Em busca do antigo Israel

Em busca do antigo Israel

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DAVIES, P. R. In Search of ‘Ancient Israel’. Sheffield: Sheffield Academic Press [1992], 1995, 166 p. [2. ed. 2015]

 

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Philip R. Davies (1945-2018) foi professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Inglaterra. Este seu livro, Em Busca do ‘Antigo Israel’,  foi publicado em 1992 e reimpresso, sem modificações, em 1995. É constituído por nove capítulos, além de trazer no início um prefácio a esta reimpressão, uma página de agradecimentos a estudiosos a quem ele se considera devedor e uma lista de abreviações; e, no fim, a bibliografia das obras mencionadas, um índice de fontes bíblicas e não bíblicas usadas e um índice dos autores citados.

Embora tentado a reescrever o livro – para atualizar elementos ultrapassados e porque sua perspectiva mudou em alguns pontos de menor importância – o autor se limitou a corrigir os erros gráficos e a esclarecer aspectos que permaneceram obscuros na primeira edição, segundo observações de seus leitores. A bibliografia não foi atualizada. No prefácio à reimpressão, diz P. R. Davies que considera o livro ainda válido para uma abordagem da Bíblia, seus autores e criadores, que está se tornando cada vez mais comum.

O livro foi reeditado em 2015: In Search of ‘Ancient Israel’: A Study in Biblical Origins. 2. ed. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015, 192 p. – ISBN 9780567662972. Com novo prefácio.

 

Preliminares

No capítulo 1, chamado “Preliminares”, o autor adverte o leitor de que este é um livro sobre história e não outra “História de Israel”, um gênero provavelmente obsoleto. E avisa que estará trabalhando com três “Israeis”: um literário, o Israel bíblico; outro histórico, os habitantes da região montanhosa da Palestina do norte durante parte da Idade do Ferro; e um terceiro, o “antigo Israel”, citado entre aspas, por ser um construto dos estudiosos resultado do amálgama dos dois primeiros.

Em seguida, Philip R. Davies sugere que a combinação das abordagens literária e socioantropológica apresenta hoje o mais promissor caminho para o avanço dos estudos bíblicos. A crítica literária nos tornou aptos a perceber que qualquer personagem ou evento na Bíblia é personagem ou evento literário e de que nada em um texto literário tem que ser obrigatoriamente ou é automaticamente real fora dele.

Por outro lado, se o leitor decide assumir a identidade de historiador é preciso estar consciente de que a história é uma narrativa na qual acontecimentos e pessoas tornam-se eventos e personagens. Por isso, quando tentamos descrever o passado sempre estamos contando histórias. Ora, nenhuma história é uma representação inocente ou objetiva do mundo exterior. Toda história é ficção e isto inclui a historiografia. E se a literatura, como uma forma de comunicação persuasiva, é ideologia, também a historiografia, como uma forma de literatura, é ideologia. Donde se conclui que não é a credulidade que faz o historiador, mas sim o ceticismo. Este deve ser o seu foro apropriado, conclui o autor na p. 13.

Quanto ao uso das ciências sociais por aqueles que escrevem história, embora criticado por muitos, é preciso dizer que ele possibilita examinar não somente a literatura e a realidade social de Israel, mas também as forças sociais subjacentes à produção da literatura bíblica, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto.

Em resumo, as abordagens literária e sociológica desafiaram o sentido de realidade transcendental que sempre permaneceu oculto sob a superfíciePhilip R. Davies da pesquisa bíblica, sendo ambas não metafísicas e voltadas para o mundo humano. Reconhecer, de verdade, que a literatura bíblica é um produto de autores humanos, fundamenta a possibilidade de uma mudança de paradigma: “Nós estamos conquistando uma posição na qual um paradigma não teológico está começando a reivindicar um lugar ao lado do sempre dominante paradigma teológico”, diz P. R. Davies na p. 15. Sendo não teológico, este paradigma deve persuadir pela oferta de um caminho alternativo para a compreensão da literatura bíblica, que seja, inclusive, capaz de funcionar como uma hipótese de trabalho. “Neste livro eu procuro fazer isto”, porque “há a necessidade de uma busca genuína do ‘antigo Israel’, que, sob o antigo paradigma, era um dado não questionado” (p. 16). Sob a nota de rodapé n. 3 deste capítulo, P. R. Davies diz que foi Robert A. Oden no livro “A Bíblia sem Teologia”, San Francisco, Harper and Row, 1987, quem até hoje tratou com maior lucidez este problema. Este livro foi reeditado com o título de The Bible Without Theology: The Theological Tradition and the Alternatives to It. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2000, ix + 208 p. – ISBN 9780252068706.

 

Procurando o ‘Antigo Israel’

No Capítulo 2, ”Procurando o ‘Antigo Israel’”, Philip R. Davies enfoca a pesquisa bíblica para entender porque esta considerou, sem mais, o ‘antigo Israel’ como uma entidade histórica acessível, e para examinar alguns dos pressupostos hermenêuticos de historiadores bíblicos que garantem esta concepção. “Eu estou sugerindo que não há uma procura pelo verdadeiro (histórico) antigo Israel, porque tal busca não tem sido considerada necessária; mas a tese deste livro é de que uma busca é necessária, na medida em que o ‘antigo Israel’ não é uma construção histórica e que, por isso, ele desalojou algo que é histórico” (p. 21).

O ‘antigo Israel’ é um construto erudito resultante da tomada de uma construção literária, a narrativa bíblica, tornada objeto de investigação histórica. Este construto erudito é contraditório, fantasioso e ideológico.

Contraditório: como um construto erudito, o ‘antigo Israel’, a despeito de seu exclusivo ponto de partida bíblico, diferencia-se, e muito, do Israel bíblico. A história do Israel bíblico é mítica – ela remete tudo à criação do mundo, onde suas instituições já estão previstas -, mas as ‘Histórias de Israel’ fazem uma leitura racionalista dos mitos e tratam-nos como históricos. Deste modo, o ‘período bíblico’ adquire objetividade histórica e figuras literárias são transmutadas em figuras históricas. “Ao invés de tentar entender o que é literário em termos literários, elas tentam dar explicações históricas para problemas literários” (p. 28). Mas, o ‘Israel’ da literatura bíblica, pelo menos em grande parte, não é de modo algum uma entidade histórica, o que é do conhecimento dos estudiosos bíblicos. Este é o caso do assim chamado ‘período patriarcal’, do ‘Êxodo’, do ‘período do deserto’ ou do ‘período dos juízes’.

“Apesar disso, a maioria deles, embora sabendo que a história de Israel do Gênesis a Juízes não deve ser tratada como história, prossegue, não obstante, com o resto da história bíblica, de Saul ou Davi em diante, na pressuposição de que, a partir deste ponto, o obviamente literário tornou-se o obviamente histórico”, diz Philip R. Davies na p. 26. E ele pergunta: “Pode alguém realmente deixar de lado a primeira parte da história literária de Israel, reter a segunda parte e ainda tratá-la como uma entidade histórica?” Uma história de Israel que começa neste ponto deverá ser uma entidade bem diferente do Israel literário, que pressupõe a família patriarcal, a escravidão no Egito, a conquista da terra que lhe é dada por Deus e assim por diante.

Fantasioso: nós estudamos Isaías ou Amós, por exemplo, interessados no que Isaías ou Amós pensavam, no que de fato estava acontecendo em seu tempo, que conselho eles davam para as pessoas… como se nós conhecêssemos seus contextos históricos reais, que, na realidade, são apenas contextos literários bíblicos. O fato é que o nosso ‘antigo Israel’ é “uma criação erudita considerada essencial para o prosseguimento dos estudos bíblicos” (p. 29). Ele não é uma entidade literária bíblica e nem mesmo uma entidade histórica.

Há ainda duas ilusões não questionadas: pelo fato dos textos bíblicos tratarem de lugares e personagens muito conhecidos, nós acreditamos normalmente que os eventos narrados sobre eles são históricos. Do mesmo modo, nós pensamos que os criadores da literatura bíblica viveram no mesmo período narrado por esta literatura, dando credibilidade às suas histórias. Se nós colocarmos a composição da literatura dentro da época da qual ela trata, a ‘época bíblica’ e a literatura bíblica, tomadas como um todo, “tornam-se um testemunho contemporâneo de seu próprio construto, reforçando o pressuposto inicial de uma matriz histórica verdadeira e dando impulso a todo um exercício de pseudo-erudição, no qual se organiza a literatura em uma sequência de contextos que ela mesma ofereceu”, objeta Philip R. Davies na p. 37. E acrescenta que “as ferramentas histórico-críticas e métodos usados pelos estudiosos bíblicos dependem, em boa parte, desta circularidade”.

Ideológico: a pesquisa bíblica é vista como uma disciplina teológica, a maioria de seus profissionais é composta de teólogos, cristãos e clérigos e seu habitat comum é o seminário ou o departamento teológico de um estabelecimento de ensino superior ou universidade. Neste ambiente, o ‘antigo Israel’ é “uma entidade homogênea, uma igreja embrionária, pensando de modo religioso, pecando, mas, em última instância, justificada por sua ‘fé’ em Deus” (p. 44).

Deste modo, muitas coisas são idealizadas ou tornadas necessárias, embora elas sejam historicamente pouco razoáveis, como, por exemplo, a ‘reforma de Josias’, uma lenda piedosa – “possível, mas extremamente improvável” (p. 39) – e o ‘exílio’, apresentado como punição e perdão. À acusação de circularidade, Philip R. Davies acrescenta a de credulidade, ilustrada com estes dois exemplos acima.

Assim, trabalhando em igrejas e para igrejas, é afirmado ideologicamente que a comunidade produziu a Bíblia, misturando sociedade e comunidade, como se estes conceitos fossem sinônimos. Escrever, naquela época, era função de 5% da população e um empreendimento guiado por específicos interesses de classe, geralmente alojada nas cortes e nos templos.

Porém ele alerta na p. 44: “Minha contenda não é com os companheiros de caminhada individualmente, mas com a estrutura da disciplina que a teologia cristã construiu e que nos submete a um empreendimento que não tem suporte para ser seriamente crítico”. E na nota de rodapé 22 ele diz que a razão para a deificação da credulidade e a abominação do ceticismo nos estudos bíblicos está na própria linguagem do cristianismo, onde crer é bom e duvidar é mau. Ceticismo beira à irreligiosidade, e a dúvida nunca deve ser sistemática, pelo menos quando aplicada aos dados bíblicos. O ‘antigo Israel’ é guardado como sagrado nos corações dos teólogos bíblicos! “A tal visão falta a distinção elementar entre preconceito e método”, conclui P. R. Davies.

 

Definindo o Israel bíblico

O tema do qual P. R. Davies tratará neste capítulo é o seguinte: para quem se empenha numa pesquisa histórica, o Israel bíblico é um problema e não um dado. O termo ‘Israel’ é utilizado em pelo menos 10 sentidos diferentes na literatura bíblica, segundo especialistas na área, e de um modo bastante flexível. Nós precisamos perguntar que tipo de termo é este. Mas, “muitos biblistas têm uma longa convivência com a Bíblia, e sua noção de Israel já está internalizada, a tal ponto que eles tomam seus vários usos como sendo homogêneos, sua complexidade como simples e suas contradições como invisíveis (…) O ‘Israel’ da literatura bíblica é automaticamente adotado como um termo apropriado para o uso erudito, incluindo toda a sua variedade e contradição” (p. 49). Deste modo, ‘Israel’ é um povo, tem uma religião, tem seu próprio deus; ‘Israel’ é uma terra, é um reino unido sob Davi e Salomão, é dividido em dois reinos… Nós devemos tomar uma atitude que desafia nossa formação teológica: desfamiliarizarmo-nos com a Bíblia!

Três tipos de critérios – políticos, étnicos e religiosos – cobrem os vários usos do termo ‘Israel’. Mas estas três categorias não são inteiramente compatíveis entre si, de modo que não podemos identificar automaticamente a população da Palestina na Idade do Ferro, e de certo modo também do período persa, com o ‘Israel’ bíblico. “Nós não podemos transferir automaticamente nenhuma das características do ‘Israel’ bíblico para as páginas da história da Palestina (…) Nós temos que extrair nossa definição do povo da Palestina de suas próprias relíquias. Isto significa excluir a literatura bíblica”, diz P. R. Davies na p. 51.

Trabalhando com as definições de ‘Israel’, ‘Cananeus’, ‘Exílio’ e ‘Período Persa’, o autor quer mostrar “que é simplesmente impossível pretender que a literatura bíblica ofereça um retrato suficientemente claro do que é o seu ‘Israel’, de modo a justificar uma interpretação e aplicação históricas. Desta forma, o historiador precisa investigar a história real independentemente do conceito bíblico” (p. 56).

 

Em busca do Israel histórico

No Capítulo 4 P. R. Davies investiga o Israel histórico independentemente da literatura bíblica.Como principal evidência, ele usa os artefatos que os povos da Palestina nos deixaram, as construções que eles ocuparam, as inscrições que eles gravaram.

Ele investiga o nome ‘Israel’ em um texto ugarítico (KTU 4.623.3), na Estela de Merneptah e na Inscrição de Salmanasar III (ca. 853); o Estado Israelita em outras evidências, tais como a Inscrição de Mesha, rei de Moab (ca. 840), as referências assírias a Israel e a seu rei Omri e a descrição da tomada da cidade de Samaria por Sargão II; o Reino de Judá, que aparece com Jerusalém como seu maior centro administrativo somente no século VIII AEC, na medida em que não há referências extrabíblicas ao ‘império’ bíblico de Davi e Salomão; a religião de Israel e Judá e a evidência dos muitos cultos que existiam em cada reino, como cultos urbanos, cultos dinásticos e cultos populares, e as apaixonadamente discutidas inscrições de Kuntillet ‘Ajrûd (“Eu te abençoo em nome de Iahweh de Samaria e de sua Asherah”) e de Khirbet el-Qôm (“Abençoado seja Urias por Iahweh e sua Asherah”).

Ele conclui: “Da pesquisa dos dados extrabíblicos vistos acima, nós podemos dizer que o nome ‘Israel’ existia na Palestina pelo menos desde o começo da Idade do Ferro, embora não se saiba se ele pertencia a algum grupo em particular ou a alguma região” (p. 69). E no final do capítulo ele diz que a questão agora é: “O que nós conhecemos da Palestina da Idade do Ferro pode ter produzido a ideia de ‘Israel’”? (p. 70). Sua resposta, porém, é a de que a Idade do Ferro não nos parece oferecer uma matriz plausível para o ‘Israel’ bíblico. Deste modo, “nós devemos investigar seriamente sob que circunstâncias e por quais razões este tipo de construto poderia ter emergido” (p. 71).

 

O contexto social do Israel bíblico

No Capítulo 5 o autor afirma: “Foi durante os Períodos Persa e Helenístico que a literatura bíblica deve ter sido composta, e é na sociedade desta época que nós devemos agora procurar pelas precondições que permitiram e motivaram a geração deste construto ideológico que é o Israel bíblico” (p. 72).

Mas as fontes arqueológicas da Palestina deste período são ainda mais escassas do que as da Idade do Ferro. Por isso, o autor observa as características do próprio Israel bíblico: “Neste capítulo, portanto, é o perfil do Israel literário que determina o foco” (p. 73), embora isto pareça estar em contradição com o que ele afirma no capítulo terceiro.

Davies, In Search of 'Ancient Israel'Isto é que os leitores entenderam, pois ele diz no prefácio desta segunda edição que passou a impressão “de confiar nos relatos de Esdras e Neemias” (p. 7). Sem dúvida, ele afirma na p. 77 que a conjunção das figuras de Esdras e Neemias é um empreendimento editorial, que a historicidade de Esdras é uma questão aberta, que qualquer reconstrução baseada nas atividades de Esdras e Neemias é uma racionalização pós-redacional e que “muitas reconstruções eruditas desta sociedade persa dão crédito demais aos livros de Esdras e Neemias” (p. 82). E, voltando ainda ao prefácio, que ele vê os relatos de Esdras e Neemias “como narrativas fundantes de diferentes tipos de Judaísmo, contendo poucos dados históricos detalhados nos quais podemos confiar” (p. 7).

Em sua busca, P. R. Davies encontra sete grupos onde o nome ‘Israel’ persistiu após a destruição de Samaria em 722 AEC: aqueles que permaneceram em Samaria e arredores, aqueles que migraram forçadamente para o território do então Israel, a população remanescente em Judá após cada deportação, aqueles que foram deslocados para Judá pelos assírios ou pelos babilônios, os deportados e refugiados judaítas e israelitas na Assíria, Síria, Babilônia e Egito, aqueles que cultuavam Iahweh nas épocas persa e helenística e, finalmente, as comunidades ‘judaicas’ espalhadas pelo mundo mediterrâneo e além.

Mas, diz Philip R. Davies, “o Israel literário da literatura bíblica não é diretamente um produto destes grupos” (p. 75). Não parece que nem em Samaria nem na Mesopotâmia possam ser encontradas as condições para o Israel bíblico. Contudo, o fato de que estes são chamados de ‘judeus’, isto é, judaítas, “nos indica ser a Judeia o lar de ‘Israel’ e do culto de seu deus” (p. 75).

Por isso, o autor examinará o Judá pós-monárquico e a política imperial persa. Parece ter ocorrido um repovoamento de Judá sob Ciro e seus sucessores: pesquisas arqueológicas feitas em 1967 e 1968 revelam que os territórios circunjacentes das montanhas do norte e a Arabah mostram um incremento no número de assentamentos entre o Ferro II, que é o período monárquico, e o Período Persa, isto é, após 587, enquanto que o próprio Judá apresenta um crescimento em torno de 25%, diz P. R. Davies nas p. 77-78. E próximo a todos os assentamentos existem pequenos povoados sem muralhas.

Estes resultados sugerem uma política aquemênida de ruralização deliberada: na mesma linha de seus predecessores, as populações eram transportadas dentro do império, visando o desenvolvimento econômico, seja para a agricultura ou construção. “Por conseguinte”, conclui o autor, “os que voltaram para Yehud não eram necessariamente judeus ‘exilados’ voltando para casa, beneficiários de uma iluminada política de repatriação de exílios injustos, mas pessoas transportadas, movidas para regiões subdesenvolvidas ou sensíveis, vindas para atender às necessidades de uma política econômica imperial específica” (p. 78).

E aqui há uma inferência do autor que é importante para entendermos sua tese: “Talvez os ancestrais destes novos imigrantes viessem de Judá, como a literatura bíblica insiste, mas isto não é um dado que deve ser assumido sem mais. Talvez eles viessem de várias partes da Palestina, ou talvez mesmo de outro lugar (…) Quer fossem originários de Judá ou não, estas pessoas ou seus descendentes deveriam acreditar, ou reivindicar, que eles eram originários dali. Sem dúvida, os persas, para facilitar a cooperação com o processo, devem ter tentado persuadir estes extraditados de que eles estavam sendo reassentados em sua ‘terra natal’ (…) De fato, como eu mostrarei agora, algumas histórias bíblicas (como as histórias de Abraão e as histórias da conquista de Josué) parecem indicar a existência de uma dúvida entre alguns habitantes de Yehud de que eles tinham vivido na terra como seus antigos habitantes” (p. 78-79).

Esta discussão, diz Philip R. Davies, está baseada em um estudo de K. Hoglund, “O Contexto Aquemênida”, publicado em DAVIES, P. R. (ed.) Estudos sobre o Segundo Templo. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991 [obviamente publicado em inglês]. E Hoglund apresenta neste estudo evidências de que o Império Persa costumava manter a identidade de tais grupos pela garantia de uma distinção étnica em relação às populações circunstantes.

Mais dados arqueológicos: o Império Persa construiu nesta época uma cadeia de fortalezas na região, indo do Mediterrâneo até o Jordão e em direção ao Negev, acompanhando as maiores rotas de comércio da região. E Hoglund sugere que esta é uma intensificação da presença militar persa na região em resposta à ameaça da Grécia à costa mediterrânea e às rotas comerciais. “À luz desta militarização de Yehud, a missão de Neemias pode ser compreendida” (p. 80).

Mais luz sobre a organização social de Yehud no período persa vem da assim chamada comunidade do “Segundo Templo”, também apelidada pelos estudiosos soviéticos, em alemão, de Bürger-Tempel-Gemeinde. Esta é basicamente uma unidade social que surge da união do pessoal do templo com os proprietários de terra, criando um sistema econômico autônomo. Esta Bürger-Tempel-Gemeinde cria uma sociedade dentro da sociedade, um restrito grupo privilegiado não coextensivo com a sociedade mais ampla da província.

O autor conclui: “Baseado em dados bíblicos e não bíblicos, as condições sociais apropriadas para a emergência do Israel bíblico parecem poder ser encontradas no Yehud da época persa” (p. 83).

Daqui até o fim do capítulo, o autor procura avaliar os principais ingredientes do ‘Israel’ bíblico como uma criação desta nova sociedade. E estes ingredientes são, por exemplo, o exílio, os cananeus, a relação entre Yehud e Samaria e a aliança: todos são explicados como elementos do período persa. Ele conclui que o retrato bíblico do ‘Israel restaurado’ é um construto literário e seu caráter ideológico é a continuação da idealizado Israel ‘pré-exílico’ do ponto de vista de uma elite.

Ele diz na p. 89: “A conexão entre esta sociedade e Israel é a seguinte: a classe dos escribas desta nova sociedade cria uma identidade e uma herança para si mesma na Palestina, uma identidade expressa em um corpus literário vigoroso e marcante. A esta identidade é dado o nome ‘Israel’ (que agora existe ao lado de Judá). A própria sociedade, ou mais propriamente partes desta sociedade, transformar-se-á naquele Israel que ela mesma criou, na medida em que ela aceita a presumida história deste Israel como a sua própria história, aceita sua constituição, crenças e hábitos como seus, e começa a encarnar aquela identidade. Este é, como eu o vejo, um processo chave na transformação de uma sociedade histórica em um ‘Israel’ autoconsciente com uma longa e impressionante história”.

Todo este construto do autor sobre “a criação de um Israel idealizado em Yehud”, nas p. 84-89, me parece extraordinariamente fantasioso. Mas, como uma provocação, ele merece ser lido e discutido por todos os estudiosos de Bíblia. Eu sinto que, após a leitura deste livro, ninguém poderá fazer “História de Israel” como antes.

 

Quem escreveu a literatura bíblica e onde?

No Capítulo 6 P. R. Davies procura configurar com mais precisão as circunstâncias nas quais ele acredita tenha sido escrita a literatura bíblica e procura oferecer uma ideia do tipo de contexto institucional no qual um tal corpus adquire existência.

Uma questão importante é como a grande maioria dos estudiosos bíblicos pensa a origem da literatura bíblica: como um longo processo de evolução natural, dentro de um processo automático de transmissão, no qual a tradição oral torna-se escrita, sendo este escrito  fielmente copiado por escribas e, de vez em quando, remodelado por redatores.

Assim, “muitos estudantes das ‘tradições’ bíblicas acreditam que em cada momento nós temos um enunciado coerente, às vezes equivalente a uma expressão viva da ‘fé de Israel’, que desemboca finalmente naquele cânon definitivo, a Bíblia (…) Em uma linguagem que confunde perfeitamente o histórico e o teológico, a ‘fé’ de Israel modela a ‘formação’ de sua ‘tradição’. Como resultado (…) a religião de Israel é a história das ‘tradições’ bíblicas” (p. 92-93). Mas qual é a ‘fé de Israel’? Qual é a ‘religião de Israel’? A formação do cânon é, porém, um processo muito tardio, e antes da literatura bíblica tornar-se Bíblia, sua natureza e sua relação com seus autores e com a sociedade deve ser esclarecida.

Que elementos, em Judá, no período persa provocaram a necessidade da criação deste corpus? Com exceção de certa quantia de material, relíquias do período pré-exílico, “não há necessidade de atribuir qualquer parte da formação de qualquer livro bíblico ao período dos reinos históricos de Judá e Israel”, diz P. R. Davies na p. 95. Do mesmo modo, além do Salmo 137 e do livro das Lamentações, “não há literatura na Bíblia com um cenário ‘exílico’ evidente”, continua o autor na mesma página.

O processo pelo qual livros eram copiados no mundo antigo não necessitava de um longo período para o seu desenvolvimento, como mostram os Manuscritos do Mar Morto, onde desenvolvimentos literários complexos ocorreram em um, aparentemente, curto espaço de tempo. Assim, o longo tempo presumido pelas análises da crítica das fontes, da crítica da redação e da crítica da tradição como fundamental para a evolução da literatura bíblica não é necessário.

