Antropologia

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Leitura socioantropológica do Novo Testamento

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1. A antropologia do mundo mediterrâneo e o Novo Testamento

Quando consideramos o Novo Testamento com o auxílio da antropologia, percebemos que o mundo mediterrâneo no qual ele foi gestado tem muito menos em comum com o Ocidente moderno do que imaginamos. É que costumamos olhar o texto com os parâmetros sociais atuais e não conseguimos, frequentemente, perceber a diferença do mundo antigo.

Considerações deste gênero são feitas, por exemplo, por Richard L. Rohrbaugh, na Introdução de um volume sobre “As Ciências Sociais e a Interpretação do Novo Testamento”, obra escrita por membros de The Context Group, “uma associação de estudiosos interessados no uso das Ciências Sociais como um instrumento heurístico na interpretação do Novo Testamento”[1] que ao longo de mais de três décadas vem trabalhando com a questão da antropologia do mundo mediterrâneo, visto como uma unidade cultural onde foi escrito o NT.

O autor nos oferece alguns exemplos que apontam para o risco da projeção de nossa visão moderna de mundo para o universo do NT. Tomemos a questão da expectativa de vida hoje nos países ricos e nas cidades pré-industriais do Império Romano: “Cerca de 1/3 daqueles que ultrapassavam o primeiro ano de vida (não contabilizados, portanto, como vítimas da mortalidade infantil) morriam até os 6 anos de idade. Cerca de 60% dos sobreviventes morriam até os 16 anos. Por volta dos 26 anos 75% já tinha morrido e aos 46 anos, 90% já desaparecido, chegando aos 60 anos de idade menos de 3% da população”[2].

É claro que estes dados não são uniformemente distribuídos por toda a população da época. Os que mais sofriam pertenciam às classes mais pobres das cidades e povoados, já que um pobre em Roma, no século I de nossa era, tinha uma expectativa de vida de 30 anos, quando muito. E o autor acrescenta: “Estudos feitos por paleopatologistas indicam que doenças infecciosas e desnutrição eram generalizadas. Por volta dos 30 anos a maioria das pessoas sofria de verminose, seus dentes tinham sido destruídos e sua vista acabado (…) 50% dos restos de cabelo encontrados nas escavações arqueológicas tinham lêndeas”[3].

Com moradias precárias, sem condições sanitárias adequadas, sem assistência médica, com uma má alimentação… se visto assim, o quadro romântico que um leitor de um país rico de nossa época faz da audiência de Jesus começa a ruir. Este mesmo Jesus, com seus trinta e poucos anos de idade, era mais velho do que 80% de sua audiência… uma audiência doente, desnutrida e com uma expectativa de mais 10 anos de vida, se tanto!

Douglas E. Oakman, em um estudo sobre as condições de vida dos camponeses palestinos da época de Jesus, mostra que a violência que sofriam era brutal. Fraudes, roubos, trabalhos forçados, endividamento, perda da terra através da manipulação das dívidas atingiam a muitos. Existia uma violência epidêmica na Palestina[4]. E é neste contexto que Oakman propõe uma leitura radical do Pai Nosso. “Ele sugere” – diz R. L. Rohrbaugh – “que o pedido ‘perdoa-nos as nossas dívidas’ (Mt 6,12) refere-se aos processos nos quais os camponeses perdiam sua terra para os credores urbanos que sistematicamente exploravam as condições econômicas precárias em que viviam. Além disso, argumenta Oakman, a prece final (Mt 6,13) ‘não nos ponha em teste’ – normalmente traduzida com a ideia anacrônica de não cair em tentação – é o apelo do camponês para que não seja levado a um tribunal de cobrança de dívidas e colocado diante de um juiz corrupto (‘mas livra-nos do Maligno’) cujo veredicto daria à expropriação de sua terra força de lei”[5].

E conclui o autor: “Refletir sobre como a oração de Jesus deve ter sido recebida pelos camponeses mediterrâneos angustiados com a perda potencial da terra e do seu sustento pode nos causar um certo choque cultural, mas pode também nos ensinar quão autenticamente aquela oração expressava a experiência de vida daquelas pessoas concretas. Há um rico sentido aqui, mas que só emerge quando nos preocupamos em captar o ambiente social do qual o texto provém”[6].

 

2. A sociologia do Novo Testamento no século XX

Segundo Gerd Theissen em Sociologia da cristandade primitiva, na virada do século XIX para o XX (e até a década de 30, acrescento eu), perguntas sociológicas foram regularmente aplicadas aos textos bíblicos do Novo Testamento. “As perguntas sociológicas logicamente pertenciam à ciência neotestamentária: descrevia-se a vida das comunidades primitivas (E. V. Dobschütz), examinavam-se aspectos sociais da missão e da expansão do cristianismo (A. v. Harnack), apresentava-se a sociedade palestinense nos moldes de uma história contemporânea neotestamentária (E. Schürer), analisavam-se as ideias sociais do cristianismo primitivo (E. Troeltsch) e, com auxílio da epigrafia e papirologia, procurava-se iluminar a vida das camadas baixas (A. Deissmann). Sobretudo, porém, formulava-se, no interior da ciência veterotestamentária, um determinado programa, que ainda hoje é determinante para a pesquisa sociológica: a história das formas e a história da religião (H. Gunkel). Não foi um acaso que ao mesmo tempo que se perguntava pelas relações entre textos bíblicos e fenômenos extrabíblicos – e com isso se resguardava o isolamento dos textos em contraposição ao seu contexto – perguntava-se também pelas relações entre os textos e a vida social passada – e com isso se anulava a alienação dos textos da vida da comunidade. Pois a pergunta pelo contexto histórico, assim como a pergunta pelo ‘Sitz im Leben’ social, é expressão de uma mesma consciência histórica, aquela consciência que, através de analogias factuais e correlações causais, interliga a crítica das fontes tradicionais com sua explicação”[7].

Mas, no século XX aconteceu um retrocesso na pesquisa sociológica bíblica. Entre os motivos por ele enumerados nas p. 11-14, destacam-se especialmente:

1) A teologia dialética de K. Barth, que levou a exegese a refletir sobre o conteúdo teológico dos textos, espiritualizando a pergunta pelo “Sitz im Leben” (contexto social), que passou a ser apenas o “lugar vivencial” religioso. Os textos eram lidos primariamente como expressão da teologia da comunidade e de sua fé. Diminuiu o interesse social e aumentou o religioso.

2) A hermenêutica existencial de R. Bultmann que, com sua tendência individualizante na leitura do Novo Testamento, enfraqueceu mais ainda o interesse pela dimensão social dos textos.

Nas palavras de G. Theissen: “Conexões sociais pertenceriam ao ‘impróprio’ do qual uma existência humana preocupada com o ‘próprio’ deveria se distanciar. A nova interpretação existencial afirmou-se sobretudo no âmbito da exegese de Paulo e de João, que, com isso, recebeu um peso teológico muito maior do que a interpretação dos sinóticos, nos quais o método histórico-formal havia se radicado. Sim, o método histórico-formal, por vezes, teve que prestar-se a minimizar o peso teológico das tradições jesuânicas preservadas nos evangelhos sinóticos, em parte através de um grande ceticismo histórico, em parte através do pré-ordenamento do primitivo querigma cristão da cruz e ressurreição ante a diversidade das tradições sinóticas”[8].

O retorno das questões sociológicas acontece a partir da década de 70, em um momento em que as questões sociais emergiam fortemente mundo afora. John H. Elliott, exegeta norte-americano que utiliza modelos sociológicos e antropológicos para a leitura dos textos bíblicos, em um excelente livrinho chamado What is Social-Scientific Criticism? resume a história dos estudos até a década de 90 sob esta ótica na área do Novo Testamento, começando exatamente por Gerd Theissen[9].

 

3. Gerd Theissen e o radicalismo itinerante: 1973

Em 1973, Gerd Theissen, exegeta alemão e, naquela época, professor da Universidade de Bonn, publicou um artigo chamado “Radicalismo Itinerante. Aspectos de sociologia da literatura na transmissão de palavras de Jesus no cristianismo primitivo”[10], no qual ele propõe que “analisar o Novo Testamento na perspectiva da sociologia da literatura significa (…) perguntar pelas intenções e condicionamentos do comportamento inter-humano de autores, transmissores e destinatários de textos neotestamentários”. E continua um pouco mais à frente: “A transmissão das palavras de Jesus no Cristianismo primitivo é um problema sociológico sobretudo pelo fato de Jesus não haver fixado suas palavras literariamente” e que “uma tradição oral [em contraposição à escrita] depende do interesse de seus transmissores e destinatários. Sua preservação está ligada a condicionamentos sociais bem específicos…”[11].

E a tese que Gerd Theissen defendeu neste estudo foi a seguinte: “O radicalismo ético da tradição das palavras de Jesus é um radicalismo itinerante. Ele somente pode ser praticado e transmitido sob condições extremas de vida: somente quem está desligado das relações do mundo, somente quem abandonou casa, mulher e filhos, quem deixou aos mortos o enterrar os seus mortos e toma os pássaros e os lírios como exemplo pode renunciar à moradia, à família, à propriedade, ao direito e à defesa. Somente em tais circunstâncias podem ser transmitidas semelhantes orientações sem que caiam no descrédito. Essa ética tem chance somente na margem da sociedade, somente aí ela tem um Sitz im Leben, ou para ser mais exato: ela não tem um Sitz im Leben. Deve, isso sim, a partir de um ponto de vista externo, levar uma vida questionável à margem da vida normal. Somente aqui as palavras de Jesus estavam protegidas contra alegorizações, modificações, minimizações e supressões pela simples razão de que aí eram levadas a sério e praticadas. Somente carismáticos apátridas podiam fazê-lo”[12].

J. H. Elliott faz o seguinte comentário sobre o artigo de Gerd Theissen: “Ao fundir exegese e ‘sociologia da literatura’ esta proposta explodiu no meio exegético como uma bomba. As familiares mas domesticadas palavras da ética radical de Jesus não mais puderam ser tratadas isoladamente das condições sociais do tempo de Jesus ou das circunstâncias sociais e dos interesses específicos dos seguidores de Jesus. Este casamento criativo entre crítica histórica e uma perspectiva sociológica mais rigorosa trouxe uma perspectiva nova e revigorante que alimentou um velho e cansado empreendimento e foi decisiva para expandir e incrementar a aventura exegética. A crítica histórica estava sofrendo uma promissora transformação”[13].

Os estudos de Gerd Theissen, embora abranjam uma larga faixa de temas, tratam prioritariamente do movimento de Jesus na Palestina tentando explicar as razões de sua falência ali e de seu grande sucesso no meio gentio fora da Palestina. Sua pesquisa, entretanto, provocou menos pelo método empregado (funcionalismo estrutural[14]) do que pelas questões levantadas. A exegese não estava assim tão habituada a olhar os textos do Novo Testamento perguntando prioritariamente pelas condições sociais da época, pelos problemas levantados e pelas estratégias empregadas pelo movimento de Jesus.

 

4. A leitura materialista de Fernando Belo: 1974

No ano seguinte ao do pioneiro artigo de Gerd Theissen de 1973, um estudo, com sabor de manifesto, causou viva discussão nos meios exegéticos: foi o do português Fernando Belo.

Utilizando dados da leitura estruturalista do texto, segundo Roland Barthes, somados à análise marxista dos modos de produção na linha de Louis Althusser e à psicologia e psicanálise de Jacques Lacan, entre outros[15], Fernando Belo escreveu, em 1974, um estudo revolucionário sobre o evangelho de Marcos, chamado Lecture matérialiste de l’évangile de Marc: Récit-pratique-idéologie. Paris: Du Cerf, 1974.

Neste estudo Fernando Belo adota a perspectiva de que ler Marcos de modo materialista é tomá-lo como uma narração que não se pode compreender fora da situação social de seu autor e dos protagonistas (Jesus, seus amigos, seus adversários, a multidão…). É pôr o acento menos nas palavras de Jesus do que na sua prática; tanto mais que a narração de Marcos não é uma coleção de “palavras” ou “discursos”, mas expõe práticas e estratégias.

A obra de Fernando Belo, de 415 páginas, linguagem difícil dado o ecletismo do método, traz, em primeiro lugar, um ensaio formal do conceito de modo de produção. Depois trata do modo de produção da Palestina antiga e do séc. I d.C., para só então propor uma leitura de Marcos. Fernando Belo termina o livro com um ensaio de eclesiologia materialista.

Merece, no mesmo contexto, ser citado o experimento de CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. O original francês vem de Paris e é de 1976. Livro modesto, mais um divulgador de Belo do que um criador, mas com aspectos interessantes, tanto no que diz respeito ao Antigo Testamento quanto à leitura de Marcos. “Responsável pela edição do ‘Belo’, pareceu-me útil apresentar aos numerosos leitores interessados por esse novo acesso à Bíblia um livro menor, mais modesto e, espero, mais abordável”[16].

A 1a parte do livro de Clévenot, fruto de um seminário de dois anos, do qual participou também Fernando Belo, traz uma abordagem materialista das tradições Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista, vistas como produto da conjunção de fatores ideológicos, políticos e econômicos. A 2a parte faz uma leitura do evangelho de Marcos como um relato da prática de Jesus, seguindo os passos de Fernando Belo. Como explica Clévenot, na p. 22, “nós consideraremos os textos que compõem a Bíblia como produtos ideológicos. Nosso projeto será analisar as condições nas quais ele foi produzido”.

Mas o que vem a ser este enfoque materialista de Clévenot? Ele mesmo explica: “Ao contrário da filosofia alemã (idealista), que desce dos céus à terra, aqui nós subiremos da terra para o céu. Quer dizer, nós não nos baseamos no que os homens dizem, pensam, representam, nem naquilo que eles são segundo as palavras, pensamentos, imaginação e representação de outros para então chegar aos homens em carne e osso; não, nós nos baseamos nos homens em suas atividades reais, quer dizer, é a partir do processo real de vida que podemos representar o próprio desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital”[17].

 

5. John Gager e a hipótese milenarista: 1975

Em 1975, John G. Gager publicou Kingdom and Community: The Social World of Early Christianity. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall. Nesta obra, o professor de Princeton procurou explicar a natureza e o desenvolvimento do cristianismo como um movimento milenarista, a função social de seus mitos, a atividade missionária cristã como uma resposta para a não ocorrência do fim antecipado do mundo, os meios cristãos para legitimar o poder e controlar os desvios internos, e o relativo e rápido sucesso do cristianismo como religião dominante no mundo gentio[18].

John Gager utilizou duas teorias para estruturar seu estudo: a teoria da dissonância cognitiva de L. Festinger e a teoria das funções do conflito social de L. Coser. Além disso, Gager apoia-se na sociologia do conhecimento de Peter Berger e Thomas Luckmann, na análise dos movimentos carismáticos de Max Weber e nos estudos sobre movimentos milenaristas de K. O. L. Burridge[19].

O resultado, segundo H. C. Kee, é uma “reconstituição histórica iluminadora e sugestiva quanto ao amplo enquadramento da evolução do cristianismo a partir de uma seita milenarista, passando por um período de incipiente estruturação e disciplina, até chegar ao estabelecimento da Igreja da era constantiniana”. Mas, “apesar de insistir na importância dos métodos sociocientíficos para o estudo histórico e de sua maestria admirável em manuseá-los, ele concentra a sua atenção em problemas estritamente sociais, tendendo a negligenciar e até mesmo evitar temas religiosos, teológicos ou hermenêuticos, que, com certeza, também se esclarecem mediante os métodos sociológicos”[20].

Não é este o momento de explicarmos detalhadamente estas teorias e nem de verificarmos sua aplicação. Só quero chamar a atenção para o pressuposto utilizado: as teorias são aqui utilizadas como instrumentos heurísticos que sugerem um conjunto de questões e estimulam a pesquisa[21].

Embora na Europa o uso das ciências sociais na leitura da Bíblia tenha menor penetração, em 1977, na Alemanha, Alfred Schreiber usou uma pesquisa sociológica sobre dinâmica de grupos para propor uma reconstrução hipotética da interação social entre Paulo e os coríntios. Em 1980, o sueco Bengt Holmberg aplicou modelos weberianos de dominação para analisar os níveis de poder nas comunidades paulinas e o processo de passagem de uma autoridade carismática para uma autoridade institucionalizada e racionalizada[22].

Em 1980 Howard Clark Kee, da Universidade de Boston, publicou Christian Origins in Sociological Perspective: Methods and Resources, no qual chama a atenção para o valioso recurso que é o uso das ciências sociais tanto na reconstrução histórica das origens cristãs quanto na interpretação de sua literatura[23]. “A intenção do nosso livro”, escreve ele no primeiro capítulo, “consiste, portanto, em explicitar uma série de recursos metodológicos desenvolvidos ou em desenvolvimento nas ciências sociais, que possam nos prover de paradigmas adequados à análise da literatura cristã das origens, com o propósito de aumentar a compreensão dos acontecimentos relatados, bem como das circunstâncias e do ambiente vital, a partir dos quais e para os quais foram preparados os relatos”[24].

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[1]. ROHRBAUGH, R. L. Introduction. In: ROHRBAUGH, R. L. (ed.) The Social Sciences and New Testament Interpretation. Grand Rapids: Baker Academic, 2003, p. 10.

[2]. Idem, ibidem, p. 4-5.

[3]. Idem, ibidem, p. 5.

[4]. Cf. OAKMAN, D. E. The Countryside in Luke-Acts. In: NEYREY, J. H. (ed.) The Social World of Luke-Acts: Models for Interpretation. Grand Rapids: Baker Academic, 1999, p. 168.

[5]. ROHRBAUGH, R. L. Introduction. In: o. c., p. 6. Mt 6,12-13 diz: καὶ ἄφες ἡμῖν τὰ ὀφειλήματα ἡμῶν, ὡς καὶ ἡμεῖς ἀφήκαμεν τοῖς ὀφειλέταις ἡμῶν· καὶ μὴ εἰσενέγκῃς ἡμᾶς εἰς πειρασμόν, ἀλλὰ ῥῦσαι ἡμᾶς ἀπὸ τοῦ πονηροῦ. εἰσενέγκῃς  é um aoristo ingressivo [focaliza o momento inicial da ação] e pode significar que alguém é arrastado e levado perante um juiz ou um tribunal (cf. Lc 12,11: “Quando vos conduzirem [εἰσφέρωσιν ] às sinagogas, perante os principados e perante as autoridades, não fiqueis preocupados como ou com o que vos defender”). O genitivo πονηροῦ pode vir do neutro, significando o mal em geral , como a tradição latina o leu, influenciada por Santo Agostinho, ou pode vir do masculino, o Maligno, opção mais adequada à mentalidade dos primeiros cristãos. Assim o leram os Padres Orientais. É que o uso do neutro τὸ πονηρόν no sentido de “o mal” não pertence ao vocabulário do Novo Testamento, nem combina com a mentalidade semítica, que foge das abstrações. Cf. também HANSON, K. C.; OAKMAN, D. E. Palestine in the Time of Jesus: Social Structures and Social Conflicts. 2. ed. Minneapolis: Augsburg Fortress, 2008. Apesar da fascinante leitura de D. Oakman, a maioria dos especialistas lêem τοῦ πονηροῦ, tanto no masculino como no neutro em sentido escatológico, como no seguinte texto: “A decisão em favor de um ou de outro não modifica essencialmente a intenção do que foi dito por Mateus, porque aqui trata-se da realidade atual urgente e da realidade e atividade escatológica iminente do mal…” BALZ, H. ; SCHNEIDER, G. (eds.) Diccionario Exegético del Nuevo Testamento II. Salamanca: Sígueme, 1998, verbete πονηρός.

