaria e, até mesmo, os desmandos da elite governante e dos comerciantes denunciados pelos profetas Amós e Oseias.

Só que este crescimento gerou rivalidade entre facções israelitas que, após a morte de Jeroboão, entraram em confronto, fazendo com que os golpes de Estado se sucedessem em ritmo frenético nos últimos 30 anos de Israel. Confronto este que se agravou com a ascensão ao trono do poderoso e ambicioso rei assírio Tiglat-Pileser III que acabará invadindo, destruindo e incorporando Aram e quase todo o Israel. Pouco mais tarde, Israel encontrou seu fim definitivo nas mãos dos assírios Salmanasar V e Sargão II.


 

A Terceira e Última Parte do livro – Judá e a Elaboração da História Bíblica – tem quatro capítulos e um epílogo, que tratam, respectivamente, de Judá desde Roboão até a reforma de Ezequias (p. 229-250), de Judá da invasão de Senaquerib à ascensão de Josias (p. 251-274), da reforma de Josias à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor (p. 275-295) e do exílio babilônico e da volta para a terra sob domínio persa (p. 296-313). Um epílogo de quatro páginas fala de Israel a partir de Alexandre Magno (p. 315-318).

No capítulo nono, A Transformação de Judá, que trata da região de Roboão até a reforma de Ezequias, os autores começam sintetizando o que vão desenvolver nas páginas seguintes, ou seja, a constatação arqueológica da pouca importância de Judá até o século VIII AEC. Mas, logo em seguida, definem que a lista de reis de Judá, como apresentada na OHDtr, a partir de Roboão é aceitável. Reis bons e ruins se sucedem, contudo o período de governo dos bons é superior ao dos ruins. Um ponto que é interessante: concluem que a “reforma” de Ezequias não foi a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. “A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos” (p. 234).

FINKELSTEIN e SILBERMAN, A Bíblia não tinha razãoObservando a arqueologia da região, Finkelstein e Silberman dizem que os monumentos atribuídos pelo Deuteronomista aos reis Roboão e Asa são bem posteriores, são do século VIII AEC para cá. Aliás, os sinais de um Estado desenvolvido aparecem em Judá apenas dois séculos após Salomão e é apenas no século VII AEC que burocracia e comércio controlado podem ser detectados. Até este ponto, dizendo mais o que Judá não era do que era, concluem: “À luz destas descobertas, está claro agora que o Judá da Idade do Ferro não viveu uma precoce era de ouro. Davi, seu filho Salomão e os reis seguintes da dinastia davídica governaram uma região rural, marginalizada e  isolada, sem nenhum sinal de grande riqueza ou administração centralizada. Esta região não sofreu um súbito declínio, perdendo uma condição de incomparável prosperidade. O que ela experimentou foi um longo e gradual desenvolvimento ao longo dos séculos. A Jerusalém de Davi e Salomão era apenas um entre outros centros religiosos na terra de Israel, e não o centro espiritual de todo o povo desde o começo” (p. 238).

Aqui, a necessária pergunta: mas o que era então Jerusalém e redondezas até o século VIII AEC?

Para responder, recorrem às cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, entre as quais estão seis do rei de Jerusalém Abdi-Hepa (ou Abdi-Heba). Aí aparece seu “reino”: um pequeno território de uns dois mil e trezentos quilômetros quadrados, com cerca de mil e quinhentos habitantes localizados em oito pequenos assentamentos e um número impreciso de nômades pastores. E não há razão para pensar Jerusalém e Judá na época de Davi de maneira muito diferente.

Explicam também os autores que o culto a Iahweh convivia com vários outros deuses e cultos na época dos reis de Judá. O que é descrito em 1Rs 14,22-24, como sendo práticas idolátricas típicas da época de Roboão, era um costume generalizado na região e na maioria dos governos judaítas. Conviviam com o culto a Iahweh (e a outros deuses?) no Templo de Jerusalém, rituais rurais, cultos domésticos, cultos da fertilidade…

Só que, para os autores, subitamente, com a interferência de Tiglat-Pileser III na região e a posterior destruição do reino do norte na época de Sargão II, Jerusalém perdeu seu isolamento típico e, ancorada na política assíria, cresceu de 10 a 12 para 150 acres e de cerca de mil para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII AEC, havia cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. Surge, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado.

Junto com esta extraordinária transformação social, começa uma intensa luta religiosa, caracterizada pelos autores como a defesa do monoteísmo javista por profetas e sacerdotes [levitas?] dissidentes vindos do norte, somados ao pessoal do Templo de Jerusalém. Na esteira de Morton Smith, os autores defendem que, neste momento, se estrutura o movimento “só-Iahweh” que se concretizará, de maneira mais definida no Deuteronômio e na Obra Histórica Deuteronomista. O programa político deste “movimento” é a unificação de todo o Israel, juntamente com a condenação de todo e qualquer culto não-javista, na tentativa de dar uma identidade exclusiva a Judá, diferenciando-o da região ao redor.

