Apocalíptica 2

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P. D. Hanson, entretanto, recusa esta hipótese – e também a de uma influência iraniana imediata – e diz que o método de comparação direta entre a profecia e a apocalíptica fatalmente leva à conclusão de descontinuidade entre um pensamento do século sétimo e outro do século segundo. Segundo Hanson, as raízes da apocalíptica podem ser claramente detectadas no pensamento profético, havendo, é claro, uma evolução na sua forma.

“As origens da apocalíptica não podem ser explicadas por um método que justapõe textos do sétimo e do segundo séculos e, em seguida, procura as características dos últimos na relação com seu contexto imediato. A literatura apocalíptica do século segundo e posteriores é o resultado de um longo desenvolvimento que começa no pré-exílio, e não um recém-nascido filho de pais estrangeiros do século segundo. Não somente suas origens, mas também a própria natureza das obras apocalípticas mais recentes só podem ser compreendidas através da reconstrução de seu longo desenvolvimento através dos séculos, no qual a escatologia apocalíptica nasce da profecia e até mesmo de outras raízes mais arcaicas”[9].

 

2. Literatura de resistência

Mas é a partir do século II a.C., no momento das grandes crises nacionais, quando Israel, agredido por outros povos, corre o risco de desaparecer como nação, que a apocalíptica floresce com grande força.

Poderíamos dizer que há, assim, três fases marcantes na história da apocalíptica:
. a época da guerra dos Macabeus contra Antíoco IV Epífanes e o partido helenizante, no séc. II a.C.
. a partir do domínio romano, que se inicia com Pompeu em 63 a.C.
. durante as guerras judaicas contra os romanos em 66-73 d.C. e 131-135 d.C.

Deste modo, a literatura apocalíptica funciona como uma literatura de resistência: através da escrita, Israel se manifesta vivo e atuante. Os céus estão fechados? A história, porém, é ainda possível: através do livro, manifesta-se o Espírito, que garante a identidade do povo de Israel.

Provavelmente a mais antiga obra da apocalíptica judaica, o livro de Daniel é uma peça literária de resistência escrita na época da luta dos Macabeus contra a helenização no século II a.C.[10].

Daniel não é o autor do livro. Estamos frente a um texto apocalíptico, escrito em 164 a.C., cujo autor se esconde por trás de um pseudônimo. Daniel talvez jamais tenha existido, embora haja pistas de um certo Danel em Ez 14,14.20;28,3 e um Dnil que aparece no poema de Aqhat encontrado em Ugarit, e que podem ter inspirado o legendário personagem bíblico[11].

Ez 14,14.20 cita Danel ao lado de Noé e Jó: três homens justos, três heróis populares. Eles são lembrados aqui para dizer que nem estes três justos conseguiriam salvar do castigo uma sociedade que abandonasse Iahweh. Ez 28,3 qualifica-o como sábio, em um oráculo contra o rei de Tiro, quando diz: “Certo, és mais sábio do que Danel, nenhum sábio há que se iguale a ti”.

Entretanto, o sábio Daniel (= Deus julga), um jovem judeu de Jerusalém, é o protagonista desta narrativa que estrategicamente é situada na época dos reis babilônicos e persas, no tempo do exílio.

No capítulo 1 o texto conta como, após a deportação dos judeus de Jerusalém para a Babilônia, alguns jovens judeus de famílias nobres são escolhidos e educados durante três anos para, em seguida, servirem ao rei. Entre eles – terão os nomes trocados – estão Daniel (Baltassar), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênego). Só que a descrição do período babilônico feita pelo livro é imprecisa e seu conhecimento das cortes babilônica e persa superficiais.

Não houve, como o livro afirma, uma deportação em 605 a.C.; Baltasar é filho de Nabônides e não de Nabucodonosor; Dario, que é persa e não medo, é um dos sucessores de Ciro e não seu predecessor… Além do que, a doutrina sobre os anjos, o costume de evitar o nome de Iahweh e outros elementos não são daquele tempo, o exílico, mas bem posteriores.