[6]. ROHRBAUGH, R. L. Introduction. In: o. c., p. 6.

[7]. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva: Estudos. São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 9.

[8]. THEISSEN, G.  o. c., p. 12.

[9] . Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism? Minneapolis: Fortress Press, 1993, p. 21-35.

[10]. THEISSEN, G. Wanderradikalismus: Literatursoziologische Aspekte der Überlieferung von Worten Jesu im Urchristentum, Zeitschrift für Theologie und Kirche 70, p. 245-271, 1973. Este texto está no livro de THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva: Estudos, p. 36-55. 

[11]. THEISSEN, G. Sociologia da cristandade primitiva: Estudos, p. 37.

[12]. Idem, ibidem, p. 41.

[13]. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism? p. 21-22. Gerd Theissen posteriormente publicou uma série de estudos provocadores, tais como Soziologie der Jesusbewegung. Ein Beitrag zur Entstehungsgeschichte des Urchristentums. München: Chr. Kaiser Verlag, [1977] 1988; Studien zur Soziologie der Urchristentums. Tübingen: Mohr Siebeck, [1979] 1989; Social Reality and the Early Christians: Theology, Ethics, and the World of the New Testament. Minneapolis: Fortress Press, 1992. Os dois primeiros estão traduzidos em português e são O Movimento de Jesus: História social de uma revolução de valores. São Paulo: Loyola, 2008 e o já citado Sociologia da cristandade primitiva: Estudos.

[14]. O funcionalismo estrutural “enfatiza a unidade essencial de sociedades, uma unidade que emerge quando diferentes grupos conseguem o equilíbrio através do consenso (…) A abordagem funcionalista estrutural identifica e analisa as estruturas básicas de uma sociedade específica e examina suas relações; seu interesse maior está em entender como os componentes de uma determinada sociedade (suas instituições, estruturas, crenças etc.) funcionam dentro da sociedade mais ampla”, define CARTER, C. E. A Discipline in Transition. In: CARTER, C. E.; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996,  p. 9.

[15]. Cf. BARTHES, R. S/Z. Essai. Paris: Seuil, 1970; ALTHUSSER, L. A favor de Marx. Pour Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 (original francês: 1965); Ler o Capital, 2 vols. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 (original francês: 1966);  LACAN, J. Ecrits. Paris: Seuil, 1966. Fernando Belo faleceu em 2018. Leia mais sobre ele aqui e aqui.

[16]. CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 17.

[17]. Idem, ibidem, p. 22.

[18]. Cf. ELLIOTT, J. H. o. c., p. 24.

[19]. Cf. FESTINGER, L. et al. When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study of a Modern Group that Predicted the Destruction of the World. Eastford, CT: Martino Fine Books, [1956] 2012 ; Idem, A Theory of Cognitive Dissonance. Evanston: Row Peterson, 1957; COSER, L. The Functions of Social Conflict: An Examination of the Concept of Social Conflict and Its Use in Empirical Sociological Research. New York: The Free Press, 1964; BERGER, P. O dossel sagrado: Elementos para uma teoria sociológica da religião. 9. ed. São Paulo: Paulus, 2013; WEBER, M. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva, 2 vol. 4. ed. Brasília: Editora da UnB, 2015; BURRIDGE, K. O. L. New Heaven, New Earth: A Study of Millenarian Activities. Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 1980.

[20]. KEE, H. C. As origens cristãs em perspectiva sociológica. São Paulo: Paulus, 1983, p. 16.

[21]. Cf. para uma exposição crítica, RODD, C. S. On Applying a Sociological Theory to Biblical Studies. In: CHALCRAFT, D. J. (ed.) Social Scientific Old Testament Criticism: A Sheffield Reader. London: Bloomsbury T & T Clark, 2006, p. 22-33. Rodd diz na p. 32: “Gostaria de afirmar que as tentativas de aplicar teorias sociológicas a documentos bíblicos não parecem ter sido frutíferas. A chance de testar uma hipótese é tão pequena que pode ser negligenciada”. E acrescenta na p. 33: “Minha convicção é de que há uma enorme diferença entre a sociologia aplicada à sociedade contemporânea, onde o pesquisador pode testar suas teorias face à evidência coletada, e a sociologia histórica, onde há somente uma evidência fossilizada que foi preservada por acaso ou para propósitos muito diferentes daqueles do sociólogo”. Entretanto, o capítulo 3 de Kingdom and Community, sobre o milenarismo – “Earliest Christianity as a Millenarian Movement” – chamou a atenção dos estudiosos para o estudo da categoria no cristianismo primitivo, produzindo boas pesquisas, segundo DULLING, D. C. Millennialism. In: ROHRBAUGH, R. (ed.) The Social Sciences and New Testament Interpretation, p. 200.

[22]. Cf. ELLIOTT, J. H. What is Social-Scientific Criticism?, p. 28; SCHREIBER, A. Die Gemeinde in Korinth: Versuch einer gruppen-dynamischen Betrachtung der Entwicklung der Gemeinde von Korinth auf der Basis des erster Korintherbriefes. Münster: Aschendorff, 1977; HOLMBERG, B. Paul and Power: The Structure of Authority in the Primitive Church as Reflected in the Pauline Epistles.Eugene, OR: Wipf & Stock, [1980] 2004.

[23]. Cf. KEE, H. C. Christian Origins in Sociological Perspective: Methods and Resources. Louisville: Westminster John Knox Press, 1980. Em português: As origens cristãs em perspectiva sociológica. São Paulo: Paulus, 1983.

[24]. Idem, As origens cristãs em perspectiva sociológica, p. 16-17.


Apocalíptica 6

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No dia seguinte, estando isolado no campo com os cinco homens, diz uma voz a Esdras: “‘Abre a tua boca e bebe o que quero  dar-te a beber!’ Abrindo a boca, vi que me era estendido um cálice que parecia cheio de água cor-de-fogo. Tomei-o e bebi! Ora, enquanto eu o bebia, o meu coração fazia brotar a inteligência e o meu coração fazia jorrar a sabedoria; meu espírito conservava a recordação e minha boca proferia a ciência (…) E eu me pus a falar e os cinco homens se puseram a escrever o que eu dizia, em criptografia, isto é, usando caracteres desconhecidos. Permanecemos lá quarenta dias!”

Pode ser percebida aqui a analogia entre Esdras e Moisés: a Lei é dada por Deus a ambos em quarenta dias; os cinco escribas lembram os cinco livros da Lei… Mas chama igualmente a atenção a influência do mito grego de Dioniso.

Dioniso é filho de Zeus e da princesa Sêmele, filha de Cadmo, rei de Tebas. Nascido de uma mortal, Dioniso não poderia pertencer ao panteão dos deuses olímpicos, mas o consegue através de várias peripécias. Dioniso é o deus da natureza, descobridor do vinho, o Baco dos romanos. Mas é principalmente o deus da vida que quebra todas as convenções sociais através da “loucura”, do “entusiasmo”. Nos rituais orgiásticos, “o êxtase dionisíaco significa antes de qualquer coisa a superação da condição humana, a descoberta da libertação completa, a obtenção de uma liberdade e de uma espontaneidade inacessíveis aos homens”[28] .

Entretanto, prossegue o capítulo 14 do IV Esdras: “Nesses quarenta dias, foram escritos noventa e quatro livros. Quando os quarenta dias terminaram, o Altíssimo me falou e disse: ‘Os primeiros vinte e quatro livros que foram escritos, tu os revelarás de modo que possam lê-los sábios e não sábios! Os outros setenta, tu os ocultarás, transmitindo-os aos sábios do povo! Porque neles está a fonte da inteligência e a nascente da sabedoria e o canal da recordação e o rio da ciência’. Foi o que fiz”.

É importante observamos que os 24 livros acessíveis a todos correspondem exatamente aos 24 livros da Bíblia Hebraica, agrupados na Lei, nos Profetas e nos Escritos: estes tratam do mundo atual. Os outros 70 livros são secretos e guardados para o fim dos tempos, o mundo que virá. Agora são acessíveis só aos justos e sábios[29].

 

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>> Bibliografia atualizada em 17.05.2015

Artigos


[28]. ELIADE, M. História das crenças e das ideias religiosas I,2. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 209.

[29]. No Livro Etiópico de Henoc 104,12-13 se diz: “Eu conheço outro mistério, pois aos justos e sábios são dados livros para alegria, retidão e grande sabedoria. A eles se dão os livros, creem neles e se alegram, e são retribuídos todos os justos que neles conheceram os caminhos retos”.


Apocalíptica 5

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A outra forma característica dos escritos apocalípticos é o arrebatamento. Dizer que “os céus estão fechados” é um modo semítico para falar do fracasso da história de Israel. Mas, se são inspirados os autores fictícios da apocalíptica, como se dá esta inspiração? O autor é “arrebatado” ao céu. Se o Espírito não desce, vai-se até ele para escrever e fazer história.

Paulo, polemizando com outros apóstolos que discordam do seu evangelho, se diz autêntico e até se dá o direito de, insensatamente, se vangloriar: “É preciso gloriar-se? Por certo, não convém. Todavia mencionarei as visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado (arpagénta, do verbo arpázô, “raptar”, “arrebatar”) ao terceiro céu -, se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir” (2Cor 12,1-4).

O Livro Eslavo de Henoc, escrito apocalíptico do século I d.C., diz que Henoc estava em sua casa dormindo, quando “surgiram dois homens de estatura descomunal”, na verdade dois anjos, que lhe disseram: “Henoc, tenha ânimo de verdade e não te assustes, pois o Senhor da eternidade nos enviou a ti: hoje vais subir ao céu conosco” (1,8).

Então os dois anjos conduzem Henoc através dos sete céus, explicando-lhe tudo o que vê. E no sétimo céu ele é levado por Miguel diante do Senhor e preparado para uma importante missão[25].

Em seguida, Vrevoil, o mais sábio dos arcanjos, escriba oficial do Senhor, pega livros e pena para que Henoc escreva. “Em seguida, foi recitando todas as obras do céu, da terra e de todos os elementos, seu movimento e suas trajetórias (…) o número dos anjos, as canções das milícias armadas, todo assunto humano, toda língua dos cânticos, as vidas dos homens, os mandamentos e ensinamentos (…) Vrevoil me instruiu durante trinta dias e trinta noites, sem parar de falar, e eu não tive um momento de descanso, consignando por escrito todos os sinais da criação” (10-4-5).

Depois disto, por mais trinta dias e trinta noites, Henoc registra por escrito as almas humanas, inclusive as que ainda não nasceram, e os lugares que lhes estão predestinados desde antes da criação da terra. No final, são escritos 366 livros.

Em seguida, Henoc escuta do próprio Senhor um relato da criação em sete dias e do pecado de Adão e Eva no paraíso. O Senhor lhe diz, então: “Entenda pois, Henoc, e tome consciência de quem está te falando: pega esses livros que você mesmo escreveu (…) desça à terra e conte a teus filhos tudo o que eu te disse e tudo o que vistes do céu mais baixo até meu trono (…) Entregue-lhes os livros escritos com tua mão e letra e que eles os leiam e me reconheçam como Criador do universo e compreendam que não há outro (criador) além de mim, e transmitam os livros escritos por ti de filhos para filhos, de geração em geração, de parentes para parentes” (11,87-92).

A Henoc, conduzido pelos dois anjos novamente à terra, é dado um prazo de 30 dias para executar o mandato do Senhor, ao fim do qual ele será arrebatado definitivamente aos céus.

Falando aos seus filhos, entre outras coisas, diz Henoc: “Tomai estes livros escritos por vosso pai, lede-os, e neles reconhecereis todas as obras do Senhor. Existiram muitos livros desde o começo da criação e ainda existirão até o fim do mundo, porém nenhum deles vos revelará (tanto) como estes, escritos por minha mão: se os seguirdes com firmeza, não pecareis contra o Senhor” (13,60-61). “Que estes livros que acabo de vos dar sejam a recompensa de vosso descanso. Não os escondais; ensinai-os a todos os que queiram (vê-los), para ver se assim reconhecem (como tais) as obras mirabilíssimas do Senhor (…) Amanhã subirei ao céu empíreo, à minha herança sempiterna” (13,110-112). “Então os anjos pegaram apressadamente Henoc e levaram-no até o céu mais alto, onde o Senhor o acolheu e o colocou diante de si por toda a eternidade” (18,2). Henoc vivera 365 anos[26] .

Para terminar este capítulo, quero lembrar que a apocalíptica torna-se possível pela aculturação helenística do judaísmo, que sofre influências babilônicas, persas e gregas, levadas pela unificação imperial de Alexandre Magno a partir de 332 a.C.

Influências persas, típicas da especulação zoroástrica, podem ser vistas na explicação que o Livro Eslavo de Henoc dá sobre a origem da criação (cf. 11,6-20;17,2-6). Aí, luz e trevas (Adoil e Ar(u)chas são dois princípios calcados nas figuras de Ahura-Mazda (deus do bem) e seu irmão gêmeo Angra Mainyu (deus do mal).

É para combater a helenização que a apocalíptica assimila elementos gregos mais do que qualquer outra tendência judaica da época, permanecendo, contudo, fiel às concepções vétero-testamentárias.

Um exemplo interessante de influência grega na literatura apocalíptica pode ser visto no capítulo 14 do IV Livro de Esdras, escrito apócrifo do final do século I d.C.

Acredita-se, no século I d.C., que a Lei fora queimada com a destruição do Templo em 586 a.C. pelos babilônios. De novo, agora, em 70 d.C., o Templo é mais uma vez destruído, acabando com as últimas esperanças judaicas. E o assunto está, então, na moda.

Como fazer para ter de novo a Lei, se apenas Moisés é o autor autorizado, inspirado? Existe Esdras, o grande restaurador da Lei na época persa. Ele é o herói certo. Esdras é, então, encarregado de refazer a obra de Moisés. Sendo refeita a obra, refaz-se a continuidade da história de Israel, de novo possível.

Diz o capítulo 14 que uma voz celeste se dirige a Esdras nos seguintes termos: “Esdras: os sinais que te mostrei, os sonhos que viste, explica-os imediatamente aos sábios, e os escribas os guardarão! Porque tu serás arrebatado para longe dos homens, para ficares, até o fim dos tempos, junto com o meu Servo e com os que se parecem contigo”.

Em seguida, inspirado no mito das raças de Hesíodo, diz o texto: “É que realmente o mundo perdeu a sua juventude. Aproximam-se os tempos de sua decrepitude! Porque o mundo foi dividido em dez partes! Chegamos ao tempo da décima parte: resta apenas a metade dessa décima parte (…) À medida que o mundo decai em sua velhice, os males se acumulam sobre os seus habitantes”.

Então, diz o texto, Esdras questiona o Senhor:“Pois que a tua lei foi queimada pelo fogo, haverá ainda alguém para conhecer as maravilhas que fizeste e os decretos que promulgastes? Se encontrei graça diante de ti, envia o Espírito Santo ao meu coração, e escreverei tudo o que aconteceu desde o início do mundo, como estava escrito na tua Lei”.

Esdras recebe assim a ordem de preparar as tabuinhas e de convocar cinco especialistas em escrita criptográfica que trabalharão com ele durante 40 dias, nos quais ninguém deve procurá-los.


As cinco raças

“Primeiro de ouro a raça dos homens mortais

criaram os imortais, que mantêm olímpicas moradas.

Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;

como deuses viviam, tendo despreocupado coração,

apartados, longe de penas e misérias; nem temível

velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,

alegravam-se em festins, os males todos afastados (…)

Então uma segunda raça bem inferior criaram,

argêntea, os que detêm olímpia morada;

à áurea, nem por talhe nem por espírito semelhante (…)

E Zeus Pai, terceira, outra raça de homens mortais

brônzea criou em nada se assemelhando à argêntea;

era do freixo, terrível e forte, e lhe importavam de Ares

obras gementes e violências, nenhum trigo

eles comiam e de aço tinham resistente o coração (…)

Mas depois também a esta raça a terra cobriu,

de novo ainda outra, quarta, sobre fecunda terra

Zeus Cronida fez mais justa e mais corajosa

raça divina de homens heróis e são chamados

semideuses, geração anterior à nossa na terra sem fim (…)

Antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,

mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.

Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia

cessarão de labutar e penar e nem à noite de se

destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão”

HESÍODO, Os trabalhos e os dias[27].

Página 6


[25]. No primeiro céu estão os depósitos de neve, gelo e nuvens guardados por anjos; no segundo estão presos anjos rebeldes; no terceiro céu Henoc vê o paraíso, reservado para os justos e, na sua região boreal, o lugar terrível reservado aos ímpios, onde “os guardiães – brutais e implacáveis, portam armas crueis e torturam sem compaixão” (5,11); no quarto céu está o controle do sol e da lua; no quinto céu estão os anjos que pecaram com as filhas dos homens, condenados a uma tristeza enorme; no sexto céu estão os anjos guardiães do universo, da terra e dos homens; no sétimo céu, finalmente – cercado por virtudes, dominações, principados, potestades, querubins, serafins, tronos, otanim e dez esquadrões de anjos de muitos olhos – está o Senhor, sentado em seu altíssimo trono. “E vi o Senhor face a face, sua face irradiava poder e glória, era admirável e terrível e inspirava, ao mesmo tempo, temor e pavor” (9,10).

[26]. Cf. o texto completo do Livro Eslavo de Henoc em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento IV, p. 147-202.

[27]. Hesíodo é um poeta grego que vive na Beócia no final do século VIII ou começo do século VII a.C. Em Os trabalhos e os dias – em que descreve o mundo humano de sua época – ele fala das cinco raças. Cf. HESÍODO Os trabalhos e os dias. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 31-35.


