Apocalíptica 3

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2.3. Salmos de Salomão

Apenas para exemplificar como reagem os grupos de tendência apocalíptica à chegada de Roma na região em 63 a.C., vale a pena dar uma olhada em um escrito chamado de “Salmos de Salomão”, que é desta época.

Salmos de Salomão é o nome de uma obra de origem palestina, de um autor possivelmente ligado ao grupo farisaico, escrita em hebraico entre 63 e 40 a.C., mas só preservada em grego e siríaco. É uma coletânea de 18 hinos, semelhantes aos Salmos, nos quais o autor insiste no louvor a Deus, na justiça do homem como resultado da observância da Lei, no castigo dos pecados e na esperança de uma era melhor, presidida pelo Rei-Messias. É interessante observar que o autor usa a expressão “Filho de Davi” como título messiânico no Salmo 17.

Os Salmos 2 e 17 tratam da tomada da Palestina pelos romanos no ano 63 a.C. e o Salmo 2 alude à morte de Pompeu”: “Cheio de orgulho, o pecador destruiu com seu aríete as sólidas muralhas, e Tu não o impedistes. Povos estrangeiros subiram ao teu altar, pisotearam-no orgulhosamente com suas sandálias. Porque os filhos de Jerusalém mancharam o culto do senhor profanaram com suas impurezas as oferendas à divindade. Por isso disse Deus: afastai-as de mim; nelas não me comprazo. A beleza de sua glória nada significou diante de Deus, Ele as desprezou totalmente. Seus filhos e filhas sofrem rigorosa escravidão, seu pescoço está marcado, marcado entre os gentios. Deus os tratou de acordo com seus pecados,  por isso os entregou nas mãos dos vencedores” (2,1-7).

Os vv. 24-29 falam do orgulho e da morte de Pompeu, assassinado no Mons Cassium, próximo a Pelusium, no Egito, em 48 a.C., após a sua derrota para Júlio César em Farsália: “Porque não obraram por zelo, mas por paixão; para derramar sua ira contra nós, espoliando-nos. Não demore, ó Deus, em devolver o mal sobre suas cabeças, para mudar em desonra o orgulho do dragão. Não esperei muito tempo para que Deus fizesse aparecer sua insolência degolada nas colinas do Egito, desprezada como a mais fútil do mar e da terra. Seu cadáver era jogado pelas ondas com grande ignomínia, não havia quem o enterrasse, porque Ele o aniquilou vergonhosamente. Não refletiu que era apenas um homem, não tinha pensado no fim. Falou assim: Sou o dono do mar e da terra; porém não percebeu que Deus é o Grande, o Forte, por seu tremendo poder”[12] .

O Salmo 17,5-13 critica os partidários saduceus do macabeu Aristóbulo II que destronou seu irmão Hircano II da realeza e do pontificado e, em seguida, fala da chegada dos romanos com Pompeu: “Por causa de nossas transgressões levantaram-se contra nós os pecadores; aqueles a quem nada prometestes nos assaltaram e expulsaram, nos despojaram pela força e não glorificaram teu honroso Nome. Organizaram sua casa real com um luxo equivalente a sua excelência, deixaram deserto o trono de Davi com a soberba de mudá-lo. Porém, tu, ó Deus, os derrubas e apagas sua posteridade sobre a terra, suscitando contra eles um estranho à nossa raça. Segundo seus pecados os retribuis, ó Deus, encontram-se com o que suas obras merecem. Deus não teve piedade deles; procurou sua descendência e não deixou um sequer. Justo é o Senhor nas sentenças que dita sobra a terra. Deserta de habitantes deixou o ímpio nossa terra; fizeram desaparecer o jovem, o ancião, as crianças. No calor de sua ira os enviou para o Ocidente, aos grandes da terra os entregou para engano e não os perdoou. O inimigo agiu orgulhosamente em sua barbárie, pois seu coração está distante de nosso Deus”[13].

 

3. O fim dos tempos

Para o pensamento apocalíptico, a história não é uma série de acontecimentos isolados, mas um todo unificado, um processo contínuo de Adão ao fim do mundo. Seu tempo é mítico: início e fim (do mundo) encontram-se em um lugar teórico – mítico -, onde tudo começa enquanto tudo termina. O mundo está sempre nascendo como novo. A morte deste mundo, para o surgimento de um mundo novo, assegura a existência do mundo. A oposição, ou melhor, a continuidade entre “este mundo” e o “mundo que virá”, a passagem de um mundo para o outro é típico da apocalíptica[14].