Enfim, uma série de dados que acabam mostrando que a finalidade do livro e seu gênero literário não são históricos. É um escrito da resistência judaica, no duro período da perseguição selêucida. Daniel quer mostrar que, apesar de tudo, é preciso ter uma fé inabalável em Iahweh, porque mais cedo ou mais tarde os judeus sairão vitoriosos e engrandecidos.

 

2.1. Conteúdo de  Daniel

:: Dn 1,1-21: Nabucodonosor + Daniel, Ananias, Misael e Azarias

Corte de Nabucodonosor: jovens judeus escolhidos por Nabucodonosor para servirem na corte – destacam-se Daniel (Baltassar), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênego).

:: Dn 2,1-49: Nabucodonosor + Daniel

Corte de Nabucodonosor: Nabucodonosor sonha com uma estátua de quatro metais, simbolizando os impérios – Daniel interpreta o sonho.

:: Dn 3,1-30: Nabucodonosor + Sidrac, Misac e Abdênego

Corte de Nabucodonosor: Nabucodonosor manda fazer enorme estátua de ouro que todos os dignitários devem adorar na cerimônia de inauguração –  Sidrac, Misac e Abdênego se recusam, são lançados em uma fornalha acesa, mas nada sofrem, protegidos por Deus.

:: Dn 3,31-4,34: Nabucodonosor + Daniel

Corte de Nabucodonosor: Nabucodonosor comunica aos súditos o sonho premonitório de sua loucura, a interpretação de Daniel, a realidade da loucura e sua cura ao reconhecer a soberania de Deus.

:: Dn 5,1-6,1: Baltazar + Daniel

Corte de Baltazar, na Babilônia, “filho de Nabucodonosor”: o rei, no meio de uma festa em que usa os utensílios do Templo de Jerusalém, tem a visão de sua queda – Daniel interpreta a visão e é recompensado – o rei é assassinado na mesma noite.

:: Dn 6,2-29: Dario + Daniel

Corte de Dario: os inimigos de Daniel conseguem uma proibição de se adorar qualquer deus durante 30 dias. Daniel, o principal ministro, desobedece, é preso e jogado para os leões, que nada lhe fazem – Dario exige de todos que se respeite o deus de Daniel.

:: Dn 7,1-29: governo de Baltazar + Daniel

Babilônia, governo de Baltazar: Daniel sonha com quatro animais terríveis que saem do mar, com a intervenção do Ancião e o poder do Filho do Homem, que é o povo santo que afinal vencerá.

:: Dn 8,1-27: governo de Baltazar + Daniel

Susa, no Elam, governo de Baltazar: Daniel tem a visão do carneiro e do bode – o anjo Gabriel explica-lhe a visão.

:: Dn 9,1-27: governo de Dario + Daniel

Governo de Dario, “filho de Xerxes”, o medo: Daniel procura o significado dos 70 anos até a restauração de Jerusalém, segundo Jeremias – o anjo Gabriel explica o significado a Daniel

:: Dn 10,1-12,13: governo de Ciro + Daniel

Governo de Ciro, rei da Pérsia: Daniel vê um homem vestido de linho etc, conversa com um anjo e ouve as explicações do que está escrito no “Livro da Verdade” sobre o governo dos Ptolomeus e Selêucidas (com grandes detalhes), sobre Antíoco IV Epífanes e sobre o destino do povo judeu…

 

2.2. Dn 2, 1-49: a estátua de quatro metais

Um bom exemplo do modo apocalíptico de pensar é Dn 2, 1-49, texto que narra o sonho de Nabucodonosor com a estátua de quatro metais, sonho que é interpretado por Daniel.

O texto pode ser lido em seis sequências. Nelas tentarei mostrar as relações e oposições básicas entre personagens, circunstâncias e valores.

 

a) 2,1-13

Cenário: corte de Nabucodonosor. O texto conta que Nabucodonosor, ainda no segundo ano de reinado, tem sonhos tão perturbadores que lhe provocam insônia. Convoca então o rei magos e adivinhos e exige deles que lhe contem o sonho e o interpretem para não serem mortos com suas famílias e possam ser magnificamente recompensados. Os especialistas, entretanto, querem primeiro ouvir o sonho, como é natural, para que possam interpretá-lo. Dizem: “O problema que o rei propõe é difícil e ninguém pode resolvê-lo diante do rei senão os deuses, cuja morada não se encontra entre os seres de carne” (v. 11). Então, o rei promulga o decreto de extermínio de todos os sábios da Babilônia, inclusive Daniel e seus companheiros.