O autor trabalha, agora, com o problema da língua hebraica. Análises da linguagem bíblica são frequentemente usadas para datar livros bíblicos, mas P. R. Davies argumenta, baseado em pesquisas feitas por E. A. Knauf, que o hebraico bíblico não corresponde a nenhuma das línguas israelitas, tais como estão nas inscrições. “Knauf conclui que o hebraico bíblico é a língua de um corpus literário que apareceu, segundo seu ponto de vista, nos períodos exílico e pós-exílico, uma Bildungssprache cuja emergência pressupõe o desaparecimento do Estado judeu da Idade do Ferro” (p. 100). Não há argumentos linguísticos para datar a literatura bíblica no período pré-exílico.

Quem escreveu a literatura bíblica? Em uma sociedade agrária, esta literatura não é o produto nem de toda a sociedade nem de indivíduos isolados, “mas de uma classe ou organismo, e surge de condições ideológicas, econômicas e políticas preestabelecidas” (p. 101). A literatura bíblica é o produto de uma classe profissional, quer dizer, escribas empregados pelo Templo. Nas sociedades agrárias não mais de 5% da população é letrada e “nunca devemos assumir, como tem sido frequentemente feito pelos estudiosos bíblicos, que ‘tradições’ populares orais naturalmente se transformam em literatura. ‘Literatura popular’ na Bíblia se parece mais com a ‘música popular’ nas obras de Bartok, Janacek ou Vaughan Williams” (p. 103).

E os leitores? Eles devem ser também profissionalmente letrados. “A literatura não é para o conjunto da sociedade, como pressuposto por muitos estudiosos bíblicos. Escreve-se, em boa parte, para o próprio consumo”, diz o autor na p. 104. Bibliotecas e arquivos estavam associados a templos e cortes, como se vê em Ugarit, Ebla, Mari, Assíria ou Tell el-Amarna (Egito). Alguma evidência de tais arquivos ou bibliotecas em Yehud? É possível, se nós pensarmos nas evidências exibidas por Josefo e fontes rabínicas sobre escritos guardados no Templo.

 

Como a literatura bíblica foi escrita e por quê?

No Capítulo 7 Philip R. Davies diz que muitos pesquisadores tendem a ofuscar, mais do que destacar, as várias etapas pelas quais os escritos bíblicos passam de produção literária de um grupo específico a texto canônico. Mas nós devemos perguntar por que é que esta literatura foi escrita e não partir do fato conhecido de que mais tarde ela foi canonizada como escritura. “Ela não foi escrita como uma ‘Bíblia’, nem mesmo como uma coleção de escrituras sagradas”, nos lembra Philip R. Davies na p. 108.

Entre as duas pontas do processo, a composição inicial e a canonização final, há muito a ser investigado. Philip R. Davies, após levantar várias questões e citar o testemunho de Josefo que fala dos 24 livros dos judeus no século I da EC, diz que nos próximos dois capítulos ele falará em três estágios: o primeiro inclui a criação do material ‘histórico’, ou seja, Gênesis-Reis, Crônicas, Esdras e Neemias; o segundo é a adoção desta literatura histórica e semi-jurídica como norma cultural e religiosa por certos grupos, com o desenvolvimento de uma determinada piedade e a adição de composições religiosas, como os Salmos; finalmente, ocorre o estabelecimento oficial de um conjunto de escritos como um arquivo nacional, com uma autoridade cultural e religiosa que o empurra na direção da canonicidade.

“Estes estágios não são necessariamente dispostos em uma sequência cronológica e nem mesmo tipológica, e eles constituem apenas uma tentativa preliminar de abordar o que é, de fato, um problema complexo”, explica Philip R. Davies na p. 109. Na verdade, mais tarde o autor desenvolveu o assunto com maior profundidade no livro Scribes and Schools. The Canonization of the Hebrew Scriptures [Escribas e Escolas. A Canonicidade das Escrituras Hebraicas]. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox, 1998.

Para Philip R. Davies, a criação destes manuscritos pelos escribas do Templo (e/ou da corte), sua constituição como um arquivo, sua adoção como um corpus literário e religioso (quase) definitivo aponta para decisões tomadas pela administração, ou seja, pela classe dominante.

O que ele quer dizer com isso? Que descrever como uma divindade criou o universo, adotou um povo, lhe deu uma terra e guiou a sua história passo a passo, não é apenas a historicização de festivais agrícolas conservados pela tradição. É muito mais “um ato de imperialismo ideológico através do qual uma casta governante se apropria das práticas dos camponeses nativos, privando-os de tudo o que é significativo para eles, e fazendo dessas práticas celebrações de sua ideologia dominante: sua posse da lei, sua libertação do Egito, sua caminhada pelo deserto” (p. 110).

Que tipo de casta governante precisa produzir este tipo de literatura e preservá-la? Se olharmos o Yehud do século V nós encontraremos uma sociedade em construção e cheia de tensões: habitantes locais versus imigrantes, urbano versus rural, homogeneidade versus heterogeneidade, cosmopolitismo versus provincianismo, um deus do céu versus divindades locais etc. Neste contexto, o estabelecimento de um centro administrativo e cultual em Jerusalém, com a celebração de uma aliança e a submissão a uma só divindade não ocorreria sem conflitos. O papel da literatura bíblica como instrumento de criação de uma identidade é fundamental para os dirigentes de Yehud.

Para Philip R. Davies, o Pentateuco e os Profetas Anteriores refletem exatamente esta nova sociedade em busca de identidade, na qual ‘Israel’ funciona como um componente fundamental, pois o nome designa um povo escolhido por Iahweh para habitar a Palestina, um povo que se liga a ele por uma aliança e uma lei e se distingue dos outros povos da região pela religião e pela origem étnica. “E na medida em que esta elite que gera esta história é constituída de imigrantes, o seu ‘Israel’ também tem origem entre imigrantes. O fetiche da santidade do culto servirá para fortalecer a autoridade do sacerdócio e assegurar a superioridade de Jerusalém. Será a pureza ritual que definirá a nação e Jerusalém que garantirá a presença da divindade. O reverso disto é que ao ‘povo da terra’, que tem direito inato à terra, será negado este direito a não ser que ele se conforme às definições cultuais e étnicas”, argumenta Philip R. Davies nas p. 112-113.

Para Philip R. Davies, o maior argumento que dá consistência à história bíblica é o da continuidade: ‘Israel’, o verdadeiro ‘Israel’ viveu em ‘Canaã’ durante um longo tempo. O Templo tem antiga origem e tradição, os reis de Judá são os predecessores (ungidos) dos sacerdotes (ungidos) de Yehud. “O triunfo ideológico da história bíblica é convencer de que o novo é realmente antigo”, diz P. R. Davies na p. 114.

Se toda esta argumentação do autor não passa de um exercício de imaginação e tem alguma chance de ser real, a nossa leitura atual da Bíblia deveria ser profundamente questionada.

Em seguida, usando um modelo de escolas superiores modernas – 5 “colleges”: o dos estudos jurídicos, o da composição e recitação litúrgica, o dos estudos sapienciais, o da historiografia e o da política – o autor tenta, no meu entender, de modo bastante exótico, reconstruir o processo através do qual os escribas do Templo de Jerusalém teriam produzido os manuscritos que acabaram se tornando Bíblia (cf. p. 115-124).

Qual é a função do produto final? Philip R. Davies vai dizer, nas p. 124-127, que esta produção literária objetiva o Estado (seus governantes) através de um repertório cultural bem definido, incluindo uma história, uma ‘tradição’ sapiencial, um corpus litúrgico, dando-lhe credibilidade e respeitabilidade. Este empreendimento não é meramente literário, portanto. É também político enquanto cria uma identidade judaica, que pode, inclusive, ser exportada.

Para quem lê isto pela primeira vez o raciocínio do autor parece altamente exótico. Vou repetir: com a literatura bíblica, inventada nas épocas persa e grega, surge a possibilidade do judaísmo em sentido cultural e, muito importante, como um produto de exportação. Na produção da literatura bíblica, não havia tradição a ser colocada por escrito: as histórias foram inventadas e depois organizadas na sequência atual (cf. p. 126). E o autor conclui: “Tal ausência resulta daquilo que eu disse sobre a não existência do ‘antigo Israel’ e explica muitas das características da narrativa historiográfica bíblica” (p. 127).

 

De literatura a Escritura

No Capítulo 8 Philip R. Davies tenta mostrar o processo de transição da literatura para a escritura, lembrando, entretanto, que não existe distinção entre estas duas categorias em hebraico, aramaico e grego. O autor avalia um série de testemunhos, como Flávio Josefo, os Manuscritos do Mar Morto, o IV Livro de Esdras, 1 e 2 Macabeus, o prólogo do livro do Eclesiástico ou Sirácida, concluindo que existia um corpus literário que define Judá e o judaísmo, mas que as opiniões e atitudes sobre este corpus literário eram bastante variadas, conforme os grupos então existentes.

Importante é sabermos que não existe no chamado período do Segundo Templo um ‘judaísmo’ único, monolítico, definido por uma ‘lei judaica’, e que os outros grupos seriam desvios deste ‘judaísmo normativo’, mas que cada grupo construía sua identidade e sua relação com a literatura bíblica de modo próprio e diferenciado. A pressão da cultura grega, no fenômeno conhecido como helenismo, deve ter algo a ver com a definição da escritura como uma doutrina de origem divina, como uma revelação da divindade, sugere o autor, embora ele não entre para valer no complicado campo dos estudos sobre o helenismo.

 

A emergência de Israel

No Capítulo 9, finalmente, Philip R. Davies sugere que o Estado Asmoneu (ou Macabeu) é que viabilizou, de fato, a transformação do Israel literário em um Israel histórico, por ser este o momento em que os reis-sacerdotes levaram o país o mais próximo possível do ideal presente nas leis bíblicas. A Bíblia, como uma criação literária e histórica é um conceito asmoneu, garante o autor na p. 154.

Confesso que estes dois últimos capítulos não me entusiasmaram nem me questionaram como os anteriores. Por isso, termino a leitura do livro buscando em outros (e já existem vários!) a continuação do debate. E o que se vê é que depois de oito anos da primeira edição do livro e cinco da segunda, o debate já avançou o suficiente para dar maior solidez a algumas das ideias expostas pelo autor e para rejeitar outras como improváveis ou impossíveis.

De modo geral,o livro nos deixa muito incomodados, alcançando o seu objetivo. Cito um exemplo. Uma postura que as ideias acima expostas colocam em xeque é a teológico-pastoral, corrente em nossas teologias bíblicas, tanto nos meios acadêmicos quanto nos populares, especialmente nas práticas litúrgicas. O que afirmamos todos os dias? Que a Bíblia é o produto da comunidade israelita, expressão da fé do povo de Israel, contrapondo, assim, a comunidade israelita, observadora de uma rigorosa ética de solidariedade, como povo de Deus que é, à orgiástica e opressora sociedade cananeia, transgressora dos valores éticos mais elementares.

Philip R. Davies, entre outras coisas, nos alerta para a confusão que fazemos entre sociedade e comunidade, textos bíblicos produzidos diretamente como “Sagrada Escritura”, tempo das narrativas bíblicas tomado como tempo cronológico, escrita como produto de toda a sociedade (ou comunidade?) israelita, origem externa de Israel que entra em Canaã ou se revolta e se separa dos cananeus para formar uma sociedade “teleologicamente orientada” a evoluir para as nossas Igrejas… Talvez devêssemos distinguir melhor entre exegese e história?

Quem quiser ver como a “teologia bíblica” (como paradigma teológico, hoje recusado por muitos) fica preocupada com as recentes descobertas e teorias sobre as origens de Israel e sobre o sincretismo javista/baalista existente em Canaã (lembro as polêmicas inscrições de Kuntillet ‘Ajrûd e Khirbet el-Qôm em que Iahweh e Asherah aparecem associados) leia o livro de GNUSE, R. K. No Other Gods: Emergent Monotheism in Israel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, 392 p. – ISBN 9781850756576. Gnuse é professor na Loyola University of the South, New Orleans, Louisiana, e nesta obra se esforça em propor uma superação da tradicional dicotomia da teologia bíblica entre baalismo e javismo, israelita e cananeu, que fundamenta várias de nossas aplicações dos textos bíblicos.

Esta resenha foi publicada em 2000.

Resenhas


Ler o Pentateuco

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SKA, J.-L. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. 3. ed. São Paulo: Loyola, [2003] 2014, 304 p. – ISBN 8515024527.

 

leitura: 16 min

Tal qual um cliente que, diante de um produto encontra várias opções, diversos tipos e modelos, encontra-se, hoje, o leitor do Pentateuco, após os problemas de 70. Até 1970, tudo estava perfeito: o consenso wellhauseniano demarcava quatro fontes principais para a redação do Pentateuco: o Javista (que supostamente havia escrito no período davídico-salomônico), o Eloísta (no período próximo dos primeiros profetas), o Deuteronômio/Deuteronomista (provavelmente após a Reforma de Josias) e o Sacerdotal (que poderia ter escrito no período exílico e/ou pós-exílico).

Entretanto, problemas e discussões em torno de datas e períodos, a falta de material que confirmasse alguns pressupostos, como, por exemplo, a da corte dispendiosa do período salomônico, divergências redacionais, utilização de métodos exegéticos etc, fizeram com que o edifício Pentateuco viesse ao chão e, consequentemente, javista, eloísta, deuteronomista e sacerdotal não resistiram à implosão.

Inúmeros debates, inúmeras tentativas e discussões despontaram no mundo bíblico e, a partir dos anos 70, o Pentateuco conquista destaque no debate exegético. Sem dúvida, muitas novas teorias se apresentam àquele que deseja entrar, inteligente e criticamente, neste mundo bagunçado, conhecido como Pentateuco.

O jesuíta belga Jean-Louis Ska, professor de exegese no Pontifício Instituto Bíblico de Roma,  nos coloca à disposição um estudo – fruto de dez anos de magistério – publicado em italiano, em 1998, pelo Centro Editoriale Dehoniano, de Bologna, Itália, intitulado Introduzione alla lettura del Pentateuco: Chiavi per l’interpretazione dei primi cinque libri della Bibbia, traduzido, da 3. ed., de 2000, para o português por Aldo Vannucchi e publicado em 2003, pelas Edições Loyola, com o título de Introdução à leitura do Pentateuco. Chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. Nesta obra, o autor tem por objetivo ajudar este cliente que se encontra diante de inúmeras teorias, e porque não dizer, perdido. Didaticamente, a obra está estruturada em dez capítulos que ocupam cerca de 300 páginas.

J.-L. Ska, Introdução à leitura do PentateucoEsta obra é extremamente informativa, e isto talvez explique sua densidade. Seria muita pretensão querer apresentar aqui, de maneira explicativa e pormenorizada, todo o seu conteúdo. Por isso, limitamo-nos em apresentar de maneira geral e global o que cada capítulo da obra de Ska aborda, apontando os temas mais relevantes e, oportunamente, enfatizando este ou aquele capítulo, quiçá com a intenção de estimular o leitor do Pentateuco a ter um contato direto com a “chave de leitura” de Ska.

O primeiro aspecto a ser observado é que não é fácil ler um texto de mais de vinte séculos atrás, ainda mais quando não se tem o original e nem mesmo uma “assinatura” que nos remeteria ao autor do texto. E, nem sempre a Bíblia foi Bíblia, e nem seus livros foram escritos para ser Bíblia. Nem sempre seus livros foram livros e, também, nem sempre foram subdivididos em capítulos e versículos!

Portanto, para descrever o Pentateuco em sua forma atual, nos dois primeiros capítulos, respectivamente: Algumas questões fundamentais sobre o Pentateuco  e  Os cinco livros do Pentateuco: conteúdo e estrutura, Ska analisa a forma canônica do Pentateuco (no primeiro capítulo) e dos cinco livros que o compõem (no segundo). Para isto, parte do significado da palavra Pentateuco e mostra porque ele possui um valor distinto quando comparado com os demais livros da Bíblia hebraica, isto do ponto de vista da “Revelação”. Já nos testemunhos de Flávio Josefo, de Fílon, ou mesmo nos evangelistas João e Mateus, a “Lei” já está limitada nesta pentacomposição. A própria tradição judaica já estabelecera que cinco eram os livros fundamentais da “Lei” e com autoridade superior a dos demais livros atribuídos aos profetas. Entretanto, tal composição é questionada. Pensa-se num Tetrateuco (colocando-se o livro do Deuteronômio à parte, baseando-se na tese de M. Noth e apresentando as três observações que originam tal tese). Fala-se também de um Hexateuco (acrescentando-se um sexto livro, no caso o de Josué, como defendiam Ewald e Von Rad, por acreditarem que a primeira obra do povo de Iahweh seja o “livro das origens”, que compreende do Gênesis a Josué – porque este conjunto traria toda a narrativa da “conquista da terra”). Até mesmo um Eneateuco é cogitado (composto pelos cinco tradicionais, acrescidos por Josué, Juízes, Samuel e Reis, porque, segundo os defensores desta teoria, a “história de Israel”, não dever ser considerada apenas em suas origens, mas num tempo que vai da criação do mundo ao exílio babilônico, chamada de “História Principal”, descrita nestes nove livros).

Dos vários argumentos utilizados por Ska, podemos apontar dois para se continuar considerando um “Pentateuco”. Primeiro, porque os cinco livros possuem um caráter normativo, não presente nos outros livros. E ainda, porque reproduzem a biografia de Moisés, desde seu nascimento (Ex 2) à sua morte (Dt 34), e este argumento torna-se importante, quando se conhece o valor único atribuído a Moisés, do ponto de vista da Revelação. Além do mais, a estrutura própria do Pentateuco é imprescindível para a compreensão do Novo Testamento, porque a vida pública de Jesus inicia-se no Jordão. “Moisés chegou diante do Jordão com o seu povo e morreu sem ter podido atravessar essa última fronteira”. Sua obra ficara incompleta e Josué é quem vai terminá-la. O povo não consegue, com Moisés, tomar posse da terra. A missão de Jesus é semelhante, porque “anunciar o Reino” significa apontar o dia em que Israel vai poder, finalmente, tomar posse definitiva da terra.

Dessa forma, o Pentateuco é analisado de um modo geral. Ska toma para si a tarefa de apresentar a divisão e as razões materiais e teológicas da estruturação dos cinco livros e, pormenorizadamente, apresenta, no segundo capítulo, a estrutura e a divisão de Gênesis a Deuteronômio.

Se a análise nestes dois capítulos diziam respeito ao conteúdo e à forma dos livros do Pentateuco, envereda-se Ska, em seguida, na análise do “autor” e da “literatura” de tais livros. Por isso, os capítulos III, IV e V são intitulados Os problemas literários do Pentateuco, sendo que no terceiro, são analisados textos legislativos comparando-se leis presentes no Código da Aliança (Ex 20,22-23,33) no Código Deuteronômico (Dt 12,1-26,15) e na Lei da Santidade (Lv 17-26). E, sem dúvida, também o Decálogo (em Ex 20,1–17 e Dt 5, 6–21). Textos narrativos, como a criação, o dilúvio, a história de José e a passagem do mar, são analisados no quarto capítulo. Aqui é mister salientar que tais análises feitas pelo nosso autor são de nível comparativo, mostrando, sempre, as aparentes incoerências e divergências redacionais acerca de um mesmo assunto – como o Decálogo, por exemplo – buscando apontar para possíveis soluções dos problemas literários, chegando, assim, no capítulo V, onde é possível deparar-se com os problemas relacionados às intervenções redacionais. E assim podemos, juntamente com Ska, concluir que seria, de acordo com os dados levantados, impossível atribuir a redação dos cinco livros a um único autor; e que, em diferentes épocas, tanto os textos narrativos como os legislativos foram relidos, corrigidos, elucidados, reinterpretados e atualizados para atender às novas realidades do povo de Israel.

Exegese do Pentateuco: história da pesquisa da Antiguidade a 1970 é o título do VI capítulo. A essa altura, o leitor encontra-se diante de uma série de problemas provenientes dos capítulos precedentes, devido às divergências acerca da forma, da estrutura, dos métodos, dos sinais linguísticos, dos problemas literários e das intervenções redacionais. Humildemente, Ska afirma não ter a pretensão de expor completamente as exegeses do Pentateuco até os dias atuais. Contudo, um estudo bem rico e detalhado, apresentado em vinte e nove páginas, mostra como estes problemas foram interpretados desde os rabinos e os Padres da Igreja até a década de 70, passando pela Idade Média, com o “Pentateuco mosaico”, bem como pelos questionamentos de Baruch Spinoza e Richard Simon, chegando a apresentar, passo a passo, o nascimento e consolidação da hipótese documental clássica, perpassando Witter, Astruc, Eichhorn, De Wette, Reuss, Kuenen, culminando em Wellhausen. E, o capítulo é encerrado com as inovadoras ideias e contribuições de Gunkel, Noth, Von Rad e da “Formgeschichte”. Assim, todo este itinerário histórico nos permite perceber que a cada época e cultura novas questões são apresentadas acerca da exegese do Pentateuco, e que um consenso fora estabelecido e muito bem aceito no mundo bíblico, demarcando as quatro fontes principais para a escrita do Pentateuco (J, E, D e P).

Entretanto, desde 1970, o consenso wellhauseniano vem sendo discutido e muito maiores são os problemas levantados desde então. Se as vinte e nove páginas foram necessárias para apresentar toda a história da exegese do Pentateuco no capítulo VI, desde a Antiguidade a 1970, Ska utilizar-se-á de mais trinta e seis páginas, apenas para apontar os Dados mais recentes sobre a Exegese do Pentateuco – título do VII capítulo – em que apresenta as críticas dos novos métodos de pesquisa e das novas escolas exegéticas à hipótese documental. Portanto, um número maior de páginas indica que, se o leitor achava estar diante de soluções para os problemas até agora levantados, parece que diante de maiores problemas ainda se encontra o leitor!

Os novos métodos de pesquisa e as novas escolas exegéticas trouxeram ao mundo da exegese a hipótese da não existência de uma fonte eloísta. “As numerosas objeções a ela foram compiladas por E. Zenger”, diz Ska na p. 146. Todavia, as objeções não dizem respeito apenas ao E. Os ataques que inibiram a hipótese documental, colocando-a em xeque visam, sobretudo, o J e o Israel pré-monárquico. Quanto ao Javista, a discussão gira em torno de sua existência como fonte, mas, principalmente acerca da data de sua redação. Para a escola de Heidelberg, na Alemanha, por exemplo, o J já não mais se sustenta. O maior defensor desta hipótese é Erhard Blum (que fora aluno de Rendtorff). Outra tese situa o Javista após o Deuteronômio e a OHDtr. Tal tese ganha ênfase, principalmente no Canadá (com Winnett, Wagner e J. Van Seters) e na Suíça (com H. H. Schmid, M. Rose, H. Vorländer e H.–Ch. Schmitt). Um Javista Reduzido é a hipótese que supõe um relato javista quase que primitivo, muito reduzido e completado em várias épocas – assim supõem P. Weimar, J. Vermeylen e também E. Zenger (em sua primeira fase). O relato sacerdotal, por sua vez, nunca sofrera grandes questionamentos, devido ao estilo e teologia bastante reconhecíveis e portanto, de fácil identificação. Se houver confusão acerca desta fonte, esta diz respeito à sua natureza, à sua conclusão, teologia, datação e sobre o seu relacionamento com a “lei da santidade” no livro do Levítico.

Assim, os problemas, questionamentos e possíveis soluções (formuladas pela diversas teorias) são apresentadas de maneira muito clara por nosso autor, sem apoiar ou menosprezar nenhum dos métodos utilizados pelas diferentes escolas. E o capítulo é concluído com as importantes indicações: “O melhor método será aquele que explicar o texto do Pentateuco com mais clareza, sem menosprezar os problemas complexos que explanamos nos capítulos anteriores” (p.177).

Dessa forma, chegamos ao capítulo chamado por Ska de “ponto crítico”, porque se até agora pudemos perceber os problemas, é hora de tomar uma posição. Características básicas da literatura antiga é o título do VIII Capítulo. Nele o autor apresenta alguns “axiomas-chave” de toda a pesquisa no campo das literaturas antigas, para se explicar como e por que se conservaram tradições antigas. Assim, há de se observar várias leis, que poderíamos chamar de “motivos” para se escrever e para se conservar os escritos. Tudo deve ser levado em consideração: a Lei da Antiguidade que é, segundo Ska, a que determina que o mais velho é o que vale mais. O mais antigo, o tradicional, se impõe. O antigo autoriza, legitima, dá crédito, portanto, apoiado nele é que se deve escrever.

