Apocalíptica 5

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A outra forma característica dos escritos apocalípticos é o arrebatamento. Dizer que “os céus estão fechados” é um modo semítico para falar do fracasso da história de Israel. Mas, se são inspirados os autores fictícios da apocalíptica, como se dá esta inspiração? O autor é “arrebatado” ao céu. Se o Espírito não desce, vai-se até ele para escrever e fazer história.

Paulo, polemizando com outros apóstolos que discordam do seu evangelho, se diz autêntico e até se dá o direito de, insensatamente, se vangloriar: “É preciso gloriar-se? Por certo, não convém. Todavia mencionarei as visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, foi arrebatado (arpagénta, do verbo arpázô, “raptar”, “arrebatar”) ao terceiro céu -, se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe! E sei que esse homem – se no corpo ou fora do corpo, não sei; Deus o sabe! – foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir” (2Cor 12,1-4).

O Livro Eslavo de Henoc, escrito apocalíptico do século I d.C., diz que Henoc estava em sua casa dormindo, quando “surgiram dois homens de estatura descomunal”, na verdade dois anjos, que lhe disseram: “Henoc, tenha ânimo de verdade e não te assustes, pois o Senhor da eternidade nos enviou a ti: hoje vais subir ao céu conosco” (1,8).

Então os dois anjos conduzem Henoc através dos sete céus, explicando-lhe tudo o que vê. E no sétimo céu ele é levado por Miguel diante do Senhor e preparado para uma importante missão[25].

Em seguida, Vrevoil, o mais sábio dos arcanjos, escriba oficial do Senhor, pega livros e pena para que Henoc escreva. “Em seguida, foi recitando todas as obras do céu, da terra e de todos os elementos, seu movimento e suas trajetórias (…) o número dos anjos, as canções das milícias armadas, todo assunto humano, toda língua dos cânticos, as vidas dos homens, os mandamentos e ensinamentos (…) Vrevoil me instruiu durante trinta dias e trinta noites, sem parar de falar, e eu não tive um momento de descanso, consignando por escrito todos os sinais da criação” (10-4-5).

Depois disto, por mais trinta dias e trinta noites, Henoc registra por escrito as almas humanas, inclusive as que ainda não nasceram, e os lugares que lhes estão predestinados desde antes da criação da terra. No final, são escritos 366 livros.

Em seguida, Henoc escuta do próprio Senhor um relato da criação em sete dias e do pecado de Adão e Eva no paraíso. O Senhor lhe diz, então: “Entenda pois, Henoc, e tome consciência de quem está te falando: pega esses livros que você mesmo escreveu (…) desça à terra e conte a teus filhos tudo o que eu te disse e tudo o que vistes do céu mais baixo até meu trono (…) Entregue-lhes os livros escritos com tua mão e letra e que eles os leiam e me reconheçam como Criador do universo e compreendam que não há outro (criador) além de mim, e transmitam os livros escritos por ti de filhos para filhos, de geração em geração, de parentes para parentes” (11,87-92).

A Henoc, conduzido pelos dois anjos novamente à terra, é dado um prazo de 30 dias para executar o mandato do Senhor, ao fim do qual ele será arrebatado definitivamente aos céus.

Falando aos seus filhos, entre outras coisas, diz Henoc: “Tomai estes livros escritos por vosso pai, lede-os, e neles reconhecereis todas as obras do Senhor. Existiram muitos livros desde o começo da criação e ainda existirão até o fim do mundo, porém nenhum deles vos revelará (tanto) como estes, escritos por minha mão: se os seguirdes com firmeza, não pecareis contra o Senhor” (13,60-61). “Que estes livros que acabo de vos dar sejam a recompensa de vosso descanso. Não os escondais; ensinai-os a todos os que queiram (vê-los), para ver se assim reconhecem (como tais) as obras mirabilíssimas do Senhor (…) Amanhã subirei ao céu empíreo, à minha herança sempiterna” (13,110-112). “Então os anjos pegaram apressadamente Henoc e levaram-no até o céu mais alto, onde o Senhor o acolheu e o colocou diante de si por toda a eternidade” (18,2). Henoc vivera 365 anos[26] .

Para terminar este capítulo, quero lembrar que a apocalíptica torna-se possível pela aculturação helenística do judaísmo, que sofre influências babilônicas, persas e gregas, levadas pela unificação imperial de Alexandre Magno a partir de 332 a.C.

Influências persas, típicas da especulação zoroástrica, podem ser vistas na explicação que o Livro Eslavo de Henoc dá sobre a origem da criação (cf. 11,6-20;17,2-6). Aí, luz e trevas (Adoil e Ar(u)chas são dois princípios calcados nas figuras de Ahura-Mazda (deus do bem) e seu irmão gêmeo Angra Mainyu (deus do mal).