Apocalíptica 4

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4. Testamento e arrebatamento

Os livros bíblicos, tanto os do AT quanto os do NT, não trazem, com raras exceções, como o Eclesiástico, a assinatura de seu autor. Mas os livros apocalípticos são assinados. Só que também não com os nomes de seus autores e sim com o nome de um personagem importante do passado que, em geral, é a figura central do livro. Este é um recurso literário conhecido como pseudonímia. A pseudonímia é o uso de um “nome falso”, processo através do qual antigos heróis da história israelita intervêm no momento presente, o momento vivido pelo escritor. Deste modo, Henoc, Salomão, Moisés, Baruc, Esdras, Jó, Adão, Abraão, Elias, Isaías e tantos outros aparecem como autores e personagens centrais de livros escritos entre 200 a.C. e 100 d.C.

Em o NT, com exceção de sete cartas comprovadamente autênticas de Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, 1 Tessalonicenses, Filipenses e Filêmon), os “autores”, como Mateus, João, Lucas etc são atribuições posteriores da tradição. “Assim, o primeiro evangelho canônico não deveria chamar-se Evangelho de Mateus (designação essa que lhe foi dada a posteriori, por critérios extrínsecos aos da redação propriamente dita), mas ‘Livro da origem de Jesus Cristo’ (de suas primeiras palavras: Bíblos genéseos Iesou Christou); e a última obra da Bíblia cristã, o Apocalipse de João, deveria chamar-se: ‘Revelação de Jesus Cristo’ (conforme suas primeiras palavras: Apokálypsis Iesou Christou)[20].

Basta olharmos os títulos de alguns livros apocalípticos judaicos para termos uma noção da extensão do uso da pseudonímia. Vejamos:

O Livro Etiópico de Henoc
. origem: Palestina
. autor : ambiente judaico
. data: século II a.C.-I d. C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e etíope

Os Testamentos dos Doze Patriarcas
. origem: Palestina
. autor: ou um judeu-cristão do século II que teria reunido uma coletânea de testamentos já existentes; ou foram feitas interpolações cristãs em obra judaica pré-cristã; ou é uma obra essênia
. data: 130-63 a.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versão: grego

O Livro dos Jubileus
. origem: Palestina
. autor: um sacerdote (?) com ideário essênio
. data: 100 a.C.
. língua: original hebraico; versões: grego, conservado em etíope

Os Salmos de Salomão
. origem: Palestina
. autor: possivelmente um fariseu
. data: 63-40 a.C.
. língua: original hebraico; versões: grego e siríaco

Testamento (ou Assunção) de Moisés
. origem: Palestina
. autor: ambiente farisaico
. data: 3 a.C.-30 d.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e latim

O Livro Eslavo de Henoc
. origem: Palestina? Egito?
. autor: um judeu ou judeu-cristão
. data: século I d.C.
. língua: original grego; versão: eslavo antigo

O Apocalipse Siríaco de Baruc
. origem: Palestina
. autor: um fariseu
. data: 75-100 d.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego e siríaco

O IV Livro de Esdras
. origem: Palestina
. autor: um fariseu
. data: fim do século I d.C.
. língua: original hebraico ou aramaico; versões: grego,que originou 6 outras, sendo a latina a melhor

Além destes poucos mencionados, porque mais importantes e conhecidos, há inúmeros outros livros deste período que utilizam o recurso da pseudonímia, como: Ascensão de Isaías, Apocalipse de Elias, Apocalipse de Abraão, Apocalipse de Adão, Testamento de Isaac, Testamento de Jó, Testamento de Salomão, Testamento de Jacó etc.

Assinar um livro tardio com o nome de um personagem importante das origens é uma eficiente forma de legitimá-lo. Os grandes personagens do passado do povo, através desta intervenção, asseguram a continuidade da história israelita, eles que são seus criadores e condutores. Eles se fazem presentes através do livro, processo no qual a “sociabilidade” da escritura é essencial.

A continuidade da história, através da pseudonímia, se afirma de dois modos: pelo testamento e pelo arrebatamento, que, às vezes, aparecem unidos.

Os apocalipses tomam frequentemente a forma de testamento ou “discurso de despedida”, gênero bastante usado em Israel. Está presente tanto no Antigo quanto em o Novo Testamento.

Em Gn 47,29-50,14 Jacó se despede de seus filhos. Gn 49,1-2 diz: “Jacó chamou seus filhos e disse: “Reuni-vos, eu vos anunciarei o que vos acontecerá nos tempos vindouros. Reuni-vos, escutai, filhos de Jacó, escutai Israel, vosso pai'”.

Depois de descrever a bênção de Jacó para cada um dos filhos, o texto conclui em 49,28: “Todos estes formam as tribos de Israel, em número de doze, e eis o que lhes disse seu pai. Ele os abençoou: a cada um deu uma bênção que lhes convinha”.

O testamento de Moisés em Dt 33,1-29 começa assim: “Esta é a bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel, antes de morrer” (v. 1).

O testamento de Paulo em At 20,17-38, mais conhecido como o “Discurso de Mileto”, dirigido aos anciãos de Éfeso, diz, entre outras coisas: “Vós bem sabeis como procedi para convosco todo o tempo, desde o primeiro dia em que cheguei à Ásia (…) Agora, acorrentado pelo Espírito, dirijo-me a Jerusalém, sem saber o que lá me sucederá (…) Agora, porém, estou certo de que não mais vereis minha face, vós todos entre os quais passei proclamando o Reino” (At 20,18b.22.25).

O evangelho de João, nos capítulos 13-17, traz um longo discurso de despedida de Jesus aos seus discípulos. Começa assim: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (13,1).

Mas “é sobretudo na literatura do judaísmo tardio que vemos os grandes heróis de Israel se dirigirem, antes de sua morte e de sua subida ao céu (ascensão), aos que lhe são caros ou ao seu povo”, nos lembra A. Paul[21].

No Testamento dos Doze Patriarcas podemos ler, por exemplo: “Cópia do testamento de Rúben e das recomendações a seus filhos, antes de morrer aos cento e vinte e cinco anos de idade. Dois anos após a morte de José, estando doente Rúben, reuniram-se seus filhos e netos para visitá-lo” (Testamento de Rúben, 1,1-2).

“Cópia das palavras de Judá dirigidas a seus filhos antes de sua morte. Reuniram-se todos e foram vê-lo. Então ele lhes disse… “ (Testamento de Judá, 1,1-2).

“Cópia das palavras de Levi, de tudo o que ele ordenou a seus filhos antes de sua morte, de tudo o que deveriam fazer e de tudo o que lhes aconteceria até o dia do juízo” (Testamento de Levi, 1,1)[22].

O Testamento de Moisés, escrito entre 3 a.C. e 30 d.C. – portanto, contemporâneo de Jesus que vive entre 8-6 a.C. e 30 d.C. – é muito interessante para exemplificarmos como funciona o gênero testamentário. No capítulo I, de um total de 12, o texto fala da criação do mundo e da escolha de Israel, além de colocar Moisés como preexistente ao próprio mundo para ser o mediador da aliança, sendo ele o profeta por excelência. Diz Moisés a Josué em 1,10-18: “Esforça-te e tenha ânimo conforme o afã que te caracteriza, para que tudo o que foi ordenado o realizes de forma irrepreensível para Deus. Isto diz o Senhor do universo. Pois ele criou o universo por amor a seu povo, porém não quis revelar tal propósito da criação desde o começo do mundo, para que nela os gentios se sintam rejeitados e vilmente se refutem entre si com disputas. Consequentemente elaborou seu plano e me escolheu, eu que desde o começo do mundo fui preparado para ser o mediador de sua aliança. E agora te declaro que se cumpriu o tempo dos anos de minha vida e vou dormir com meus pais na presença de todo o povo. Tu, porém, receba este escrito, para que saibas como conservar os livros que vou te transmitir, livros que organizarás, ungirás com óleo de cedro e colocarás dentro de vasilhas de argila no lugar que ele fez desde o começo da criação do mundo, para que se invoque seu nome até o dia do arrependimento, no tempo da visita na qual o Senhor os visitará na consumação do final dos dias”.

No capítulo X, o livro fala do fim e do juízo final que punirá os ímpios e glorificará Israel: “Então se manifestará seu reino sobre toda a sua criação, então o diabo terá seu fim e a tristeza se afastará com ele. Então será investido o Enviado, que no mais alto se acha estabelecido (…) Pois se levantará o Celeste de seu trono real e sairá de sua santa morada inflamado de cólera em favor de seus filhos (…) Pois o Altíssimo Deus eterno se levantará sozinho, aparecerá para se vingar das nações e destruirá todos os seus ídolos. Então tu, Israel, serás feliz” (10,1-2a.3.7-8a)[23].

Aliás, Moisés é extremamente celebrado nesta época, como se pode ver em um texto de Fílon de Alexandria, o filósofo judeu que vive de 20 a.C. a 54 d.C.: “Falaremos de Moisés? Não é ele celebrado em toda parte como profeta? Eis o que foi dito: ‘Se um de vós se tornasse profeta, eu o Senhor, a ele me revelaria em visão e lhe falaria em sonhos. Mas… com meu servo Moisés… eu falo face a face… e não por figuras’ (Nm 12,6-8). E em outro lugar: ‘Nunca mais surgiu em Israel um profeta igual a Moisés, com quem o Senhor tratasse face a face’ (Dt 34,10)”[24].

Página 5


[20]. PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 69.

[21]. Idem, ibidem, p. 70. 

[22]. TESTAMENTO DOS DOZE PATRIARCAS, em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento V, p. 9-158.

[23]. TESTAMENTO DE MOISÉS, em DIEZ MACHO, A. ibidem, p. 215-275.

[24]. FÍLON DE ALEXANDRIA, Quid rerum divinarum heres sit LIII, 262, citado em PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 71.


História de Israel 4

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7. O ‘exílio’ como história e ideologia

O exílio constituiu o tema do Segundo Seminário Europeu de Metodologia Histórica, realizado em 1997. No livro, publicado em 1998, o assunto está dividido em três partes: cinco artigos (de Rainer Albertz, Bob Becking, Robert P. Carroll, Lester L. Grabbe e Thomas L. Thompson), três réplicas (de Hans M. Barstad, Philip R. Davies e Knud Jeppesen) e as conclusões do debate, elaboradas por Lester Grabbe[15].

Por que debater o exílio?

Na Introdução, Lester Grabbe explica: porque o exílio é um forte símbolo na Bíblia e na pesquisa vétero-testamentária. Quando história de Israel e literatura bíblica são discutidas, as coisas costumam ser classificadas em pré-exílicas e pós-exílicas. O conceito de culpa-exílio (castigo)-restauração teve grande impacto tanto no Antigo Testamento quanto na discussão teológica sobre o Antigo Testamento.

Sem dúvida, ‘o exílio’ é um divisor de águas nas discussões sobre o Antigo Testamento, tendo como rivais apenas os esquemas de pré-monárquico/monárquico ou preestabelecimento/estabelecimento na terra.

Lester L. Grabbe, Leading Captivity Captive: The ‘Exile’ as History and IdeologyRecentemente, dúvidas sobre o exílio foram levantadas. Estamos lidando com um evento histórico ou não? Os judaítas foram, de fato, para a Babilônia no século VI a.C. e voltaram (seus descendentes) para reconstruir o Templo e o país? Ou não estaríamos lidando com um conceito teológico e literário que serviu muito bem às necessidades dos judeus oprimidos, dos líderes religiosos, pregadores, teólogos e escritores, mas que teria sido totalmente inventado? Estas são algumas das perguntas que motivaram a escolha deste tema para o Segundo Seminário Europeu de Metodologia Histórica.

No final do livro, Lester L. Grabbe faz uma reflexão e síntese do denso e proveitoso Seminário sobre o Exílio[16].

Dois pontos em que todos concordaram: 1. Ocorreram uma ou mais deportações dos reinos de Israel e Judá; 2. O termo ‘exílio’ é fortemente marcado por significados teológicos e ideológicos e não é, de modo algum, um termo neutro para se referir a uma época ou a um episódio históricos.

Uma das principais questões debatidas no Seminário foi se o uso do termo ‘exílio’ deveria ser banido ou não do meio acadêmico, já que sua carga teológica e ideológica é um problema para o estudo deste fenômeno ou época.

Dois grupos se formaram: Lemche, Thompson e Davies consideraram seu uso problemático e prefeririam seu banimento; Knauf, Barstad, Becking e Albertz, por outro lado, consideraram o seu uso adequado. Alguns sugeriram ‘deportação’ no lugar de ‘exílio’, alegando ser este um termo neutro (Davies), enquanto outros, como Lemche, discordaram também deste termo porque isto seria assumir ainda uma agenda bíblica e não histórica. Não houve consenso quanto a este ponto.

Outro ponto de desacordo foi a questão da ‘volta’ do exílio. Alguns acham que não houve continuidade entre os deportados da época babilônica e os que se estabeleceram na Judeia na época persa. Outros acham que se pode falar de uma ‘volta do exílio’.

E aí no meio se discutiu o que significa ‘continuidade’, que não precisa ser necessariamente biológica, pode ser cultural. Discutiu-se aí o significado de etnia. Mas e se foi outro(s) povo(s) que veio para Judá na época persa, deportado, por sua vez, de sua terra natal? Ainda: se nem todos os judaítas foram exilados – apesar do mito da ‘terra vazia’ –, por que falar de ‘restauração’, outro conceito extremamente problemático?

Outro problema discutido: não existe descrição do ‘exílio’ e parece que os judeus da época do Segundo Templo não se viam como exilados, como concordaram Carroll, Grabbe e Davies. Por isso, alguns sugeriram falar de ‘diáspora’ ao invés de ‘exílio’. Mas qual é a diferença real entre ‘diáspora’ e ‘exílio’ se o hebraico usa a mesma palavra (gôlâ) tanto para ‘exílio’ quanto para ‘diáspora’ e ‘deportação’?

Forte discussão e grande desacordo, assim como no primeiro Seminário, ocorreram quando se tratou do uso das fontes, especialmente do texto bíblico. E aí, naturalmente, a disputa sobre a validade histórica de Esdras esteve em primeiro plano.

Finalmente, Lester L. Grabbe traz, nas últimas páginas, as respostas dos participantes do Seminário às duas seguintes questões: Pode uma história do ‘exílio’ ser escrita? Se pode, como ela seria?

Rainer Albertz disse que, apesar de termos alguns dados, não podemos narrar uma história do exílio. Bob Becking acha que pode, só que seria uma história/estória à base de tentativas e aberta ao debate. Hans M. Barstad disse que uma pequena história pode ser escrita, enquanto Robert P. Carroll acredita que seria uma história ideológica, uma ‘história’, entre aspas. Já Philip R. Davies propõe a escrita de duas histórias: uma seria sobre a ideia de exílio e sua emergência no judaísmo e na literatura judaica que venha até o século XIX, enquanto a outra seria sobre os movimentos populacionais na área, onde, de modo especulativo, até que poderia ser usada a literatura bíblica. Lester L. Grabbe acredita que uma história do exílio pode ser escrita, o mesmo acontecendo com Knud Jeppesen que propõe uma versão mais curta com os fatos históricos conhecidos e uma versão mais longa que preencheria os vazios entre os fatos com outras fontes, como o mito do exílio. Ernst Axel Knauf escreveria uma história entre 20 e 200 páginas, enquanto Niels Peter Lemche escreveria duas histórias, como Philip Davies, e, finalmente, Thomas L. Thompson escreveria uma história de umas 300 páginas baseada somente na arqueologia.

 

8. Observações finais

As reações a estas mudanças são muitas e diversas.  Há quem lamente que o consenso tradicional da ‘História de Israel’ tenha virado fumaça, como Gary A.Rendsburg no artigo de 1999, citado no começo. Há quem fique preocupado com a falência das categorias da ‘teologia bíblica’ (como paradigma teológico, hoje recusado por muitos) e procure apresentar sugestões para uma teologia bíblica futura, como Robert Karl Gnuse, em seu livro de 1997. Mas, lamentar o passado ou tentar reconstruir movimentos datados seria a solução?

Há quem se preocupe com a postura desconstrutivista e anti-histórica da pós-modernidade, que pode levar o projeto de uma ‘História de Israel’ crítica à falência. Ou que avente a hipótese de que o enorme fluxo de informações a que estamos submetidos pode estar nos levando a duvidar da existência dos ‘fatos’ e a acreditar apenas na realidade virtual, como o assiriólogo italiano Mario Liverani, membro do ‘Seminário Europeu de Metodologia Histórica’, no artigo Nuovi sviluppi nello studio della storia dell’Israele biblico, em Biblica 80 (1999) Roma, PIB, p. 488-505.

Diz Liverani nas p. 497-499 : “As mais recentes tendências de crítica textual e literária me parecem marcadas por tendências desconstrutivistas, não direcionadas para uma nova história, mas para novas teologias. Paira também sobre os estudos bíblicos a fórmula do ‘fim da história’. Parece que a colocação correta dos materiais documentários no seu contexto cronológico e contextual  específico não é mais considerada a base ou o fim último da análise do texto. O gênero literário da ‘História de Israel’ é declarado, enfim, ‘obsoleto’. Parafraseando os títulos de alguns livros recentes bastante estimulantes, há quem se pergunte se é possível escrever uma história de Israel, há quem se coloque em busca do antigo Israel como algo problemático, há quem fale claramente de uma falsificação histórica, ou de uma construção literária, ou, de qualquer maneira, de um edifício que deva ser derrubado (e não necessariamente reconstruído). O velho problema de avaliar a credibilidade de uma reconstrução histórica em relação a um referente real, de fatos realmente acontecidos, de realidades que existiram de fato, é desconsiderado quando falta o referente real. Creio que esta postura ‘pós-moderna’ (como se costuma defini-la) tenha muito a ver com a enorme proliferação dos fluxos de informação indireta e incontrolável a que estamos submetidos. A realidade da informação instantânea leva a duvidar da existência mesma do fato: é o mundo ‘virtual’ no qual estamos imersos”

Há quem entenda que muitos historiadores ainda mantêm uma postura positivista e que manifeste a firme convicção de que o futuro pertence à história narrativa, como o norueguês Hans M. Barstad, outro membro do ‘Seminário Europeu de Metodologia Histórica’.

Niels Peter Lemche

Para Barstad, as antigas categorias de fato e ficção já não são distinções válidas. Para ele, pesquisadores como Lemche e Thompson ainda se debatem dentro de um conceito convencional de história que é altamente problemático. Embora falem de ‘mudança de paradigma’ em suas contribuições para a historiografia israelita, isto está longe de ser uma descrição adequada do que está realmente acontecendo.

Em suas palavras: “Lemche e Thompson, aparentemente não atentos para o fato de que o que nós podemos chamar de um conceito convencional de história é hoje altamente problemático, ainda trabalham dentro dos parâmetros da pesquisa histórico-crítica, assumindo que história é uma ciência e que devemos trabalhar com fatos ‘brutos’”.