Assim é que se descobre, num texto, o valor de uma tradição. “O Deus do Êxodo é o Deus dos patriarcas. O Deus de Israel é o criador do universo. Jean-Louis SkaEssa antiguidade é essencial para se provar, perante as nações, o valor das tradições” (p. 183). Por conseguinte, se o antigo tem valor, não se pode eliminá-lo, aboli-lo. Uma lei, se tradição, mesmo que não seja mais aplicável, não pode ser abolida. Esta é a Lei da Conservação, a que diz que nada se elimina. Entretanto, ao mesmo tempo que o mundo antigo é muito conservador, a tradição apenas guarda o que tem valor para o presente: é a Lei da Continuidade ou da Atualidade. Não se quer ter um museu, onde as velharias possam ser admiradas. Quer-se cruzar um passado longínquo com o presente, mostrando o valor das tradições para a atualidade. E, uma última lei apresentada por Ska é a da Economia. Escreve-se apenas o necessário. Os manuscritos não são papéis que encontramos em qualquer papelaria, como na atualidade. Não são impressos! O material é restrito, pede um cuidado propedêutico exigente e caro. Os escribas competentes eram escassos. “Hoje, um escriba levaria, mais ou menos, um ano, para escrever a Torá inteira e precisaria costurar, aproximadamente, 62 peles de animais. O preço atual desse manuscrito ficaria na ordem de 18 mil a 40 mil dólares. Obviamente, na Antiguidade custaria muito mais” (p. 188).

Feita esta análise da Literatura Antiga, é em Algumas referências para a leitura do Pentateuco, o nono capítulo da obra, que Ska apresenta a sua tese, ou melhor, suas três teses principais: a de que o Pentateuco todo seria uma obra pós-exílica, da época persa; uma obra compósita, ou seja, contém partes mais antigas; e, por fim, a tese de que algumas pequenas histórias ou ciclos narrativos – embora seja difícil delimitar o seu tamanho e definir sua data precisa – podem ser provenientes de material pré-exílico.

E, justamente nesta última é que Ska mais se detém. A hipótese do autor baseia-se na “História de Israel”, principalmente na sua reconstrução após o exílio. Entretanto, para reconstruí-la era indispensável que a comunidade reencontrasse suas raízes no passado: “Estava para renascer o mesmo povo, na mesma terra, às ordens do mesmo Deus” (p. 201). O refazer de Israel faz o Pentateuco. Com essa hipótese, J.-L. Ska quer reconstruir o edifício abalado: ao mesmo tempo em que se reconstrói o Israel pós-exílico, reconstrói-se, igualmente, este Pentateuco abalado pelos novos métodos de pesquisa. Sua preocupação agora está em mostrar, e possivelmente convencer, ao leitor de como se chega a esta posição através de textos narrativos, dos legislativos e das intervenções redacionais.

Chegando ao último capítulo O Pentateuco e o Israel pós-exílico, resta ao autor apenas situar historicamente o Pentateuco no pós-exílio, tarefa à qual se dedica neste ponto.

Para finalizar, poderíamos ressaltar dois aspectos que chamam a atenção, o tempo todo, durante a leitura da obra: a quantidade de informações, em primeiro lugar, provenientes de uma riquíssima e competente bibliografia, explicitada nas notas de rodapé – de fato, a erudição de Ska é surpreendente e fascinante; e, em segundo lugar, a maneira como o autor escreve, ou seja, o estilo empregado para nos colocar diante destas considerações exegéticas acerca do Pentateuco – parece ao leitor uma conversa com Ska, pois didática e metodicamente nos insere, passo a passo, no mundo da exegese do Pentateuco, o que torna a leitura não apenas instrutiva mas também agradável e prazerosa.

Tomando-se a obra no conjunto, a tese de Ska, apresentada nos três últimos capítulos, talvez nem seja o seu ponto mais alto, mesmo porque somente se percebe a sua importância quando se dá valor ao método histórico-crítico. Para o exegeta avesso a este método, por exemplo, a tese de Ska não tem grande valor. Entretanto, inquestionável valor têm os capítulos que nos apresentam o Pentateuco. Eles nos apresentam, mesmo que a grosso modo, como insiste Ska, toda a formação do Pentateuco, desde sua redação até à investigação exegética mais recente. E quando não consegue definir mais claramente algum ponto, preferindo tratá-lo de modo mais rápido, indica-nos um caminho, explicitando sempre um referencial teórico.

Concluindo: é claro que a obra de Ska não põe um ponto final – e nem se propõe a tal –  no debate e na discussão exegética atual sobre o Pentateuco. Pelo contrário, talvez abra espaço para mais e maiores discussões. Certamente sua hipótese encontra no meio acadêmico os prós e os contras, a direita e a esquerda, o apoio e o ataque. O que importa é perceber que, para o cliente do Pentateuco que já tinha muitos modelos e opções, Ska apresenta mais um “tipo”. Tenta-se eliminar o Eloísta ou reduzir o Javista. Mas Javista, Eloísta, Deuteronômio e Sacerdotal ainda continuam de pé, mesmo que cambaleantes. A problemática persiste e a “História do Povo de Deus”, presente no Pentateuco, ainda “há de dar muito o que falar”.

Este texto foi escrito por Círio Alessandro Jacinto, do 10 ano de Teologia do CEARP em 2004.

 

Informações adicionais sobre o livro

Original:
SKA, J.-L. Introduzione alla lettura del Pentateuco: Chiavi per l’interpretazione dei primi cinque libri della Bibbia. 8. ed. Bologna: Edizioni Dehoniane, 2008 [1998], 320 p. – ISBN 9788810221013.

Traduções:
:: Em chinês: Yue du wu shu dao lun. Xianggang: Gong jiao zhen li xue hui, 2011, xvi + 373 p. – ISBN 9789628909841.

:: Em coreano: tradução de Johan Yeong Sik Pahk, Seoul: Saint Pauls, 2001.

:: Em espanhol: Introducción a la lectura del Pentateuco: Claves para la interpretación de los cinco primeros libros de la Biblia. 2. ed. Estella [Navarra]: Verbo Divino, 2010, 384 p. – ISBN 9788481694352.

:: Em francês: Introduction à la lecture du Pentateuque: Clés pour l’interprétation des cinq premiers livres de la Bible. Bruxelles: Éditions Lessius, 2000, 392 p. – ISBN 9782872990818.

:: Em inglês: Introduction to Reading the Pentateuch. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2006, xvi + 285 p. – ISBN 9781575061221.

:: Em português: Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. 3. ed. São Paulo: Loyola, [2003] 2014, 304 p. – ISBN 8515024527.

>> Última atualização em 22.08.2015

Resenhas


Gramática de grego

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SWETNAM, J. Gramática do grego do Novo Testamento I-II. São Paulo: Paulus, 2002, vol I: 456 p; vol. II: 336 p. – ISBN 853492001X

 

leitura: 6 min

O grande conhecimento do grego, aliado à experiência no ensino, levou James Swetnam, professor de grego do Novo Testamento (koiné) do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, a produzir esta Gramática do Grego do Novo Testamento (vol. I e II). Frutos de mais de 30 anos de pesquisa, seus livros são dirigidos tanto aos que estudam o grego bíblico como aos desejosos de estudar de forma autodidática a língua do Novo Testamento. Esta gramática é adotada no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, na formação de todos os estudantes que iniciam o curso. James Swetnam é doutorado em Oxford, Reino Unido.

A gramática foi lançada em português pela Paulus, em tradução feita por Henrique Murachco, Juvino A. Maria Jr. e Paulo Bazaglia da segunda edição inglesa revista e corrigida, publicada pela editora do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, em 1998, e que tem como título An Introduction to the Study of the New Testament Greek. A edição original é de 1992, baseada, por sua vez, em notas mimeografadas de 1981. A gramática, além do português, foi traduzida também para o italiano, espanhol, coreano e ucraniano.

James Swetnam, Gramática do Grego do Novo TestamentoA gramática, diz a apresentação da Paulus, traz a morfologia do grego do NT dentro de um plano de organicidade progressiva, onde o vocabulário e as regras gramaticais são lentamente explicados, levando o estudante à sua familiarização gradativa. Textos permeiam a obra continuamente. Deste modo, a alegria de sentir e compreender o texto vai se tornando passo a passo mais intensa, até que no fim o estudante percebe que adquiriu o vocabulário fundamental e as regras básicas para ler e compreender bem a língua em que os escritores do Novo Testamento apresentaram a Boa Nova.

O primeiro volume traz 100 lições cuidadosamente planejadas, com os títulos definindo todo o conteúdo de cada lição; o desenvolvimento de cada item do título; regras progressivas de acentuação; um vocabulário progressivo, segundo a frequência dos termos em o NT e exercícios de uso da língua. Os exercícios são, em geral, trechos do NT, onde o estudante poderá traduzir do grego para o português e do português para o grego.

O segundo volume, também com 100 lições, apresenta as chaves dos exercícios do primeiro e os paradigmas de flexão de todos os termos gregos, incluindo declinação de nomes e adjetivos, conjugação de verbos regulares e irregulares, enunciado dos verbos irregulares difíceis e cinco índices para a localização de palavras em grego ou em português.

Escreve Swetnam no Prefácio à edição em português de sua gramática, no Natal de 2001: “Esta edição em português da minha gramática introdutória ao grego do Novo Testamento deixa-me muito satisfeito. Com ela poderei ajudar muita gente em diversos lugares – Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Timor Leste etc – a compreender a língua original do conjunto de livros escritos de forma ímpar sobre a pessoa mais importante que já viveu: Jesus Cristo“.

E continua:”A gramática foi escrita com extrema pormenorização. Por duas razões: 1) as pormenorizações podem ser de grande ajuda ao estudante que usa este texto sem o auxílio de um professor (ainda que as lições possam ser seguidas com a vantagem da supervisão de um professor, como num curso ministrado); 2) as pormenorizações podem ajudar o estudante a compreender que o texto grego neotestamentário é importante sob todos os aspectos, até o menor deles. A decisão de insistir nos pormenores, além disso, é simplesmente reflexo do modo como o grego do Novo Testamento é ensinado no Pontifício Instituto Bíblico. Após 33 anos de ensino no Instituto Bíblico, portanto, de modo nenhum me arrependo a esse respeito. O domínio do Novo Testamento certamente requer muito mais que o domínio do texto grego. Todavia, o domínio do texto grego geralmente é essencial ao domínio do Novo Testamento” (p. 4). Sobre esta preocupação com os detalhes, posso corroborar sua afirmação, pois estudei com Swetnam – e apreciei muito sua metodologia – na década de 70.

Já na Introdução na p. 7, diz Swetnam: “Um livro de texto nunca é completamente satisfatório, exceto, talvez, para seu autor. A esse respeito, o autor desta obra não se ilude. Ele simplesmente oferece esta gramática como resultado de vários anos de ensino a estudantes de ampla variedade de proveniência (mais de mil e quinhentos, de oitenta e cinco países). Sua esperança é que esta gramática possa ser de ajuda a outros professores, seja por meio de seu uso direto, seja como incentivo a que escrevam a sua própria“.

E mais adiante, ainda na mesma página, o autor oferece algumas pistas interessantes ao estudante do grego do Novo Testamento: “A obra se baseia numa série de observações do autor, fundadas em sua experiência pessoal:

1. Não é fácil aprender o grego do Novo Testamento; exceto para pessoas que possuem um dom para além do normal, a aprendizagem requer James Swetnam esforço considerável e perseverante. Por outro lado, qualquer pessoa que possua inteligência normal pode aprender muito desta língua, desde que esteja disposta a enfrentar um grande trabalho.

2. Aprender o grego do Novo Testamento requer realismo em perseguir um objetivo, se é que o estudante procura perseverar a ponto de conseguir o domínio da língua e consequentemente a habilidade para ler o texto do Novo Testamento.

3. Geralmente se obtém maior fruto do estudo do grego do Novo Testamento caso se desenvolva uma aprendizagem tanto dedutiva (que consiste na memorização do vocabulário, paradigmas e regras) quanto indutiva (que consiste no contato com o texto do Novo Testamento).

4. A aprendizagem do grego do Novo Testamento pode tornar-se menos difícil quando se faz uma apresentação cuidadosa da nova matéria, de modo que os pontos essenciais sejam claramente dispostos e aqueles não tanto essenciais sejam apresentados em modo subordinado ou remetidos a ulterior consideração” (p.7).

A estas observações, se me for permitido como ex-aluno de Swetnam, gostaria de acrescentar outra: o acompanhamento da evolução de cada estudante em seu aprendizado, durante o curso, por parte do professor, é da maior importância. Coisa que Swetnam sabe fazer com maestria.

Esta resenha foi publicada em 2004.

Resenhas


A Bíblia desenterrada

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FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, xii + 385 p. – ISBN 9780684869124

 

leitura: 54 min

Israel Finkelstein, autor de importantes estudos no campo da arqueologia da Palestina, foi o Diretor do Instituto de Arqueologia Sonia e Marco Nadler da Universidade de Tel Aviv, Israel, de 1996 a 2003, e Diretor das escavações de Tel Meguido. Ganhou em  2005 o prêmio Dan David. É o titular da Cátedra Jacob M. Alkow de Arqueologia de Israel nas Idades do Bronze e do Ferro da mesma Universidade. Neil Asher Silberman é Professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Massachusetts-Amherst, nos Estados Unidos.

Este envolvente livro, A Bíblia desenterrada: Uma nova visão arqueológica do antigo Israel e da origem de seus textos sagrados (no Brasil: A The Bible Unearthed - A Bíblia não tinha razãoBíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003; A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018), contém 12 capítulos agrupados em três partes, um epílogo, 7 apêndices – que retomam e aprofundam temas tratados ao longo do texto – uma bibliografia, um índice de nomes e lugares, além dos tradicionais prólogo e introdução. Donos de prosa refinada, os autores tomam cuidadosamente o leitor pela mão e o conduzem em aventura fascinante através do mundo do Antigo Israel.

Mesmo antes do prólogo, nos agradecimentos feitos pelos autores àqueles que colaboraram na produção da obra, os autores já explicam a razão da publicação do livro.

O livro, dizem, foi pensado cerca de oito anos antes de sua publicação. E o motivo foi o debate sobre a historicidade da Bíblia, que então começava a atrair o público leigo. Os autores concluíram, ainda no começo da década de 90, que “um livro atualizado sobre este tema para os leitores em geral se fazia necessário” (p. V).

Finkelstein e Silberman observam que, nestes últimos anos, a controvérsia arqueológica sobre a questão bíblica cresceu muito, inclusive com acusações pessoais de motivações políticas inconfessáveis [os autores devem estar se referindo às possíveis implicações da pesquisa acadêmica para as reivindicações atuais de determinados grupos em Israel sobre o território palestino].

Houve um êxodo? Existiu uma conquista de Canaã? Davi e Salomão governaram um grande império? Questões como estas atraíram jornalistas, chegaram ao grande público e, ao ultrapassarem os círculos acadêmicos da arqueologia e da exegese bíblica, criaram polêmicos debates teológicos, resultando até em discussões sobre a crença religiosa deste ou daquele estudioso.

Por tudo isso é que declaram os autores: “Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior” (p. V-VI). Sua proposta no livro: apresentar evidências que sustentam esta afirmação e reconstruir uma história do antigo Israel bem diferente das habituais. Os autores deixam, finalmente, aos leitores, o julgamento de sua empreitada.

No Prólogo os autores propõem que o mundo em que a Bíblia nasceu foi o da Jerusalém da reforma do rei Josias no século VII AEC [antes da Era Comum, o mesmo que a.C.= antes de Cristo]. O núcleo histórico da Bíblia, pelo menos, nasceu nas ruas de Jerusalém, nos pátios do palácio real da dinastia davídica e no Templo do Deus de Israel, em parte de materiais tradicionais herdados, em parte de composições originais da época.

Nas palavras dos autores: “A saga histórica contida na Bíblia – do encontro de Abraão com Deus e sua jornada para Canaã, da libertação mosaica dos filhos de Israel da escravidão até a ascensão e queda dos reinos de Israel e Judá – não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana. Ela foi concebida pela primeira vez – como as recentes descobertas arqueológicas sugerem – no espaço de duas ou três gerações, a cerca de dois mil e seiscentos anos atrás. Seu berço foi o reino de Judá, uma região escassamente povoada por pastores e agricultores, governada por uma isolada cidade real precariamente encravada no coração da região montanhosa sobre um estreito cume, entre profundos, rochosos desfiladeiros” (p. 1).

Uma cidade que pareceria extremamente modesta aos olhos de um observador moderno, com seus cerca de 15 mil habitantes, com bazares e casas amontoadas a oeste e sul de um modesto palácio real e seu Templo. Entretanto, no século VII AEC, esta cidade fervilhava com uma agitada população de oficiais reais, sacerdotes, profetas, refugiados e camponeses privados de suas terras. Uma cidade consciente de sua história, identidade, destino e relação direta com Deus.

Esta visão da antiga Jerusalém e das circunstâncias que deram origem à Bíblia, insistem os autores, é proveniente das recentes descobertas arqueológicas. Descobertas que “revolucionaram o estudo do Israel primitivo e lançaram sérias dúvidas sobre as bases históricas das tão famosas histórias bíblicas como as peregrinações dos patriarcas, o Êxodo do Egito, a conquista de Canaã e o glorioso império de Davi e Salomão” (p. 3).

É isto que os autores deste livro pretendem contar: “A história do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica” (p. 3). Os autores pretendem separar história de lenda. Enfim, declaram, seu propósito não é simplesmente desmontar conhecimentos ou crenças, mas partilhar as mais recentes percepções arqueológicas “não apenas sobre o quando, mas também sobre o porquê a Bíblia foi escrita, e porque ela permanece tão poderosa ainda hoje” (p. 3).

Na Introdução, p. 4-24, sob o título A Arqueologia e a Bíblia, os autores nos informam que foram os estudos detalhados dos textos bíblicos e as pesquisas arqueológicas realizadas na Palestina nos dois últimos séculos que nos ajudaram a reconstruir a real história escondida atrás da Bíblia.

Em seguida, ao oferecerem algumas definições básicas do que é a Bíblia Hebraica [= Antigo Testamento] e explicar a sua estrutura – “O coração da Bíblia Hebraica é uma história épica que descreve o surgimento do povo de Israel e sua contínua relação com Deus” (p. 8) -, Finkelstein e Silberman dizem que este livro examina as principais obras ‘históricas’ da Bíblia, ou seja, a Torá [= Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio] e os Profetas Anteriores [= OHDtr – Obra Histórica Deuteronomista: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis].

E explicam: “Nós comparamos esta narrativa com a riqueza dos dados arqueológicos que foram coletados nas últimas décadas. O resultado é a descoberta de uma relação complexa e fascinante entre o que realmente aconteceu na terra da Bíblia durante o período bíblico (…) e os conhecidos detalhes da elaborada narrativa histórica contida na Bíblia Hebraica” (p. 8).

Após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia oferece hoje evidência suficiente para que se sustente uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século VII AEC.

“Nós focalizaremos o Judá do final do século VIII e do século VII AEC, quando este processo literário começou para valer, e argumentaremos que a maior parte do Pentateuco é uma criação da monarquia recente, elaborado em defesa da ideologia e necessidades do reino de Judá, e, como tal, está intimamente associado à História Deuteronomista. E nos alinharemos com aqueles estudiosos que argumentam que a História Deuteronomista foi compilada, principalmente, no tempo do rei Josias [640-609 AEC], para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas” (p. 14).

Finalmente, depois de brevemente resenhar a história da arqueologia da Palestina, Finkelstein e Silberman concluem, na p. 23, que “a maior parte daquilo que é normalmente considerado como história acurada (…) são, na verdade, as criativas expressões de um poderoso movimento de reforma religiosa que floresceu no reino de Judá na Idade Recente do Ferro”.

Isto não implica, para os autores, que o antigo Israel não tenha uma história genuína, nem que os relatos bíblicos devam ser descartados, mas que, amparados pelos achados arqueológicos e pelos testemunhos extrabíblicos, se verá como as narrativas bíblicas são, elas mesmas, parte da história, e não o inquestionável quadro histórico dentro do qual deveriam se encaixar cada achado arqueológico ou conclusão da pesquisa.

A Bíblia é, nesta perspectiva, um artefato específico que, juntamente com a cerâmica, a arquitetura e as inscrições, nos ajuda a compreender a sociedade na qual ela foi produzida.

“Nossa história se afastará dramaticamente da familiar narrativa bíblica. Será a história não de um, mas de dois reinos escolhidos, que juntos contêm as raízes históricas do povo de Israel”, concluem os autores ao término da Introdução, na p. 23.


 

A Primeira Parte do livro – A Bíblia como História? – tem cinco capítulos, que tratam, respectivamente, dos patriarcas (p. 27-47), do êxodo (p. 48-71), da conquista de Canaã (p. 72-96), da identidade dos israelitas (p. 97-122) e da monarquia sob Davi/Salomão (p. 123-145).

No capítulo sobre os patriarcas, após sintetizarem as tradições bíblicas sobre estas figuras, os autores se perguntam: reais ou fictícias?

Para responder a isso, eles explicam as razões da busca dos estudiosos pelos patriarcas, nos últimos séculos, e como a historiografia bíblica ficou convencida de sua historicidade. Entre os nomes mais conhecidos estão, por exemplo, Albright, De Vaux, Speiser, Gordon e Benjamin Mazar.

Entretanto, lembram os autores, um acordo nunca foi alcançado, especialmente na questão da datação dos patriarcas. E questionam: onde está o erro desta busca? O erro está em que todos eles acreditavam que a época patriarcal deveria ser vista, de qualquer modo, como a primeira fase de uma história sequencial de Israel, concluem na p. 36. E se esta sequência – patriarcas, êxodo, conquista, monarquia unida, reinos divididos, exílio etc – não for considerada?

Em seguida, os autores expõem a posição de especialistas que, analisando de modo diferente as tradições, não acreditam na historicidade dos patriarcas. Destacam Wellhausen, Van Seters e Thomas L. Thompson, todos mostrando que as narrativas são compilações bem recentes. E, mais uma vez, perguntas: mas estas compilações teriam ocorrido quando?

Buscando na arqueologia as respostas, Finkelstein e Silberman mostram as inconsistências existentes nas tradições patriarcais. E defendem que detalhes como a presença impossível de camelos e filisteus no mundo patriarcal são ‘anacronismos’ a serem seriamente considerados, pois não são inserções posteriores em narrativas antigas, mas indícios de que as narrativas são bem mais recentes do que alguns estudiosos pensavam. E tudo aponta para os séculos VIII/VII AEC, concluem na p. 38, quando estes elementos não eram, de modo algum, anacrônicos.

E é a partir desse pressuposto que os autores vão mostrar como o exame das genealogias e dosFINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018, 392 p. costumes patriarcais “oferecem um colorido mapa humano do Antigo Oriente Médio de um inquestionável ponto de vista dos reinos de Israel e Judá nos séculos oitavo e sétimo AEC. Estas histórias oferecem um comentário altamente sofisticado dos negócios políticos nesta região nos períodos assírio e neobabilônico”, dizem nas p. 38-39.

Finkelstein e Silberman consideram que a caracterização de muitos termos e nomes de lugares das tradições patriarcais combinam perfeitamente com a relação de Israel e Judá com os reinos e povos vizinhos desta época. Para demonstrar isto, tratam dos arameus, de Amon e Moab, Edom, dos descendentes de Ismael e de nomes de lugares mencionados em Gn 14 e outros textos.

Na sequência, os autores lembram a posição de M. Noth de que os patriarcas seriam originariamente ancestrais isolados que foram agrupados como uma família para criar uma história unificada. E mostram, então, nesta perspectiva, que a escolha de Abraão e sua ligação com Hebron e Jerusalém (Salém em Gn 14,18), cidades reais davídicas, foi feita para enfatizar a primazia de Judá. Escolha esta feita nos séculos VIII/VII AEC, mas retroprojetadas para o começo, para legitimar Judá como projeto divino. “Então, a ideia pan-israelita, com Judá no centro, nasceu”, sentenciam na p. 44.