Observamos aqui algumas oposições básicas: o poder absoluto e despótico do rei se contrapõe ao servilismo e à impotência dos sábios babilônicos, que são seus servos. Contrapõe-se igualmente o poder dos deuses, que tudo podem e sabem, à limitação dos homens, que não podem saber os pensamentos do rei. Ainda: o despotismo real aparece fortemente no poder do rei de fazer alguém viver em grande honra ou morrer em grande desgraça.

 

b) 2,14-19a

O texto continua dizendo que, ao se informar com o chefe da guarda encarregado da execução dos sábios, Daniel vai ao rei e lhe pede um prazo, no fim do qual ele mesmo interpretará o sonho para o rei. Adiada a execução, “Daniel voltou para sua casa e comunicou o fato a Ananias, Misael e Azarias, seus companheiros, pedindo-lhes que implorassem a misericórdia do Deus do céu sobre esse mistério…” (vv. 17-18). Então, o mistério é revelado a Daniel numa visão noturna.

Aqui, três atitudes se diferenciam nitidamente: a atitude de força do rei, usando o seu poder militar para punir, o imobilismo dos sábios que nada fazem e a iniciativa de Daniel, que, sabiamente, negocia uma saída para a crise. E se os sábios babilônios nada fazem, é porque não têm a quem recorrer. Daniel e seus companheiros, entretanto, recorrem ao Deus do céu – expressão muito usada no AT para designar Iahweh em ambiente não judaico. Há ainda a oposição entre o “mistério”, o enigma, o segredo (o sonho do rei) que ninguém consegue desvendar e a revelação em visão. O que desequilibra, de fato, as coisas em favor de Daniel e companheiros é “a misericórdia do Deus do céu”.

 

c) 2,19b-23

Agora Daniel agradece ao Deus do céu, usando a típica fórmula judaica para a “bênção”: uma invocação ao nome de Deus, seguida de uma comemoração de seus benefícios, terminando com a repetição da invocação e breve menção do benefício particular: “Tu me fazes conhecer agora o que de ti havíamos implorado, e o enigma do rei no-lo dás a conhecer” (v. 23b), conclui Daniel.

O ponto central da oração de Daniel encontra-se na convicção de que a sabedoria, a ciência e a força vêm do Deus do céu, que as concedem aos homens, e não de reis (força) e sábios (sabedoria). É Deus quem concede estes dons e ao homem que os recebe compete agradecer: “A Ti, Deus de meus pais, dou graças e te louvo por me teres concedido a sabedoria e a força” (v. 23a), diz Daniel.

 

d) 2,24-28

Daniel comparece, finalmente, diante do rei e se diz capaz de dar ao rei a interpretação de seu sonho. Como o rei quer, além da interpretação, também o sonho, Daniel lhe diz que este mistério, “nem os sábios nem os adivinhos nem os magos nem os astrólogos podem dá-lo a conhecer ao rei. Mas há um Deus no céu que revela os mistérios, e que dá a conhecer ao rei Nabucodonosor o que deve acontecer no fim dos dias” (vv. 27b-28a).

O contraste principal deste quadro é entre a impotência – mais uma vez – dos sábios, adivinhos, magos e astrólogos e o Deus do céu que vela os acontecimentos e os dá a conhecer a Daniel que lhe é fiel. E isto é ainda mais significativo se lembrarmos que a Babilônia é a terra dos maiores adivinhos e astrólogos da antiguidade. A adivinhação é a maior das ciências nesta época.