E defende, em seguida: “No futuro nós teremos, irreversivelmente, de nos ajustar a uma visão de história diferente daquela dos métodos histórico-críticos do século XIX: uma história com diferentes ‘verdades’ que quase nunca será o resultado de análises científicas de dados empíricos. Uma história cujo estatuto epistemológico deveria não mais ser visto como parte da ciência, mas como uma parte da cultura. Uma história caracterizada por uma multiplicidade de métodos”[17].

Enfim, muitos desafios foram lançados, mas a meta proposta pelos pesquisadores mais críticos é difícil de ser atingida. Lemche, por exemplo, classifica várias das mais conhecidas ‘Histórias de Israel’, como paráfrases dogmáticas da imagem do antigo Israel gerada na Alemanha a partir da grande influência de Martin Noth. Neste grupo estão as “Histórias de Israel” de Martin Metzger (1983), Siegfried Hermann (1973), Antonius H. J. Gunneweg (1972), Georg Fohrer (1977), Herbert Donner (1984-86), Gösta W. Ahlström (1993), J. Alberto Soggin (1984;1993), R. de Vaux (1971;1973)… Com um detalhe: S. Hermann se aproxima bastante de J. Bright, enquanto que R. de Vaux, ao tentar uma posição intermediária entre Alt/Noth e Albright/Bright, acaba retrógrado na questão patriarcal[18].

 

Atualização: 05.01.2021

Para os rumos da pesquisa  na segunda década do século XXI, recomendo a leitura, nesta mesma página, de meu artigo A história de Israel e Judá na pesquisa atual.

 

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>> Bibliografia atualizada em 24.10.2018

> Este artigo foi publicado, de forma mais resumida, em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 9, p. 42-64, 2001.

Artigos


[15]. Cf. GRABBE, L. L. (ed.) Leading Captivity Captive: The ‘Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998.

[16]. Cf. Idem, ibidem, p. 146-156.

[17]. BARSTAD, H. M. History and the Hebrew Bible, em GRABBE, L. L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? p. 50-52.

[18]. Cf. LEMCHE, N. P. The Israelites in History and Tradition. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox, 1998, p. 141.


História de Israel 3

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4. Onde está o ‘antigo Israel’?

Em 1992, Philip R. Davies, à época professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Reino Unido, publicou um provocador livro sobre o ‘antigo Israel’, In Search of ‘Ancient Israel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1992 [reimpressão em 1995, 2005  e 2. ed. por Bloomsbury T & T Clark em 2015]. argumentando que este é um construto erudito elaborado pelos estudiosos a partir do Israel bíblico e de uns poucos dados arqueológicos e não o Israel histórico, real.

A tese de Philip R. Davies é de que uma busca do ‘antigo Israel’ é hoje necessária, pois o ‘antigo Israel’ do mundo acadêmico não é uma construção histórica, além de ter desalojado da pesquisa algo que é histórico.

Davies, In Search of 'Ancient Israel'Para Philip Davies, o Israel bíblico é um problema e não um dado. Nós não podemos identificar automaticamente a população da Palestina na Idade do Ferro (a partir de 1200 a.C.) e de certo modo também a do período persa, com o ‘Israel’ bíblico. Nós não podemos transferir automaticamente nenhuma das características do ‘Israel’ bíblico para as páginas da história da Palestina. Ora, se nós temos que extrair nossa definição do povo da Palestina das relíquias sobreviventes de seu passado, isto significa excluir a literatura bíblica, conclui o autor.

Trabalhando com as definições de ‘Israel’, ‘Cananeus’, ‘Exílio’ e ‘Período Persa’, o autor conclui que é simplesmente impossível pretender que a literatura bíblica ofereça um retrato suficientemente claro do que é o seu ‘Israel’, de modo a justificar uma interpretação e aplicação históricas. E reafirma: o historiador precisa investigar a história real independentemente do conceito bíblico.

Philip R. Davies questiona a continuidade étnica entre os exilados judaítas do século VI e os que vieram da Babilônia na época persa para repovoar Yehud. Sobre a literatura bíblica, que tem outra versão dos fatos, diz Davies que ela foi inventada nas épocas persa e grega, surgindo assim a possibilidade do judaísmo em sentido cultural e, muito importante, como um produto de exportação. Na produção da literatura bíblica, não havia tradição a ser colocada por escrito: as estórias foram inventadas e depois organizadas na sequência atual.

E, no último capítulo do livro, Philip R. Davies sugere que o Estado Asmoneu (ou Macabeu) é que viabilizou, de fato, a transformação do Israel literário em um Israel histórico, por ser este o momento em que os reis-sacerdotes levaram o país o mais próximo possível do ideal presente nas leis bíblicas. A Bíblia, como uma criação literária e histórica é um conceito asmoneu, garante o autor[11].

De modo geral, o livro nos deixa muito incomodados, alcançando o seu objetivo. Se toda a argumentação do autor não passa de um exercício de imaginação, e tem alguma chance de ser real, a nossa leitura atual da Bíblia deveria ser profundamente questionada.

 

5. Existiu um império davídico-salomônico?

Em 1996 foi publicado um livro editado por Volkmar Fritz & Philip R. Davies sobre As Origens dos Antigos Estados Israelitas, no qual é apresentada a recente controvérsia sobre a existência ou não de uma monarquia unida em Israel e, especialmente, de um império davídico-salomônico.

O livro traz dez conferências de renomados especialistas apresentadas em um Colóquio Internacional realizado em Jerusalém sob os auspícios do Instituto Protestante Alemão de Arqueologia, dirigido por Volkmar Fritz. O Colóquio teve como tema A Formação de um Estado. Problemas Históricos, Arqueológicos e Sociológicos no Período da Monarquia Unida em Israel. Do colóquio participaram pesquisadores israelenses, europeus e norte-americanos.

Na Introdução Philip Davies começa lembrando que o debate sobre a formação dos estados israelita e judaico, que já vinha sendo feito, esquentou bastante com a descoberta, em 1993, da inscrição de Tel Dan.

Nesta polêmica inscrição, alguns especialistas leem um par de palavras como uma referência a um rei da “casa de Davi” – o que faria desta inscrição a primeira e, até agora, única referência extrabíblica a Davi e a seu reino -, enquanto outros preferem outras leituras, negando, deste modo, qualquer apoio deste texto à existência de um reino davídico na região da Palestina.

Aqui uma pausa para explicar o que é a Inscrição de Tel Dan.

Na localidade de Tel Dan, norte de Israel, em julho de 1993, em escavação sob a direção do arqueólogo israelense Avraham Biran, foi descoberto um fragmento de uma estela de basalto de 32 por 22 cm, com uma inscrição em aramaico, publicada por A. Biran e J. Naveh em novembro de 1993. Cerca de 12 meses mais tarde, dois outros fragmentos menores foram descobertos na mesma localidade, mas em um ponto diferente do primeiro. Os arqueólogos agruparam os três fragmentos, avaliando serem partes da mesma estela e produzindo um texto coerente. Datada no século IX a.C., a inscrição foi aparentemente escrita pelo rei Hazael de Damasco, na qual ele se vangloria de ter assassinado dois reis israelitas, Jorão (de Israel) e Ocozias (de Judá) e de ter instalado Jeú no trono de Israel, o que teria ocorrido por volta de 841 a.C. (estes episódios, com enfoque diferente, são narrados em 2Rs 8,7-10,36).

Inscrição de Tel Dan

Mas o que causou grande rebuliço foi um termo encontrado no fragmento maior: bytdwd. Aparentemente, a tradução mais provável seria casa de Davi. Daí, a grande novidade: seria esta a primeira menção extrabíblica da dinastia davídica e até mesmo da existência do rei Davi, do qual só temos (ou tínhamos) informações na Bíblia Hebraica.

Porém, contestações a tal leitura continuaram a ser feitas, pois outras traduções são possíveis, como casa do amado, lendo-se dwd não como “David”, mas como dôd, um epíteto para a divindade, Iahweh, no caso; ou, também, bytdwd poderia ser o nome de uma localidade. Ainda: os fragmentos menores são seguramente parte de uma mesma pedra, mas é incerto se eles pertencem à mesma estela do qual o maior faz parte. Qual é o problema? É que, se bytdwd está no fragmento maior, os nomes dos dois reis, sendo um deles, Ocozias, segundo a Bíblia, davídico, estão nos fragmentos menores. E a leitura “casa de Davi” seria induzida por esta segunda informação.

A polêmica não está encerrada, como se pode ver em artigo do professor de Estudos Semíticos da Universidade La Sapienza, de Roma, Giovanni Garbini, “The Aramaic Inscription from Tel Dan” ou nas conclusões de Niels Peter Lemche em seu livro The Israelites in History and Tradition. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox, 1998, p. 38-43.

Para uma posição contrária a estes dois autores, que recusam a leitura “casa de Davi”, podem ser lidos os ensaios de Carl S. Ehrlich e Guy Couturier em DAVIAU, P. M. M.; WEVERS, J. W.; WEIGL, M. (eds.) The World of the Aramaens; Biblical Studies in Honour of Paul-Eugène Dion, vol. II. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2001, p. 57-71 e 72-98, respectivamente.

Um das primeiras obras interessantes sobre o assunto foi a tese de George Athas, publicada em 2003, e posteriormente relançada: ATHAS, G. Tel Dan Inscription: A Reappraisal and a New Introduction. London: T & T Clark, 2009. Uma resenha da obra, feita por Richard S. Hess, pode ser lida na revista CBQ Vol. 67, No. 2, de abril de 2005, p. 305-306.

Ver também duas obras de  HAGELIA, H. The Tel Dan Inscription: A Critical Investigation of Recent Research on Its Palaeography and Philology. Uppsala: Uppsala University Press, 2006 e The Dan Debate: The Tel Dan Inscription in Recent Research. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009. G. Athas resenha, na RBL, em 08/09/2010, este último livro de Hallvard Hagelia.

Voltemos a Philip R. Davies, que emenda com os temas tratados neste livro: O que teria sido este primeiro ‘estado Israelita’? Um reino unido, composto pelas tribos de Israel e Judá, dominando todo o território da Palestina e, posteriormente, sendo dividido em reinos do ‘norte’ e do ‘sul’? Ou seria tudo isto mera ficção, não tendo Israel e Judá jamais sido unidos? O que teria acontecido na região central da Palestina nos séculos X e IX AEC?

Vou citar dois estudos apresentados neste Colóquio de Jerusalém que retratam bem a dimensão do problema.

Christa Schäfer-Lichtenberger, da Alemanha, em Sociological and Biblical Views of the Early State, começa constatando que muitos autores defendem atualmente uma reconstrução da sociedade israelita do século X apenas com o uso da arqueologia e das fontes do Antigo Oriente Médio.

Entretanto, o silêncio destas duas fontes – ao contrário do texto bíblico – leva estes autores à negação da existência de um Estado israelita no século X ou à afirmação de que estes primeiros reis e sua organização política nada mais são do que projeções pós-exílicas ideologicamente motivadas de figuras idealizadas dos primeiros tempos. Assim, diz ela, antes de falar da emergência do Estado, é necessário fazer algumas considerações sobre esta situação.

Christa diz que a ausência de documentos escritos no Antigo Oriente Médio sobre Israel na Idade do Ferro I (ca. 1200-900 a.C.) pode ter quatro causas, cada uma independente da outra:

a) Não existiu uma entidade política de nome Israel nesta época

b) Síria/Palestina, Egito e Assíria não conseguiram hegemonia política sobre esta região nesta época, e, por isso, nada registraram

c) Os textos não sobreviveram porque foram registrados em papiros

d) Os escritos ainda não foram encontrados.

Christa é de opinião que as causas b e d oferecem uma explicação suficiente para o silêncio do Antigo Oriente Médio.

Em seguida, ela trata da ausência de monumentos e inscrições em monumentos nesta época na região e justifica tal ausência dizendo que não se deve colocar Judá-Israel no mesmo nível do Egito ou da Assíria, onde tais achados arqueológicos são comuns, pois Estados com estruturas pequenas ou médias não podem ser medidos pelos mesmos critérios de grandes impérios. E mesmo que inscrições em monumentos tenham existido, elas estariam em Jerusalém, onde dificilmente teriam sobrevivido às reformas religiosas de reis como Josias – por conterem nomes de outras divindades além de Iahweh – ou às maciças destruições militares de que a cidade foi vítima.

Deste modo, com estes e semelhantes argumentos, Christa vai finalizar este “excursus” sobre o que ela chama de suposições implícitas do historicismo positivista, com a conclusão de que a arqueologia não resolverá este debate, que é essencialmente teórico. Teoria que ela vai, em seguida, tentar formular, começando pela discussão sobre a noção do Estado como uma forma de organização política. Noção que ela definirá através do uso de estudos etnosociológicos de Georg Jellinek, Max Weber e Henri Claessen.

Claessen e outros estabeleceram que para se explicar a origem de um Estado é preciso considerar a emergência de vários fatores, tais como o crescimento da população e suas necessidades, as guerras e as ameaças de guerras, as conquistas e invasões, o desenvolvimento da produção e o aparecimento do excedente, a cobrança de tributos, o surgimento de uma ideologia comum e conceitos de legitimação dos governantes, além da influência dos Estados vizinhos já existentes.

Seguindo especialmente Henri Claessen, Christa vai distinguir três fases de desenvolvimento do Estado primitivo: o estado primitivo incoativo, o estado primitivo típico e o estado primitivo de transição. O processo de desenvolvimento de uma fase para outra passa pelo enfraquecimento dos laços de parentesco e o fortalecimento das ações políticas centralizadas, pela transformação da posse comum da terra em propriedade privada dos meios de produção e pela substituição de uma economia de trocas de bens e serviços em uma economia de mercado, fortalecendo o antagonismo de classes, até o desenvolvimento de especializações por parte de oficiais estatais, o estabelecimento da taxação regular e constante, a codificação de leis e a constituição de estruturas jurídicas controladas pelo poder central.

Em seguida, considerando sete critérios usados tanto por Weber como por Claessen, segundo a autora, – população, território, governo centralizado, independência política, estratificação, produção de excedente e tributos, ideologia comum e conceitos de legitimação – e usando os dados do Deuteronomista, Christa vai classificar o reino de Saul como um estado incoativo e o reino de Davi como um estado compósito, pois este último, pelos critérios de governo centralizado, estratificação social e produção de excedente, é ainda um estado incoativo, embora já possua algumas características de estado primitivo típico, mas pelos critérios de população, território, independência política e ideologia, ele já é um estado de transição.

Niels Peter Lemche, da Dinamarca, em From Patronage Society to Patronage Society, introduz o conceito de sociedade patronal [patronage society] para explicar a variedade social da Síria, e especialmente da Palestina, no Período do Bronze Recente (ca. 1500-1200 a.C.).

Este modelo, frequentemente chamado de ‘sistema social mediterrâneo’ parece ter sido onipresente em sociedades com um certo grau de complexidade, mas que não constituíam ainda Estados burocráticos. E Lemche define como típico de uma sociedade patronal sua organização vertical, onde no topo encontramos o patrono [patron], um membro de uma linhagem líder, e abaixo dele seus clientes [clients], normalmente homens e suas famílias.

Lemche explica que a ligação entre patrono e cliente é de tipo pessoal, com juramento de lealdade do cliente ao patrão e de proteção do patrono para o cliente. Em tal sociedade, códigos de leis não são necessários: ninguém vai dizer ao patrono como julgar.

A crise da Palestina que aparece nas Cartas de Tell el-Amarna (século XIV a.C.) pode ser explicada, segundo Lemche, a partir desta realidade: os senhores das cidades-estado palestinas veem o faraó como seu patrono e reivindicam sua proteção em nome de sua fidelidade; porém, o Estado egípcio não os vê do mesmo modo e os trata de modo impessoal, seguindo normas burocráticas. Daí, a (falsa) percepção dos pequenos reis das cidades de Canaã de que foram abandonados pelo faraó, que não está cuidando de seus interesses na região.

Sem dúvida, houve uma crise social na Palestina no final do Bronze Recente. E a proposta de Lemche para o que pode ter acontecido é a seguinte: as fortalezas do patrono foram substituídas por estruturas locais, por povoados, organizados sem um sistema de proteção como o do patrono – o assim chamado ‘rei’ – ou com patronos locais.

Portanto, o aparecimento dos povoados da região montanhosa do centro da Palestina representa, simplesmente, um intervalo entre dois períodos de sistemas patronais mais extensos e melhor estabelecidos. Pois o que aconteceu no século X a.C. foi, de fato, o restabelecimento de um sistema patronal semelhante ao anterior[12].

Já Finkelstein e Silberman, em The Bible Unearthed, p. 123-145, tratando da possibilidade de um Império davídico-salomônico, aceitam a leitura da inscrição de Tel Dan como uma referência à casa de Davi e também a referência similar que pode ser lida na Estela de Mesha, rei de Moab no século IX AEC, encontrada no século XIX a leste do Mar Morto. Mas se perguntam: o que diz a arqueologia palestina sobre Davi e Salomão?

Examinando o território de Judá entre os séculos XII e X AEC, sua conclusão é de que a região possuía escassa população permanente, permanecendo isolada e à margem dos acontecimentos durante o período em que Davi e Salomão teriam governado.

A Jerusalém das épocas do Bronze Recente e da Idade do Ferro I foi, por sua vez, exaustivamente escavada nas décadas de 70 e 80 do século passado por Yigal Shiloh, da Universidade Hebraica de Jerusalém. “De modo surpreendente, como o arqueólogo da Universidade de Tel Aviv David Ussishkin apontou, o trabalho de campo ali [na cidade de Davi] e em outras partes de Jerusalém falhou em conseguir evidência significativa de uma ocupação no século décimo (…) A reavaliação mais otimista desta evidência negativa é de que a Jerusalém do século décimo deveria ser bastante limitada em tamanho, talvez não mais do que um típico povoado de montanha”, dizem na p. 133.

Por isso, concluem os autores, é altamente improvável que uma região escassamente habitada como o Judá do século X AEC e um povoado tão pequeno como Jerusalém pudessem ter se tornado o centro de um tão grande império, que ia do Mar Vermelho, no sul, à Síria, no norte, como diz a tradição bíblica sobre a época de Davi.

O mesmo vale para Salomão. Em Jerusalém não foram encontrados traços de um palácio e um Templo salomônicos. Mas e nas cidades de Meguido, Hasor e Gezer, que segundo 1Rs 9,15, foram reconstruídas por Salomão? Aqui grande polêmica foi gerada entre os arqueólogos, mas repetidas pesquisas levam à conclusão, dizem os autores, de que as monumentais portas e palácios destas cidades não devem ser atribuídas a Salomão, mas a reis que governaram o reino de Israel cerca de um século mais tarde.

Há construções salomônicas em Gezer?