Concluem, assim, Finkelstein e Silberman a questão patriarcal: as narrativas patriarcais são provavelmente, baseadas em antigas tradições locais, mas “a ordem em que elas foram agrupadas as transformam em uma poderosa expressão dos sonhos judaítas do século sétimo” (p. 45). Por isso, as tradições patriarcais devem ser lidas como uma espécie de piedosa ‘pré-história’ de Israel, na qual Judá exerce um papel decisivo. Sob tal perspectiva, devemos considerar a versão javista (J) das narrativas patriarcais como uma tentativa de redefinir a unidade do povo de Israel, muito mais do que a recuperação de vidas de personagens que teriam vivido um milênio antes.

Finkelstein e Silberman consideram, finalmente, que a grande genialidade dos criadores deste épico nacional do século sétimo AEC foi ter transformado os filhos de Abraão, Isaac e Jacó numa grande família, unidos pelo poder da lenda, muito mais forte do que poderiam ser tênues lembranças de alguns indivíduos nômades perambulando pelas montanhas de Canaã.

No capítulo sobre o êxodo, os autores fazem quatro perguntas: O êxodo tem credibilidade histórica? A arqueologia pode ajudar a reconstruí-lo? É possível traçar a rota do êxodo? O êxodo aconteceu como descrito na Bíblia?

Após uma síntese da narrativa bíblica, Finkelstein e Silberman confirmam que as migrações de Canaã para o Egito são bem documentadas pela arqueologia e por textos da época. Para muitos habitantes de Canaã, região periodicamente sujeita a severas secas, a única saída era ir para o Egito. Pinturas e textos egípcios testemunham a presença de semitas no delta do Nilo ao longo das Idades do Bronze e do Ferro.

Por outro lado, há intrigantes paralelos entre a história bíblica de José e o êxodo e a história egípcia escrita por Maneton, sobre a invasão do Egito pelos hicsos e sua posterior expulsão após um século. “Invasão” que escavações arqueológicas recentes revelaram ter sido muito mais uma ocupação cananeia gradual e pacífica do delta do que uma operação militar. “As descobertas feitas em Tell ed-Daba [a antiga Avaris, capital dos hicsos] constituem evidência de um longo e gradual desenvolvimento da presença cananeia no delta e um controle pacífico da região”, concluem na p. 55.

Estes paralelismos entre a história bíblica de José e a história egípcia dos hicsos indicam a possibilidade do êxodo. Entretanto, duas questões permanecem: Quem eram este imigrantes semitas? E será que a data de sua permanência no Egito [1670-1570 AEC] combina com a cronologia bíblica?

A Bíblia colocou o êxodo em torno de 1440 AEC, data que se obtém pela comparação de dados bíblicos com fontes extrabíblicas. Entretanto, esta data não coincide com a expulsão dos hicsos. Por isto, muitos estudiosos consideram-na simbólica apenas, e datam  o êxodo no século XIII AEC, na época de Ramsés II, fundados em testemunhos egípcios indiretos, como a construção da cidade de Pi-Ramsés no delta, na qual trabalharam semitas, e na estela de Merneptah, filho e sucessor de Ramsés II, que fala da presença de uma entidade de nome ‘Israel’ presente em Canaã, no final do século XIII AEC.

Mas quem eram estes semitas presentes no Egito na construção de cidades e que ‘Israel’ é este da estela de Merneptah? Ainda não há respostas definitivas para estas perguntas. E mais: um êxodo em massa teria sido possível na época de Ramsés II?

O que se sabe é que não existe nas fontes egípcias da época menção alguma da presença de israelitas no Egito. Nem ligados aos hicsos (séculos XVII-XVI AEC), nem aos grupos cananeus mencionados nas Cartas de Tell el-Amarna (século XIV AEC), nem a um fuga para Canaã (século XIII AEC).

Trabalhando a partir desta lógica, Finkelstein e Silberman vão concluir pela impossibilidade do êxodo no século XIII AEC. Entre outras coisas, eles alegam que, nesta época, a fronteira do Egito com Canaã era severamente controlada, como a arqueologia comprovou na década de 70; que não existe nenhum sinal de ocupação do Sinai na época de Ramsés II ou predecessores imediatos; que não existe sinal do êxodo em Kadesh-Barnea ou Ezion-Geber, nem nos outros lugares mencionados na narrativa do êxodo, como Tel Arad, Tel Hesbon ou Edom. Convém considerar, também, que as narrativas bíblicas do êxodo jamais mencionam o nome do faraó que os israelitas enfrentaram.

E concluem: “Os locais mencionados na narrativa do êxodo são reais. Alguns eram bem conhecidos e aparentemente estavam ocupados em épocas mais antigas e em épocas mais recentes – após o estabelecimento do reino de Judá, quando a narrativa bíblica foi pela primeira vez escrita. Infelizmente, para os defensores da historicidade do êxodo, estes locais estavam desocupados exatamente na época em que aparentemente eles exerceram algum papel nas andanças dos israelitas pelo deserto” (p. 64).

E é então que se verifica estarem as condições do sétimo século AEC, época da escrita, bem mais presentes na história do êxodo, do que uma realidade do século XIII AEC. E aqui Finkelstein e Silberman vão adotar a tese do egiptólogo Donald B. REDFORD, exposta no livro Egypt, Canaan, and Israel in Ancient Times. Princeton: Princeton University Press, 1992.

Falando de maneira muito simplificada, a proposta é a seguinte: a memória da invasão e expulsão dos hicsos foi incorporada em Canaã como uma memória de confronto, vitória e libertação. Israel, ao surgir de Canaã, será o herdeiro dessa memória. Quando, no século VII AEC, Psamético I, faraó do Egito e Josias, rei de Judá tentam ocupar o espaço deixado pela Assíria na região da Palestina, e se confrontam – Josias será vencido por Necao II, filho de Psamético I -, esta memória serve de pano de fundo para a narrativa do êxodo. Êxodo impossível na época de Ramsés II, mas um paradigma de resistência na luta de Josias para reunificar o grande Israel.

Para finalizar: “A saga do êxodo de Israel do Egito não é uma verdade histórica, nem uma ficção literária. Ela é uma poderosa expressão de memória e esperança nascida em um mundo em transformação. O confronto entre Moisés e o faraó espelha o crucial confronto entre o jovem rei Josias e o recém-coroado faraó Necao. Fixar esta imagem bíblica em uma data anterior é subtrair da história seu mais profundo significado. A Páscoa se revela, assim, não como um simples evento, mas como uma experiência contínua de resistência nacional contra os poderes estabelecidos” (pp.70-71).

No capítulo sobre a conquista de Canaã, a questão básica é: história ou mito? Para responder a isto, os autores, após resumir a saga bíblica da conquista narrada no livro de Josué, dizem que as Cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, mostram um Canaã bem diferente daquele de Josué, ou seja, como uma província egípcia, governada por fracos chefes nas cidades. Realidade que a arqueologia confirma, ao escavar cidades pequenas e fracas, algumas abandonadas ou diminuídas em população e povoados sem muralhas.

E no século XIII AEC? Não temos dados como os das Cartas de Tell el-Amarna, mas o forte governo de Ramsés II estava presente em Canaã, como se pode ver na fortaleza egípcia de Bet-Shean e em Meguido, do que os autores deduzem que os egípcios em Canaã não ficariam indiferentes a uma destruição tal como a de Josué.

Após repassar a arqueologia da conquista – quer dizer, os defensores da versão de Josué – na primeira metade do século XX, com as escavações de Albright em Tell Beit Mirsim/Debir (1926-1932), dos britânicos em Tell ed-Duweir/Laquis (1930ss) e do israelense Yigael Yadin em Tell el-Waqqas/Hasor (1956), Finkelstein e Silberman explicam como a euforia desta teoria entrou em crise com as pesquisas de Jericó, Ai, Gabaon e outras cidades que nem existiam no século XIII AEC, fazendo cair o consenso sobre a conquista de Canaã.

Em seguida, alertam que, para se compreender Canaã, é preciso olharmos o Mundo Mediterrâneo como um todo no século XIII AEC. E aí apontam transformações dramáticas, tais como o grandioso Egito de Ramsés II que se enfrenta com o império de Hatti na batalha de Cades, levando ao tratado egípcio-hitita; o mundo de Micenas; Chipre…

E, então, aconteceu o grande ‘terremoto’ da migração dos Povos do Mar que arrasaram Hatti, Ugarit e Chipre, e a sua tentativa de invasão do Egito na época de Ramsés III [por volta de 1177 AEC]. Foi constatada a presença dos filisteus, um dos Povos do Mar, em Ashdod e Ekron. E  é documentada a destruição de outras cidades cananeias como Hasor, Afek, Laquis e Meguido, destruição lenta e gradual ao longo de um século ou mais, talvez provocada por uma convergência de fatores, como invasões, conflitos regionais e revoltas internas. Enfim, o que se conclui é que não pode ter sido Josué o destruidor destas cidades.

Lembram também os autores como a escola alemã de Alt e Noth já mostrava, antes da atual posição da arqueologia, a inconsistência de uma conquista, tal como narrada em Josué, e a maior coerência da narrativa de Jz 1. Para concluir disto o seguinte: o livro de Josué pode trazer, sim, memórias populares e lendas sobre esta época de profundas transformações, mas o que deve ter sido uma destruição caótica provocada por diferentes fatores e grupos diversos, ficou na tradição como uma poderosa saga de uma brilhante conquista territorial comandada pelas bênçãos divinas.

Ainda: a lista de cidades de Js 15,21-62 corresponde às fronteiras do reino de Judá na época de Josias. E algumas localidades estiveram habitadas somente nas décadas finais do século VII AEC. Assim, o que a OHDtr narra das batalhas de Josué cabe melhor na época de Josias, como o caso de Jericó, Ai (na região de Betel), o caso dos gabaonitas, a conquista da Shefelá e a conquista do norte, especialmente Hasor.

Donde os autores concluem que as conquistas de Josué são uma ‘mascara’ para as conquistas de Josias: e isto está bem entranhado na OHDtr, onde os paralelismos entre as figuras de Josué e Josias não são apenas convencionais, mas “paralelismos diretos na linguagem e na ideologia – além dos idênticos objetivos de conquista dos dois personagens” (p. 85).

No capítulo sobre a identidade dos israelitas, a questão é: se, como a arqueologia sugere, as sagas dos patriarcas e do êxodo são lendárias, compostas em épocas bem mais recentes, e se não houve uma conquista unificada de Canaã sob o comando de Josué, quem é este Israel que reivindica uma identidade nacional desde tempos antigos?

Ora, “a arqueologia, surpreendentemente, nos revela que este povo que vivia nestes povoados, eram habitantes nativos de Canaã que somente gradualmente desenvolveram uma identidade étnica que poderia ser chamada de israelita”, dizem os autores na p. 98.

Após repassarem uma síntese bíblica da divisão do território entre as tribos, segundo o livro de Josué, e as lutas do livro dos Juízes, mais questões são colocadas por Finkelstein e Silberman: a Bíblia está narrando algo que realmente aconteceu? Cultuava Israel um só Deus, mas caía, às vezes, no politeísmo? Como viviam estes israelitas no seu cotidiano? Sabemos de suas fronteiras e batalhas, mas como eram os assentamentos e como se sustentavam? Como nômades do deserto aprenderam a ser agricultores tão rapidamente?

Em seguida, os autores falam do ‘Israel’ citado na estela de Merneptah no final do século XIII AEC, da diferença entre as culturas cananeia e a dos invasores ‘seminômades’ percebida pelos arqueólogos, da teoria da infiltração pacífica de A. Alt e dos testemunhos egípcios sobre os apiru e os shoshu. Criticam, por um lado, a teoria da infiltração pacífica e, por outro, a proposta da revolta camponesa de Mendenhall e Gottwald, esta última, pela falta de suporte arqueológico, para chegar onde sempre chegam: a resposta às questões colocadas deve ser buscada na arqueologia.

Mas, dizem Finkelstein e Silberman, os arqueólogos até os anos 60 procuravam Israel nos lugares errados, nos grandes sítios das maiores cidades cananeias. E isto porque acreditavam em Josué. A exceção foi Y. Aharoni que fez escavações na Alta Galileia. Entretanto, lembram, desde os anos 40 os arqueólogos já reconheciam a necessidade da pesquisa de uma região e não apenas de uma localidade.

E, então, a partir de 1967, os territórios das tribos de Judá, Benjamin, Efraim e Manassés foram intensivamente pesquisados, revolucionando o estudo do antigo Israel, pois uma densa rede de povoados montanheses foi descoberta: cerca de 250 comunidades habitando as colinas apareceram. “Aqui estavam os primeiros israelitas”, comemoram os autores na p. 107.

Como assim? Neste ponto do capítulo, eles passam a descrever as características de um típico povoado da Idade do Ferro I, oferecendo inclusive desenhos ilustrativos e afirmando que a população de todos estes povoados por volta do ano 1000 AEC não ultrapassava em muito as 45 mil pessoas. Descrevem o modo de vida nos povoados, usando como exemplo Izbet Sartah que foi bem pesquisado.

Disto concluem: a principal luta dos primeiros israelitas não era com outros povos, mas com as duras condições da natureza onde viviam. E parece que viviam em relativa paz e com uma economia auto-suficiente, isolados das principais rotas comerciais da região e razoavelmente distantes uns dos outros, não havendo sinais de comércio entre os povoados. “Por isso, não nos surpreende que inexistam evidências de significativa estratificação social nestes povoados, nenhum sinal de edifícios administrativos, nem grandes residências de dignitários ou produtos especializados de hábeis artesãos”, dizem os autores na p. 110.

Entretanto, uma pergunta permanece: de onde eles vieram? Ora, a partir da pesquisa de Izbet Sartah, que preservou bastante bem suas estruturas originais, pode-se acompanhar a evolução dos povoados. E tudo indica que uma grande parte dos primeiros israelitas veio do meio pastoril. Pastores nômades, mas que estavam passando por profundas transformações, tornando-se, gradualmente, agricultores.

Outra coisa interessante que a arqueologia mostra também é que esta transformação no século XII AEC não foi nem a primeira, nem a única: duas outras ondas de ocupação da região montanhosa de Canaã ocorreram antes.

A primeira onda foi na Idade do Bronze Antigo, por volta de 3500 AEC, com cerca de 100 povoados e pequenas cidades, acontecendo o abandono da maior parte das povoações nas montanhas por volta de 2200 AEC. A segunda onda ocorreu na Idade do Bronze Médio, por volta de 2000 AEC, com cerca de 220 assentamentos, que iam desde povoados até cidades e centros regionais fortificados, chegando a população a um total de 40 mil pessoas. Esta onda terminou no século XVI AEC.

A terceira onda, a dos assentamentos israelitas, ocorreu por volta de 1200 AEC, com uma população de aproximadamente 45 mil habitantes em cerca de 250 localidades. O ápice desta ocupação foi no século VIII AEC, após a constituição dos reinos de Judá e de Israel, com cerca de 500 localidades e uma população de aproximadamente 160 mil habitantes.

Agora, uma questão interessante é colocada pelos autores: existe algum padrão nestas três ocupações? Existe, sim, respondem. A parte norte da região montanhosa sempre foi mais populosa do que a parte sul; cada onda de crescimento demográfico parece ter começado no leste e se expandido para o oeste; as três ondas possuem uma cultura material comum (na cerâmica, na arquitetura e na estrutura dos povoados), resultado provável de condições ambientais e econômicas semelhantes.

Interessante, porém, é o que a arqueologia revelou ao escavar ossos de animais: nos períodos entre estas ondas de ocupação não acontecia um abandono da região, mas uma mudança de atividade: da agricultura e criação de gado para o pastoreio. Este, aliás, parece ter sido, ao longo dos séculos, um comportamento típico das populações da região: em períodos de intenso povoamento, há maior dedicação à agricultura, enquanto que, nos períodos de crise, as pessoas praticam mais o pastoreio, o que lhes dá maior mobilidade.

E isto tem importância para a identificação dos primeiros israelitas? Tem. O que se observa é que agricultores e pastores nômades sempre tiveram uma relação de interdependência nas sociedades do Antigo Oriente Médio, complementando-se na troca de seus produtos. Entretanto, esta troca não é inteiramente equilibrada, pois os habitantes dos povoados podem sobreviver apenas com seus próprios produtos, o mesmo não acontecendo com os pastores nômades: eles precisam de grãos para complementar sua dieta, totalmente dependente do rebanho. E assim, quando não há povoados com os quais comerciar, eles são obrigados a produzir, eles mesmos, seus grãos. Aparentemente, foi isto o que aconteceu no século XII AEC, quando teria ocorrido a ausência do controle egípcio sobre Canaã e a economia da região entrou em colapso.

Assim concluem os autores na p. 118: “O processo que nós descrevemos aqui é, na verdade, o oposto daquele que temos na Bíblia: a emergência do Israel primitivo foi uma consequência do colapso da cultura cananeia, não a sua causa. E a maior parte dos israelitas não veio de fora de Canaã – eles emergiram de dentro desta terra. Não ocorreu um êxodo em massa do Egito. Não houve uma conquista violenta de Canaã. A maior parte das pessoas que formaram o primitivo Israel eram moradores locais – as mesmas pessoas que vemos nas montanhas nas Idades do Bronze e do Ferro. Os israelitas primitivos eram – ironia das ironias – eles mesmos originariamente cananeus!”

O mesmo processo poderia ser, segundo os autores, testemunhado na Transjordânia, com populações locais formando os povos de Amon, Moab e Edom.

Finalmente, terminam Finkelstein e Silberman este capítulo com duas especulações: os israelitas, já nas suas origens, não consumiam carne de porco – não se sabe a razão -, não tendo sido encontrados ossos deste animal nos povoados das montanhas, e isto seria sua marca distintiva; e o livro dos Juízes, parte da OHDtr, reflete, não as lutas dos primeiros tempos de Israel, mas a época de Josias, quando este, controlando o antigo território do reino de Israel e centralizando o culto em Jerusalém, quebrou o círculo vicioso de apostasia e desastre que atingia periodicamente Israel.

De minha parte, considero a especulação sobre a ausência de consumo da carne de porco como elemento distintivo dos israelitas primitivos especialmente frágil…

No capítulo sobre a monarquia davídico-salomônica, os autores lembram como, para os leitores da Bíblia, Davi e Salomão representam uma idade de ouro, enquanto que para os estudiosos representavam, até recentemente, o primeiro período bíblico realmente histórico. Hoje, a crise se abateu sobre o “império” davídico-salomônico. E se perguntam: Davi e Salomão existiram?

Mostram como os minimalistas dizem: “não”, os argumentos pró e contra a postura dos minimalistas, para chegarem à questão chave: o que diz a arqueologia sobre Davi/Salomão?

Para Finkelstein e Silberman a evolução dos primeiros assentamentos para modestos reinos é um processo possível e até necessário na região. Descrevendo as características do território de Judá, concluem que este permaneceu pouco desenvolvido, escassamente habitado e isolado no período atribuído pela Bíblia a Davi/Salomão: é o que a arqueologia descobriu.

E Jerusalém? As escavações de Yigal Shiloh, da Universidade Hebraica de Jerusalém, nas décadas de 70 e 80, na Jerusalém das Idades do Bronze e do Ferro mostram que não há nenhuma evidência de uma ocupação no século X AEC. A postura mais otimista aponta para um vilarejo no século décimo, enquanto que o resto de Judá, na mesma época seria composto por cerca de 20 pequenos povoados e poucos milhares de habitantes, tendo havido, portanto, dificilmente, um grande império davídico.

Mas e as conquistas davídicas? Até recentemente, em qualquer lugar em que se encontravam cidades destruídas por volta do ano 1000 AEC isto era atribuído a Davi por causa das narrativas de Samuel. Teoricamente é possível que os israelitas da região montanhosa tenham controlado pequenas cidades filisteias como Tel Qasile, escavada por Benjamin Mazar em 1948-1950, ou até mesmo cidades cananeias maiores como Gezer, Meguido ou Bet-Shean. Mas será que o fizeram?

Israel FinkelsteinE o glorioso reino de Salomão? Em Jerusalém, nada foi encontrado, mas e Meguido, Hasor e Gezer? Em Meguido, P. L. O. Guy, da Universidade de Chicago, descobriu, nas décadas de 20 e 30, os “estábulos” de Salomão. Sua interpretação dos edifícios achados se baseou em 1Rs 7,12;9,15.19. Na década de 50, Yigael Yadin descobriu, ou identificou nas descobertas de outros, as “portas salomônicas” de Hasor, Gezer e Meguido. Também a chave aqui foi 1Rs 9,15, que diz: “Eis o que se refere à corveia que o rei Salomão organizou para construir o Templo de Iahweh, seu palácio, o Melo e o muro de Jerusalém, bem como Hasor, Meguido, Gazer [=Gezer]“.

Mas, na década de 60, Y. Yadin escava novamente Meguido e faz a descoberta de um belo palácio que parecia ligado à porta da cidade e abaixo dos “estábulos”, o que o leva à seguinte conclusão : os palácios [a Universidade de Chicago encontrara outro antes] e a porta de Meguido são salomônicas, enquanto que os “estábulos” seriam da época de Acab, rei de Israel do norte no século IX AEC.

Durante muitos anos, estas “portas salomônicas” de Hasor, Gezer e Meguido foram o mais poderoso suporte arqueológico ao texto bíblico. Mas o modelo arquitetônico dos palácios salomônicos veio dos palácios bit hilani da Síria, e estes, se descobriu, só aparecem no século IX AEC, pelo menos meio século após a época de Salomão. “Como poderiam os arquitetos de Salomão ter adotado um estilo arquitetônico que ainda não existia?”, se perguntam os autores na p. 140. E o contraste entre Meguido e Jerusalém? Como um rei constrói fabulosos palácios em uma cidade provincial e governa a partir de um modesto povoado?

Pois bem, dizem Finkelstein e Silberman na p. 140: “Agora nós sabemos que a evidência arqueológica para a grande extensão das conquistas davídicas e para a grandiosidade do reino salomônico foi o resultado de datações equivocadas”.

Dois tipos de evidência fundavam os argumentos em favor de Davi e Salomão: o fim da típica cerâmica filisteia por volta de 1000 AEC fundamentava as conquistas davídicas; e as construções das monumentais portas e palácios de Hasor, Gezer e Meguido testemunhavam o reino de Salomão. Nos últimos anos, entretanto, estas evidências começaram a desabar [aqui os autores remetem o leitor ao Apêndice D, p. 340-344, onde os seus argumentos são mais detalhados].

Primeiro, a cerâmica filisteia continua após Davi e não serve mais para datar suas conquistas; segundo, os estilos arquitetônicos e as cerâmicas de Hasor, Gezer e Meguido atribuídos à época salomônica são, de fato, do século IX AEC; e, por último, testes com o Carbono 14 em Meguido e outras localidades apontam para datas da metade do século IX AEC.

Enfim: a arqueologia mostra hoje que é preciso “abaixar” as datas em cerca de um século [anoto aqui que esta “cronologia baixa” de Finkelstein tem dado muito o que falar nos meios acadêmicos!]. O que se atribuía ao século XI é da metade do século X e o que era datado na época de Salomão deve ser visto como pertencendo ao século IX AEC.

Dizem os autores: “Não há razões para duvidarmos da historicidade de Davi e Salomão. Há, sim, muitos motivos para questionarmos as dimensões e o esplendor de seus reinos. Mas, e se não existiu um grande império, nem monumentos, nem uma magnífica capital, qual era a natureza do reino de Davi?” (p. 142).

O quadro é o seguinte: região rural… nenhum documento escrito… nenhum sinal de uma estrutura cultural necessária em uma monarquia… do ponto de visto demográfico, de Jerusalém para o norte, povoamento mais denso; de Jerusalém para o sul, mais escasso… estimativa populacional: dos 45 mil habitantes da região montanhosa, cerca de 40 mil habitariam os povoados do norte e apenas 5 mil se distribuíam entre Jerusalém, Hebron e mais uns 20 pequenos povoados de Judá, com grupos continuando o pastoreio…

Davi e seus descendentes? “No século décimo, pelo menos, seu governo não possuía nenhum império, nem cidades com palácios, nem uma espetacular capital. Arqueologicamente, de Davi e Salomão só podemos dizer que eles existiram – e que sua lenda perdurou” (p. 143).

Entretanto, quando o Deuteronomista escreveu sua obra no século VII AEC, Jerusalém tinha todas as estruturas de uma sofisticada capital  monárquica. Então, o ambiente desta época é que serviu de pano de fundo para a narrativa de uma mítica idade de ouro. Uma bem elaborada teologia ligava Josias e o destino de todo o povo de Israel à herança davídica: ele unificara o território, acabara com o ciclo idolátrico da época dos Juízes e concretizara a promessa feita a Abraão de um vasto e poderoso reino. Josias era o novo Davi e Iahweh cumprira suas promessas “O que o historiador deuteronomista queria dizer é simples e forte: existe ainda uma maneira de reconquistar a glória do passado” (p. 144).