Gostaria de lembrar que este suposto movimento “só-Iahweh” é extremamente controvertido – aliás, seus argumentos nunca me convenceram – e que a questão da origem e prática do javismo e, mais ainda, do monoteísmo, continuam gerando acirrado debate e muita controvérsia entre os especialistas. Para um panorama das propostas, de seus autores e algumas centenas de obras, vale a pena a didática exposição de GNUSE, R. K., No Other Gods. Emergent Monotheism in Israel; Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997. Especialmente as p. 62-128. Para uma confusa e nada convincente exposição do “movimento”, pode se ler, em português, o artigo de Bernhard Lang, o maior defensor desta ideia: Só-Javé! Origem e forma do monoteísmo bíblico, em Concilium 197 (1985/1), p. 45-53.

Sobre o reforma de Ezequias, enfim, em apenas uma página no final do capítulo, ficam Finkelstein e Silberman em superficial questionamento, pois, apesar da insistência do Deuteronomista, do ponto de vista arqueológico tal reforma é muito difícil de ser detectada.

O capítulo décimo trata de Judá desde a invasão de Senaquerib até a ascensão de Josias ao trono. Após mostrar que a visão do Deuteronomista em 2 Reis é teologicamente otimista – apesar da invasão terrível do rei assírio, Iahweh salvou Jerusalém porque Ezequias era fiel – os autores, fundando-se mais em Crônicas e no testemunho da arqueologia do que em 2 Reis, descrevem os preparativos do rei judaíta para o enfrentamento: muralhas de Jerusalém reforçadas, abastecimento de água garantido com a construção do túnel de Siloé, defesas extremamente eficazes em Laquis, os selos “lmlk” (= pertencentes ao rei) encontrados em grandes jarros (que, de alguma maneira, faziam parte do preparação de Judá para o que viria)…

Contudo, Senaquerib acabou com Judá em 701 AEC, como mostram os relatos assírios e os testemunhos arqueológicos da devastação, encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Laquis encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive – hoje está no British Museum – e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade de Judá e ficava situada na Shefelá, protegendo a entrada de Judá.

Os autores trazem à cena também os profetas Isaías e Miqueias para mostrar, com seus oráculos, como a destruição de Judá foi terrível, muito distante do otimismo deuteronomista.

Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a “maldade” de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.

Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) – as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época – e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza.

Entretanto, o filho de Manassés, Amon, foi assassinado ao sucedê-lo, certamente por grupos prejudicados com o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas oito anos, é declarado rei de Judá.

O décimo-primeiro capítulo trata da história de Judá da reforma de Josias à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, rei da Babilônia. Após fazer uma avaliação da descrição deuteronomista de Josias e de sua reforma, onde Josias aparece como o ideal concentrado das figuras de Moisés, Josué, Davi e até mesmo de Salomão, os autores assumem a posição tradicional e conhecida de que o “Livro da Lei” é o Deuteronômio original, não descoberto no Templo, mas escrito pouco antes ou durante o governo de Josias.

Descrevem, em seguida, o renascimento do poder egípcio com Psamético I, o enfraquecimento da Assíria e a expansão de Judá. Neste ambiente o Deuteronomista construiu a saga épica da conquista de Canaã, projetando para o início de Israel o que só acontecia agora no século sétimo AEC.

Mas a arqueologia testemunha a reforma de Josias? Ora, o templo de Betel, possivelmente destruído por Josias, ainda não foi encontrado, as estatuetas da deusa da fertilidade Asherá foram achadas em grande quantidade nas residências… embora os sinetes da época não contenham mais figuras divinas astrais, como antes! Por outro lado, os sinais da expansão territorial de Judá sob Josias são visíveis, a população aumentou, fortalezas, como Laquis, foram restauradas. Talvez Josias tenha conseguido um território semelhante ao de Manassés, embora com outras características.

Mas Josias e o faraó Necao II se desentenderam. 2Rs 23,29 é lacônico, 2Cr 35,20-24 fala de um conflito militar – hipótese simpática a muitos historiadores, que a adotam – mas, seguindo a explicação da Nadav Naaman, os autores pensam que Necao II teria simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de Josias.

Sem muito novidade em relação ao que já se escreveu em muitas “Histórias de Israel”, os autores descrevem os últimos dias de Judá, terminando o capítulo com a arqueologia da destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, que mostra a ferocidade do fatídico cerco.