Um  bom exemplo da dura polêmica gerada por esta questão pode ser lida no texto de Thomas L. THOMPSON, Historiography of Ancient Palestine and Early Jewish Historiography: W. G. Dever and the Not So New Biblical Archaeology, no acima citado FRITZ, V. ; DAVIES, P. R. (eds.) The Origins of the Ancient Israelite States, p. 26-43. Thompson faz de seu texto um feroz ataque a Dever, a quem acusa de não desenvolver, de fato, uma nova arqueologia, mas de estar ancorado no velho paradigma de W. F. Albright de busca da harmonia entre os dados arqueológicos e os textos bíblicos.

Neste esforço para harmonizar arqueologia e Bíblia, Thompson diz que Dever defendeu a relação de Gezer com Salomão, escavando a porta da cidade, em 1967, por assim dizer, com a Bíblia na mão (p. 30) o que Dever nega em artigo de 1990. E na nota 23 da p. 31, Thompson, que participou desta escavação, chega a acusar Dever de manipular a publicação dos dados arqueológicos para fazer valer sua teoria prévia, descrita na Bíblia. Mas, como diz ironicamente Philip Davies na apresentação deste texto, na p. 17, a bota está normalmente no pé de quem chuta e Thompson não pareceu ter excessiva simpatia pelo alvo, especialmente porque Dever fora convidado para o colóquio. E lá pelo meio do texto sobrou bota também para B. Halpern!

Nas p. 35-36 Thomas L. Thompson aponta 5 problemas na metodologia de W. G. Dever: a) a infundada suposição de que a tradição bíblica do livro dos Juízes se fundamenta em uma memória histórica; b) a crença de que a história das origens de Israel pode ser escrita fazendo-se uma síntese da Bíblia com a arqueologia; c) a convicção de que as origens de Israel podem ser descobertas através de uma descrição da transição do Bronze Recente para a Idade do Ferro; d) o pressuposto ingênuo de que Israel teve suas origens em uma região da Palestina que, séculos mais tarde, será identificada através de nomes de lugares ditos como pertencentes a Israel pelas tradições canônicas bíblicas e, de outro lado, a negação de que Israel possa ter surgido em lugares diferentes destes mencionados pela visão bíblica do passado; e) finalmente, a fé fundamentalista na existência de uma monarquia israelita durante o X século como um dado histórico inquestionável. Com a inevitável pergunta: “O que é novo nesta arqueologia?” (p. 36).

A polêmica entre os dois pode ser vista também em publicações posteriores: DEVER, W. G. What Did the Biblical Writers Know and When Did They Know It? What Archaeology Can Tell Us about the Reality of Ancient Israel. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2001 e THOMPSON, T. L. On Reading the Bible for History: A Response, em Journal of Biblical Studies 1:3 (Jul.-Sept. 2001).

 

6. Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita?

Um grupo de 21 pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades iniciou o Seminário Europeu de Metodologia Histórica. Este grupo surgiu com o objetivo de abordar as questões centrais da ‘História de Israel’ de maneira sistemática e de determinar as reais posições e problemas da área. O seu coordenador foi Lester L. Grabbe, Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Antigo e, à época da criação do grupo, Coordenador do Departamento de Teologia da Universidade de Hull, Reino Unido.

Explica Lester L. Grabbe que o debate sobre o modo como a ‘História de Israel’ tem sido escrita veio se acirrando cada vez mais nos últimos anos, e muitos pesquisadores têm sofrido ataques radicais. Surgiram protestos, por exemplo, dizendo que as tendências atuais da ‘História de Israel’ são perigosas e que, por isso, devem ser combatidas ou ignoradas ou, até mesmo, as duas coisas ao mesmo tempo.

Lester L. Grabbe está se referindo à controvérsia existente entre a postura maximalista que defende que tudo nas fontes que não pode ser provado como falso deve ser aceito como histórico e a postura minimalista que defende que tudo que não é corroborado por evidências contemporâneas aos eventos a serem reconstruídos deve ser descartado.

Os autores ‘minimalistas’ são também conhecidos como membros da Escola de Copenhague, pois alguns dos mais importantes entre eles, como Niels Peter Lemche e Thomas L. Thompson, trabalham na capital dinamarquesa. Entretanto, nem todos os participantes do Seminário se consideram ‘minimalistas’, categoria que, aliás, gera polêmica, como se pode ver em artigo de 2002 de DAVIES, P. R. Minimalism, “Ancient Israel,” and Anti-Semitism. “Minimalism” is an invention. None of the “minimalist” scholars is aware of being part of a school, or a group, em The Bible and Interpretation.

O grupo fez vários seminários. Em julho de 1996 foi realizado em Dublin, Irlanda, o Primeiro Seminário, dedicado a tomadas de posição. Todos as conferências abordaram de um modo ou de outro as duas questões seguintes: Pode uma ‘História de Israel’ ser escrita e, caso possa, como? Que papel exerce neste empreendimento o texto do Antigo Testamento/da Bíblia Hebraica?

O Segundo Seminário, sobre O Exílio, aconteceu em Lausanne, na Suíça, em julho de 1997, e a obra publicada pela Editora Sheffield, da Inglaterra, e editada por L. L. Grabbe, tem por título Leading Captivity Captive. ‘The Exile’ as History and Ideology [Conduzindo um Cativo ao Cativeiro. ‘O Exílio’ como História e Ideologia], 1998, 161 p. Falarei dele mais adiante.

O Terceiro Seminário procurou responder à desafiadora questão, formulada por Niels Peter Lemche: A Bíblia é um livro helenístico? Lester L. Grabbe foi novamente o editor das contribuições em um volume de 343 páginas. A Editora Sheffield publicou, em março de 2001, a obra Did Moses Speak Attic? Jewish Historiography and Scripture in the Hellenistic Period [Moisés falava Ático? Historiografia Judaica e Escritura na Época Helenística], que, na verdade, reúne as contribuições do Terceiro e do Quarto Seminário.

O Seminário do ano 2000 [quinto encontro] foi realizado em Utrecht, nos Países Baixos, em agosto, e o tema debatido foi a Invasão de Judá por Senaquerib. A Editora Sheffield publicou, em 2003, o volume ‘Like a Bird in a Cage’: The Invasion of Sennacherib in 701 BCE [‘Como um Pássaro numa Gaiola’: A Invasão de Senaquerib em 701 AEC].

Não tenho informações mais detalhadas sobre os dois encontros seguintes do Seminário Europeu de Metodologia Histórica, mas eles aconteceram em 2001 (em junho, em Berlim) e 2002. Em um e-mail de Niels Peter Lemche, com data de 03.01.2003 ao grupo de discussão ANE, respondendo a uma solicitação minha sobre o assunto, ele diz literalmente: “The group met also in 2001 and 2002. A combined volume will be published by Lester Grabbe. The group will meet again in August this year [2003] in Copenhagen at the 2nd meeting of the EABS”.

Dos Seminários de 2001-2002 [sexto e sétimo encontros] resultou o livro GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings. London: T & T Clark, 2005, que tratou de Judá do século VII a.C., e, em especial, do reinado de Josias. Há resenhas na RBL por John Engle and Eckart Otto, publicadas em 1 de abril de 2006.

Em 2004 [nono encontro] o grupo debateu O Período Persa, e isto aconteceu em Groningen, Países Baixos, em julho.

Em 2005 [décimo encontro] o grupo esteve presente na EABS – European Association of Biblical Studies – em seu Encontro Anual, desta vez em Dresden, Alemanha, de 7 a 10 de agosto. Discutiu o tema Recent publications Relating to Biblical Historiography [Publicações recentes na área da Historiografia Bíblica]. Estão citadas as seguintes publicações:
Rainer Albertz, Israel in Exile (Axel Knauf, Bern)
John Day (ed.), In Search of Pre-exilic Israel (Bob Becking, Utrecht and Thomas Thompson, Copenhagen)
W. G. Dever, What Did the Biblical Writers Know? and Who Were the Early Israelites? (Rainer Albertz, Münster)
Lester Grabbe, History of the Persian Province of Judah (Ehud Ben Zvi, Edmonton)
Baruch Halpern, David’s Secret Demons (Axel Knauf, Bern)
James Hoffmeier and Alan Millard, The Future of Biblical Archaeology (Thomas Thompson, Copenhagen)
Mario Liverani, Oltre la Bibbia (Joseph Blenkinsopp (Notre Dame) and Philip Davies (Sheffield)
Iain Provan, V. Philips Long, and Tremper Longman, A History of Biblical Israel (Lester Grabbe, Hull)
Alberto Soggin, Storia d’Israele (Lester Grabbe, Hull)
J. B. Kofoed, Text and History (N. P. Lemche, Copenhagen).

O Seminário de 2006 [décimo primeiro encontro] aconteceu em agosto, em Budapeste, na Hungria. Veja aqui. Seu tema foi A Transição do Bronze Recente para o Ferro IIA (ca. 1250-850 BCE).

O Seminário de 2007 [décimo segundo encontro] aconteceu em julho, em Viena, Áustria, dentro do Congresso Internacional da SBL. Segundo o programa da SBL, o grupo continuou a tratar do tema de 2006, citado acima. Presidido por Lester L. Grabbe, da Universidade de Hull, Reino Unido, o painel teve [segundo o programa] a participação de Rainer Albertz, A. Grame Auld, Ehud Ben Zvi, Joseph Blenkinsopp, Marc Brettler, Philip R. Davies, Israel Finkelstein, Axel Knauf, Niels Peter Lemche, Oded Lipschits, Robert Miller, Nadav Na’aman, Donald Redford, Thomas Römer, Thomas L. Thompson e John Van Seters. Sobre o Seminário de 2008, leia aqui.

O Seminário de 2012, o décimo sétimo e último, foi realizado em Amsterdã, Holanda, como parte do Congresso da EABS/SBL (22-26 de julho). Os membros do Seminário fizeram apresentações sobre suas perspectivas para a escrita de uma História de Israel (ou do Levante Sul) e refletiram sobre o que aprenderam desde o Primeiro Seminário, realizado em 1996.

Membros do Seminário em 2012 incluem, segundo o programa: Hans Barstad, Edinburgh; Bob Becking, Utrecht; Ehud Ben Zvi, Edmonton; Joseph Blenkinsopp, Notre Dame; Philip Davies, Sheffield; Diana Edelman, Sheffield; Philippe Guillaume, Bern; Axel Knauf, Bern; Niels Peter Lemche, Copenhagen; Nadav Na’aman, Tel Aviv; Thomas L. Thompson, Copenhagen.

Na ocasião, Lester L. Grabbe, da Universidade de Hull, Reino Unido, coordenador do grupo, apresentou os resultados de 16 anos do Seminário Europeu de Metodologia Histórica (Sixteen Years of the ESHM: the Results – This paper will summarize the results of the ESHM meetings from my perspective as the ESHM organizer and editor) e disse que este é o último encontro regular do grupo, que passa agora o bastão para as novas gerações de biblistas que trabalham com história: As its 17th meeting in 2012, the ESHM will draw a close to its regular meetings. Although we might get together for certain special discussions in the future, we feel that we have accomplished our main purpose and wish to pass the torch to a younger generation of biblical scholars who work in history.

Pois bem. No volume que traz as discussões do Primeiro Seminário, a conclusão, escrita por Lester L. Grabbe, é esclarecedora. Aí ele diz que muitos desentendimentos entre os pesquisadores foram sendo percebidos, com o desenrolar-se do seminário, como meras diferenças verbais e não como posturas verdadeiramente inconciliáveis[13].

Lester L. Grabbe, Can a 'History of Israel' Be Written?Por outro lado, todos concordaram que uma história da antiga Palestina, Síria, Levante ou qualquer outro nome que se use, deve considerar toda a região e todos os povos que nela viveram. Tratar a história de uma ‘nação’ específica como a história é um erro. Especialmente quando tal história tende a tratar os outros povos, dela excluídos, como inferiores, insignificantes, dignos de extermínio ou mesmo como não existentes.

“Direcionar toda a nossa atividade filtrada por uma visão específica do ‘antigo Israel’, como tem sido frequentemente feito, para uma ‘história bíblica’, uma ‘arqueologia bíblica’, uma ‘geografia bíblica’ etc, é simplesmente escrever história fictícia”, afirma o autor[14]. Mesmo o uso do termo ‘Israel’ em sentido político é problemático. Tanto mais o será escrever uma ‘história de Israel’ como a história de uma entidade étnica.

Ninguém negou a existência de um ‘reino de Israel’, assim como de um ‘reino de Judá’, testemunhados pela Assíria, mas os participantes do seminário fizeram objeções a duas concepções: uma é a de que o construto literário do ‘Israel bíblico’ pode ser diretamente traduzido em termos históricos; e a outra é a de que ‘Israel’ deve canalizar e dominar o estudo da região na antiguidade. A descrição bíblica de um grande império israelita foi tratada com muito ceticismo.

Concordou-se, também, que as implicações da pós-modernidade para a questão histórica devem ser levadas a sério, mas, ao mesmo tempo, isso não significa abandonar a tarefa histórica. O problema da postura positivista dos historiadores é sério, e a questão de uma mudança de paradigma ainda precisa ser mais bem trabalhada, pois não se sabe a que resultados tal mudança conduziria.

Isto leva também à pergunta sobre o que os pesquisadores entendem por história: o que se verificou foi uma grande diversidade de sentidos e debateu-se sobre como fazer história da Palestina/Síria daqui para frente. Deveriam os historiadores abandonar a forma narrativa? Ou assumir de vez uma história narrativa? Será que o melhor modo de fazer história não seria através da proposta de uma série de questões abertas ao debate?

O uso do texto bíblico na escrita da ‘história de Israel’ acabou sendo, como se pode perceber nos vários capítulos do livro, uma questão polêmica. E disto não havia muito como escapar, pelo simples fato de que muitas ‘histórias de Israel’ influentes nada mais têm sido do que uma paráfrase racionalista do texto bíblico.

Por causa disso, alguns, como Robert Carroll, classificam qualquer história de Israel como fictícia, enquanto outros como Niehr, Becking e Grabbe acreditam que o texto bíblico usado cuidadosa e criticamente é um elemento válido para um empreendimento deste tipo. Quanto a isto, parece haver quatro possíveis atitudes:

. Assumir a impossibilidade de se fazer história: apesar da posição mais radical de Carroll, ninguém empreendeu esta via.

. Ignorar o texto bíblico como um todo e escrever uma história fundamentada apenas nos dados arqueológicos e outras evidências primárias: esta é a postura verdadeiramente ‘minimalista’, mas o problema é que, sem o texto bíblico, muitas interpretações dos dados tornam-se extremamente difíceis, e, por isso, ninguém no seminário assumiu tal atitude

. Dar prioridade aos dados primários, mas fazendo uso do texto bíblico como fonte secundária usada com cautela: praticamente todos os membros do seminário ficaram nesta posição 3 ou, talvez, entre a 2 e a 3. Mas, é preciso observar que todos penderam mais para o lado ‘minimalista’ deste espectro.

. Aceitar a narrativa bíblica sempre, exceto quando ela se mostra como absolutamente falseada: esta é a postura ‘maximalista’, e – nem é preciso dizer – ninguém no seminário a defendeu.

O fato é que as posturas 1 e 4 são inconciliáveis e estão fora das possibilidades de uma ‘história de Israel’ mais crítica: isto porque a 1 rejeita a possibilidade concreta da história e a 4 trata o texto bíblico com peso diferente das outras fontes históricas. Somente o diálogo entre as posições 2 e 3 podem levar a um resultado positivo, conclui Lester L. Grabbe.

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[11]. Cf. DAVIES, P. R. In Search of ‘Ancient Israel’: A Study in Biblical Origins. 2. ed. London: Bloomsbury T & T Clark, 2015.

[12]. Cf. FRITZ, V. ; DAVIES, P. R. (eds.) The Origins of the Ancient Israelite States. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996. O ensaio de Christa está nas p. 78-105 e o de Lemche nas p. 106-120.

[13]. Cf. GRABBE, L. L. (ed.) Can a ‘History of Israel’ Be Written? Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, relançado por T. & T. Clark em 2005.

[14]. Idem, ibidem, p. 189.


História de Israel 2

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3. Israel: Canaã transformado?

Em 1979 o norte-americano Norman K. Gottwald publicou seu polêmico livro The Tribes of Yahweh: A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1050 B.C.E. [As Tribos de Iahweh: Uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C.]. Maryknoll, New York: Orbis Books, no qual ele avança por quase mil páginas em favor de uma revolta camponesa ou processo de retribalização que explicaria as origens de Israel. Mas, em um artigo anterior, de 1975, didaticamente, Gottwald expõe sua tese então em desenvolvimento, e que usarei aqui para sintetizar seus pontos fundamentais[6].

Gottwald propõe um modelo social para o Israel primitivo que segue as seguintes linhas: “O Israel primitivo era um agrupamento de povos cananeus rebeldes e dissidentes, que lentamente se ajuntavam e se firmavam caracterizando-se por uma forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada. Esse se desligar da forma de organização social da cidade-estado tomou a forma de um movimento de ‘retribalização’ entre agricultores e pastores organizados em famílias ampliadas economicamente autossuficientes com acesso igual aos recursos básicos”.

Norman K. Gottwald, As tribos de IahwehPara Gottwald “a religião de Israel, que tinha seus fundamentos intelectuais e cultuais na religião do antigo Oriente Médio cananeu, era idiossincrática e mutável, ou seja, um ser divino integrado existia para um integrado e igualitário povo estruturado. Israel tornou-se aquele segmento de Canaã que se separou soberanamente de outro segmento de Canaã envolvendo-se na ‘política de base’ dos habitantes dos povoados organizados de forma tribal contra uma ‘política de elite’ das hierarquizadas cidades-estado”[7].

Assim, Gottwald vê o tribalismo israelita como uma forma escolhida por pessoas que rejeitaram conscientemente a centralização do poder cananeu e se organizaram em um sistema descentralizado, onde as funções políticas ou eram partilhadas por vários membros do grupo ou assumiam um caráter temporário. O tribalismo israelita foi uma revolução social consciente – uma guerra civil, se quisermos – que dividiu e opôs grupos que previamente viviam organizados em cidades-estado cananeias. E Gottwald termina seu texto dizendo que o modelo da retribalização levanta uma série de questões para posterior pesquisa e reflexão teórica.

Realmente, o livro de Gottwald suscitou uma grande polêmica e polarizou as atenções dos especialistas durante muito tempo. O modelo da retribalização ou da revolta camponesa passou a ser citado como uma alternativa bem mais interessante do que os modelos anteriores e fez surgir outras tentativas de explicação das origens de Israel.

Muitas críticas também foram formuladas a Gottwald, sendo a de maior consistência a do dinamarquês Niels Peter Lemche, que em Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy [Antigo Israel. Estudos Antropológicos e Históricos sobre a Sociedade Israelita antes da Monarquia], analisa longamente os fundamentos do modelo de Gottwald[8].