 

A Segunda Parte do livro – A Ascensão e Queda do Antigo Israel – tem três capítulos, que tratam, respectivamente, do surgimento do reino de Israel (p. 149-168), da dinastia de Omri (p. 169-195) e do domínio assírio sobre Israel (p. 196-225).

No capítulo sobre o surgimento do reino de Israel, os autores começam lembrando o relato bíblico sobre a rebelião do norte, onde Judá e Simeão aparecem em forte contraste com o condenável comportamento das 10 tribos do norte.

Este esquema bíblico, de uma monarquia unida, que se desintegra após a morte de Salomão, sempre foi aceito por arqueólogos e historiadores, mas está errado. Não há evidências de uma monarquia unida governada por Jerusalém, mas há boas razões para se acreditar que sempre houve duas diferentes entidades políticas na região montanhosa de Canaã, garantem os autores.

A pesquisa arqueológica nos anos 80 retrata uma situação bem diferente do relato bíblico. Em cada uma das ondas de ocupação das montanhas Neil Asher Silberman (Idade Antiga do Bronze: 3500-2200; Idade Média do Bronze: 2000-1550 AEC) sempre aparecem duas sociedades distintas, norte e sul, assim como no Ferro I (1150-900 AEC) existe a distinção entre Israel e Judá. A região norte sempre aparece mais povoada, com uma complexa hierarquia de grandes, médios e pequenos sítios arqueológicos e sempre mais fortemente ligada à agricultura. A região sul sempre aparece como mais escassamente povoada, com pequenos sítios arqueológicos e uma população de grupos nômades mais significativa.

No Bronze Antigo dois únicos centros se destacam em Canaã: no sul, Khirbet et-Tell (Ai) e no norte Tell el-Farah (Tirsá). No Bronze Médio, dois centros se destacam no sul, Jerusalém e Hebron, e um centro no norte, Siquém. Além destas pistas arqueológicas, os Textos de Execração egípcios mencionam, para este período, apenas dois centros nas montanhas de Canaã: Siquém e Jerusalém.

Uma inscrição egípcia do século XIX AEC, falando das ações de um general egípcio chamado Khu-Sebek na região montanhosa de Canaã, menciona a ‘terra’, e não a cidade, de Siquém em paralelo com Retenu (um dos nomes egípcios para Canaã). No Bronze Recente, as Cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, indicam duas cidades líderes na região das montanhas: Siquém e Jerusalém.

Assim, Siquém e Jerusalém, Israel e Judá, parecem ter sido sempre dois territórios distintos e rivais, concluem os autores.

Norte e sul possuem, de fato, dois ecossistemas bem diferentes sob qualquer aspecto: topografia, formação rochosa, clima, vegetação e potencial econômico. O sul é mais isolado por barreiras topográficas, enquanto que o norte possui vales férteis com maior potencial econômico. O maior desenvolvimento do norte pode ter proporcionado o surgimento de instituições econômicas mais complexas, levando ao surgimento de instituições políticas mais sofisticadas, nascendo daí um ‘Estado’.

“A evolução das colinas de Canaã em duas distintas entidades políticas foi um desenvolvimento natural. Não há evidência arqueológica em lugar algum de que esta situação de norte e sul tenha surgido de uma anterior unidade política – muito menos de uma localizada no sul”, dizem os autores na p. 158.

Judá, nos séculos X e IX AEC, era pastoril e pouco significativo. Jerusalém era um pequeno povoado na época de Salomão e Roboão, enquanto que o norte já era mais populoso e desenvolvido. Israel (do norte) já era um Estado no século IX AEC, enquanto que a sociedade e economia de Judá pouco tinham mudado desde suas origens nas montanhas.

Sem dúvida, Israel e Judá da Idade do Ferro tinham muito em comum: ambos cultuavam Iahweh (além de outros deuses) e seus povos partilhavam muitas histórias sobre um passado comum. Falavam línguas semelhantes, ou dialetos do hebraico, e, por volta do século VIII AEC, partilhavam da mesma escrita. Mas experimentaram diferentes histórias e desenvolveram culturas distintas, sendo Israel mais desenvolvido do que Judá.

O norte pode ter se desenvolvido mais do que o sul, mas não era tão próspero e urbanizado como as cidades-estado cananeias das planícies e da região costeira. Foi a derrocada destas cidades na Idade Recente do Bronze – quer tenha sido causada pelos Povos do Mar, ou por rivalidades entre elas ou, ainda, por desordens sociais – que possibilitou a sua independência.

Mas no século XI AEC houve nova onda de prosperidade nas regiões das planícies: filisteus na costa sul e fenícios na norte. Meguido é um bom exemplo deste processo. Entretanto, este renascimento durou pouco: o faraó Shishaq (ou Sheshonq, nas inscrições egípcias), fundador da Décima Segunda Dinastia, fez agressivo ataque, no final do século X AEC, à região: Meguido, Taanach, Rehov e Bet-Shean, no vale de Jezreel, foram alvos das forças egípcias. Embora os motivos e detalhes desta destruição sejam problemas não respondidos até hoje… Mas isto tem importantes implicações: abriu caminho para a ocupação israelita do Vale de Jezreel…

Entretanto: por que a Bíblia narra tudo diferente, surgindo Israel (do norte) de uma ruptura com Judá? A resposta está em quatro profecias ligadas pela narrativa bíblica à queda da monarquia unida: Salomão como responsável pela quebra da unidade (1Rs 11,4-13); Jeroboão como ‘herdeiro do norte, segundo o profeta Aías de Silo (1Rs 11,31-39); Jeroboão recebendo, em Betel, a profecia de “um homem de Deus” sobre Josias que destruirá o altar de Betel (1Rs 13,1-2); Aías de Silo falando à esposa de Jeroboão do extermínio de sua dinastia e do exílio de Israel (1Rs 14,7-16). O argumento de Finkelstein e Silberman aqui pareceu-me meio “circular” e pouco convincente…

Entretanto, segundo eles, a inevitabilidade da queda de Israel e o triunfo de Josias tornou-se um tema central para o redator deuteronomista no século VII AEC. Betel, a ameaça ao santuário de Jerusalém, cai sob Josias…

O historiador deuteronomista transmite ao leitor a seguinte mensagem, segundo os autores, na p. 167: “De um lado ele descreve Judá e Israel como Estados irmãos; de outro lado, ele mostra forte antagonismo entre eles. Era ambição de Josias expandir-se para o norte e tomar posse dos territórios montanhosos que outrora pertenceram ao reino do norte. Assim, a Bíblia legitima esta ambição, explicando que o reino do norte se estabelecera sobre os territórios da mítica monarquia unida, que fora governada a partir de Jerusalém; que havia um reino israelita irmão; que sua população era composta de israelitas que haviam prestado culto em Jerusalém; que os israelitas ainda vivendo nestes territórios deveriam voltar seus olhos para Jerusalém; e que Josias, o herdeiro do trono davídico e da promessa eterna feita a Davi, era o único legítimo herdeiro dos territórios do vencido Israel. Por outro lado, os autores da Bíblia precisavam deslegitimar o culto do norte – especialmente o santuário de Betel – e mostrar que as típicas tradições religiosas do reino do norte eram todas más, que elas deveriam ser eliminadas e substituídas pelo culto centralizado no Templo de Jerusalém”.

No capítulo sobre a dinastia de Omri, os autores começam lembrando que, segundo o texto bíblico, os omríadas foram os piores: o casal Acab e Jezabel é acusado de idolatria, assassinatos brutais, confisco de terras de herança, tudo na mais perfeita impunidade.

Mas, lembram Finkelstein e Silberman, a arqueologia hoje aponta noutra direção, mostrando que Acab foi um poderoso rei, seu casamento com Jezabel, filha do rei fenício Etbaal, foi uma grande vitória diplomática para Israel, suas construções foram magníficas, seu poder militar e suas conquistas territoriais foram brilhantes.

Em seguida, após repassarem a descrição bíblica dos governos do reino de Israel de Nadab a Jorão, ou seja, do segundo ao nono rei, os autores passam a mostrar as inconsistências e anacronismos da Obra Histórica Deuteronomista. Isto porque a narrativa bíblica, segundo eles, está por demais influenciada pela teologia dos escritores do século VII AEC. Estaríamos, nesta perspectiva, muito mais diante de uma novela histórica do que de posse de uma acurada crônica histórica.

Entretanto, os testemunhos extrabíblicos nos permitem ver os omríadas sob diferente perspectiva, exercendo forte papel aí a Estela de Mesha, a Inscrição de Tel Dan e os testemunhos assírios, como a Inscrição de Salmanasar III, que cita os dois mil carros de combate de Acab – número impressionante! – usados como parte de uma coalizão da Síria, Israel e Fenícia contra as suas investidas na região.

Além disso, as escavações de Samaria, Meguido, Hasor e Dan mostram os omríadas como grandes administradores e construtores arrojados.

Para os autores, o que até então era atribuído a Salomão pode tranquilamente ser considerado como omríada. E eles mostram características comuns nas cidades de Samaria, Jezreel, Hasor, Meguido e Gezer, para eles, todas resultantes de atividades da dinastia de Omri. Como consequência, Salomão e Jerusalém ficam bastante diminuídos.

O poder dos omríadas impressiona também por sua presença na Transjordânia, e bem ao sul, no território de Moab, em Ataroth (=Khirbet Atarus)  e em Jahaz (talvez Khirbet el-Mudayna, sítio que está sendo escavado por Michèle Daviau, da Wilfrid Laurier University, Canadá).

Neste ponto, Finkelstein & Silberman se perguntam: de onde vinham os recursos para estas realizações?

Eles acreditam que possam haver vários elementos em jogo. Como a destruição dos centros cananeus pelo faraó Shishaq no final do século X AEC, que teria aberto o caminho para que Omri tomasse posse dos territórios de Meguido, Hasor e Gezer.

Mas especialmente a diversidade de populações no território – cananeus, israelitas, arameus e fenícios – seria um elemento importante, porque integrava vários ecossistemas e mecanismos econômicos que só fortaleciam o país. As duas capitais seriam representativas desta diversidade: Samaria seria mais israelita, enquanto Jezreel seria mais cananeia. A estimativa demográfica para o século nono é difícil, mas no século VIII AEC, segundo eles, seria de 350 mil habitantes em Israel, fazendo deste território o mais densamente povoado do Levante. Seu único rival possível seria o reino de Damasco.

Este era um Estado “israelita”? Dificilmente… a identidade israelita atribuída ao território do norte parece ser muito mais a obra de escritores de uma monarquia judaíta mais recente!

E uma última pergunta: por que, então, o Deuteronomista, séculos mais tarde, faz de tudo para deslegitimar os omríadas? Exatamente porque Omri, o primeiro rei verdadeiro do reino de Israel, ofuscou o pobre, marginalizado e rural território de Judá…

No capítulo oitavo o livro trata do domínio assírio sobre Israel. Os autores começam mostrando como a interpretação bíblica do trágico destino do reino de Israel, destruído pela Assíria, é muito mais teológica do que histórica: segundo o Deuteronomista, a devastação de Israel pelos exércitos estrangeiros fazia parte de um preciso plano divino, que puniu o povo e seus líderes por sua recusa do culto a Iahweh no Templo de Jerusalém e por sua adesão a outros deuses. Veja-se, por exemplo: Jeú: 2Rs 10,28-33; Joás: 2Rs 13,22-25; Jeroboão II: 2Rs 14,23-27; o motivo do fim do reino do norte: 2Rs 17,7-41. Mas a arqueologia apresenta uma perspectiva diferente: Israel foi invadido pelos assírios por ter sido um reino bem sucedido que, vivendo à sombra do grande império, suscitou sua cobiça.

Após mostrar os equívocos da arqueologia tradicional na pesquisa do reino de Israel, os autores colocam lado a lado os dados do Deuteronomista e da inscrição de Tel Dan, alertando o leitor para a tremenda importância de Aram no declínio de Israel, embora seja complicado decidir se foi Jeú, o general israelita (como diz o Dtr), ou Hazael, o rei arameu (como diz a inscrição de Tel Dan), o responsável pela queda dos omríadas. De qualquer maneira, detalham como Israel teve seu território destruído e parcialmente ocupado por Aram – leia-se por Hazael – por um período significativo.

Entretanto, a chegada ao poder do assírio Adad-nirari III decretou o fim da hegemonia de Damasco na região e fez com que o fiel vassalo assírio que era Israel começasse a se expandir sob Joás e Jeroboão II. Testemunhos arqueológicos desse crescimento, durante o governo de Jeroboão II, no século VIII AEC, segundo os autores, não faltam.

Citam como exemplo os óstraca de Samaria que testemunham a grande produção e exportação de óleo de oliva e de vinho para a Assíria e Egito, o aumento da população que pode ter chegado a 350 mil habitantes – enquanto Judá teria cerca de 100 mil – as construções em Meguido, Hasor e Gezer, a criação de cavalos treinados para a guerra e exportados para a Assíria – possível interpretação para a origem dos controvertidos “estábulos” encontrados em Meguido – a riqueza de Samaria e, até mesmo, os desmandos da elite governante e dos comerciantes denunciados pelos profetas Amós e Oseias.

Só que este crescimento gerou rivalidade entre facções israelitas que, após a morte de Jeroboão, entraram em confronto, fazendo com que os golpes de Estado se sucedessem em ritmo frenético nos últimos 30 anos de Israel. Confronto este que se agravou com a ascensão ao trono do poderoso e ambicioso rei assírio Tiglat-Pileser III que acabará invadindo, destruindo e incorporando Aram e quase todo o Israel. Pouco mais tarde, Israel encontrou seu fim definitivo nas mãos dos assírios Salmanasar V e Sargão II.


 

A Terceira e Última Parte do livro – Judá e a Elaboração da História Bíblica – tem quatro capítulos e um epílogo, que tratam, respectivamente, de Judá desde Roboão até a reforma de Ezequias (p. 229-250), de Judá da invasão de Senaquerib à ascensão de Josias (p. 251-274), da reforma de Josias à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor (p. 275-295) e do exílio babilônico e da volta para a terra sob domínio persa (p. 296-313). Um epílogo de quatro páginas fala de Israel a partir de Alexandre Magno (p. 315-318).

No capítulo nono, A Transformação de Judá, que trata da região de Roboão até a reforma de Ezequias, os autores começam sintetizando o que vão desenvolver nas páginas seguintes, ou seja, a constatação arqueológica da pouca importância de Judá até o século VIII AEC. Mas, logo em seguida, definem que a lista de reis de Judá, como apresentada na OHDtr, a partir de Roboão é aceitável. Reis bons e ruins se sucedem, contudo o período de governo dos bons é superior ao dos ruins. Um ponto que é interessante: concluem que a “reforma” de Ezequias não foi a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. “A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos” (p. 234).

FINKELSTEIN e SILBERMAN, A Bíblia não tinha razãoObservando a arqueologia da região, Finkelstein e Silberman dizem que os monumentos atribuídos pelo Deuteronomista aos reis Roboão e Asa são bem posteriores, são do século VIII AEC para cá. Aliás, os sinais de um Estado desenvolvido aparecem em Judá apenas dois séculos após Salomão e é apenas no século VII AEC que burocracia e comércio controlado podem ser detectados. Até este ponto, dizendo mais o que Judá não era do que era, concluem: “À luz destas descobertas, está claro agora que o Judá da Idade do Ferro não viveu uma precoce era de ouro. Davi, seu filho Salomão e os reis seguintes da dinastia davídica governaram uma região rural, marginalizada e  isolada, sem nenhum sinal de grande riqueza ou administração centralizada. Esta região não sofreu um súbito declínio, perdendo uma condição de incomparável prosperidade. O que ela experimentou foi um longo e gradual desenvolvimento ao longo dos séculos. A Jerusalém de Davi e Salomão era apenas um entre outros centros religiosos na terra de Israel, e não o centro espiritual de todo o povo desde o começo” (p. 238).

Aqui, a necessária pergunta: mas o que era então Jerusalém e redondezas até o século VIII AEC?

Para responder, recorrem às cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, entre as quais estão seis do rei de Jerusalém Abdi-Hepa (ou Abdi-Heba). Aí aparece seu “reino”: um pequeno território de uns dois mil e trezentos quilômetros quadrados, com cerca de mil e quinhentos habitantes localizados em oito pequenos assentamentos e um número impreciso de nômades pastores. E não há razão para pensar Jerusalém e Judá na época de Davi de maneira muito diferente.

Explicam também os autores que o culto a Iahweh convivia com vários outros deuses e cultos na época dos reis de Judá. O que é descrito em 1Rs 14,22-24, como sendo práticas idolátricas típicas da época de Roboão, era um costume generalizado na região e na maioria dos governos judaítas. Conviviam com o culto a Iahweh (e a outros deuses?) no Templo de Jerusalém, rituais rurais, cultos domésticos, cultos da fertilidade…

Só que, para os autores, subitamente, com a interferência de Tiglat-Pileser III na região e a posterior destruição do reino do norte na época de Sargão II, Jerusalém perdeu seu isolamento típico e, ancorada na política assíria, cresceu de 10 a 12 para 150 acres e de cerca de mil para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII AEC, havia cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. Surge, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado.

Junto com esta extraordinária transformação social, começa uma intensa luta religiosa, caracterizada pelos autores como a defesa do monoteísmo javista por profetas e sacerdotes [levitas?] dissidentes vindos do norte, somados ao pessoal do Templo de Jerusalém. Na esteira de Morton Smith, os autores defendem que, neste momento, se estrutura o movimento “só-Iahweh” que se concretizará, de maneira mais definida no Deuteronômio e na Obra Histórica Deuteronomista. O programa político deste “movimento” é a unificação de todo o Israel, juntamente com a condenação de todo e qualquer culto não-javista, na tentativa de dar uma identidade exclusiva a Judá, diferenciando-o da região ao redor.

Gostaria de lembrar que este suposto movimento “só-Iahweh” é extremamente controvertido – aliás, seus argumentos nunca me convenceram – e que a questão da origem e prática do javismo e, mais ainda, do monoteísmo, continuam gerando acirrado debate e muita controvérsia entre os especialistas. Para um panorama das propostas, de seus autores e algumas centenas de obras, vale a pena a didática exposição de GNUSE, R. K., No Other Gods. Emergent Monotheism in Israel; Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997. Especialmente as p. 62-128. Para uma confusa e nada convincente exposição do “movimento”, pode se ler, em português, o artigo de Bernhard Lang, o maior defensor desta ideia: Só-Javé! Origem e forma do monoteísmo bíblico, em Concilium 197 (1985/1), p. 45-53.

Sobre o reforma de Ezequias, enfim, em apenas uma página no final do capítulo, ficam Finkelstein e Silberman em superficial questionamento, pois, apesar da insistência do Deuteronomista, do ponto de vista arqueológico tal reforma é muito difícil de ser detectada.

O capítulo décimo trata de Judá desde a invasão de Senaquerib até a ascensão de Josias ao trono. Após mostrar que a visão do Deuteronomista em 2 Reis é teologicamente otimista – apesar da invasão terrível do rei assírio, Iahweh salvou Jerusalém porque Ezequias era fiel – os autores, fundando-se mais em Crônicas e no testemunho da arqueologia do que em 2 Reis, descrevem os preparativos do rei judaíta para o enfrentamento: muralhas de Jerusalém reforçadas, abastecimento de água garantido com a construção do túnel de Siloé, defesas extremamente eficazes em Laquis, os selos “lmlk” (= pertencentes ao rei) encontrados em grandes jarros (que, de alguma maneira, faziam parte do preparação de Judá para o que viria)…

Contudo, Senaquerib acabou com Judá em 701 AEC, como mostram os relatos assírios e os testemunhos arqueológicos da devastação, encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Laquis encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive – hoje está no British Museum – e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade de Judá e ficava situada na Shefelá, protegendo a entrada de Judá.

Os autores trazem à cena também os profetas Isaías e Miqueias para mostrar, com seus oráculos, como a destruição de Judá foi terrível, muito distante do otimismo deuteronomista.

Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a “maldade” de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.

Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) – as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época – e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza.

Entretanto, o filho de Manassés, Amon, foi assassinado ao sucedê-lo, certamente por grupos prejudicados com o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas oito anos, é declarado rei de Judá.

O décimo-primeiro capítulo trata da história de Judá da reforma de Josias à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, rei da Babilônia. Após fazer uma avaliação da descrição deuteronomista de Josias e de sua reforma, onde Josias aparece como o ideal concentrado das figuras de Moisés, Josué, Davi e até mesmo de Salomão, os autores assumem a posição tradicional e conhecida de que o “Livro da Lei” é o Deuteronômio original, não descoberto no Templo, mas escrito pouco antes ou durante o governo de Josias.

Descrevem, em seguida, o renascimento do poder egípcio com Psamético I, o enfraquecimento da Assíria e a expansão de Judá. Neste ambiente o Deuteronomista construiu a saga épica da conquista de Canaã, projetando para o início de Israel o que só acontecia agora no século sétimo AEC.

Mas a arqueologia testemunha a reforma de Josias? Ora, o templo de Betel, possivelmente destruído por Josias, ainda não foi encontrado, as estatuetas da deusa da fertilidade Asherá foram achadas em grande quantidade nas residências… embora os sinetes da época não contenham mais figuras divinas astrais, como antes! Por outro lado, os sinais da expansão territorial de Judá sob Josias são visíveis, a população aumentou, fortalezas, como Laquis, foram restauradas. Talvez Josias tenha conseguido um território semelhante ao de Manassés, embora com outras características.

Mas Josias e o faraó Necao II se desentenderam. 2Rs 23,29 é lacônico, 2Cr 35,20-24 fala de um conflito militar – hipótese simpática a muitos historiadores, que a adotam – mas, seguindo a explicação da Nadav Naaman, os autores pensam que Necao II teria simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de Josias.

Sem muito novidade em relação ao que já se escreveu em muitas “Histórias de Israel”, os autores descrevem os últimos dias de Judá, terminando o capítulo com a arqueologia da destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, que mostra a ferocidade do fatídico cerco.

No décimo-segundo capítulo o livro trata do exílio e da volta para a terra. Neste ponto, pareceu-me que os autores utilizam as fontes bíblicas com pouco questionamento, especialmente Jeremias, Ezequiel, Esdras, Neemias, Ageu e Zacarias. Isto resulta na descrição já conhecida em obras anteriores do que teria sido o exílio, a volta e a reconstrução. Assumem a hipótese de Frank Moore Cross de duas versões da OHDtr, a primeira da época de Josias e a segunda uma revisão feita durante o exílio, redimensionando a anterior avaliação teológica face à novidade da destruição: a justiça de Josias apenas adiou a catástrofe que fatalmente atingiria Jerusalém, diz a revisão exílica, não a eliminou do horizonte, como pensava a primeira versão.

Denunciam, em seguida, o mito da “terra vazia” durante o exílio – apenas 1/4 dos judaítas teriam sido exilados -, calculam uma população de uns 30 mil habitantes para o território do Templo na época de Esdras/Neemias e explicam a política persa de repovoamento e controle da região através do domínio sacerdotal.

Finalmente, chamam a atenção para a atualidade de vários temas bíblicos que, neste momento, têm uma função real: o êxodo, as tradições sobre Abraão, o conflito de Jacó e Esaú (= Edom), os túmulos dos patriarcas… estas leituras, projetadas como originantes, foram, na verdade, originadas para criarem uma identidade judaica na época persa.

O epílogo sintetiza em míseras quatro páginas os acontecimentos a partir de Alexandre Magno, mas, especialmente, procura mostrar a função da narrativa bíblica, sua atualidade e seu valor.

No conjunto, um livro fascinante. Nos detalhes, muita coisa pode ser discutida, porque pouco fundamentadas quando ousadas, ou porque apenas repetem o texto bíblico, sem entrar na discussão sobre o uso das fontes. Muita credibilidade tem a arqueologia para os autores, um pouco menos as fontes extrabíblicas, alguma as fontes bíblicas, especialmente quando as lacunas não podem ser preenchidas por outro material. Procuram escapar do “construto erudito” denunciado por Philip R. Davies, mas ele permanece à espreita…

Pouca análise da ideologia das fontes extrabíblicas dos impérios da região? Com certeza, pois é claro que impérios não nos legam apenas informações objetivas, mas muita propaganda que possa legitimar o seu domínio sobre os povos mais fracos. Pouca ênfase no fato de que a arqueologia também é o resultado de uma interpretação? Razoavelmente evidente. Conseguem comprovar que os principais relatos bíblicos foram escritos mesmo a partir do século VII AEC? Talvez em parte…

Entretanto, é bom lembrar: esta é apenas uma obra de divulgação. Talvez, por isso, tenha que evitar a análise mais técnica e árida de fontes e a complexa discussão metodológica que permeia hoje a historiografia do Antigo Oriente Médio. Enfim, um livro que procura ser honesto, o que já é um grande mérito.