 

e) 2,29-45

Daniel, prossegue o texto, expõe ao rei o seu sonho. Nabucodonosor sonhara com enorme estátua composta de quatro metais: a cabeça, de ouro; o peito e os braços de prata; o ventre e as coxas, de bronze; as pernas, de ferro; e os pés, parte de ferro e parte de argila. Entretanto, uma pedra, não lançada por mão humana, bate na estátua que é pulverizada e levada pelo vento. A pedra torna-se uma grande montanha que enche toda a terra. Em seguida, Daniel explica ao rei que ele, Nabucodonosor, é a cabeça de ouro da estátua; a prata representa um reino inferior ao dele, que será substituído por outro representado pelo bronze, e que, por sua vez, terá como sucessor um reino forte como o ferro que tritura tudo. Os pés de ferro/argila simbolizam um reino parcialmente forte como o ferro e parcialmente fraco como a argila. A pedra que destrói os reinos é um reino suscitado pelo Deus do céu, “um reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre” (v. 44).

De maneira alegórica, o livro de Daniel, usando antigos mitos sobre a idade do mundo, descreve a sucessão dos grandes impérios históricos numa relação de valor decrescente: ouro, prata, bronze, ferro/argila. Segundo a visão da época, os impérios são os seguintes:

. cabeça de ouro: império neobabilônico
. peito e braços de prata: reino medo
. ventre e coxas de bronze: império persa
. pernas de ferro e pés de ferro/argila: império grego de Alexandre (ferro), depois dividido entre Ptolomeus e Selêucidas

A pedra simboliza o reino messiânico, o reino divino de Iahweh, definitivo, que destrói os poderes humanos. Esta é a pedra que esmaga o império selêucida que oprime Israel.

 

f) 2,46-49

O texto termina com Nabucodonosor prostrando-se diante de Daniel e até mesmo oferecendo-lhe sacrifícios, pois reconhece, enfim, que “o vosso Deus é o Deus dos deuses e o senhor dos reis e o revelador dos mistérios, pois tu pudeste revelar este mistério” (v.47b). Daniel é nomeado governador e chefe dos sábios, enquanto seus três companheiros administram os negócios da província de Babilônia.

O gesto de Nabucodonosor diante de Daniel (prostrar-se, inclinar-se e oferecer sacrifícios) é de extrema exaltação do Deus de Israel sobre os outros deuses e sobre o poder real.

Podemos concluir com algumas observações gerais:

. O rei, que tem poder absoluto, que pode mandar os homens viverem com honra ou morrerem na desgraça, não tem poder para conhecer o seu destino, ou melhor, o destino de seu poder e o de seus pares. Então, diante de sua impotência, o rei age pela força

. Por outro lado, o Deus do céu é quem dá a força e a sabedoria, é quem dá o poder e retira o poder, e só quem lhe é fiel, como Daniel, pode conhecer, através da revelação, este mistério

. Finalmente, o texto insiste em que os grandes impérios cairão, os poderes passarão e só restará o poder e o reino dados por Deus. Quem permanecer com Deus, como Daniel e seus três companheiros, será honrado

. Situe-se esta mensagem no contexto da luta dos Macabeus contra Antíoco IV Epífanes e o partido helenizante de Jerusalém no século II a.C. e começaremos a entender os métodos da apocalíptica…

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 [9]. HANSON, P. D., The Dawn of Apocalyptic, Philadelphia, Fortress Press, 1983, p. 6. Cf. também a crítica de Peter von der Osten-Sacken a Von Rad em AA. VV., Apocalipsismo, São Leopoldo, Sinodal, 1983, p. 121-170.

[10]. Sobre Daniel, cf. SCHÖKEL, L. A./SICRE DIAZ, J. L., Profetas II, São Paulo, Paulus, 1991, p. 1259-1349; MARCONCINI, B., Daniel, São Paulo, Paulus, 1984; STORNIOLO, I. Como ler o livro de Daniel. Reino de Deus x Imperialismo, São Paulo, Paulus, 1994; GRELOT, P., O livro de Daniel, São Paulo, Paulus, 1995.

[11]. Cf. DEL OLMO LETE, G., Mitos y leyendas de Canaan según la tradición de Ugarit, Madrid, Cristiandad, 1981, p. 325-401. Comenta o autor na p. 356: “Talvez o núcleo histórico possa se radicar na lembrança e exaltação de um príncipe lendário estrangeiro, hábil caçador, morto em idade prematura, filho do não menos lendário rei Dnil”.

Última atualização: 26.04.2019 – 22h08