Segundo Lemche, Gottwald fundamenta suas teorias no estudo de Morton Fried, The Evolution of Political Society. New York: Random, 1967, mas faz um uso eclético de outras teorias e autores, de uma maneira que dificilmente qualquer um deles aprovaria. Mas a contenda principal de Lemche com Gottwald é que, segundo ele, os modelos derivados da corrente antropológica do “evolucionismo cultural” desconsideram a variável chamada Homem (enquanto indivíduo livre e imprevisível em suas ações) por não ser controlável.

Outro problema do ecletismo de Gottwald é que, embora se reporte às vezes a Marx, faz uma leitura do Israel pré-monárquico segundo a tradição durkheimiana.

Não se deve esquecer, porém, que a teoria de uma revolta camponesa foi primeiro defendida pelo norte-americano George Mendenhall em 1962, em um artigo chamado The Hebrew Conquest of Palestine, publicado na revista Biblical Archaeologist 25, p. 66-87. Hoje o artigo pode ser lido também em CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 1996, p. 152-169.

Aproximando o conceito de hebreu ao de Hab/piru, e utilizando as cartas de Tell el-Amarna, Mendenhall procura demonstrar que ninguém podia nascer hebreu já que este termo indica uma situação de ruptura de pessoas e/ou grupos com a fortemente estratificada sociedade das cidades cananeias. E conclui: “Não houve uma real conquista da Palestina. O que aconteceu pode ser sumariado, do ponto de vista de um historiador interessado somente nos processos sociopolíticos, como uma revolta camponesa contra a espessa rede de cidades-estado cananeias”. Estes camponeses revoltados contra o domínio das cidades cananeias se organizam e conquistam a Palestina, continua Mendenhall, “porque uma motivação e um movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-os capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze” (p. 158-159).

Esta motivação religiosa é a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos… Por isso a tradição da aliança é tão importante na tradição bíblica, pois esta é o símbolo formal através da qual a solidariedade era tornada funcional.  A ênfase na mesma herança tribal, através dos patriarcas, e na identificação de Iahweh com o “deus dos pais”, pode ser creditada à teologia dos autores da época da monarquia e do pós-exílio que deram motivações políticas a uma unidade que foi criada pelo fator religioso.

Mas será que esta tese de Mendenhall se sustenta? Alguns acreditam que não. Niels Peter Lemche, em “On the Use of “System Theory”, “Macro Theories”, and Evolutionistic Thinking” in Modern Old Testament Research and Biblical Archaeology, em CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 279, por exemplo, critica Mendenhall por seu uso arbitrário de macro teorias antropológicas, e especialmente por seu uso eclético destas teorias, coisa que os teóricos da antropologia não aprovariam de modo algum.

Sem dúvida, seu ponto mais crítico é o idealismo que permeia o seu estudo e coloca o “javismo”, um javismo não muito bem explicado, mas principalmente só o javismo e nenhuma outra esfera da vida daquele povo,  como a causa da unidade solidária que faz surgir Israel.

Mas, como nos lembra R. K. Gnuse, as descobertas arqueológicas dos últimos anos encorajaram os pesquisadores na elaboração de novas maneiras de compreender as origens de Israel. As escavações de localidades tais como Ai, Khirbert Raddana, Shiloh, Tel Quiri, Bet Gala, Izbet Sarta, Tel Qasileh, Tel Isdar, Dan, Arad, Tel Masos, Beer-Sheba, Har Adir, Horvart Harashim, Tel Beit Mirsim, Sasa, Giloh, Horvat ‘Avot, Tel en-Nasbeh, Beth-Zur e Tel el-Fûl, deixaram os arqueólogos impressionados com a continuidade existente entre as cidades cananeias das planícies e os povoados israelitas das colinas. A continuidade está presente sobretudo na cerâmica, nas técnicas agrícolas, nas construções e nas ferramentas.

O crescente consenso entre os arqueólogos é de que a distinção entre cananeus e israelitas no primeiro período do assentamento na terra é cada vez mais difícil de ser feito, pois estes parecem constituir um só povo. As diferenças entre os dois aparecem apenas mais tarde. Por isso, os arqueólogos começam a falar cada vez mais do processo de formação de Israel como um processo pacífico e gradual, a partir da transformação de parte da sociedade cananeia. “A teoria sugere que, de alguma maneira, cananeus gradualmente tornaram-se israelitas, acompanhando transformações políticas e sociais no começo da Idade do Ferro”[9].

Os defensores deste ponto de vista argumentam com o declínio cultural ocorrido no Bronze Recente, com a deterioração da vida urbana causada pelas campanhas militares egípcias, com a crescente tributação, e, talvez, com mudanças climáticas. Mas o processo de evolução pacífica de onde surgiu Israel é descrito de maneira diferente pelos especialistas, de modo que R. K. Gnuse prefere classificar as teorias em quatro categorias, que são: retirada pacífica, nomadismo interno, transição ou transformação pacífica e amálgama pacífico [10].

 

Retirada pacífica

Como defensores de uma retirada pacífica de grupos cananeus das planícies para as regiões montanhosas, R. K. Gnuse cita especialmente Joseph Callaway, David Hopkins, Frank Frick, James Flanagan, Gösta Ahlström e Carol Meyers. Algumas de suas obras:

CALLAWAY, J. Village Subsistence at Ai and Raddana in Iron Age I, em THOMPSON, H. (ed.) The Answers Lie Below: Essays in Honor of Lawrence Edmund Toombs. Lanham: University Press of America, 1984; HOPKINS, D. The Highlands of Canaan. Decatur, Georgia: Almond Press, 1985; FRICK, F. The Formation of the State in Ancient Israel: A Survey of Models and Theories. Decatur, Georgia: Almond Press, 1985; FLANAGAN, J. David’s Social Drama: a Hologram of Israel’s Early Iron Age. Decatur, Georgia: Almond Press, 1988; AHLSTRÖM, G. A History of Ancient Palestine. Minneapolis: Fortress Press, 1993; MEYERS, C. Discovering Eve: Ancient Israelite Women in Context. New York: Oxford University Press, 1988.

Gösta Ahlström foi quem desenvolveu mais amplamente este modelo de uma retirada pacífica em vários de seus escritos. Ele trabalha a continuidade entre israelitas e cananeus, evidente na cultura material, e busca reler os textos bíblicos dentro desta lógica. O próprio nome do povo, ‘Israel’, reflete esta lógica, já que construído com o nome de El, divindade cananeia. Ahlström contesta a tese de Gottwald de uma ‘retribalização’ ocorrida nas montanhas, já que sua estrutura social de base familiar não corresponde, segundo ele, ao tipo nômade. Nenhuma  ‘revolta’ de camponeses pode ser documentada. Os recursos tecnológicos menores, igualmente, não indicam a chegada de um grupo de pessoas vindas de fora da terra, mas sim a escassez de recursos da área dos assentamentos. Talvez um grupo tenha vindo de Edom e se juntado a estes camponeses, trazendo com eles o culto a Iahweh.

 

Nomadismo interno

Defensores do nomadismo interno são C. H. J. de Geus, Volkmar Fritz e Israel Finkelstein. Embora admitindo a continuidade entre israelitas e cananeus, estes especialistas defendem uma origem pastoril para os primeiros. Obras que trazem esta abordagem:

DE GEUS, C. H. J. The Tribes of Israel: an Investigation into Some of the Presuppositions of Martin Noth’s Amphictyony Hypothesis. Amsterdam: Van Gorcum, 1976; FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr. Sttutgart: Kohlhammer, 1996; FINKELSTEIN, I. The Archaeology of the Israelite Settlement. Jerusalem: Israel Exploration Society, 1988; FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed. Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001.

Israel Finkelstein

Israel Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv, é o principal defensor da ideia do ‘nomadismo interno’. Talvez resumindo excessivamente seu matizado pensamento, eu diria que, para Finkelstein, os israelitas eram ‘nômades internos’, gente que vivia na Palestina, por toda a Idade do Bronze, na proximidade das cidades. Com o declínio destas, estes pastores se dedicaram também à agricultura para conseguir cereais e outros alimentos não mais oferecidos pelas cidades. Eles teriam se assentado em grande número na região montanhosa de Efraim e, a partir dali, se espalhado, como defendia Alt, para o norte e para o sul da região. O aumento populacional posterior colocou-os em conflito com populações das planícies até que se chegou à unificação davídica.

Na obra The Bible Unearthed, p. 118, publicada junto com Silberman em 2001, explicando quem eram os israelitas, conclui Finkelstein: “O processo que nós descrevemos aqui é, na verdade, o oposto daquele que temos na Bíblia: a emergência do Israel primitivo foi uma consequência do colapso da cultura cananeia, não a sua causa. E a maior parte dos israelitas não veio de fora de Canaã – eles emergiram de dentro desta terra. Não ocorreu um êxodo em massa do Egito. Não houve uma conquista violenta de Canaã. A maior parte das pessoas que formaram o primitivo Israel eram moradores locais – as mesmas pessoas que vemos nas montanhas nas Idades do Bronze e do Ferro. Os israelitas primitivos eram – ironia das ironias – eles mesmos originariamente cananeus!”

 

Transição ou transformação pacífica

Entre os proponentes de uma transição ou transformação pacífica se destacam o já citado Niels Peter Lemche e mais: William Stiebing, R. Drews, Robert Coote & Keith Whitelam e Rainer Albertz. Suas obras:

LEMCHE, N. P. Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society Before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985; Ancient Israel: A New History of Israelite Society. Sheffield: Sheffield Academic Press, [1988], 1995; The Canaanites and Their Land: The Tradition of the Canaanites: Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991; Die Vorgeschichte Israels. Von den Anfängen bis zum Ausgang des 13. Jahrhunderts v.Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996; The Israelites in History and Tradition. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox, 1998; STIEBING, W. Out of the Desert? Archaeology and the Conquest Narratives. Buffalo: Prometheus, 1989; DREWS, R. The End of the Bronze Age: Changes in Warfare and the Catastrophe ca. 1200 B.C. Princeton: Princeton University Press, 1993; COOTE, R. ; WHITELAM, K. The Emergence of Early Israel in Historical Perspective. Decatur, Georgia: Almond Press, 1987; ALBERTZ, R. A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. 2 vols. Philadelphia: Westminster Press, 1994.

Niels Peter Lemche, um dos mais brilhantes ‘minimalistas’ da Escola de Copenhague, acredita que muito pouco pode ser dito das origens de Israel antes do século X a.C. a não ser a percepção de um processo gradual de aumento da população nas montanhas da Palestina. Lemche, assim como outros minimalistas, questiona o uso da Bíblia Hebraica na reconstrução da História de Israel, já que esta é um produto pós-exílico, possivelmente da época helenística. Na verdade, diz Lemche, não há época patriarcal, êxodo, juízes, monarquia unida… Lemche expõe a sua visão no livro de 1998, The Israelites in History and Tradition, p. 74, ao mesmo tempo em que procura superá-la com uma nova proposta nas páginas 75-77.

Diz Lemche que o modelo ‘evolucionário’ por ele defendido na obra de 1988, Ancient Israel: A New History of Israelite Society pressupõe que o aumento dos assentamentos tenha sido uma consequência natural da deterioração das condições de vida das cidades da Palestina durante a última parte do Bronze Recente, até cerca de 1200 a.C. Segundo esta explicação, diferenças étnicas só apareceram com o passar do tempo, motivadas por interesses econômicos, políticos, regionais e religiosos diferentes, levando os habitantes dos povoados a se agrupar em grupos de parentesco, linhagens e, no final do processo, em tribos.

Entretanto, Lemche vê problemas nesta proposta, pois ela pressupõe um vazio de poder egípcio na região e a consequente decadência das cidades, provocada pela perda das rendas do comércio internacional, no conturbado enfrentamento de grandes potências no século XIII a.C. Entretanto, o que hoje se sabe é que a ausência egípcia na região não coincide com o aparecimento dos povoados na região montanhosa da Palestina. Daí, que o afastamento desta população, saindo das cidades pode ter sido causado não pela ausência, mas pelo aumento da pressão egípcia sobre as mesmas, em sua exigência de mais tributos e mais trabalho forçado. Assim o Egito compensava as perdas do comércio internacional.

Mas esta proposta não inclui a participação dos nômades na formação desta nova sociedade, e a presença de elementos nômades nestes assentamentos deve ser considerada. Então, por que não creditar à política egípcia o processo de criação de assentamentos sem fortificações, por um lado, e por outro, a fixação dos migrantes, consolidando o poder do império na região? Pois, deste modo, o Egito transferia parte da população de cidades, agora improdutivas, para novas regiões e garantia os seus rendimentos na região.

 

Amálgama pacífico

Finalmente, a ideia de um amálgama pacífico de diferentes grupos nas regiões montanhosas da Palestina para explicar as origens de Israel tem como defensores especialistas como Baruch Halpern, William Dever, Thomas Thompson e Donald Redford. A opinião de R. K. Gnuse, que aqui se alinha, é de que este grupo de pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os pressupostos teóricos do debate atual. Algumas de suas obras:

HALPERN, B. The Emergence of Israel in Canaan. Chico, CA: Scholar Press, 1983; DEVER, W. Recent Archaeological Discoveries and Biblical Research. Seattle: University of Washington Press, 1990; THOMPSON, T. L. Early History of the Israelite People from the Written and Archaeological Sources. Leiden; Brill, 1992; 2. ed.: 1994; The Mythic Past: Biblical Archaeology and the Myth of Israel. New York: Basic Books, 1999; REDFORD, D. Egypt, Canaan and Israel in Ancient Times. Princeton: Princeton University Press, 1992.

Baruch Halpern foi um dos primeiros a descrever o processo de assentamento como uma complexa interação de diferentes grupos nas montanhas: poucos habitantes dos vales, muitos habitantes da região montanhosa, um grupo vindo do Egito com a experiência do êxodo, grupos vindos da Síria… O grupo do Egito trouxe Iahweh, enquanto o grupo sírio, de agricultores despossuídos, trouxe a circuncisão e a proibição da criação do porco e criou o nome ‘Israel’ no século XIII a.C. Todos estes grupos foram reunidos pela necessidade de manter rotas de comércio abertas com a ausência do Egito na região. Progressivamente controlaram também as planícies, levando ao surgimento da monarquia. Halpern sublinha ainda que o Israel histórico não é o Israel da Bíblia Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o Israel bíblico.

Página 3


 [6]. Cf. GOTTWALD, N. K. Domain Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-Monarchic Israel, em CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology. Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, Indiana: Eisenbrauns, 1996, p. 170-181. O livro de Gottwald, The Tribes of Yahweh, foi relançado, em segunda edição, em 1999, pela editora Sheffield. A tradução brasileira da primeira edição saiu pela Paulus em 1986. Uma segunda edição da mesma tradução de 1986 saiu em 2004. Confira a bibliografia no final deste artigo. Veja também: BOER, Roland (ed.) Tracking “The Tribes of Yahweh”. On the Trail of a Classic. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2002. Veja também a conferência apresentada por Gottwald em Goiânia, GO, em 2006, que está disponível, em espanhol, aqui, ou em inglês, sob o título Revisiting The Tribes of Yahweh.

[7]. Idem, ibidem, p. 174-175.

[8]. Cf. LEMCHE, N. P. Early Israel. Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985.

[9]. Cf. GNUSE, R. K. No Other Gods: Emergent Monotheism in Israel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, p. 33.

[10]. Cf. as obras destes autores e suas teorias em Idem, ibidem, p. 32-61. 


Cosmologia 3

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2. Quatro Questões Fundamentais da Cosmologia

No prefácio de seu estimulante livro Deus e a nova física, Paul Davies coloca quatro questões que são fundamentais para a cosmologia científica:

:.  Qual é a origem do universo?

:. Como conseguiu o universo a sua organização?

:.  Por que o universo é feito das coisas de que é feito?

:.  Por que são como são as leis da natureza?

Claro que só uma leitura completa do livro poderá responder adequadamente a tais questões, mas uma síntese das respostas encontra-se no capítulo 16, p. 225-228, onde o autor percorre novamente as quatro perguntas do início. Minha intenção aqui é abordar um pouco mais detalhadamente a primeira questão e muito resumidamente as outras três, dado o pouco espaço disponível. Não colocarei lado a lado argumentos científicos e teológicos sobre a necessidade de Deus para explicar a criação. Apenas apresento os argumentos de Paul Davies, menos conhecidos, certamente, para os leitores,  do que os argumentos teológicos[22].

 

Qual é a origem do universo?

Duas propostas se apresentam: a de um universo infinito e a de um universo criado. Ou o universo sempre existiu, não teve origem no tempo e, portanto, tem uma idade infinita, ou o universo teve um começo em determinado momento e, portanto, há um acontecimento primordial que deve ser investigado.

Hoje a maioria dos cosmólogos sustenta a ideia de que entre 12 e 15 bilhões de anos atrás o universo surgiu de uma tremenda explosão, que foi batizada de big-bang.

Há inúmeras provas que atestam esta teoria. A segunda lei da termodinâmica estabelece que dia após dia o universo se torna mais desorganizado, caminhando irreversivelmente para o caos[23]. Os cientistas concluíram que o universo caminha para um equilíbrio termodinâmico, quando as temperaturas se nivelam e o universo entra num estado de “morte térmica” ou desordem molecular máxima. “O fato do universo ainda não ter morrido (…) implica que ele não pode ter existido por toda a eternidade”[24].

Além disso, na década de 20, o astrônomo americano Edwin Hubble descobriu que o universo está em expansão, pois as galáxias estão se afastando umas das outras em alta velocidade e de modo uniforme em toda a parte, já que é o espaço entre elas que está se dilatando.

E na década de 60, acidentalmente, os físicos Penzias e Wilson descobriram uma radiação que banha todo o universo e que veio a se confirmar como a radiação cósmica do big-bang, o calor restante das enormes temperaturas geradas pela explosão inicial, quando o universo estava todo comprimido em dimensões mínimas.

Não é correto, porém, pensar o estado primordial do universo como um ponto altamente comprimido num determinado lugar e época. Não existe um onde nem um quando, pois tanto o espaço quanto o tempo surgem do próprio big-bang. “O primeiro instante do big-bang, quando o espaço estava infinitamente contraído, representa um limite ou extremidade no tempo em que o espaço cessa de existir. Os físicos chamam a esse limite uma singularidade (…) Nem o espaço nem o tempo se podem estender para lá da singularidade inicial”[25].

Mas o que provocou o big-bang? Antes do século XX tanto cientistas quanto teólogos supunham que a matéria não podia ser criada por meios naturais. Muitos cientistas falavam num universo eterno, o que evitava o problema da criação da matéria, enquanto os teólogos se apegavam aos relatos bíblicos da criação, nos quais se lia que todo o universo fora feito por Deus a partir do nada (embora não seja exatamente isto  o que diz Gn 1,1-2,4a, onde o ato criador consiste parcialmente na organização do caos!)[26].