 

Para terminar, algumas informações interessantes. O livro de Finkelstein & Silberman teve enorme repercussão. Segundo pude apurar, ele está traduzido para as seguintes línguas:

. alemão: Keine Posaunen vor Jericho: Die archäologische Wahrheit über die Bibel. München: C. H. Beck, 2002.

. árabe: 2007.

. coreano: Songgyong: kogohak in’ga chonsol in’ga. Soul-si: Kkach`i, 2002.

. espanhol: La Biblia Desenterrada: Una nueva visión arqueológica del Antiguo Israel y de los origenes de sus textos sagrados. Madrid: Siglo XXI, 2003.

. francês: La Bible dévoilée: Les nouvelles révélations de l’archéologie. Montrouge: Bayard Editions, 2002; Paris: Gallimard, 2004.

. italiano: Le tracce di Mosè: La Bibbia tra storia e mito. Roma: Carocci, 2002.

. japonês: Tóquio, 2009.

. hebraico: Reshit Yisrael Arkheologyah Mikra Ve-Zikaron Histori. Tel Aviv: Universiṭat Tel Aviv, 2003.

. holandês: De Bijbel als mythe: opgravingen vertellen een ander verhaal. Den Haag: Synthese Uitgeverij, 2006.

. polonês

. português: A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003; A Bíblia desenterrada: A nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens dos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.

. tcheco: Objevování Bible: Svatá Písma Izraele ve světle moderní archeologie. Praha: Vyšehrad, 2007.

Uma apresentação da obra, feita pelos próprios autores, pode ser lida na revista The Bible and Interpretation. E um interessante documentário, baseado na obra, foi lançado, em DVD, também no Brasil.

Esta resenha foi publicada em 2002.

Resenhas


Metodologia de exegese bíblica

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DIAS DA SILVA, C. M. com a colaboração de especialistas, Metodologia de exegese bíblica. 3. ed. São Paulo: Paulinas, [2000] 2009, 526 p. – ISBN 8535606432

 

leitura: 17 min

No final do ano de 2000, Cássio Murilo Dias da Silva nos brindava com sua obra Metodologia de exegese bíblica. Um verdadeiro achado no campo da metodologia da exegese bíblica. Há muito se deseja, no Brasil, uma obra nestes moldes. Uma obra que ofereça sinteticamente os principais elementos na produção de uma exegese séria e comprometida com a cientificidade.

Cássio Murilo é Doutor em Ciências e Línguas Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. É professor de Bíblia na PUCRS.

Apresentado por ninguém menos que Milton Schwantes, o livro aspira ser um manual de exegese bíblica (p. 7). Apesar de o livro estar dividido em capítulos, em essência, ele possui duas grandes partes. Na primeira, de autoria de Cássio, este se ocupa em apresentar a metodologia da exegese bíblica, buscando, sinteticamente abordar os mais diversos problemas que surgem ao se defrontar com um texto bíblico e querer compreendê-lo no seu significado mais profundo. Ajuda o leitor a percorrer os mais diversos caminhos que levam à compreensão do texto bíblico. A segunda parte, se assim podemos chamar, que corresponde aos capítulos 10 e 11, é uma apresentação prática da exegese funcionando, sob alguns de seus mais importantes enfoques: desde uma leitura judaica da Escritura até a nossa moderna leitura socioantropológica. Isto se constitui em riqueza que contou com a colaboração de diversos especialistas da área bíblica: Vitório Maximino Cipriani, Domingos Zamagna, Sônia de Fátima Batagin, Silvana Suaiden e Airton José da Silva.

Cássio quer mostrar a necessidade que todos nós temos, conhecedores do texto bíblico ou iniciantes, de levar a sério o que fazemos com a leitura do texto bíblico. Não podemos mais, depois do conhecimento que se firmou do “mundo bíblico”, ficar alienados dos fatos e continuar a ler a Bíblia sem recolocá-la no seu contexto cultural, linguístico, etc. Nos alerta o autor: “A Sagrada Escritura é a configuração categorial do que foi a percepção da presença e revelação de Deus … se quisermos que a Bíblia fale aos homens, seja qual for a cultura, a língua e o tempo em que vivem, precisamos, cada vez mais, recolocar esta mesma Bíblia na cultura, na língua e no tempo em que surgiu” (p. 11). A obra quer ser uma provocação para que nos aproximemos do texto Sagrado com outros olhos, que não os que estamos acostumados – propõe uma nova maneira de ler a Bíblia.

O estilo da obra é a configuração da personalidade do autor. Às vezes irreverente, solta e sem preocupação se, vez ou outra, recorrer a um jargão Cássio Murilo Dias da Silva, Metodologia de exegese bíblicapopular para definir melhor a ideia que quer passar. Assim é a história do Zeca, personagem fictício (?) que gostava de uma “moda” e de rodas de viola. Imaginava saber tudo sobre música, quando é desafiado a frequentar uma escola de especialização em música, e se espanta com o que de novo poderia aprender, mas nem tudo é fácil e o Zeca descobre que é só com muita prática que se alcança uma técnica apurada. A história do Zeca é uma metáfora do leitor da Bíblia que topa o desafio de tentar desvendar os “mistérios” do texto bíblico com outros olhos. Todos nós temos um pouco do Zeca, curiosidade e medo do novo, mas, no final, vale a pena enfrentar o desafio.

Não podemos deixar passar sem comentário a riqueza em que se constitui o espaço reservado a exemplos de aplicação do enfoque do método exegético que está sendo apresentado. A cada capítulo nos são colocados exemplos que ilustram o conteúdo apresentado, no qual o leitor pode perceber a teoria funcionando na prática. O que facilita bastante aos iniciantes, sobretudo, é Cássio ter tomado um texto do evangelho de Marcos que o acompanhou durante toda a exposição do método: trata-se de Mc 4, 35-41. Este se constitui no texto mestre nos exemplos, mas outros também são utilizados.

Ler é mais importante que estudar: com esta frase do cartunista Ziraldo nosso autor titula o primeiro capítulo de sua obra. Precisamos aprender a ler a Sagrada Escritura, como precisamos saber ler qualquer outro texto. Devemos nos sentir livres diante do texto para que ele nos conduza e nos forneça as informações que almeja transmitir. Para tanto necessitamos conhecer os elementos que se articulam na constituição de um texto. Assim, somos convidados a decodificar, decifrar o que o texto mantém nas entrelinhas, que são as suas intenções, poderíamos dizer, o subconsciente do texto. Mas para chegar lá é preciso esquadrinhar o texto, perguntando-se pelo autor, pelo destinatário original, a intenção do autor, o conteúdo da obra, como ela está codificada, quando foi codificada e onde, quem é o destinatário atual, quem lê o texto hoje, como decifrar a codificação do texto, e qual a intenção do leitor hodierno ao lê-lo. São questões que devem ser respondidas se quisermos fazer uma exegese séria do texto bíblico.

Dentre os diversos níveis de leitura que são possíveis em um texto bíblico, Orante, Litúrgica, Catequética, Teológica e Exegética, a obra que analisamos tem por objetivo introduzir este último, sem desprezar os demais.

O segundo capítulo trata da problemática do texto “original”: Entrando em contato com o texto “original” é o título. “Não podemos fazer trabalho sério em exegese ou em teologia bíblica se não partirmos do texto ‘original’” (p. 38). Sabemos da dificuldade que temos de ter acesso aos textos originais da Bíblia. Não contamos com mais nenhum texto original, o que temos são compilações, que sofreram reelaborações e mais reelaborações. Daí a importância de termos em mãos uma Edição Crítica da Bíblia. Várias são as possibilidades de textos críticos da Bíblia, para uma exegese séria eles são indispensáveis. Entre elas encontramos a Bíblia Hebraica Stuttgartensia, a United Bible Societies’ Greek New Testament e o Novum Testamentum Graece, entre outras.

Este capítulo visa fazer uma introdução dos pressupostos de uma leitura no nível exegético da Bíblia. Para tanto faz uma apresentação da Crítica Textual, considerando as diversas variantes de um texto. Considera tanto a crítica externa, como a crítica interna que deve ser feita ao texto, nomeando as várias possibilidades de mudanças, sejam inconscientes ou conscientes, nas quais surgem as discordâncias entre os vários manuscritos.

O terceiro capítulo trata da Delimitação do texto. “Delimitar um texto, portanto, significa estabelecer os limites para cima e para baixo, ou seja, onde ele começa e onde ele termina.” (p. 68). Isto parece óbvio, mas não é. Da delimitação do texto depende todo esforço para sua elucidação e compreensão. Como nossa obra visa dar um método de exegese, não poderia deixar de apresentar os critérios para a delimitação do texto, tudo devidamente exemplificado.

Sincronia e Diacronia, são conceitos trabalhados no quarto capítulo da obra. Duas categorias básicas da semiótica é o título. A semiótica não se ocupa de buscar o significado e o sentido do texto, ela se ocupa de estudar os signos da linguagem e sua articulação. Sincronia e Diacronia são categorias fundamentais dessa ciência. “Podemos (1) estudar o texto em sua condição atual, ou (2) procurar explicar como se formou a redação que chegou até nós. No primeiro caso, dá-se uma leitura chamada sincrônica, no segundo, a leitura é do tipo diacrônica” (p. 80-81). Os quatros capítulos seguintes tratam, especificamente, de cada um destes tipos de leitura.

Leituras sob o aspecto sincrônico, é a ocupação do capítulo quinto. O primeiro passo a ser analisado é a segmentação do texto, que inclui a anterior, já vista, delimitação do texto, que deve seguir um único critério do início ao fim do trabalho. Nunca se deve acomodar o texto às necessidades de solução de problemas ou conflitos inerentes à obra.

O segundo passo é a estruturação do texto e a análise da estrutura literária. Afinal, são inúmeras as possibilidades de leitura para um mesmo texto, o que permite definir mais de uma estrutura literária. O texto de Mc 4, 35-41 é extensamente esquadrinhado, mostrando as várias possibilidades de estrutura que podem ser percebidas. Depois deste primeiro trabalho de análise da estrutura, o passo seguinte é a análise da macroestrutura. O texto, delimitado, participa e interage com outros blocos ou sequências, isto exige uma abertura do leitor para tentar entender o conjunto da obra que envolve o texto em questão.

Segue-se a análise linguística e lexicográfica, que se ocupa em analisar o vocabulário do autor e as características gramaticais de determinado texto e a “intenção” do autor ao utilizar-se de tais recursos. Neste trabalho analítico, de bom grado é ter em mãos gramáticas gerais, dicionários, comentários especializados, análises filológicas, etc. Elas serão de grande utilidade.

O último passo, e não menos importante, na leitura sincrônica é a análise estilística do texto. “Na análise estilística, nossa preocupação se volta para a maneira pela qual ele (o autor) procura dar maior expressividade, maior colorido, maior vivacidade a seu texto” (p. 155).

As Leituras sob o aspecto diacrônico estão divididas em três capítulos. No primeiro,capítulo sexto do livro, trata da Crítica literária, Crítica dos gêneros literários e Sitz im Leben, enquanto o segundo cuida da Crítica da Tradição e o terceiro da Crítica da Redação.

Lembramos que este tipo de leitura se ocupa do “…momento de investigarmos as etapas pelas quais passou o texto, desde sua primeira elaboração até a versão que temos em nossas edições críticas” (p. 174). Neste trabalho a crítica literária procura refazer o processo de formação literária, por meio da reconstrução das etapas anteriores à redação final. Para que isto seja realizado há critérios que devem ser respeitados e que proporcionam um resultado coerente e satisfatório. Já a crítica dos gêneros literários, compara os textos formalmente semelhantes, sem se ocupar do conteúdos dos textos, buscando determinar o Gênero Literário a que pertence tais textos. A Bíblia possui uma série de gêneros literários próprios, embora não específicos dela, que os exegetas foram descobrindo ao longo das análises. Entre eles: Novela, Narrativa histórica, Saga, Lenda, Relatos de Milagre, Relatos de Vocação, Parábolas, para citar alguns entre outros.

Nesta leitura é importante observar, ainda, o Sitz im Leben, a situação ou contexto vital em que o texto foi produzido. Neste caso, “por Sitz im Leben, portanto, não se entende o ambiente histórico, político, social ou econômico no qual o texto foi composto, e sim uma situação padrão ou regular que motiva o surgimento dos Gêneros Literários” (p. 230). Um exemplo, bastante comum na Bíblia, é o ambiente da liturgia e do culto, que oferece estrutura e contexto para o desenvolvimento de Gênero Literário específico.

O capítulo sétimo é o segundo que cuida das Leituras sob o aspecto diacrônico. Especificamente é tratada neste capítulo a Crítica da Tradição. A análise crítica da Tradição se assenta sobre os critérios ou material tradicional: os “Topoi”. “Os teóricos da Literatura têm utilizado o termo “tópos” para designar um conceito geral que serve para articular um argumento ou uma história” (p. 243).

A Crítica da Redação é o terceiro aspecto analisado das Leituras sob o aspecto diacrônico, que corresponde ao oitavo capítulo da obra. A Crítica da Redação tem por objetivo estar “…defendendo que os redatores bíblicos são verdadeiros autores, que selecionaram, modificaram e organizaram o material proveniente da tradição, acrescentaram (criaram) novos textos e estabeleceram uma estrutura geral da obra” (p. 256). De um modo geral, os hagiógrafos, respeitaram bastante o material herdado da tradição, mantendo-o sem grandes modificações. Deste modo podemos afirmar que no texto que temos em mãos estão presentes verdadeiros textos legados da tradição. O trabalho da Crítica da Redação é fazer a análise destes textos. Para realizar este trabalho existe uma série de critérios que o crítico deve seguir, que os auxiliarão a evidenciar as alterações operadas pelos redatores durante o período de fixação do texto. Nosso autor lista uma série destes critérios.

Ao final do estudo das modificações introduzidas pelo redator final no texto, é hora de perguntar sobre a colocação literária da perícope no conjunto da obra. É a busca do Sitz in der Literatur, da compreensão do conjunto do livro, tanto no seu contexto próximo, como no seu contexto remoto.

Cássio Murilo Dias da SilvaAo terminar seu estudo, Cássio propõe no capítulo nono um olhar sobre as Noções de poética hebraica bíblica.Tanto quanto nas línguas modernas, a essência da poesia na Bíblia encontra-se na densidade ou no uso intenso de conotações, de comparações e de metáforas, mais do que em características formais (rima, métrica, etc.) (…) Resta em aberto, porém, a questão da forma, isto é, a da verbalização dos sentimentos do poeta” (p. 300); isto é o que este estudo da poética hebraica pretende abordar, apresentando os vários elementos que estão presentes no poesia bíblica.

Os dois últimos capítulos do livro em questão tratam de colocar em prática os princípios do método de exegese bíblica sob outras visões. O objetivo é oferecer “uma visão panorâmica de outros métodos de interpretação bíblica” (p. 318). São colaborações de especialistas na área bíblica que oferecem suas contribuições para o maior brilho desta obra. Antes de mais nada, o autor chama-nos a atenção para a problemática de uma leitura fundamentalista da Bíblia, tanto no seu aspecto ingênuo como no seu aspecto intencional, que procura mascarar uma “trapaça metodológica” usada pelo exegeta para defender seu ponto de vista.

Vitório Maximino Cipriani nos oferece uma visão global da leitura judaica da Bíblia. Apresenta uma leitura feita na liturgia, nos seus vários momentos, passa pelo método targúmico, que visa tornar popular o texto sagrado. É um trabalho que nasce da necessidade da comunidade, que não compreendia mais os textos em hebraico. A última leitura apresentada é a Leitura – busca (Midrash), que era o preferido pela literatura rabínica antiga. “O Midrash, portanto, é a exegese ou a ‘hermenêutica’ do judaísmo antigo” (p. 334).

Domingos Zamagna contribui com a Leitura patrística da Sagrada Escritura. É na patrística que surge, ou nasce, a hermenêutica cristã. Duas grandes linhas hermenêuticas se desenvolveram na época patrística: a do alegorismo e o literalismo. Às duas grandes correntes estavam ligadas as escolas alexandrina e antioquena, respectivamente. Neste mesmo período alguns autores procuraram o equilíbrio entre as duas posições: entre eles Cirilo de Alexandria e Jerônimo.

Sônia Fátima Batagin nos traz a experiência da Leitura popular da Bíblia. “Faz-se, portanto, importante uma aproximação ao texto analisado de forma mais existencial e mediada, fazendo-o falar, na medida em que recupera sua função de luz para a vida da comunidade” (p. 344). Eis a síntese do objetivo da leitura popular da Bíblia. O povo, a comunidade espelha sua experiência de vida na experiência do “povo da Bíblia” e desta acareação tira forças para sua caminhada e luta. A leitura popular é sempre uma leitura afetiva, carregada de sentimentos e do calor da vida. A analogia é o principal recurso desta leitura.

Silvana Suaiden nos provoca com a Leitura feminista. Mostra sua articulação com os diversos movimentos de libertação, na América Latina e pelo mundo afora. “A principal perspectiva da hermenêutica feminista está na ‘questão de gênero’ ou, como alguns exegetas afirmam, no ‘método de gênero” (p. 351). O que a leitura feminista postula é superar o androcentrismo, presente na sociedade, na religião e, também, na Bíblia.

A Leitura socioantropológica ganhou capítulo à parte. Airton José da Silva é quem contribui na análise desta leitura. Essa exclusividade se deve ao fato, de hoje, este tipo de abordagem estar sendo um dos mais promissores no campo da exegese bíblica. “…essas abordagens examinam não só a literatura e a realidade social de Israel, mas também as forças sociais subjacentes à produção da literatura bíblica, onde se distingue a sociedade que está por trás do texto da sociedade que aparece dentro do texto” (p. 356). Os estudos bíblicos avançam com a aplicação das Ciências Sociais. Eles têm conseguido responder a questões que até então a clássica teologia bíblica não tinha abordado de modo adequado.

Este tipo de leitura derruba muitos de nossos pré-juízos e projeções no estudo bíblico. Nele temos uma visão mais clara e precisa do ambiente no qual surgem e são elaborados os textos sagrados.

O autor faz uma longa abordagem histórica de como se desenvolveu e foi se caracterizando o discurso sociológico, desde a época da escolástica, passando pelos modernos, os clássicos Comte, Durkheim, Weber e Marx, até chegar às abordagens contemporâneas de um Malinowski e Radcliffe-Brown.

A segunda parte de seu trabalho é dedicada à relação entre Bíblia e leitura socioantropológica. O pioneiro da aplicação deste método na leitura bíblica foi W. Robertson Smith, em 1885. Grandes nomes da exegese bíblica figuram na lista deste campo: Albrecht Alt, Martin Noth, Mendenhall, Gottwald e Kippenberg. Em termos de análise do Novo Testamento se destaca Gerd Theissen, que propôs o movimento de Jesus como movimento de resposta a situações limites de existência. Ultimamente a escola americana tem prevalecido em termos de produção bibliográfica sobre estudos sociológicos no Novo Testamento. Entre os últimos encontramos Ched Myers, J. Andrew Overman, Eduard Arens, entre outros.

No último bloco de seu estudo, o autor, elenca algumas dificuldades da leitura socioantropológica. Um dos maiores problemas enfrentados pelos exegetas desta área é a crítica daqueles que afirmam ser esta leitura reducionista, ao reduzir a religião a apenas mais um fator entre tantos que caracterizam a identidade judaica. Outro problema enfrentado pelos biblistas com este tipo de leitura é a diversidade de tendências e a grande extensão do campo das ciências sociais. Do ponto de vista das instituições eclesiásticas há um alerta para os riscos que este tipo de abordagem pode apresentar, sobretudo na transposição de dados colhidos em análise com sociedades vivas para conjunturas que já não existem mais. Alerta também para o enfoque dado ao aspecto econômico que o método sociológico traz.

Entre os exegetas a situação não é diferente. Os teóricos do método divergem demais em suas opções. Sobretudo, depois da Segunda Guerra ganhou força a corrente conservadora na sociologia. Este tipo de postura chegou ao Brasil em um momento delicado, de transição de nossa sociedade do rural para o urbano. Mas lembra o autor, citando Carlos B. Martins: “Ao lado de uma sociologia que estendeu suas mãos ao poder, não se pode deixar de mencionar as importantes contribuições proporcionadas por uma sociologia orientada por uma perspectiva crítica [como a da Escola de Frankfurt e a de seus seguidores]” (p. 440).

Para quem gosta dos estudos no campo bíblico, está aqui uma boa oportunidade para começar pelo caminho certo. Metodologia de exegese bíblica é uma obra basilar a qualquer um que queira se aventurar e se deliciar com as ricas páginas do texto sagrado. Cássio oferece uma oportunidade a nós, brasileiros, apaixonados pelo estudo bíblico, de termos em mãos um método de introdução à exegese bíblica em linguagem técnica, mas ao mesmo tempo compreensível e acessível aos que se sentirem provocados a alargar os horizontes de seu conhecimento bíblico. Ler esta obra é ser provocado a re-ler a Bíblia.

Esta resenha foi escrita por Carlos Alberto Rodrigues Jorge, do 4º ano de Teologia na FTCR da PUC-Campinas em 2001.

Resenhas


Atos dos Apóstolos

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RICHARD, P. O movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1999, 223 p.

 

leitura: 9 min

O livro de Pablo Richard, El Movimiento de Jesus antes de la Iglesia foi publicado em espanhol em 1998, na Costa Rica, e traduzido para o português por José Afonso Beraldin para as Edições Paulinas, que o lançou na Coleção “Estudos Bíblicos”. Leia a avaliação do livro feita por Dom Emanuel Messias de Oliveira, Bispo de Caratinga, MG, Mestre em Ciências e Línguas Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma.

 

O autor

Pablo Richard, nasceu no Chile em 1939. É sacerdote diocesano (Arquidiocese de San José – Costa Rica). Licenciado em Teologia pela Universidade Católica do Chile e Mestre em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, estudou Bíblia e Arqueologia na Escola Bíblica de Jerusalém. É Doutor em Sociologia da Religião pela Sorbonne, Paris e Doutor Honoris Causa em Teologia pela Faculdade Livre de Teologia Protestante de Paris.

Foi diretor do DEI (Departamento Ecumênico de Investigações), é Catedrático de Sagrada Escritura na Escola Ecumênica de Ciências da Religião na Universidade Nacional e na Universidade Bíblica Latino-americana, na Costa Rica.

 

O livro

Pablo Richard, O movimento de JesusO livro, em seus cinco capítulos, pretende ser uma interpretação libertadora dos Atos, como diz o subtítulo. Os Atos cobrem o período apostólico (30 a 70), enquanto Lucas o escreve no período sub-apostólico (70-135), período em que diversos modelos de Igreja são institucionalizados. O livro dos Atos quer reconstruir o movimento de Jesus depois de sua ressurreição e antes da institucionalização das Igrejas, ocorrida depois do ano 70.

“Resgatar o livro dos Atos quer dizer justamente resgatar este período histórico de quarenta anos entre a ressurreição de Jesus e a organização das Igrejas; é reconstruir o movimento de Jesus depois da ressurreição e antes da Igreja”, diz Pablo Richard na p. 4.

Escrevendo o livro por volta dos anos 80-90, Lucas quer dar a sua contribuição, mostrando com que espírito a Igreja deve ser institucionalizada. Ou seja, a Igreja em época nenhuma deve perder as características fundamentais do movimento de Jesus, que são: um movimento animado pelo Espírito Santo, um movimento missionário e cuja estrutura básica é representada pelas pequenas comunidades domésticas.

Estas três características são as chaves hermenêuticas com as quais Pablo Richard pretende interpretar o livro dos Atos. Isto significa que a novidade do autor é interpretar o livro dos Atos na mesma perspectiva de Lucas e com igual objetivo: apresentar uma perspectiva, uma metodologia, ou um espírito para repensar a Igreja de hoje, resgatando estas três características fundamentais do movimento de Jesus.