É para combater a helenização que a apocalíptica assimila elementos gregos mais do que qualquer outra tendência judaica da época, permanecendo, contudo, fiel às concepções vétero-testamentárias.

Um exemplo interessante de influência grega na literatura apocalíptica pode ser visto no capítulo 14 do IV Livro de Esdras, escrito apócrifo do final do século I d.C.

Acredita-se, no século I d.C., que a Lei fora queimada com a destruição do Templo em 586 a.C. pelos babilônios. De novo, agora, em 70 d.C., o Templo é mais uma vez destruído, acabando com as últimas esperanças judaicas. E o assunto está, então, na moda.

Como fazer para ter de novo a Lei, se apenas Moisés é o autor autorizado, inspirado? Existe Esdras, o grande restaurador da Lei na época persa. Ele é o herói certo. Esdras é, então, encarregado de refazer a obra de Moisés. Sendo refeita a obra, refaz-se a continuidade da história de Israel, de novo possível.

Diz o capítulo 14 que uma voz celeste se dirige a Esdras nos seguintes termos: “Esdras: os sinais que te mostrei, os sonhos que viste, explica-os imediatamente aos sábios, e os escribas os guardarão! Porque tu serás arrebatado para longe dos homens, para ficares, até o fim dos tempos, junto com o meu Servo e com os que se parecem contigo”.

Em seguida, inspirado no mito das raças de Hesíodo, diz o texto: “É que realmente o mundo perdeu a sua juventude. Aproximam-se os tempos de sua decrepitude! Porque o mundo foi dividido em dez partes! Chegamos ao tempo da décima parte: resta apenas a metade dessa décima parte (…) À medida que o mundo decai em sua velhice, os males se acumulam sobre os seus habitantes”.

Então, diz o texto, Esdras questiona o Senhor:“Pois que a tua lei foi queimada pelo fogo, haverá ainda alguém para conhecer as maravilhas que fizeste e os decretos que promulgastes? Se encontrei graça diante de ti, envia o Espírito Santo ao meu coração, e escreverei tudo o que aconteceu desde o início do mundo, como estava escrito na tua Lei”.

Esdras recebe assim a ordem de preparar as tabuinhas e de convocar cinco especialistas em escrita criptográfica que trabalharão com ele durante 40 dias, nos quais ninguém deve procurá-los.


As cinco raças

“Primeiro de ouro a raça dos homens mortais

criaram os imortais, que mantêm olímpicas moradas.

Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;

como deuses viviam, tendo despreocupado coração,

apartados, longe de penas e misérias; nem temível

velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,

alegravam-se em festins, os males todos afastados (…)

Então uma segunda raça bem inferior criaram,

argêntea, os que detêm olímpia morada;

à áurea, nem por talhe nem por espírito semelhante (…)

E Zeus Pai, terceira, outra raça de homens mortais

brônzea criou em nada se assemelhando à argêntea;

era do freixo, terrível e forte, e lhe importavam de Ares

obras gementes e violências, nenhum trigo

eles comiam e de aço tinham resistente o coração (…)

Mas depois também a esta raça a terra cobriu,

de novo ainda outra, quarta, sobre fecunda terra

Zeus Cronida fez mais justa e mais corajosa

raça divina de homens heróis e são chamados

semideuses, geração anterior à nossa na terra sem fim (…)

Antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,

mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.

Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia

cessarão de labutar e penar e nem à noite de se

destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão”

HESÍODO, Os trabalhos e os dias[27].

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[25]. No primeiro céu estão os depósitos de neve, gelo e nuvens guardados por anjos; no segundo estão presos anjos rebeldes; no terceiro céu Henoc vê o paraíso, reservado para os justos e, na sua região boreal, o lugar terrível reservado aos ímpios, onde “os guardiães – brutais e implacáveis, portam armas crueis e torturam sem compaixão” (5,11); no quarto céu está o controle do sol e da lua; no quinto céu estão os anjos que pecaram com as filhas dos homens, condenados a uma tristeza enorme; no sexto céu estão os anjos guardiães do universo, da terra e dos homens; no sétimo céu, finalmente – cercado por virtudes, dominações, principados, potestades, querubins, serafins, tronos, otanim e dez esquadrões de anjos de muitos olhos – está o Senhor, sentado em seu altíssimo trono. “E vi o Senhor face a face, sua face irradiava poder e glória, era admirável e terrível e inspirava, ao mesmo tempo, temor e pavor” (9,10).

[26]. Cf. o texto completo do Livro Eslavo de Henoc em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento IV, p. 147-202.

[27]. Hesíodo é um poeta grego que vive na Beócia no final do século VIII ou começo do século VII a.C. Em Os trabalhos e os dias – em que descreve o mundo humano de sua época – ele fala das cinco raças. Cf. HESÍODO Os trabalhos e os dias. 4. ed. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 31-35.

Última atualização: 26.04.2019 – 22h10