Contudo, “a crença em que a matéria não se pode criar por meios naturais sofreu um rombo dramático durante os anos trinta, quando, pela primeira vez, se  produziu matéria em laboratório”[27].

São três os passos desta história:

. Com a famosa equação de 1905, E=mc2 (energia = massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz), Einstein mostrou que a matéria é energia trancada a sete chaves: “Se se encontra uma forma de a abrir, então a matéria desaparece numa explosão de energia [como  as terríveis bombas atômicas]. Inversamente, se se concentrar uma quantidade suficiente de energia, aparecerá matéria”[28].

. Nos anos 30, Paul Dirac, tentando conciliar a teoria da relatividade de Einstein com a teoria quântica, prevê o pósitron. Estudando o estranho comportamento dos elétrons [que, digamos assim, têm que girar duas vezes sobre si mesmos para apresentar a mesma face…], Dirac predisse que, se se concentrasse energia suficiente, novas partículas com carga positiva, uma espécie de anti-elétrons, apareceriam.

. Em 1933, Carl Anderson estudando a absorção de raios cósmicos por folhas de metal, detectou, pela primeira vez, o pósitron. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a construção dos aceleradores de partículas, centenas de outros tipos de partículas subatômicas foram  produzidas e hoje são comumente armazenadas em recipientes magnéticos.

Aplicado ao cosmos,  isto, em princípio, excluiria a necessidade de um ser sobrenatural para a criação da matéria no big-bang, mas ainda resta o problema do espaço e do tempo.

E  antes de procurarmos uma causa externa para a origem do universo, vale a pena conferirmos o conceito de causação retroativa, elaborado por John Wheeler. Partindo das conclusões da mecânica quântica, quando esta diz que a realidade só se concretiza através de atos de observação, Wheeler afirma que “a física gera a participação do observador; a participação do observador gera a informação; a informação gera a física”, numa espécie de circuito fechado auto-excitante que permite atenuar a relação de precedência da causa sobre o efeito[29].

Em síntese,  quanto  à origem das coisas físicas, sabe-se que os objetos, como estrelas e planetas, formaram-se a partir dos gases primordiais e o material  cósmico foi criado no big-bang. Estas descobertas são possíveis pela compreensão da origem do espaço-tempo, explicada pela teoria quântica, que sugere que a matéria pode ser criada e destruída no espaço vazio espontaneamente e sem causa. Assim o espaço-tempo também pode ter sido  criado espontaneamente e sem causa alguma. Neste cenário notável, todo o cosmos se limita a surgir do nada completamente, de acordo com as leis da física quântica, e cria pelo caminho toda a matéria e energia necessárias para construir o universo visível.

 

Como conseguiu o universo a sua organização?

Ora “um estado inicial caótico pode evoluir para um mais ordenado, desde que haja uma reserva de entropia negativa”.  Em tempo, lembro que entropia é uma quantidade matemática inventada pelos físicos para quantificar a desordem; logo, a entropia negativa, gerada pela expansão do universo, explica como “a presente organização é compatível com um universo que começou acidentalmente num estado aleatório” [30].

 

Por que o universo tem as coisas e leis que tem?

A respeito destas duas questões, a resposta vem de uma teoria matemática que abrange toda a física numa única super-lei. Assim, a física pode explicar o conteúdo, a origem e a organização do universo físico, mas não as leis (ou a super-lei) da própria física.  Tudo o que é necessário são as leis. O universo pode tomar conta de si próprio, mesmo de sua criação. Mas as leis têm de estar ali para começar, de modo que o universo possa vir à existência.

Tradicionalmente Deus é creditado como o inventor das leis da natureza e como criador das coisas (espaço-tempo, átomos, pessoas etc) sobre as quais estas leis atuam.

Seria Deus um matemático? Já que não se pode conhecer as coisas deste mundo sem conhecer a matemática… A matemática é a poesia da lógica. A lógica é o único ramo da matemática que pode “pensar acerca de si”. Assim, toda a natureza poderia ser deduzida de uma inferência lógica, mais do que de provas empíricas. O universo poderia então se constituir de uma consequência inevitável da necessidade lógica.

“Os cientistas têm cada vez mais consciência da ligação entre os processos físicos e a computação, e lhes parece produtivo pensar o mundo em termos de informática”, onde o universo seria o hardware e as leis matemáticas seriam o software[31].

Surge então a ideia de uma mente universal, existindo como parte do universo físico. Um Deus natural em vez de sobrenatural. Este “fazer parte” não significa ter uma “localização espacial”, como as nossas mentes também não a têm. Nem significa ser feito de átomos, do mesmo modo que as nossas mentes não o são, diferente do cérebro. O cérebro é o meio de expressão da mente humana. Analogamente o universo físico seria o meio de expressão da mente de um Deus natural. Neste contexto, Deus é o conceito holista supremo, talvez muitos níveis de descrição acima do da mente humana.

 

Conclusão

Paul Davies termina sua obra Deus e a nova física observando que  “muito do que foi apresentado confirmará a opinião de que a ciência se opõe implacavelmente à religião. Seria estulto negar que muitas das ideias religiosas tradicionais sobre Deus, o homem e a natureza do universo, foram varridas pela nova física (…) Contudo, não foi minha intenção neste livro fornecer respostas fáceis para questões religiosas que perduram. O que procurei fazer foi expandir o contexto em que as questões religiosas tradicionais se discutem. A nova física tem alterado tantas noções do senso comum quanto ao espaço, ao tempo e à matéria que nenhum pensador religioso o pode ignorar (…) É minha convicção profunda de que só pela compreensão do mundo em todos os múltiplos aspectos – reducionista e holista, matemático e poético, através de forças, campos e partículas, bem como através do bem e do mal – viremos a entender-nos a nós próprios e a captar o sentido por detrás do universo, a nossa casa” [32].

Entretanto, gostaria de terminar fazendo minhas as reflexões de Einstein em  um texto escrito em setembro de 1937 e que diz o seguinte: “O nosso tempo é marcado por maravilhosas conquistas nos campos da compreensão científica e da aplicação técnica destas percepções. Quem não se sentiria animado com isto? Mas não nos esqueçamos de que o conhecimento e as habilidades sozinhos não podem levar a humanidade a uma vida feliz e digna. A humanidade tem todas as razões para colocar os proclamadores de altos padrões e valores morais acima dos descobridores da verdade objetiva. O que a humanidade deve a personalidades como Buda, Moisés e Jesus está, para mim, acima de todas as conquistas da mente inquiridora e construtiva. O que esses homens abençoados nos deram devemos guardar e tentar manter vivo, com todas as nossas forças, para que a humanidade não perca sua dignidade, a segurança de sua existência e sua alegria de viver”[33].

 

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SUSSKIND, L.; HRABOVSKY, G. The Theoretical Minimum: What You Need to Know to Start Doing Physics. New York: Basic Books, 2014, 256 p. – ISBN 9780465075683 [também em eBook Kindle].

THOMAS, A. Hidden In Plain Sight: The fundamental link between relativity and quantum mechanics. Seattle: CreateSpace, 2012, 217 p. – ISBN 9781469960791.

VIEIRA, C. L. Einstein, o reformulador do Universo. São Paulo: Odysseus, 2003, 223 p. – ISBN 8588023326.

VV.AA. Teologia e Cosmologia. Concilium, Petrópolis, n. 186, 1983. 

WALDROP, M. M. Cosmic Origins: Science’s Long Quest to Understand How Our Universe Began. Berlin: Springer, 2022, 152 p. – ISBN ‎ 9783030982133.

>> Bibliografia atualizada em 23.01.2023

> Este artigo foi publicado inicialmente em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 4, p. 7-24, 1997.

Artigos


[22]. Entre as questões que merecem ser tratadas estão as conclusões incomuns da mecânica quântica que abolem a distinção entre sujeito e objeto, as teorias alternativas para explicar o surgimento do universo, a natureza das leis matemáticas, a relação entre mente, cérebro e identidade pessoal, holismo x reducionismo, o argumento cosmológico da existência de Deus… 

[23]. A segunda lei da termodinâmica diz que num sistema isolado, a entropia (= o processo de desorganização) ou é constante, quando o sistema está em equilíbrio, ou  evolui reversivelmente, ou é uma função crescente, quando o sistema evolui irreversivelmente. “O âmago da termodinâmica é a sua segunda lei, que proíbe o calor de fluir espontaneamente dos corpos frios para os corpos quentes, ao passo que permite o fluxo espontâneo do quente para o frio”, explica DAVIES, P. A mente de Deus,  p. 44-45.

[24]. Idem, ibidem, p. 45. Cf. sobre o big bang SILK, J. O big bang. A origem do universo. Brasília: Editora da UnB, 1985.

[25]. DAVIES, P. Deus e a nova física, p. 30.

[26]. Sobre os relatos da criação cf. GRELOT, P. Homem, quem és? São Paulo: Paulus, 1980; MESTERS, C., Paraíso terrestre: saudade ou esperança?  20. ed. Petrópolis,  Vozes, 2012; SCHWANTES, M. Projetos de esperança: Meditações sobre Gênesis 1-11. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2009.

[27]. DAVIES, P. Deus e a nova física, p. 38.

[28]. Idem, ibidem, p. 38.

[29]. Idem, ibidem, p. 58. Sobre a mecânica quântica e sua incompatibilidade com o senso comum, cf. DAVIES, P. Outros mundos. Lisboa: Edições 70, 1987; GRIBBIN, J., À procura do gato de Schrödinger. 2. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1988; HEISENBERG, W. Física e filosofia. 4. ed. Brasília: Editora da UnB, 1998; BOHR, N. Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957. 2. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, especialmente  o relato feito por Bohr de seu debate com Einstein sobre as consequências epistemológicas da interpretação ortodoxa da mecânica quântica, nas p. 41-83.

[30]. DAVIES, P. Deus  e a nova física, p. 225.

[31]. DAVIES, P. A mente de Deus, p. 116.

[32]. Idem, ibidem, p. 239.

[33]. DUKAS, H.; HOFFMANN, B. (org.) Albert Einstein: o lado humano: Rápidas visões colhidas em seus arquivos, p. 56.


Cosmologia 2

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1.4. Acredito no Deus de Spinoza: Einstein

Albert Einstein (1879-1955), físico alemão de origem judaica que dispensa apresentações[8], quando, em 1921, perguntado pelo rabino H. Goldstein, de New York, se acreditava em Deus,  respondeu: “Acredito no Deus de Spinoza, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelas ações dos homens”[9]. Nesta mesma ocasião, o cardeal O’Connel, de Boston, publicou uma declaração na qual dizia que a teoria da relatividade “encobre com um manto o horrível fantasma do ateísmo, e obscurece especulações, produzindo uma dúvida universal sobre Deus e sua criação”[10].

Albert Einstein (1879-1955)

Posteriormente, em uma carta escrita em Berlim a um banqueiro do Colorado, datada de 5 de agosto de 1927, Einstein explica: “Não consigo conceber um Deus pessoal que influa diretamente sobre as ações dos indivíduos, ou que julgue, diretamente criaturas por Ele criadas. Não posso fazer isto apesar do fato de que a causalidade mecanicista foi, até certo ponto, posta em dúvida pela ciência moderna. Minha religiosidade consiste em uma humilde admiração pelo espírito infinitamente superior que se revela no pouco que nós,  com nossa fraca e transitória compreensão, podemos entender da realidade. A moral é da maior importância – para nós, porém, não para Deus”[11].

No artigo Religião e Ciência, que faz parte do livro Como vejo o mundo, publicado em alemão em 1953, Einstein escreve: “Todos podem atingir a religião em um último grau, raramente acessível em sua pureza total. Dou a isto o nome de religiosidade cósmica e não posso falar dela com facilidade já que se trata de uma noção muito nova, à qual não corresponde conceito algum de um Deus antropomórfico (…) Notam-se exemplos desta religião cósmica nos primeiros momentos da evolução em alguns salmos de Davi ou em alguns profetas. Em grau infinitamente mais elevado, o budismo organiza os dados do cosmos (…) Ora, os gênios religiosos de todos os tempos se distinguiram por esta religiosidade ante o cosmos. Ela não tem dogmas nem Deus concebido à imagem do homem, portanto nenhuma Igreja ensina a religião cósmica. Temos também a impressão de que hereges de todos os tempos da história humana se nutriam com esta forma superior de religião. Contudo, seus contemporâneos muitas vezes os tinham por  suspeitos de ateísmo, e às vezes, também, de santidade. Considerados deste ponto de vista, homens como Demócrito, Francisco de Assis e Spinoza se assemelham profundamente”[12].

E no artigo A religiosidade da pesquisa, no mesmo livro, Einstein defende que “o espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica”.  Para ele a religiosidade do sábio “consiste em espantar-se, em extasiar-se diante da harmonia das leis da natureza, revelando uma inteligência tão superior que todos os pensamentos humanos e todo seu engenho não podem desvendar, diante dela, a não ser seu nada irrisório. Este sentimento desenvolve a regra dominante de sua vida, de sua coragem, na medida em que supera a servidão dos desejos egoístas. Indubitavelmente, este sentimento se compara àquele que animou os espíritos criadores religiosos em todos os tempos”[13].

 

1.5. Deve haver um nível mais profundo de explicação do Universo: Paul Davies

Paul Davies nasceu na Inglaterra em 1946 e doutorou-se em física pelo University College de Londres. Ocupou cargos acadêmicos nas áreas de astronomia e matemática nas Universidades de Cambridge e Londres. Contratado como catedrático de física pela Universidade de Adelaide, Austrália, Paul Davies desenvolveu pesquisas no campo da gravitação e da cosmologia, com ênfase no tema dos buracos negros e do big-bang. Posteriormente foi para a Arizona State University, USA. É autor de muitos livros sobre física, uma dezena dos quais para o público não-especializado, além de apresentar, com frequência, programas científicos no rádio e na televisão.

Em seu livro Deus e a nova física, publicado em inglês em 1983, diz Paul Davies: “A ciência só é possível porque vivemos num universo ordenado, que se conforma com leis matemáticas simples. A tarefa dos cientistas é estudar, catalogar e relatar a ordenação da natureza, não indagar a sua origem. Mas os teólogos têm argumentado, desde há muito, que a ordem do mundo físico é uma prova da existência de Deus. Se isso assim for, então a ciência e a religião adquirem um objectivo comum que é revelar a obra de Deus. Na realidade tem-se afirmado que o aparecimento da cultura científica ocidental foi efectivamente estimulada pela tradição judaico-cristã, com sua ênfase na organização intencional do cosmos por Deus – uma organização que poderia ser discernida pelo uso da pesquisa científica racional”[14].

Aliás, nesta direção parece caminhar Einstein quando diz que a ciência  “só pode ser criada por quem esteja plenamente imbuído da aspiração à verdade e ao entendimento. A fonte desse sentimento, no entanto, brota na esfera da religião. A esta se liga também a fé  na possibilidade de que as regulações válidas para o mundo da existência sejam racionais, isto é, compreensíveis à razão. Não posso conceber um autêntico cientista sem essa fé profunda. A situação pode ser expressa por uma imagem: a ciência sem religião é aleijada, a religião sem ciência é cega”[15].

Paul Davies, ainda sobre a relação entre ciência e religião, se pergunta se a ciência teria florescido na Europa medieval e renascentista  não fosse a teologia ocidental. E exemplifica com  a China,  que produziu inovações tecnológicas antes da Europa, mas que não as levou avante porque aos chineses faltava o conceito de um ser divino que formulara leis da natureza que os homens podiam compreender e utilizar[16].

Por sinal, é nesta mesma obra, A mente de Deus, escrita 9 anos após Deus e a nova física, que Paul Davies nos lembra terem surgido muitas ideias sobre física fundamental  nestes anos, tais como a teoria das supercordas, os novos desenvolvimentos na cosmologia quântica, a pesquisa de Stephen Hawking sobre o “tempo imaginário”, a teoria do caos e tantas outras, e acrescenta: “Tais acontecimentos assumiram duas formas diferentes. Primeiro, um diálogo muito mais intenso entre cientistas, filósofos e teólogos sobre o conceito de criação e temas conexos. Segundo, uma intensificação da moda do pensamento místico e da filosofia oriental, que alguns comentadores afirmaram estar em contato profundo e significativo com a física fundamental”[17].

Paul Davies nos diz que, após  a publicação de Deus e a nova física, ficou assombrado com a postura religiosa dos cientistas, que podem ser classificados em dois grupos: os religiosos e os não-religiosos: entre os religiosos, muitos praticam uma religião tradicional e em alguns casos mantêm os dois aspectos de sua vida, o científico e o religioso, separados, de tal modo que são governados pela ciência durante seis dias da semana e  pela religião no domingo. Entretanto, um pequeno grupo de cientistas se esforça para dialogar com a religião, mesmo que o resultado seja uma visão bastante liberal da religião e uma atribuição incomum de significado aos fenômenos físicos. E mesmo entre os não-religiosos existe “uma vaga sensação de que há algo além da realidade superficial da experiência cotidiana, algum sentido por trás da existência. Mesmo ateus mais empedernidos frequentemente têm o que foi chamado de sentimento de reverência pela natureza, fascínio e respeito por sua profundidade, beleza e sutileza, algo muito semelhante à veneração religiosa”[18].

Paul Davies procura deixar claro sua própria posição: “Como cientista profissional, confio plenamente no método científico de investigação do mundo”. A ciência, para ele, demonstra a todo momento ser poderosa para explicar o mundo em que vivemos, mas  o que existe de mais atraente no método científico é  “sua intransigente honestidade”, pois, antes de ser aceita, cada nova descoberta tem que passar por rigorosos testes aplicados pela comunidade científica, o que possibilita a eliminação das trapaças de cientistas inescrupulosos[19].

Acrescenta o físico que prefere não acreditar em fenômenos sobrenaturais, pois parte do princípio de que as leis da natureza são sempre obedecidas. Mas, mesmo assim, pensa que a ciência pode não conseguir explicar tudo no universo físico, já que “resta o velho problema do término do raciocínio explicativo”. Pois se as leis da física são tomadas como algo válido em princípio é preciso perguntar de onde vêm essas leis. Assim “mais cedo ou mais tarde todos temos de aceitar algo como dado, seja Deus, ou a lógica, ou  um conjunto de leis ou algum outro fundamento para a existência. Assim, as perguntas terminais sempre estarão fora do alcance da ciência empírica, na sua definição corrente (…) Provavelmente sempre deverá restar algum ‘mistério no fim do universo’”[20].