 

O conteúdo do livro

O livro é de uma leitura super-agradável, pois o autor soube magistralmente combinar uma exegese científica com uma visão pastoral libertadora. Muitas abordagens nos chamam a atenção, algumas pela sua novidade, a maioria pelo clarão novo com o qual o autor no-las apresenta. Além das chaves hermenêuticas já citadas, que vão dando um sabor todo especial ao livro, eu ainda lembraria o resgate da mulher no movimento de Jesus, que o autor também apresenta como chave hermenêutica.

Vamos apresentar apenas dois exemplos. Logo no início, distinguindo At 1,6ss dos 5 primeiros versículos como texto restritivo, onde aparecem somente os apóstolos (v. 2), o autor resgata a presença das mulheres na aparição de Jesus, no envio e na recepção do Espírito. Na verdade, 1,6-15 apresenta um grupo grande de umas cento e vinte pessoas, entre as quais algumas mulheres. O segundo exemplo está em At 6,1ss, onde o conflito apresentado torna-se público graças ao grito de protesto levantado pelas viúvas dos Helenistas.

A distinção do autor em At 6,1-6 em sentido aparente, o fato de deixar de lado as viúvas, e sentido profundo, a discriminação dos Helenistas por parte dos Hebreus, é bastante esclarecedora. Aí se percebe que a solução do problema da discriminação não está no aumento do número dos servidores das mesas e sim na legitimação e organização do grupo dos Helenistas.

O autor deixa bem claro a distinção e o desempenho dos dois grupos:

O grupo dos Helenistas: judeus cristãos de língua e cultura grega, residentes em Jerusalém, grupo profético, crítico em relação à Lei e ao Templo. Depois da morte de Estêvão, eles se dispersaram, mas os apóstolos ficam (8,1). Nesta dispersão eles cumprem a ordem de Jesus em 1,8 (o que os apóstolos não fizeram). Eles anunciam a palavra por toda à parte: Filipe, aos samaritanos e ao eunuco etíope (8,5-40); outros do mesmo grupo, aos gregos (11,19-21).

O grupo dos Hebreus é formado por judeus cristãos de língua aramaica e de cultura tradicional hebraica. São fiéis observantes da Lei e do Templo. A ele pertencem sacerdotes (6,7) e fariseus convertidos (15,5). Os doze apóstolos são responsáveis por este grupo, mais tarde liderado por Tiago, o irmão do Senhor.

A apresentação de At 6,1ss até 15,35, como seção dos Helenistas, com os relatos intercalados dos atos de Paulo (capítulo 9) e os de Pedro (9,3-11,18), tem sabor de novidade. Os atos dos Helenistas compreendem inclusive o Concílio de Jerusalém, pois este acontece em função da Igreja de Antioquia, fundada pelos Helenistas.

Talvez um outro ponto de destaque com real sabor de novidade, para quem não leu ainda Rius-Camps e Juan Mateos, é a presença do “nós” como presença do Espírito, a partir de 16,10. Lucas vem fazendo sua narração tranquilamente na terceira pessoa. De repente, ele passa para a primeira pessoa do plural. É o aparecimento do “nós”.

Sobre este “nós” já se escreveu muito. “A explicação mais corrente, diz o autor na página 132, é que Lucas utilizou, nesse caso, uma fonte; ou então que o próprio Lucas se tenha unido a Paulo no porto de Trôade, seguindo depois juntamente com ele. Outra explicação é que, agora, (em 16,6-10) depois da conversão de Paulo (ao se submeter ao Espírito por duas vezes), Lucas identifica-se com Paulo e o acompanha (física ou literariamente) em sua nova missão. O ‘nós’ representaria, dessa forma, a comunidade do Espírito. Cada vez que Paulo segue a estratégia do Espírito, o ‘nós’ reaparece no relato”. Quando não segue, o “nós” desaparece.

Na realidade o “nós” desaparece várias vezes, pois a estratégia do Espírito é que Paulo se dirija aos pagãos e não aos judeus, mas em toda cidade que Paulo entra, primeiro ele vai à sinagoga para tentar mais uma vez converter os judeus, e aí o Espírito fica de fora.

Quando Paulo enfrenta o Espírito em uma jovem escrava em 16,16-18, o “nós” desaparece, pois o “nós” representa justamente a comunidade do Espírito. E só aparece de novo em 20,5 e vai continuar até 21,18.

Na página 188 o autor, na “Reflexão Pastoral”, esclarece que “Paulo, em sua viagem a Jerusalém, vai lutando com o Espírito Santo. A vontade do Espírito é que ele não vá a Jerusalém, mas que siga diretamente para Roma, a fim de continuar, a partir daquela cidade, a missão até os confins da terra.” Depois de 21,18, quando Paulo se submete à comunidade judeu-cristã de Jerusalém, o grupo “nós” desaparece novamente para reaparecer em 27,1 até 28,16. Aqui, “no v. 16, aparece pela última vez o “nós”, que representa, como dissemos, a comunidade do Espírito. No v. 17, os líderes judeus entram nesta casa e, no v.25a, saem dela. Desse diálogo, o Espírito não participa; por isso é que o “nós” não aparece. O Espírito retorna no v. 25b, quando Paulo finalmente dá razão ao Espírito e se converte à sua estratégia missionária” (p. 207).

No final da sua obra, à página 211, o autor vai nos dizer que “o que Lucas nos narra, na realidade, é o triunfo da missão, o triunfo da Palavra de Deus, o triunfo do Espírito Santo (o grifo é nosso) de Jerusalém até Roma, qual ponto de partida para a missão até os confins da Terra (1,8). O que Lucas nos narra, acima de tudo, dentro desta história da missão, é a conversão ao Espírito dos personagens chave da missão: Pedro, Estêvão, Filipe, Barnabé, Marcos e, por último, Paulo. Quando esses personagens se convertem ao Espírito, já não se fala mais deles em Atos.”

O último ponto que gostaríamos de observar é o que chamaríamos de a grande novidade do livro. Trata-se dos aportes pastorais chamados “Reflexão Pastoral”. Neles o autor retoma o núcleo dos capítulos tratados, abordando-os do ponto de vista pastoral e atualizando-os em forma de perguntas muito pertinentes para a nossa caminhada de Igreja.

Sirva-nos de exemplo o item 1 da “Reflexão Pastoral”, a propósito dos dois capítulos iniciais dos Atos. Está na página 49: “No texto dos Atos,Pablo Richard aparece a tensão entre a tendência institucionalizada (a reconstituição dos doze apóstolos para dar identidade e continuidade ao movimento de Jesus) e a ‘violência’ do Espírito (furacão e fogo), que apresenta o movimento como um movimento missionário dirigido a todas as nações. Como vivemos essa tensão na atualidade? A institucionalização normalmente é restritiva (vejam-se as condições apresentadas por Pedro para tornar-se apóstolo); o Espírito, pelo contrário, é universal (todas as nações, toda carne: filhos/filhas, jovens/anciãos, escravos/escravas; cf. também o v. 39: para vocês e para os que estão distantes). Como vivemos hoje o universalismo do Espírito?”

Aí esta o livro do Pablo Richard. Acho que o Espírito acompanhou o autor na clareza de exposição, na profundidade da abordagem aliada à simplicidade e capacidade de segurar o leitor. Não me refiro ao leitor especializado, mas ao leitor leigo.

O livro é realmente fascinante e acessível, e chegou em boa hora, quando a Igreja do Brasil se debruça sobre os Atos dos Apóstolos diante do Projeto SINM (Ser Igreja no Novo Milênio).

Esta resenha foi publicada em 2001.

Resenhas


O exílio como história e ideologia

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GRABBE, Lester L. (ed.) Leading Captivity Captive: ‘The Exile’ as History and Ideology. London: Bloomsbury T & T Clark, 1998, 161 p. – ISBN 9781850759072

 

leitura: 20 min

Lester L. Grabbe é Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Antigo na Universidade de Hull, Reino Unido. Este livro, Conduzindo um cativo ao cativeiro: ‘o exílio’ como história e ideologia foi publicado em 1998, como resultado do 20 Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, realizado em Lausanne, Suíça, de 27 a 30 de julho de 1997, do qual participaram cerca de metade dos 21 pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades que fazem parte do grupo.

Para a constituição e história do Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, peço ao leitor que confira a resenha de GRABBE, L. L. (ed.), Can a ‘History of Israel’ Be Written? London: T & T Clark, 2005.

O livro tem 9 capítulos, uma introdução feita por Lester Grabbe e, no final, um índice de citações bíblicas e de autores antigos e um índice dos autores modernos mencionados no livro. Não há uma bibliografia final, mas sim numerosas notas de rodapé. O assunto está dividido em três partes: cinco artigos (de Rainer Albertz, Bob Becking, Robert P. Carroll, Lester L. Grabbe e Thomas L. Thompson), três réplicas (de Hans M. Barstad, Philip R. Davies e Knud Jeppesen) e as conclusões do debate, elaboradas por Lester Grabbe.

 

Por que debater ‘o exílio’?

Na Introdução, p. 11-19, Lester Grabbe explica: porque o exílio é um forte símbolo na Bíblia e na pesquisa veterotestamentária. Quando história de Israel e literatura bíblica são discutidas, as coisas costumam ser classificadas em pré-exílicas e pós-exílicas. O conceito de culpa-exílio (castigo)-restauração teve grande impacto tanto no Antigo Testamento quanto na discussão teológica sobre o Antigo Testamento. Sem dúvida, ‘o exílio’ é um divisor de águas nas discussões sobre o Antigo Testamento, tendo como rivais apenas os esquemas de pré-monárquico/monárquico ou preestabelecimento/estabelecimento na terra.

Recentemente, dúvidas sobre o exílio foram levantadas. Estamos lidando com um evento histórico ou não? Os judaítas foram de fato para a GRABBE, L. L. (ed.) Leading Captivity CaptiveBabilônia no século VI AEC e voltaram (seus descendentes) para reconstruir o Templo e o país? Ou não estaríamos nós lidando com um conceito teológico e literário que serviu muito bem às necessidades dos judeus oprimidos, dos líderes religiosos, pregadores, teólogos e escritores, mas que teria sido totalmente inventado? Estas são algumas das perguntas que motivaram a escolha deste tema para o 20 Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, cujas intervenções passo agora a comentar.

 

R. Albertz, A época do exílio como questão crítica para uma reconstrução histórica sem textos bíblicos: as inscrições reais neobabilônicas como ‘fontes primárias’

Rainer Albertz, Professor de Antigo Testamento na Westfälische Wilhelms-Universität de Münster, examina, neste seu artigo escrito em alemão, nas p. 22-39, inscrições reais neobabilônicas do século VI AEC – portanto contemporâneas do exílio – explicando como estas fontes têm seu próprio viés (Tendenz), à semelhança das fontes bíblicas.

O que pretende Rainer Albertz? Mostrar que fontes consideradas ‘primárias’ pelos pesquisadores bíblicos não são assim tão isentas quantoRainer Albertz acreditam, como mostra o “mito de fundação” (Gründungsmythos) da Babilônia em uma estela da época de Nabônides, que reinterpreta texto anterior (ANET, 308-311). E também que não se pode descartar uma fonte bíblica, como o Deuteronomista ou o Dêutero-Isaías, simplesmente porque exibe uma tendência teológica, do mesmo modo como não são descartadas as inscrições de Nabônides que, apesar de sua forte carga ideológica, descrevem eventos históricos.

Mas R. Albertz reconhece a enorme dificuldade que existe quando se tenta reconstruir historicamente o exílio judaíta: “Die Exilzeit stellt in der biblischen Geschichtesdarstellung ein finsteres Loch dar” (“A época do exílio representa um buraco negro na narrativa histórica bíblica”), admite o autor, usando imagem cosmológica, na primeira frase de seu artigo, na p. 22.

 

B. Becking, A reedição do exílio por Esdras

Bob Becking, Professor de Estudos do Antigo Testamento na Universidade de Utrecht, Países Baixos, nas p. 40-61, vai falar de reedição do exílio por Esdras a partir da hermenêutica da história de Collingwood, segundo o qual, diante de um passado inacessível, o que o historiador faz é reeditar o passado em sua mente, o mais das vezes na forma de uma narrativa. Narrativa que não é a mesma coisa que ficção: narrativa é uma ideia metasintática através da qual os textos podem ser classificados, enquanto ficção tem a ver com a distância em que o texto se coloca em relação com a realidade.

Bob Becking, ao trabalhar a questão histórica do exílio, vê aí vários problemas: o ano em que o exílio babilônico começa não é certo (587 ou 586Bob Becking AEC?), a data do final do exílio é problemática, não é claro se houve continuidade étnica entre os exilados e os que voltaram e, finalmente, não está claro o que aconteceu em Judá e Jerusalém na época em questão (cf. p. 42-46).

Por outro lado, o livro de Esdras é problemático quando se tenta classificar a sua narrativa, levando Becking à suposição de que o livro de Esdras não deve ser visto como uma fonte primária sobre a volta ou uma evidência desta volta, mas como uma narração competindo com outras histórias sobre o mesmo período. Além do que, mantém-se aberta a discussão sobre a pertença de Esdras à Obra do Cronista e sua ligação com o livro de Neemias, duas relações que Becking exclui, preferindo falar do livro como uma composição autônoma (cf. p. 47-55).

Bob Becking observa que o livro de Esdras, ao reeditar o exílio, o faz em três narrativas: Esd 1-2: o retorno dos exilados judeus; Esd 3-6: a abolição da não celebração da Páscoa e Esd 7-10 a estória das ações de Esdras em Jerusalém. As duas primeiras são apresentadas como ‘volta do exílio’, mas não a terceira, além de outras diferenças, e não está claro para o autor o que fazer com elas. Estas diferenças “parecem abrir a possibilidade de que as diferentes ondas vindas da Mesopotâmia tinham raízes étnicas ou religiosas diferentes, algumas no Judá pré-exílico e algumas, talvez, mesmo na Samaria preexílica”, sugere o autor na p. 60.

Bob Becking termina seu artigo com a questão: “Pode o livro de Esdras ser usado para a reconstrução da história da assim chamada época do exílio?” E conclui: “Minha resposta deveria ser a de que o livro de Esdras pode ser usado para uma reconstrução ou para várias reconstruções daquele período. Se eu fosse escrever esta história, eu a faria em uma forma narrativa dizendo ao leitor que minha estória é apenas uma tentativa, que é frequentemente hipotética e que muitos vazios são preenchidos pela imaginação. Entretanto, o livro de Esdras, ou melhor, alguns elementos de suas narrativas, teriam uma função em minha reedição do exílio” (p. 61).

 

R. P. Carroll, Exílio! Que exílio? Deportação e os discursos de diáspora

Robert P. Carroll, Professor de Antigo Testamento na Universidade de Glasgow, Reino Unido, apresenta um polêmico panfleto, nas p. 62-79, contra o uso da categoria ‘exílio’, fruto de uma ideologia centrada em Jerusalém, que deveria ser abandonada em favor da categoria ‘diáspora’, muito mais representativa da realidade do judaísmo ao longo dos séculos. Neste sentido, ele diz que escreveria em letras garrafais as palavras ainda não suficientemente ouvidas de Charles Cutler Torrey, que, no início do século XX (Ezra Studies, Chicago, University of Chicago Press, 1910, p. 289), já dizia: “Os termos ‘exílico’, ‘pré-exílico’ e ‘pós-exílico’ deveriam ser banidos para sempre, porque eles nada mais são que descaminhos e não correspondem a nada do que é real na vida e na literatura hebraicas” (citado por Carroll na p. 77).

Para Carroll o exílio é um símbolo literário bíblico e, embora possa ser tratado como evento no mundo histórico-social, ele deve ser abordado mesmo é como um elemento fundamental da poética cultural dos discursos bíblicos. O exílio pode até ter referentes históricos, mas é como metáfora que ele mais contribui para a narrativa bíblica.

Para Robert Carroll exílio e êxodo são duas faces do mesmo mito que caracteriza o subtexto das narrativas e a retórica da Bíblia Hebraica. Entre estes dois ‘topoi’ (e sua noção mediadora da terra vazia) é desenhada e construída a estória essencial da Bíblia Hebraica. Eles refletem uma profunda estrutura narratológica e uma preocupação constante com jornadas para dentro e para fora de territórios, diz na p. 63.

Foi o Cronista – e a literatura associada a ele (Esdras-Neemias) – que tratou o exílio como um prolongado sabbath da terra. “Esta sabatização da deportação transformou-a efetivamente em um exílio e produziu o correspondente mito da terra vazia, através do qual a pátria palestina esvaziada espera a volta dos deportados”, diz Robert Carroll na p. 65. Isto faz desta versão de Jerusalém uma tentativa de silenciar as outras deportações, os exílios permanentes, os muitos exílios sem volta.

É por isso que, frente a tais representações, o autor questiona no título: “Exílio! Que Exílio?” E daí surgem muitas questões. “Questões sem fim. Questões sem respostas definitivas, também porque elas são muito difíceis de serem respondidas com a pouca informação disponível no texto bíblico. Mas estas são as verdadeiras questões que precisam ser levantadas por este Seminário de historiografia”, provoca Robert P. Carroll na p. 66.

 

L. L. Grabbe, ‘O exílio’ sob o teodolito: historiografia como triangulação

Lester L. Grabbe, Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Antigo na Universidade de Hull, Reino Unido, no seu artigo, nas p. 80-100, começa levantando alguns problemas que o ‘exílio’ suscita, como: por ser um poderoso símbolo no Antigo Testamento e na pesquisa bíblica – como já dissera na Introdução ao livro – o ‘exílio’ fica ainda mais difícil de ser historicamente construído; não temos uma descrição do exílio, apenas o que o precede (em 2 Reis e 2 Crônicas) e o que o finaliza (Esdras); nenhum texto descreve o transporte dos judaítas para a Babilônia ou o que aconteceu com eles desde então…

Frente a isso ele se propõe analisar três questões: 1. Comunidades exiladas perderam suas identidades e jamais voltaram para suas terras de origem ou não? 2. O que as fontes extrabíblicas podem confirmar sobre os eventos descritos no texto bíblico? 3. Como ficaria uma história construída a partir desse estudo?

Grabbe vai concluir, de sua análise de textos bíblicos e extrabíblicos, que houve uma volta de exilados judaítas, e apresenta seis argumentos favoráveis à sua tese nas p. 95-96. Tira, em seguida, quatro ‘conclusões metodológicas’ do estudo anterior, conclusões que me parecem mais pressupostos do que qualquer outra coisa! Entre elas (ou eles!), a óbvia de quem é o mediador do Seminário: “Eu rejeitarei qualquer posição que se recuse a usar o texto bíblico na reconstrução histórica do exílio ou que se mantenha numa atitude puramente agnóstica, assim como eu também rejeitarei qualquer posição que aceite sem mais o texto bíblico a não ser que ele possa ser refutado” (p. 98).

Finalmente, Lester Grabbe apresenta, em grandes linhas, o que seria a sua história do exílio, para concluir seu texto com o seguinte parágrafo: “O conceito bíblico de exílio e volta estava, por conseguinte, baseado em eventos reais. Embora exílio e volta representem um tema teológico significativo no texto bíblico, eles não foram construídos apenas com objetivos teológicos. Neste caso específico, a teologia representa uma reinterpretação e reutilização de eventos históricos” (p. 99-100).

 

T. L. Thompson, O exílio na história e no mito: uma resposta a Hans Barstad

Thomas L. Thompson, Professor de Antigo Testamento no Instituto de Exegese Bíblica da Universidade de Copenhague, Dinamarca, no seu artigo, nas p. 101-118, se propõe dar uma resposta – mais do que fazer uma crítica – à monografia de Hans Barstad, The Myth of the Empty Land: A Study in the History and Archaeology of Judah during the ‘Exilic’ Period. Oslo: Scandinavian University Press, 1996 [O mito da terra vazia: um estudo de história e arqueologia de Judá durante o período ‘exílico’]. Obra, aliás, muito citada pelos participantes do Seminário.

Thompson começa falando das práticas orientais de transferência de populações como uma política de ‘pacificação’, mas que, na verdade, era umThomas L. Thompson verdadeiro crime de guerra. Mostra como a Pérsia, de Ciro em diante, modificou esta prática, combinando, de modo mais eficaz, propaganda com terror para controlar os vencidos.

Em seguida, aborda o assunto das deportações de Israel e Judá, onde elenca cerca de uma dúzia, colocando entre elas as transferências de populações para Judá na época persa, aquelas que a Bíblia chama de ‘volta do exílio’. Aliás, Thompson nega que tenha ocorrido qualquer ‘volta’ de judeus do ‘exílio’.

Debate, em seguida, a possível identidade dos deportados, para mostrar que no processo de integração dos refugiados em Jerusalém e Samaria com as populações aí residentes, vários efeitos de longo prazo caracterizaram essa sociedade, como o uso da língua aramaica, o desenvolvimento de tradições comuns acerca das origens, o isolamento de Samaria e os conflitos de legitimidade ‘judaica’ entre os vários grupos.

Finalmente, sob o título “O Mito do Exílio”, Thompson trabalha o exílio como metáfora e mito na Bíblia, passando por Jeremias, Lamentações, Dêutero-Isaías, Zacarias… O ‘exílio’ é a devastação moral de Jerusalém, o vazio da alma sem Deus: não é historiografia, mas pietismo!

 

H. M. Barstad, O estranho medo da Bíblia: algumas reflexões sobre a ‘bibliofobia’ na recente historiografia israelita antiga

Hans M. Barstad, Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Oslo, Noruega, começa observando, nas p. 120-127, que “frequentes vezes, durante as discussões sobre o ‘antigo Israel’ em Dublin e Lausanne, objeções foram levantadas por alguns membros de nosso Seminário quando eram feitas tentativas de se referir a informações históricas tiradas da Bíblia Hebraica” (p. 120). Dizendo que sempre achou esta atitude um tanto estranha para quem reivindica ser um historiador da Palestina da Idade do Ferro, ele decidiu fazer, após a realização do Seminário, algumas observações a respeito desta ‘bibliofobia’.

Ele sublinha que sua posição é a seguinte: não podemos tratar a Bíblia de modo diferente de outras fontes históricas ou literárias antigas, como as da Grécia antiga ou da antiga historiografia mesopotâmica. Para exemplificar que problemas existem em todas as fontes antigas, e que isto não é exclusividade da Bíblia, Hans Barstad passa, em seguida, a mostrar os problemas de credibilidade histórica, hoje em debate, em Heródoto e na “Lista dos Reis Sumérios”.

Hans M. BarstadBarstad defende também, como já fizera no 10 Seminário, a substituição da busca de uma “verdade histórica factual” por uma “verdade histórica narrativa” (p. 126) e termina o seu texto dizendo enfaticamente: “Como uma fonte histórica, a Bíblia Hebraica é da ‘mesma’ natureza e qualidade dos outros textos literários do Antigo Oriente Médio (….) Nós devemos aceitar, para o bem ou para o mal, a Bíblia Hebraica não só como necessária, mas também, de longe, como a mais importante fonte para nosso conhecimento da história da Palestina da Idade do Ferro. Negar isto é não apenas ser injustificadamente hipercrítico, mas é também se fundamentar em uma visão positivista de história que hoje está irremediavelmente ultrapassada” (p. 127).

 

P. R. Davies, Exílio? Que exílio? Qual exílio?

Philip R. Davies, Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Reino Unido, nas p. 128-138, vai mostrar em seu texto que a noção de ‘exílio’ opera em três níveis: canônico, literário e historiográfico.

No nível canônico o ‘exílio’ encerra os Profetas Anteriores e o período de desobediência e ira divina; no nível literário o ‘exílio’ faz paralelismo com os arquétipos de criação e expulsão do paraíso e realiza a mediação da punição e salvação; e no nível historiográfico bíblico marca as épocas do ‘pré-exílio’ e do ‘pós-exílio’.

Trabalha, em seguida, vários conceitos relativos ao ‘exílio’, visto como legitimação ideológica dos grupos que foram transferidos para Judá – Davies nega qualquer ‘volta’ – e que, ao construir e impor a sua identidade de ‘judeus’ e ‘Israel’ silenciam os outros grupos que reclamam o direito de viverem nesta terra.

O autor, curiosamente, denomina a sua abordagem de ‘materialista’ – sem nenhuma referência a qualquer marxismo – por considerar que, em suas palavras, na nota 12 da p. 132, “as configurações históricas e culturais de alguma maneira esclarecem os produtos ideológicos”… No meu entender, há aqui algum equívoco epistemológico!