M. Hengel observa que marcante característica da apocalíptica dos assideus – judeus fiéis que lutam ao lado dos Macabeus no século II a.C. – é sua visão da história mundial como uma unidade, cujo centro é Israel.

A base epistemológica da apocalíptica, pensa M. Hengel, é a revelação de uma “sabedoria” divina especial acerca da história, do cosmos e do destino dos homens, ocultada à razão humana. É uma típica reação contra o racionalismo grego, inclusive usando a astrologia como meio válido para atingir um conhecimento superior através da revelação[15].

B. Frost diz: “Foi a fusão do mito e da escatologia que produziu o que chamamos de apocalíptica. Na realidade podemos definir a apocalíptica como a mitologização da escatologia”[16].

P. D. Hanson, falando da apocalíptica como filha e sucessora da profecia, diz que enquanto a profecia consegue integrar uma visão dos eventos cósmicos com os acontecimentos históricos, a apocalíptica perde este tensão dialética e se refugia no mito, procurando saídas numa ordem cósmica supratemporal.

“A escatologia profética se transforma em apocalíptica no momento em que se renuncia à tarefa de traduzir a visão cósmica para as categorias da realidade do mundo (…) Pois em sua forma não traduzida, o mito falava de uma salvação que alçava as pessoas humanas acima do fluxo da esfera mundana, uma salvação adquirida a nível atemporal, cósmico, que oferecia um escape desta ordem caída para uma nova criação que fazia a pessoa voltar para a segurança do estado primevo da natureza antes de sua queda na corrupção e mudança. Gradualmente os descendentes pós-exílicos dos profetas cederam a essa tentação e assim abdicaram do seu ofício político de integrar a mensagem ao âmbito político histórico”[17].

Éschaton, em grego, significa “último”, éschata “as últimas coisas”. O termo hebraico correspondente é aharît: “fim”, “conclusão”, “resultado”, “desfecho”. Éschaton como “fim do tempo do mundo”, “destruição total do mundo” é um conceito que o AT ignora. É que para o pensamento hebraico, mesmo um acontecimento intra-histórico tem o valor de definitivo, é aharît. A escatologia é, no AT, a transformação do mundo e da história, atingindo um “novo estado de coisas”, sem um encerramento definitivo das coisas. A escatologia está, assim, ligada à história, vista como um processo de intervenções de Iahweh em favor de Israel[18].

Podemos dizer, neste sentido, que a apocalíptica é a radicalização da escatologia. Is 65,17;66,22 fala que Iahweh vai criar “novos céus e nova terra”, tema que é retomado em o NT, em textos com forte coloração apocalíptica.

Mt 19,28, por exemplo, diz que Jesus promete recompensar os discípulos que o seguem “quando as coisas forem renovadas, e o Filho do Homem se assentar no seu trono de glória”. Paulo, em Rm 8,19.22, diz que “a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus”, pois “a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente”. 2Pd 3,13 fala dos novos céus e da nova terra: “O que nós esperamos, conforme a sua promessa, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça”, enquanto Ap 21,1 escreve: “Vi então um céu novo e uma nova terra…”

A apocalíptica costuma dividir a história em períodos, especialmente em uma sucessão de 4 impérios (cf. Dn 2), na convicção de que o homem não é eterno (o número 4 simboliza as coisas do mundo e, portanto, a caducidade do poder) e de que Deus dirige a história e toma iniciativas a seu respeito.

Em Dn 7,1-28, o nosso herói sonha com quatro animais terríveis que saem do mar e que representam 4 impérios:

10: semelhante a um leão: império babilônico

20: semelhante a um urso: império medo

30: semelhante a um leopardo: império persa

40: um animal diferente, com 10 chifres e mais um 110 chifre pequeno que derruba três dos outros : império grego

Este quarto animal é o reino de Alexandre Magno. Os 10 chifres são os reis selêucidas. O chifre menor – que tem boca e olhos – é Antíoco IV Epífanes, que derruba três dos outros, provavelmente três reis vencidos por ele: Ptolomeu IV Filometor, Ptolomeu VII Evergetes e Artaxes, rei da Armênia.