No décimo-segundo capítulo o livro trata do exílio e da volta para a terra. Neste ponto, pareceu-me que os autores utilizam as fontes bíblicas com pouco questionamento, especialmente Jeremias, Ezequiel, Esdras, Neemias, Ageu e Zacarias. Isto resulta na descrição já conhecida em obras anteriores do que teria sido o exílio, a volta e a reconstrução. Assumem a hipótese de Frank Moore Cross de duas versões da OHDtr, a primeira da época de Josias e a segunda uma revisão feita durante o exílio, redimensionando a anterior avaliação teológica face à novidade da destruição: a justiça de Josias apenas adiou a catástrofe que fatalmente atingiria Jerusalém, diz a revisão exílica, não a eliminou do horizonte, como pensava a primeira versão.

Denunciam, em seguida, o mito da “terra vazia” durante o exílio – apenas 1/4 dos judaítas teriam sido exilados -, calculam uma população de uns 30 mil habitantes para o território do Templo na época de Esdras/Neemias e explicam a política persa de repovoamento e controle da região através do domínio sacerdotal.

Finalmente, chamam a atenção para a atualidade de vários temas bíblicos que, neste momento, têm uma função real: o êxodo, as tradições sobre Abraão, o conflito de Jacó e Esaú (= Edom), os túmulos dos patriarcas… estas leituras, projetadas como originantes, foram, na verdade, originadas para criarem uma identidade judaica na época persa.

O epílogo sintetiza em míseras quatro páginas os acontecimentos a partir de Alexandre Magno, mas, especialmente, procura mostrar a função da narrativa bíblica, sua atualidade e seu valor.

No conjunto, um livro fascinante. Nos detalhes, muita coisa pode ser discutida, porque pouco fundamentadas quando ousadas, ou porque apenas repetem o texto bíblico, sem entrar na discussão sobre o uso das fontes. Muita credibilidade tem a arqueologia para os autores, um pouco menos as fontes extrabíblicas, alguma as fontes bíblicas, especialmente quando as lacunas não podem ser preenchidas por outro material. Procuram escapar do “construto erudito” denunciado por Philip R. Davies, mas ele permanece à espreita…

Pouca análise da ideologia das fontes extrabíblicas dos impérios da região? Com certeza, pois é claro que impérios não nos legam apenas informações objetivas, mas muita propaganda que possa legitimar o seu domínio sobre os povos mais fracos. Pouca ênfase no fato de que a arqueologia também é o resultado de uma interpretação? Razoavelmente evidente. Conseguem comprovar que os principais relatos bíblicos foram escritos mesmo a partir do século VII AEC? Talvez em parte…

Entretanto, é bom lembrar: esta é apenas uma obra de divulgação. Talvez, por isso, tenha que evitar a análise mais técnica e árida de fontes e a complexa discussão metodológica que permeia hoje a historiografia do Antigo Oriente Médio. Enfim, um livro que procura ser honesto, o que já é um grande mérito.


 

Para terminar, algumas informações interessantes. O livro de Finkelstein & Silberman teve enorme repercussão. Segundo pude apurar, ele está traduzido para as seguintes línguas:

. alemão: Keine Posaunen vor Jericho: Die archäologische Wahrheit über die Bibel. München: C. H. Beck, 2002.

. árabe: 2007.

. coreano: Songgyong: kogohak in’ga chonsol in’ga. Soul-si: Kkach`i, 2002.

. espanhol: La Biblia Desenterrada: Una nueva visión arqueológica del Antiguo Israel y de los origenes de sus textos sagrados. Madrid: Siglo XXI, 2003.

. francês: La Bible dévoilée: Les nouvelles révélations de l’archéologie. Montrouge: Bayard Editions, 2002; Paris: Gallimard, 2004.

. italiano: Le tracce di Mosè: La Bibbia tra storia e mito. Roma: Carocci, 2002.

. japonês: Tóquio, 2009.

. hebraico: Reshit Yisrael Arkheologyah Mikra Ve-Zikaron Histori. Tel Aviv: Universiṭat Tel Aviv, 2003.

. holandês: De Bijbel als mythe: opgravingen vertellen een ander verhaal. Den Haag: Synthese Uitgeverij, 2006.

. polonês

. português: A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003; A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.

. tcheco: Objevování Bible: Svatá Písma Izraele ve světle moderní archeologie. Praha: Vyšehrad, 2007.

Uma apresentação da obra, feita pelos próprios autores, pode ser lida na revista The Bible and Interpretation. E um interessante documentário, baseado na obra, foi lançado, em DVD, também no Brasil.

Esta resenha foi publicada em 2002.

Resenhas