 

K. Jeppesen, Exílio, uma época – Exílio, um mito

Knud Jeppesen, Professor de Antigo Testamento na Universidade de Aarhus, Dinamarca, escreve nas p. 139-144 de nosso livro, avaliando as contribuições de alguns participantes do Seminário, que ele classifica em dois grupos: as contribuições de Rainer Albertz, Bob Becking e Lester L. Grabbe, que lidam com o problema de se e de que maneira nós podemos reconstruir a história da época do exílio e as contribuições de Thomas L. Thompson e Robert P. Carroll que, de outro lado, procuram explorar o exílio mais como mito e metáfora.

Knud Jeppesen mostra a dificuldade do tema nas posições dos debatedores citados. Rainer Albertz, por exemplo, que de modo algum pretende ser um minimalista, acaba admitindo que o exílio é “um buraco negro” na narrativa histórica bíblica ou uma “caixa preta”, na qual os pesquisadores colocam tudo o que não cabe no período pré-exílico. Já Bob Becking, discutindo o livro de Esdras está convencido de que processos como ‘exílio’ e ‘volta’ ocorreram, mas conclui que sabemos muito pouco sobre isso. Grabbe é quem parece não ter muitas dúvidas!

Ele diz que, em princípio, concorda com Albertz, Becking e Grabbe e acha que nós ainda podemos contar alguma estória sobre o ‘exílio’ de 587-586 AEC. Mas ele vê também que o exílio é interpretado pela Bíblia como um mito universal, e, por isso, aprecia as colocações de Thompson e Carroll, quando trabalham o exílio como mito, metáfora e símbolo.

E conclui: “Eu ainda acredito que deve haver alguma forma de conexão entre o exílio na história e o exílio na narrativa mítica (….) A ideologia – o mito – e a narrativa – a ‘história’ – são duas diferentes maneiras de conhecimento que nós devemos manter distintas. Os pesquisadores frequentemente as misturam e, por isso, é difícil para o mito e a história conviverem em paz. Nós precisamos dos dois, mas nós devemos traçar uma linha divisória entre eles (…) Para os pesquisadores bíblicos, uma escolha entre mito e história é equivalente a uma escolha entre a história e a Bíblia. E se houvesse a possibilidade de escolha, eu iria sempre preferir a Bíblia – ela é muito mais excitante do que a história”.

 

L. L. Grabbe, Reflexões sobre a discussão

Finalmente, nas p. 146-156, Lester L. Grabbe faz uma reflexão e síntese deste denso e proveitoso Seminário sobre o Exílio.

Dois pontos em que todos concordaram: 1. Ocorreram uma ou mais deportações dos reinos de Israel e Judá; 2. O termo ‘exílio’ é fortemente marcado por significados teológicos e ideológicos e não é, de modo algum, um termo neutro para se referir a uma época ou a um episódio históricos.

Lester L. GrabbeUma das principais questões debatidas no Seminário foi se o uso do termo ‘exílio’ deveria ser banido ou não do meio acadêmico, já que sua carga teológica e ideológica é um problema para o estudo deste fenômeno ou época. Dois grupos se formaram: Lemche, Thompson e Davies consideraram seu uso problemático e prefeririam seu banimento; Knauf, Barstad, Becking e Albertz, por outro lado, consideraram o seu uso adequado. Alguns sugeriram ‘deportação’ no lugar de ‘exílio’, alegando ser este um termo neutro (Davies), enquanto outros, como Lemche, discordaram também deste termo porque isto seria assumir ainda uma agenda bíblica e não histórica. Não houve consenso quanto a este ponto.

Outro ponto de desacordo foi a questão da ‘volta’ do exílio. Alguns acham que não houve continuidade entre os deportados da época babilônica e os que se estabeleceram na Judeia na época persa. Outros acham que se pode falar de uma ‘volta do exílio’. E aí no meio se discutiu o que significa ‘continuidade’, que não precisa ser necessariamente biológica, pode ser cultural. Discutiu-se aí o significado de etnia. Mas e se foi outro(s) povo(s) que veio para Judá na época persa, deportado, por sua vez, de sua terra natal? Ainda: se nem todos os judaítas foram exilados – apesar do mito da ‘terra vazia’ –, por que falar de ‘restauração’, outro conceito extremamente problemático?

Outro problema discutido: não existe descrição do ‘exílio’ e parece que os judeus da época do Segundo Templo não se viam como exilados, como concordaram Carroll, Grabbe e Davies. Por isso, alguns sugeriram falar de ‘diáspora’ ao invés de ‘exílio’. Mas qual é a diferença real entre ‘diáspora’ e ‘exílio’ se o hebraico usa a mesma palavra (gôlâh) tanto para ‘exílio’ quanto para ‘diáspora’ e ‘deportação’?

Forte discussão e grande desacordo, assim como no primeiro Seminário, ocorreram quando se tratou do uso das fontes, especialmente do texto bíblico. E aí, naturalmente, a disputa sobre a validade histórica de Esdras esteve em primeiro plano.

Finalmente, Lester L. Grabbe traz, nas p. 154-156, as respostas dos participantes do Seminário às duas seguintes questões: Pode uma história do ‘exílio’ ser escrita? Se pode, como ela seria?

Rainer Albertz disse que, apesar de termos alguns dados, não podemos narrar uma história do exílio. Bob Becking acha que pode, só que seria uma história/estória à base de tentativas e aberta ao debate. Hans M. Barstad disse que uma pequena história pode ser escrita, enquanto Robert P. Carroll acredita que seria uma história ideológica, uma ‘história’, entre aspas. Já Philip R. Davies propõe a escrita de duas histórias: uma seria sobre a ideia de exílio e sua emergência no judaísmo e na literatura judaica que venha até o século XIX, enquanto a outra seria sobre os movimentos populacionais na área, onde, de modo especulativo, até que poderia ser usada a literatura bíblica. Lester L. Grabbe acredita que uma história do exílio pode ser escrita, o mesmo acontecendo com Knud Jeppesen que propõe uma versão mais curta com os fatos históricos conhecidos e uma versão mais longa que preencheria os vazios entre os fatos com outras fontes, como o mito do exílio. Ernst Axel Knauf escreveria uma história entre 20 e 200 páginas, enquanto Niels Peter Lemche escreveria duas histórias, como Philip Davies, e, finalmente, Thomas L. Thompson escreveria uma história de umas 300 páginas baseada somente na arqueologia…

De modo geral, o tema do exílio foi tratado em suas múltiplas características com categoria e profundidade e, o mais importante, este ‘divisor de águas’ na História de Israel foi trazido para o primeiro plano do debate sobre a metodologia histórica. O Seminário manteve o nível do anterior e a leitura deste livro é altamente recomendável para todos os estudantes de História de Israel.

Esta resenha foi publicada em 2000.

Resenhas


Escrever uma História de Israel

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GRABBE, Lester L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, 201 p. [London: T & T Clark, 2005 – ISBN 0567043207]

 

leitura: 15 min

Lester L. Grabbe (5 de novembro de 1945) é Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Antigo no Departamento de Teologia da Universidade de Hull, Reino Unido. Este livro, Pode uma ‘História de Israel’ ser Escrita? foi publicado em 1997, como resultado do primeiro Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, realizado em Dublin, em julho de 1996, do qual participaram pesquisadores escolhidos. O livro tem 9 capítulos, uma introdução feita por Lester Grabbe e, no final, um índice de citações e um índice de autores. Não há uma bibliografia final, mas sim numerosas notas de rodapé.

 

O problema

Diz Lester L. Grabbe no primeiro parágrafo do livro: “O grupo surgiu das frustrações que eu, em primeiro lugar, venho sentindo acerca da atual situação do debate sobre como escrever a história de Israel e Judá nos segundo e primeiro milênios AEC e no século I da EC” (p. 11).

E continua: “Nos últimos anos, um certo número de estudiosos – a maioria deles europeus por origem ou adoção – tem feito um ataque radical sobre o modo como a história de ‘Israel’ tem sido escrita. Mesmo aqueles outrora considerados radicais não escaparam da crítica. Este movimento, a princípio minoritário, causou pouco impacto no debate. Recentemente, porém, ele adquiriu personalidade, mas a resposta foi o surgimento de protestos, incluindo a sugestão de que tais tendências são perigosas, ou que podem ser tranquilamente ignoradas ou – de modo curioso – ambas as coisas ao mesmo tempo” (p. 11).

Lester L. Grabbe está se referindo à controvérsia existente entre a postura maximalista “que defende que tudo nas fontes que não pode ser provado como falso deve ser aceito como histórico” e a postura minimalista “que defende que tudo que não é corroborado por evidências contemporâneas aos eventos a serem reconstruídos deve ser descartado” (E. Knauf, citado por H. Niehr no mesmo livro, na p. 163).

 

A constituição do Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica

“Isto sugeriu que o tempo estava maduro para algo mais organizado, que abordasse as questões centrais de maneira sistemática e que determinasse quais são as reais posições e problemas (…). A tarefa inicial foi agrupar especialistas europeus que estavam, de maneira geral, convencidos de que existe, de fato, um problema” (p. 11-12).

A participação no Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica foi seletiva e incluiu os seguintes membros: Rainer Albertz (Alemanha), Hans Barstad (Noruega), Bob Becking (Países Baixos), Robert Carroll (Reino Unido), Philip Davies (Reino Unido), Josette Elayi (França), Lester Grabbe (Reino Unido), Ulrich Hübner (Alemanha), Knud Jeppesen (Dinamarca), Axel Knauf-Belleri (Suíça), Niels Peter Lemche (Dinamarca), Mario Liverani (Itália), Andrew Mayes (Irlanda) Hans-Peter Müller (Alemanha), Herbert Niehr (Alemanha), Michael Niemann (Alemanha), Ed Noort (Países Baixos), Thomas Thompson (Dinamarca), Helga Weippert (Alemanha), Manfred Weippert (Alemanha) e Keith Whitelam (Reino Unido).

 

As duas questões propostas

Explica Lester L. Grabbe: “Nossa proposta inicial é a de ler, responder e criticar estudos focados sobre questões ou temas específicos. Este primeiro encontro, entretanto, foi dedicado a tomadas de posição. Todos as conferências abordaram de um modo ou de outro as duas questões seguintes: Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita e, caso possa, como? Que papel exerce neste empreendimento o texto do Antigo Testamento/da Bíblia Hebraica?” (p. 13).

 

L. L. Grabbe, Os historiadores da antiga Palestina são seres humanos ou animais exóticos?

Lester L. Grabbe distribuiu para os membros do Seminário uma cópia de seu comunicado – Os historiadores da antiga Palestina são seres humanos ou animais exóticos? p. 19-36 –, visando estimular o debate. Ele faz questão de dizer que se considera um historiador, pois escreveu uma história de Israel em dois volumes com o título de Judaism from Cyrus to Hadrian [O Judaísmo de Ciro a Adriano]. Minneapolis: Augsburg Fortress, 1992, ou na edição inglesa, em um volume, pela SCM Press, 1994.

Lester L. GrabbeEle chegou às seguintes conclusões: 1) Podemos escrever uma história da antiga Síria-Palestina-Israel. 2) Ao escrever esta história, podemos e devemos usar o texto bíblico. 3) Persistem grandes dificuldades no emprego do texto bíblico, de modo que o seu uso precisa ser debatido em cada caso. 4) As fontes arqueológicas e bíblicas precisam ser avaliadas cada uma no seu âmbito, e devemos evitar misturar de modo promíscuo fontes escritas com outros dados. 5) Reconstruções imaginativas e especulativas poderiam ser admitidas e devemos indicar as probabilidades de qualquer hipótese.

Ele argumenta que a meta dos historiadores “é descobrir ‘o que realmente aconteceu’” (p. 14). Ele enfatiza que esta é a meta dos historiadores, mas muitas reconstruções não passarão de tentativas. “O historiador pode ser definido como um malabarista. O segredo é manter o maior número possível de bolas no ar ao mesmo tempo, sem deixar cair nenhuma” (p. 14).

Deste ponto em diante, até o final da ‘Introdução’, o autor sintetiza os comunicados dos outros sete especialistas que contribuíram para a publicação. São as contribuições de H. M. Barstad, Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Oslo, Noruega; B. Becking, Professor de Estudos Vétero-Testamentários na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos; R. P. Carroll, Professor de Antigo Testamento na Universidade de Glasgow, Reino Unido; P. R. Davies, Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Reino Unido; N. P. Lemche, Professor no Instituto de Exegese Bíblica da Universidade de Copenhague, Dinamarca; H. Niehr, Professor de Introdução à Bíblia e de História da Época Bíblica na Universidade de Tübingen, Alemanha e T. L. Thompson, Professor no Instituto de Exegese Bíblica da Universidade de Copenhague, Dinamarca. Uma conclusão, Reflexões sobre a Discussão, foi escrita por Lester L. Grabbe nas p. 188-196.

 

H. M. Barstad, História e a Bíblia Hebraica

H. M. Barstad, História e a Bíblia Hebraica, p. 37-64, lida com a questão do desenvolvimento da historiografia em geral, onde ele critica a postura positivista de muitos historiadores e manifesta sua firme convicção de que o futuro pertence à história narrativa. Para Barstad, as antigas categorias de fato e ficção já não são distinções válidas.

Para Barstad, pesquisadores como Lemche e Thompson ainda se debatem dentro de um conceito convencional de história que é altamente problemático. Em suas palavras: “Estudiosos como Lemche e Thompson têm avidamente usado o conceito de ‘mudança de paradigma’ em suas contribuições para a historiografia bíblica. Isto, entretanto, está longe de ser uma descrição adequada do que está realmente acontecendo. Lemche e Thompson, aparentemente não atentos para o fato de que o que nós podemos chamar de um conceito convencional de história é hoje altamente problemático, ainda trabalham dentro dos parâmetros da pesquisa histórico-crítica, assumindo que história é uma ciência e que devemos trabalhar com fatos ‘brutos’” (p. 50-51).

Barstad diz que os pós-modernos os classificariam como “os primeiros dos últimos modernistas” (p. 51). E defende em seguida: “No futuro nós teremos, irreversivelmente, de nos ajustar a uma visão de história diferente daquela dos métodos histórico-críticos do século XIX: uma história com diferentes ‘verdades’ que quase nunca será o resultado de análises científicas de dados empíricos. Uma história cujo estatuto epistemológico deveria não mais ser visto como parte da ciência, mas como uma parte da cultura. Uma história caracterizada por uma multiplicidade de métodos” (p. 51-52).

 

B. Becking, Sinetes como evidência do Israel bíblico? Jeremias 40,7-41,15, por exemplo

B. Becking, Sinetes como evidência do Israel bíblico? Jeremias 40,7-41,15, por exemplo, p. 65-83, procura responder a três questões: O que se entende por ‘Israel’? O que quer dizer ‘escrever história’? e Como o texto do Antigo Testamento é usado como uma fonte histórica? Ele conclui com uma resposta positiva sobre a possibilidade da história da Israel e o uso do Antigo Testamento como uma de suas fontes.

 

R. Carroll, Madonna de silêncios: Clio e a Bíblia

R. Carroll, Madonna de silêncios: Clio e a Bíblia, p. 84-103, questiona os limites entre realidade e ficção, usando a analogia de Ossian, um suposto poeta céltico do terceiro século e as figuras de Balaão, Omri e Baruch. E, respondendo à questão “Pode uma história do antigo Israel ser escrita?”, ele diz: “Estou inclinado a responder ‘Não’” (p. 101).

 

P. R. Davies, Qual história? Qual Israel? Qual Bíblia? Histórias bíblicas, antigas e modernas

Philip R. Davies, Qual história? Qual Israel? Qual Bíblia? Histórias bíblicas, antigas e modernas, p. 104-122, aceita que histórias de um antigo Israel podem ser escritas, mas não a história do antigo Israel.

Philip R. Davies pensa que o Antigo Testamento ou a Bíblia Hebraica pode ser usado para a reconstrução histórica de Israel de dois modos: um primário e outro secundário. De modo primário, “a primeira tarefa do historiador é descobrir (ou determinar) o contexto histórico destes escritos, baseado no princípio de que o testemunho histórico de qualquer obra será relevante, em primeira mão, para a época na qual ela foi escrita” (p. 104). De modo secundário “o que estes escritos dizem sobre eventos históricos pode ser usado para construir um quadro das épocas sobre os quais eles dizem estar descrevendo” (…), mas “o uso da narrativa historiográfica bíblica para a reconstrução crítica das épocas que ela descreve (…) é precário e possível somente onde há dados independentes adequados”, argumenta na p. 105.

Finalmente, ele recomenda que um historiador pode fazer hoje três coisas: “Não desencorajar a produção de boas historiografias; (…) denunciar as fraudes praticadas em nome da história e (…) permanecer cético, minimalista e pessimista” (p. 122).

 

N. P. Lemche, Clio está também entre as Musas! Keith W. Whitelam e a história da Palestina: uma resenha e um comentário

Niels P. Lemche, Clio está também entre as Musas! Keith W. Whitelam e a história da Palestina: uma resenha e um comentário, p. 123-155, em um texto anteriormente publicado, faz uma resenha do livro de Keith Whitelam, The Invention of Ancient Israel: The Silencing of Palestinian History [A invenção do antigo Israel: O ocultamento da história palestina]. London: Routledge, 1996, à qual ele acrescenta um curto comunicado lido em Dublin, História da Palestina ou História da Síria. Lemche diz na p. 149: “Eu chego agora à conclusão desta resenha que, no geral, foi crítica, mas positiva. E ela tinha de ser! Nenhuma dúvida quanto a isto. Whitelam escreveu um livro corajoso – mas também politicamente correto -, afinado com o estabelecimento na Palestina das primeiras instituições de um Estado Palestino”. Whitelam, em seu livro, mostra que a história dos povos antigos da Palestina tem sido silenciada em favor de um interesse exclusivo em Israel. Mas em História da Palestina ou História da Síria, Lemche alerta o leitor para o fato de que Whitelam “não define adequadamente a identidade de seus antigos palestinos (…) porque, provavelmente, ele introduziu no cenário histórico uma nova entidade, os antigos palestinos, tendo, deste modo, inventado um novo povo que pode, de fato, nunca ter existido ou ter reconhecido a si mesmos como sendo palestinos” (p. 151).

 

H. Niehr, Alguns aspectos do trabalho com as fontes escritas

H. Niehr, Alguns aspectos do trabalho com as fontes escritas, p. 156-165, analisa os vários tipos de fontes disponíveis para o historiador, ou seja, a antropologia histórica (dados oferecidos pela geografia, arqueologia, climatologia e assim por diante); fontes primárias (relatos contemporâneos ou próximos aos eventos que elas narram, como fontes escritas fora da Palestina, fontes escritas provenientes da Palestina e evidência arqueológica da Palestina); fontes secundárias (o Antigo Testamento), e fontes terciárias (livros que retomam fontes secundárias, como os livros das Crônicas). Finalmente, ele trabalha os problemas metodológicos relativos ao uso de cada uma delas, argumentando que as tentativas para superar as diferenças existentes entre estas fontes devem ser feitas cuidadosamente. O estudo de Niehr é um dos mais equilibrados de todo o livro.

 

T. L. Thompson, Definindo história e etnia no Levante Sul

Thomas L. Thompson, Definindo história e etnia no Levante Sul, p. 166-187, divide sua comunicação em três partes: na primeira, ele critica algumas publicações recentes do arqueólogo William G. Dever; na segunda, ele passa em revista as intuições do recente livro de Keith Whitelam, A Invenção do antigo Israel: O ocultamento da história palestina (“Este novo livro pode muito bem servir como uma proveitosa introdução metodológica à história da Palestina”, diz Thompson na p. 178); e, na última parte, ele defende uma historiografia mais fundamentada na arqueologia e na geografia. Thompson, Cryer e Lemche estão trabalhando na elaboração de um ‘método espectral’ que “promete lidar bem ao mesmo tempo com grandes quantidades de dados e dados de grande variedade” (p. 181).

 

L. L. Grabbe, Reflexões sobre a discussão

Lester L. Grabbe, na conclusão, Reflexões sobre a discussão, nas p. 188-196, diz que muitos desentendimentos entre os pesquisadores foram sendo percebidos, com o desenrolar-se do seminário, como meras diferenças verbais e não como posturas verdadeiramente inconciliáveis.

Can a 'History of Israel' Be Written?Por outro lado, todos concordaram que uma história da antiga Palestina, Síria, Levante ou qualquer outro nome que se use, deve considerar toda a região e todos os povos que nela viveram. Tratar a história de uma ‘nação’ específica como a história é um erro. Especialmente quando tal história tende a tratar os outros povos, dela excluídos, como inferiores, insignificantes, dignos de extermínio ou mesmo como não existentes. “Direcionar toda a nossa atividade filtrada por uma visão específica do ‘antigo Israel’, como tem sido frequentemente feito, para uma ‘história bíblica’, uma ‘arqueologia bíblica’, uma ‘geografia bíblica’ etc, é simplesmente escrever história fictícia”, afirma o autor na p. 189. Mesmo o uso do termo ‘Israel’ em sentido político é problemático. Tanto mais o será escrever uma ‘história de Israel’ como a história de uma entidade étnica.

Ninguém negou a existência de um ‘reino de Israel’, assim como de um ‘reino de Judá’, testemunhados pela Assíria, mas os participantes do seminário fizeram objeções a duas concepções: uma é a de que o construto literário do ‘Israel bíblico’ pode ser diretamente traduzido em termos históricos; e a outra é a de que ‘Israel’ deve canalizar e dominar o estudo da região na antiguidade. A descrição bíblica de um grande império israelita foi tratada com muito ceticismo.

Concordou-se, também, que as implicações da pós-modernidade para a questão histórica devem ser levadas a sério, mas, ao mesmo tempo, isso não significa abandonar a tarefa histórica. O problema da postura positivista dos historiadores é sério, e a questão de uma mudança de paradigma ainda precisa ser melhor trabalhada, pois não se sabe a que resultados tal mudança conduziria.

Isto leva também à pergunta sobre o que os pesquisadores entendem por história: o que se verificou foi uma grande diversidade de sentidos e debateu-se sobre como fazer história da Palestina/Síria daqui para frente. Deveriam os historiadores abandonar a forma narrativa? Ou assumir de vez uma história narrativa? Será que o melhor modo de fazer história não seria através da proposta de uma série de questões abertas ao debate?

O uso do texto bíblico na escrita da ‘história de Israel’ acabou sendo, como se pode perceber nos vários capítulos do livro, uma questão polêmica. E disto não havia muito como escapar, pelo simples fato de que muitas ‘histórias de Israel’ influentes nada mais têm sido do que uma paráfrase racionalista do texto bíblico. Por causa disso, alguns, como Robert Carroll, classificam qualquer história de Israel como fictícia, enquanto outros como Niehr, Becking e Grabbe acreditam que o texto bíblico usado cuidadosa e criticamente é um elemento válido para um empreendimento deste tipo. Quanto a isto, parece haver quatro possíveis atitudes (cf. p. 192):

1. Assumir a impossibilidade de se fazer história: apesar da posição mais radical de Carroll, ninguém empreendeu esta via.

2. Ignorar o texto bíblico como um todo e escrever uma história fundamentada apenas nos dados arqueológicos e outras evidências primárias: esta é a postura verdadeiramente ‘minimalista’, mas o problema é que sem o texto bíblico muitas interpretações dos dados tornam-se extremamente difíceis, e, por isso, ninguém no seminário assumiu tal atitude

3. Dar prioridade aos dados primários, mas fazendo uso do texto bíblico como fonte secundária usada com cautela: praticamente todos os membros do seminário ficaram nesta posição 3 ou, talvez, entre a 2 e a 3. Mas, é preciso observar que todos penderam mais para o lado ‘minimalista’ deste espectro.

4. Aceitar a narrativa bíblica sempre, exceto quando ela se mostra como absolutamente falseada: esta é a postura ‘maximalista’, e – nem é preciso dizer – ninguém no seminário a defendeu.

O fato é que as posturas 1 e 4 são inconciliáveis e estão fora das possibilidades de uma ‘história de Israel’ mais crítica: isto porque a 1 rejeita a possibilidade concreta da história e a 4 trata o texto bíblico com peso diferente das outras fontes históricas. Somente o diálogo entre as posições 2 e 3 podem levar a um resultado positivo, conclui Lester L. Grabbe na p. 193.

Como se pode ver deste rápido olhar, o livro contribui de fato para o debate sobre a escrita da História de Israel, com rico panorama das diferentes perspectivas de pesquisadores de alto nível e, isto é o mais importante, dispostos a continuar o debate do modo mais produtivo possível.

Esta resenha foi publicada em 2000.

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