Mas aí acontece a reviravolta a partir do v. 9: assenta-se a corte celeste em sessão solene de um tribunal. Os v. 11-12 dizem que o 40  animal é morto e que, embora os três primeiros ainda sobrevivam, são agora inofensivos: “Eu continuava olhando, então, por causa do ruído das palavras arrogantes que proferia aquele chifre, quando vi que o animal fora morto, e seu cadáver destruído e entregue no abrasamento do fogo. Dos outros animais também foi retirado o poder, mas eles receberam um prolongamento de vida, até uma data e um tempo determinados”.

Os vv. 13-14 descrevem o reino do Filho do Homem – em aramaico bar nasha’ = “ser humano”, “homem” -, assim como descreveu os reinos anteriores. O Filho do Homem não é, no contexto de Dn 7, um indivíduo, mas uma figura de linguagem para um coletivo. O que o livro de Daniel faz é opor uma figura da raça humana às quatro feras anteriores. Esta figura simboliza o reino dos “santos” (= povo santo) que se concretiza como eterno.

Diz Dn 7,13-14: “Eu continuava contemplando, nas minhas visões noturnas, quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho de Homem. Ele adiantou-se até o Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgado o império a honra e o reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu império é um império eterno que jamais passará e seu reino jamais será destruído”.

No livro etiópico de Henoc já se fala de um “Filho do Homem” como indivíduo e personificação do Messias. Em 46,1-8 é descrito o Filho do Homem: “Este é o Filho do Homem, de quem era a justiça e a justiça morava com ele. Ele revelará todos os tesouros do oculto, pois, o Senhor dos espíritos o escolheu, e é aquele cujo destino é superior a todos para sempre por sua retidão frente ao Senhor dos espíritos. Este Filho do Homem que vistes tirará os reis e poderosos de seus leitos e os fortes de seus assentos, afrouxará os freios dos poderosos e despedaçará os dentes dos pecadores. Arrancará os reis de seus tronos e reinos, porque não o exaltam nem o louvam, nem dão graças porque lhes foi dado o reino” (46,3-5).

“Parece claro que o autor das Parábolas [seção do Livro Etiópico de Henoc, capítulos 37-41] representa uma linha de tradição que evolui para além das concepções de Dn 7, unindo em uma só pessoa as figuras, primitivamente separadas, do Messias – Rei Eleito – Servo de Iahweh – Juiz Justo (+ ‘Filho do Homem’)”, comenta A. Diez Macho[19].

Esta figura é o precedente imediato do uso neotestamentário, onde frequentemente Jesus se refere a si mesmo como o Filho do Homem (cf. Mt 8,20; 11,19; 20,28; 24,30; Jo 3,14).

A apocalíptica, por outro lado, acredita que o “fim do mundo” será precedido por um período de grande sofrimento e domínio do mal, que se concretiza através de anjos decaídos, na esfera divina, e chefes poderosos, na esfera humana. Além do que, o escritor apocalíptico vê o sofrimento de sua época com sentido cósmico e universal, donde decorre que os que sofrem perseguições estão fazendo algo além de sua própria vida, estão conduzindo os acontecimentos globais do homem.

Mt 24-25 descreve a queda de Jerusalém em 70 d.C. combinada com a ideia de fim do mundo. Diz Mt 24,21: “Pois naquele tempo haverá uma grande tribulação, tal como não houve desde o princípio do mundo até agora, nem tornará a haver jamais”.

E Mt 24,29-31 completa:“Logo após a tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não dará a sua claridade, as estrelas cairão do céu e os poderes do céu serão abalados. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem e todas as tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande glória. Ele enviará os seus anjos que, ao som da grande trombeta, reunirão os seus eleitos dos quatro ventos, de uma extremidade até a outra extremidade do céu”.

A Regra da Comunidade de Qumran, escrita no século II a.C., diz que “Deus, nos mistérios de seu conhecimento e na sabedoria de sua glória, fixou um fim para a existência da injustiça, e no tempo de sua visita a destruirá para sempre. Então a verdade se levantará para sempre no mundo que se contaminou em caminhos de maldade durante o domínio da injustiça até o momento decretado para o juízo” (1QSIV 18-20).

O tema do mal como consequência da união de anjos com mulheres, já presente em Gn 6,1-4, é bem desenvolvido no Livro Etiópico de Henoc. Em 6,1-2 se lê: “Naqueles dias, quando se multiplicaram os filhos dos homens, aconteceu que lhes nasceram filhas belas e formosas. Viram-nas os anjos, os filhos dos céus, desejaram-nas e disseram: ‘Vamos, escolhamos entre os humanos e geremos filhos'”.