Completando a definição de sua postura, Paul Davies diz que pertence àquele grupo de cientistas que não pratica uma religião tradicional, mas que nega ser o universo apenas um acidente sem objetivo. “Meu trabalho científico”, explica, “levou-me a acreditar, cada vez mais intensamente, que a constituição do universo físico atesta um engenho tão assombroso que não posso aceitá-lo apenas como fato bruto. Parece-me que deve haver um nível mais profundo de explicação. Querer chamar esse nível mais profundo de ‘Deus’ é uma questão de gosto e definição”[21].

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[8]. Sobre Einstein, cf. a excelente biografia escrita por PAIS, A. Sutil é o Senhor: a ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. 

[9]. Citado em GOLGHER, I. O universo físico e humano de Albert Einstein, Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, p. 304.

[10]. Citado em Idem, ibidem, p. 304-305.

[11]. DUKAS, H./HOFFMANN, B. (org.) Albert Einstein: o lado humano. Rápidas visões colhidas em seus arquivos. Brasília: Editora da UnB, 1984, p. 53.

[12]. EINSTEIN, A. Como vejo o mundo. 27. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 20-21.

[13]. Idem, ibidem, p. 23-24.

[14]. DAVIES, P. Deus e a nova física. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 157.

[15]. EINSTEIN, A. Escritos da maturidade.  3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 30.

[16]. Cf. DAVIES, P. A mente de Deus: A ciência e a busca do sentido último. Rio de Janeiro: Ediouro,  p. 75.

[17]. Idem, ibidem, p. 14. O original, The Mind of God é de 1992. Sobre a nova física e o pensamento oriental pode ser conferido o clássico de CAPRA, F. O Tao da física: Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2011 (original inglês: 1975). De Stephen Hawking devem ser lidos Uma breve história do tempo: Do big bang aos buracos negros. 29. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2002;  Buracos negros, universos-bebês e outros ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 1995 e O Universo numa Casca de Noz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

[18]. DAVIES, P. A mente de Deus, p. 15.

[19]. Idem, ibidem, p. 14.

[20]. Idem, ibidem, p. 14-15.

[21]. Idem, ibidem, p. 15-16.


Apocalíptica 3

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2.3. Salmos de Salomão

Apenas para exemplificar como reagem os grupos de tendência apocalíptica à chegada de Roma na região em 63 a.C., vale a pena dar uma olhada em um escrito chamado de “Salmos de Salomão”, que é desta época.

Salmos de Salomão é o nome de uma obra de origem palestina, de um autor possivelmente ligado ao grupo farisaico, escrita em hebraico entre 63 e 40 a.C., mas só preservada em grego e siríaco. É uma coletânea de 18 hinos, semelhantes aos Salmos, nos quais o autor insiste no louvor a Deus, na justiça do homem como resultado da observância da Lei, no castigo dos pecados e na esperança de uma era melhor, presidida pelo Rei-Messias. É interessante observar que o autor usa a expressão “Filho de Davi” como título messiânico no Salmo 17.

Os Salmos 2 e 17 tratam da tomada da Palestina pelos romanos no ano 63 a.C. e o Salmo 2 alude à morte de Pompeu”: “Cheio de orgulho, o pecador destruiu com seu aríete as sólidas muralhas, e Tu não o impedistes. Povos estrangeiros subiram ao teu altar, pisotearam-no orgulhosamente com suas sandálias. Porque os filhos de Jerusalém mancharam o culto do senhor profanaram com suas impurezas as oferendas à divindade. Por isso disse Deus: afastai-as de mim; nelas não me comprazo. A beleza de sua glória nada significou diante de Deus, Ele as desprezou totalmente. Seus filhos e filhas sofrem rigorosa escravidão, seu pescoço está marcado, marcado entre os gentios. Deus os tratou de acordo com seus pecados,  por isso os entregou nas mãos dos vencedores” (2,1-7).

Os vv. 24-29 falam do orgulho e da morte de Pompeu, assassinado no Mons Cassium, próximo a Pelusium, no Egito, em 48 a.C., após a sua derrota para Júlio César em Farsália: “Porque não obraram por zelo, mas por paixão; para derramar sua ira contra nós, espoliando-nos. Não demore, ó Deus, em devolver o mal sobre suas cabeças, para mudar em desonra o orgulho do dragão. Não esperei muito tempo para que Deus fizesse aparecer sua insolência degolada nas colinas do Egito, desprezada como a mais fútil do mar e da terra. Seu cadáver era jogado pelas ondas com grande ignomínia, não havia quem o enterrasse, porque Ele o aniquilou vergonhosamente. Não refletiu que era apenas um homem, não tinha pensado no fim. Falou assim: Sou o dono do mar e da terra; porém não percebeu que Deus é o Grande, o Forte, por seu tremendo poder”[12] .

O Salmo 17,5-13 critica os partidários saduceus do macabeu Aristóbulo II que destronou seu irmão Hircano II da realeza e do pontificado e, em seguida, fala da chegada dos romanos com Pompeu: “Por causa de nossas transgressões levantaram-se contra nós os pecadores; aqueles a quem nada prometestes nos assaltaram e expulsaram, nos despojaram pela força e não glorificaram teu honroso Nome. Organizaram sua casa real com um luxo equivalente a sua excelência, deixaram deserto o trono de Davi com a soberba de mudá-lo. Porém, tu, ó Deus, os derrubas e apagas sua posteridade sobre a terra, suscitando contra eles um estranho à nossa raça. Segundo seus pecados os retribuis, ó Deus, encontram-se com o que suas obras merecem. Deus não teve piedade deles; procurou sua descendência e não deixou um sequer. Justo é o Senhor nas sentenças que dita sobra a terra. Deserta de habitantes deixou o ímpio nossa terra; fizeram desaparecer o jovem, o ancião, as crianças. No calor de sua ira os enviou para o Ocidente, aos grandes da terra os entregou para engano e não os perdoou. O inimigo agiu orgulhosamente em sua barbárie, pois seu coração está distante de nosso Deus”[13].

 

3. O fim dos tempos

Para o pensamento apocalíptico, a história não é uma série de acontecimentos isolados, mas um todo unificado, um processo contínuo de Adão ao fim do mundo. Seu tempo é mítico: início e fim (do mundo) encontram-se em um lugar teórico – mítico -, onde tudo começa enquanto tudo termina. O mundo está sempre nascendo como novo. A morte deste mundo, para o surgimento de um mundo novo, assegura a existência do mundo. A oposição, ou melhor, a continuidade entre “este mundo” e o “mundo que virá”, a passagem de um mundo para o outro é típico da apocalíptica[14].

M. Hengel observa que marcante característica da apocalíptica dos assideus – judeus fiéis que lutam ao lado dos Macabeus no século II a.C. – é sua visão da história mundial como uma unidade, cujo centro é Israel.

A base epistemológica da apocalíptica, pensa M. Hengel, é a revelação de uma “sabedoria” divina especial acerca da história, do cosmos e do destino dos homens, ocultada à razão humana. É uma típica reação contra o racionalismo grego, inclusive usando a astrologia como meio válido para atingir um conhecimento superior através da revelação[15].

B. Frost diz: “Foi a fusão do mito e da escatologia que produziu o que chamamos de apocalíptica. Na realidade podemos definir a apocalíptica como a mitologização da escatologia”[16].

P. D. Hanson, falando da apocalíptica como filha e sucessora da profecia, diz que enquanto a profecia consegue integrar uma visão dos eventos cósmicos com os acontecimentos históricos, a apocalíptica perde este tensão dialética e se refugia no mito, procurando saídas numa ordem cósmica supratemporal.

“A escatologia profética se transforma em apocalíptica no momento em que se renuncia à tarefa de traduzir a visão cósmica para as categorias da realidade do mundo (…) Pois em sua forma não traduzida, o mito falava de uma salvação que alçava as pessoas humanas acima do fluxo da esfera mundana, uma salvação adquirida a nível atemporal, cósmico, que oferecia um escape desta ordem caída para uma nova criação que fazia a pessoa voltar para a segurança do estado primevo da natureza antes de sua queda na corrupção e mudança. Gradualmente os descendentes pós-exílicos dos profetas cederam a essa tentação e assim abdicaram do seu ofício político de integrar a mensagem ao âmbito político histórico”[17].

Éschaton, em grego, significa “último”, éschata “as últimas coisas”. O termo hebraico correspondente é aharît: “fim”, “conclusão”, “resultado”, “desfecho”. Éschaton como “fim do tempo do mundo”, “destruição total do mundo” é um conceito que o AT ignora. É que para o pensamento hebraico, mesmo um acontecimento intra-histórico tem o valor de definitivo, é aharît. A escatologia é, no AT, a transformação do mundo e da história, atingindo um “novo estado de coisas”, sem um encerramento definitivo das coisas. A escatologia está, assim, ligada à história, vista como um processo de intervenções de Iahweh em favor de Israel[18].

Podemos dizer, neste sentido, que a apocalíptica é a radicalização da escatologia. Is 65,17;66,22 fala que Iahweh vai criar “novos céus e nova terra”, tema que é retomado em o NT, em textos com forte coloração apocalíptica.

Mt 19,28, por exemplo, diz que Jesus promete recompensar os discípulos que o seguem “quando as coisas forem renovadas, e o Filho do Homem se assentar no seu trono de glória”. Paulo, em Rm 8,19.22, diz que “a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus”, pois “a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente”. 2Pd 3,13 fala dos novos céus e da nova terra: “O que nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça”, enquanto Ap 21,1 escreve: “Vi então um céu novo e uma nova terra…”

A apocalíptica costuma dividir a história em períodos, especialmente em uma sucessão de 4 impérios (cf. Dn 2), na convicção de que o homem não é eterno (o número 4 simboliza as coisas do mundo e, portanto, a caducidade do poder) e de que Deus dirige a história e toma iniciativas a seu respeito.

Em Dn 7,1-28, o nosso herói sonha com quatro animais terríveis que saem do mar e que representam 4 impérios:

10: semelhante a um leão: império babilônico

20: semelhante a um urso: império medo

30: semelhante a um leopardo: império persa

40: um animal diferente, com 10 chifres e mais um 110 chifre pequeno que derruba três dos outros : império grego

Este quarto animal é o reino de Alexandre Magno. Os 10 chifres são os reis selêucidas. O chifre menor – que tem boca e olhos – é Antíoco IV Epífanes, que derruba três dos outros, provavelmente três reis vencidos por ele: Ptolomeu IV Filometor, Ptolomeu VII Evergetes e Artaxes, rei da Armênia.

Mas aí acontece a reviravolta a partir do v. 9: assenta-se a corte celeste em sessão solene de um tribunal. Os v. 11-12 dizem que o 40  animal é morto e que, embora os três primeiros ainda sobrevivam, são agora inofensivos: “Eu continuava olhando, então, por causa do ruído das palavras arrogantes que proferia aquele chifre, quando vi que o animal fora morto, e seu cadáver destruído e entregue no abrasamento do fogo. Dos outros animais também foi retirado o poder, mas eles receberam um prolongamento de vida, até uma data e um tempo determinados”.

Os vv. 13-14 descrevem o reino do Filho do Homem – em aramaico bar nasha’ = “ser humano”, “homem” -, assim como descreveu os reinos anteriores. O Filho do Homem não é, no contexto de Dn 7, um indivíduo, mas uma figura de linguagem para um coletivo. O que o livro de Daniel faz é opor uma figura da raça humana às quatro feras anteriores. Esta figura simboliza o reino dos “santos” (= povo santo) que se concretiza como eterno.

Diz Dn 7,13-14: “Eu continuava contemplando, nas minhas visões noturnas, quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho de Homem. Ele adiantou-se até o Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgado o império a honra e o reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu império é um império eterno que jamais passará e seu reino jamais será destruído”.

No livro etiópico de Henoc já se fala de um “Filho do Homem” como indivíduo e personificação do Messias. Em 46,1-8 é descrito o Filho do Homem: “Este é o Filho do Homem, de quem era a justiça e a justiça morava com ele. Ele revelará todos os tesouros do oculto, pois, o Senhor dos espíritos o escolheu, e é aquele cujo destino é superior a todos para sempre por sua retidão frente ao Senhor dos espíritos. Este Filho do Homem que vistes tirará os reis e poderosos de seus leitos e os fortes de seus assentos, afrouxará os freios dos poderosos e despedaçará os dentes dos pecadores. Arrancará os reis de seus tronos e reinos, porque não o exaltam nem o louvam, nem dão graças porque lhes foi dado o reino” (46,3-5).

“Parece claro que o autor das Parábolas [seção do Livro Etiópico de Henoc, capítulos 37-41] representa uma linha de tradição que evolui para além das concepções de Dn 7, unindo em uma só pessoa as figuras, primitivamente separadas, do Messias – Rei Eleito – Servo de Iahweh – Juiz Justo (+ ‘Filho do Homem’)”, comenta A. Diez Macho[19].

Esta figura é o precedente imediato do uso neotestamentário, onde frequentemente Jesus se refere a si mesmo como o Filho do Homem (cf. Mt 8,20; 11,19; 20,28; 24,30; Jo 3,14).

A apocalíptica, por outro lado, acredita que o “fim do mundo” será precedido por um período de grande sofrimento e domínio do mal, que se concretiza através de anjos decaídos, na esfera divina, e chefes poderosos, na esfera humana. Além do que, o escritor apocalíptico vê o sofrimento de sua época com sentido cósmico e universal, donde decorre que os que sofrem perseguições estão fazendo algo além de sua própria vida, estão conduzindo os acontecimentos globais do homem.

Mt 24-25 descreve a queda de Jerusalém em 70 d.C. combinada com a ideia de fim do mundo. Diz Mt 24,21: “Pois naquele tempo haverá uma grande tribulação, tal como não houve desde o princípio do mundo até agora, nem tornará a haver jamais”.

E Mt 24,29-31 completa:“Logo após a tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do céu e os poderes do céu serão abalados. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem e todas as tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande glória. Ele enviará os seus anjos que, ao som da grande trombeta, reunirão os seus eleitos dos quatro ventos, de uma extremidade até a outra extremidade do céu”.

A Regra da Comunidade de Qumran, escrita no século II a.C., diz que “Deus, nos mistérios de seu conhecimento e na sabedoria de sua glória, fixou um fim para a existência da injustiça, e no tempo de sua visita a destruirá para sempre. Então a verdade se levantará para sempre no mundo que se contaminou em caminhos de maldade durante o domínio da injustiça até o momento decretado para o juízo” (1QSIV 18-20).

O tema do mal como consequência da união de anjos com mulheres, já presente em Gn 6,1-4, é bem desenvolvido no Livro Etiópico de Henoc. Em 6,1-2 se lê: “Naqueles dias, quando se multiplicaram os filhos dos homens, aconteceu que lhes nasceram filhas belas e formosas. Viram-nas os anjos, os filhos dos céus, desejaram-nas e disseram: ‘Vamos, escolhamos entre os humanos e geremos filhos'”.

Em 7,1-6, o Livro Etiópico de Henoc diz: “E tomaram mulheres; cada um escolheu a sua e começaram a conviver e a unir-se a elas, ensinando-lhes ensalmos e esconjuros e treinando-as na coleta de raízes e plantas. Ficaram grávidas e geraram enormes gigantes de três mil côvados de altura cada um. Consumiam todo o produto dos homens, até que foi impossível para estes alimentá-los. Então os gigantes voltaram-se contra eles e comiam os homens. Começaram a pecar com aves, feras, répteis e peixes, consumindo sua carne e bebendo o seu sangue. Então a terra se queixou dos iníquos”.

Outro elemento: na visão apocalíptica da história há um sentido de urgência, pois é para já o estabelecimento do Reino de Deus. Todos nós conhecemos Mc 1,14-15: “Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus: ‘Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”.

Se já está da hora da virada, é necessário que se mantenha uma rigorosa conduta pessoal. É uma ética sem concessões. Em Qumran, onde se exige máximo rigor no comportamento dos membros da comunidade, as punições por desobediência às normas estabelecidas são severíssimas (cf. 1QS VI, 24-VII,27). Só um exemplo: “Aquele cujo espírito se aparta do fundamento da comunidade para trair a verdade e caminhar na obstinação de seu coração, se voltar, será castigado dois anos; durante o primeiro ano não se aproximará do alimento puro dos Numerosos. E durante o segundo não se aproximará da bebida dos Numerosos, e sentar-se-á atrás de todos os homens da comunidade” (1QSVII, 20-22).

Na apocalíptica a esperança no futuro é expressa através do tema da ressurreição. As definições de como e quando, entretanto, variam de livro para livro. Também se faz necessário, segundo o pensamento apocalíptico, um grande julgamento no término da história, quando os ímpios serão condenados e os justos salvos e recompensados na era messiânica que se estabelece definitivamente.

Mt 25,31-32.34.41 diz que “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono de sua glória. E serão reunidos em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos (…) Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo’ (…) Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos'”.

No Livro Etiópico de Henoc 91,7-8 se diz que “Quando crescer a iniquidade, o pecado, a blasfêmia e a violência em todas as nações, e aumentar a perversidade, a culpa e a impureza, virá o castigo do céu contra todos eles, e sairá o Santo Senhor com cólera e castigo para julgar a terra. Nestes dias será cortada a violência pela raiz, e as raízes da iniquidade com as da mentira serão aniquiladas sob o céu”.

E em 47,3-4: “Nestes dias vi o ‘Princípio dos dias’ sentar-se no trono de glória e os livros dos vivos foram abertos diante dele. E toda a coorte do céu superior e seu cortejo estava de pé diante dele. O coração dos santos encheu-se de alegria, pois se cumprira o cômputo da justiça, tinha sido ouvida a oração dos justos e o sangue dos inocentes era reclamado diante do Senhor dos espíritos”“Nestes dias vi o ‘Princípio dos dias’ sentar-se no trono de glória e os livros dos vivos foram abertos diante dele. E toda a coorte do céu superior e seu cortejo estava de pé diante dele. O coração dos santos encheu-se de alegria, pois se cumprira o cômputo da justiça, tinha sido ouvida a oração dos justos e o sangue dos inocentes era reclamado diante do Senhor dos espíritos”.

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[12]. SALMOS DE SALOMÃO 2,1-7.24-29. Cf. o texto em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento III. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24.

[13]. Idem, ibidem, p. 50-51.

[14]. Cf. PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 67; ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 157-188.

[15]. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 250.

[16]. FROST, S. B. Old Testament Apocalyptic: Its Origins and Growth. London, 1952, p. 33, citado em PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 67.

[17]. HANSON, P. D. Apocalíptica no Antigo Testamento: um reexame, em VV. AA. Apocalipsismo, p. 50-51.

[18]. Cf. DINGERMANN, F. Origem e desenvolvimento da escatologia no AT, em SCHREINER, J. (org.) Palavra e Mensagem. São Paulo: Paulus,1978, p. 430-443.

[19]. DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento IV. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 30.