Em 7,1-6, o Livro Etiópico de Henoc diz: “E tomaram mulheres; cada um escolheu a sua e começaram a conviver e a unir-se a elas, ensinando-lhes ensalmos e esconjuros e treinando-as na coleta de raízes e plantas. Ficaram grávidas e geraram enormes gigantes de três mil côvados de altura cada um. Consumiam todo o produto dos homens, até que foi impossível para estes alimentá-los. Então os gigantes voltaram-se contra eles e comiam os homens. Começaram a pecar com aves, feras, répteis e peixes, consumindo sua carne e bebendo o seu sangue. Então a terra se queixou dos iníquos”.

Outro elemento: na visão apocalíptica da história há um sentido de urgência, pois é para já o estabelecimento do Reino de Deus. Todos nós conhecemos Mc 1,14-15: “Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus: ‘Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”.

Se já está da hora da virada, é necessário que se mantenha uma rigorosa conduta pessoal. É uma ética sem concessões. Em Qumran, onde se exige máximo rigor no comportamento dos membros da comunidade, as punições por desobediência às normas estabelecidas são severíssimas (cf. 1QS VI, 24-VII,27). Só um exemplo: “Aquele cujo espírito se aparta do fundamento da comunidade para trair a verdade e caminhar na obstinação de seu coração, se voltar, será castigado dois anos; durante o primeiro ano não se aproximará do alimento puro dos Numerosos. E durante o segundo não se aproximará da bebida dos Numerosos, e sentar-se-á atrás de todos os homens da comunidade” (1QSVII, 20-22).

Na apocalíptica a esperança no futuro é expressa através do tema da ressurreição. As definições de como e quando, entretanto, variam de livro para livro. Também se faz necessário, segundo o pensamento apocalíptico, um grande julgamento no término da história, quando os ímpios serão condenados e os justos salvos e recompensados na era messiânica que se estabelece definitivamente.

Mt 25,31-32.34.41 diz que “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono de sua glória. E serão reunidos em sua presença todas as nações e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos (…) Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo’ (…) Em seguida, dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos'”.

No Livro Etiópico de Henoc 91,7-8 se diz que “Quando crescer a iniquidade, o pecado, a blasfêmia e a violência em todas as nações, e aumentar a perversidade, a culpa e a impureza, virá o castigo do céu contra todos eles, e sairá o Santo Senhor com cólera e castigo para julgar a terra. Nestes dias será cortada a violência pela raiz, e as raízes da iniquidade com as da mentira serão aniquiladas sob o céu”.

E em 47,3-4: “Nestes dias vi o ‘Princípio dos dias’ sentar-se no trono de glória e os livros dos vivos foram abertos diante dele. E toda a coorte do céu superior e seu cortejo estava de pé diante dele. O coração dos santos encheu-se de alegria, pois se cumprira o cômputo da justiça, tinha sido ouvida a oração dos justos e o sangue dos inocentes era reclamado diante do Senhor dos espíritos”“Nestes dias vi o ‘Princípio dos dias’ sentar-se no trono de glória e os livros dos vivos foram abertos diante dele. E toda a coorte do céu superior e seu cortejo estava de pé diante dele. O coração dos santos encheu-se de alegria, pois se cumprira o cômputo da justiça, tinha sido ouvida a oração dos justos e o sangue dos inocentes era reclamado diante do Senhor dos espíritos”.

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[12]. SALMOS DE SALOMÃO 2,1-7.24-29. Cf. o texto em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento III. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24.

[13]. Idem, ibidem, p. 50-51.

[14]. Cf. PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 67; ROWLEY, H. H. A importância da literatura apocalíptica, p. 157-188.

[15]. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 250.

[16]. FROST, S. B. Old Testament Apocalyptic: Its Origins and Growth. London, 1952, p. 33, citado em PAUL, A. O que é o Intertestamento, p. 67.

[17]. HANSON, P. D. Apocalíptica no Antigo Testamento: um reexame, em VV. AA. Apocalipsismo, p. 50-51.

[18]. Cf. DINGERMANN, F. Origem e desenvolvimento da escatologia no AT, em SCHREINER, J. (org.) Palavra e Mensagem. São Paulo: Paulus,1978, p. 430-443.

[19]. DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento IV. Madrid: Cristiandad, 1984, p. 30.

Última atualização: 25.11.2021 – 13h37