RICHARD, P. O movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1999, 223 p.
leitura: 9 min
O livro de Pablo Richard, El Movimiento de Jesus antes de la Iglesia foi publicado em espanhol em 1998, na Costa Rica, e traduzido para o português por José Afonso Beraldin para as Edições Paulinas, que o lançou na Coleção “Estudos Bíblicos”. Leia a avaliação do livro feita por Dom Emanuel Messias de Oliveira, Bispo de Caratinga, MG, Mestre em Ciências e Línguas Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma.
O autor
Pablo Richard, nasceu no Chile em 1939. É sacerdote diocesano (Arquidiocese de San José – Costa Rica). Licenciado em Teologia pela Universidade Católica do Chile e Mestre em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, estudou Bíblia e Arqueologia na Escola Bíblica de Jerusalém. É Doutor em Sociologia da Religião pela Sorbonne, Paris e Doutor Honoris Causa em Teologia pela Faculdade Livre de Teologia Protestante de Paris.
Foi diretor do DEI (Departamento Ecumênico de Investigações), é Catedrático de Sagrada Escritura na Escola Ecumênica de Ciências da Religião na Universidade Nacional e na Universidade Bíblica Latino-americana, na Costa Rica.
O livro
O livro, em seus cinco capítulos, pretende ser uma interpretação libertadora dos Atos, como diz o subtítulo. Os Atos cobrem o período apostólico (30 a 70), enquanto Lucas o escreve no período sub-apostólico (70-135), período em que diversos modelos de Igreja são institucionalizados. O livro dos Atos quer reconstruir o movimento de Jesus depois de sua ressurreição e antes da institucionalização das Igrejas, ocorrida depois do ano 70.
“Resgatar o livro dos Atos quer dizer justamente resgatar este período histórico de quarenta anos entre a ressurreição de Jesus e a organização das Igrejas; é reconstruir o movimento de Jesus depois da ressurreição e antes da Igreja”, diz Pablo Richard na p. 4.
Escrevendo o livro por volta dos anos 80-90, Lucas quer dar a sua contribuição, mostrando com que espírito a Igreja deve ser institucionalizada. Ou seja, a Igreja em época nenhuma deve perder as características fundamentais do movimento de Jesus, que são: um movimento animado pelo Espírito Santo, um movimento missionário e cuja estrutura básica é representada pelas pequenas comunidades domésticas.
Estas três características são as chaves hermenêuticas com as quais Pablo Richard pretende interpretar o livro dos Atos. Isto significa que a novidade do autor é interpretar o livro dos Atos na mesma perspectiva de Lucas e com igual objetivo: apresentar uma perspectiva, uma metodologia, ou um espírito para repensar a Igreja de hoje, resgatando estas três características fundamentais do movimento de Jesus.
O conteúdo do livro
O livro é de uma leitura super-agradável, pois o autor soube magistralmente combinar uma exegese científica com uma visão pastoral libertadora. Muitas abordagens nos chamam a atenção, algumas pela sua novidade, a maioria pelo clarão novo com o qual o autor no-las apresenta. Além das chaves hermenêuticas já citadas, que vão dando um sabor todo especial ao livro, eu ainda lembraria o resgate da mulher no movimento de Jesus, que o autor também apresenta como chave hermenêutica.
Vamos apresentar apenas dois exemplos. Logo no início, distinguindo At 1,6ss dos 5 primeiros versículos como texto restritivo, onde aparecem somente os apóstolos (v. 2), o autor resgata a presença das mulheres na aparição de Jesus, no envio e na recepção do Espírito. Na verdade, 1,6-15 apresenta um grupo grande de umas cento e vinte pessoas, entre as quais algumas mulheres. O segundo exemplo está em At 6,1ss, onde o conflito apresentado torna-se público graças ao grito de protesto levantado pelas viúvas dos Helenistas.
A distinção do autor em At 6,1-6 em sentido aparente, o fato de deixar de lado as viúvas, e sentido profundo, a discriminação dos Helenistas por parte dos Hebreus, é bastante esclarecedora. Aí se percebe que a solução do problema da discriminação não está no aumento do número dos servidores das mesas e sim na legitimação e organização do grupo dos Helenistas.
O autor deixa bem claro a distinção e o desempenho dos dois grupos:
O grupo dos Helenistas: judeus cristãos de língua e cultura grega, residentes em Jerusalém, grupo profético, crítico em relação à Lei e ao Templo. Depois da morte de Estêvão, eles se dispersaram, mas os apóstolos ficam (8,1). Nesta dispersão eles cumprem a ordem de Jesus em 1,8 (o que os apóstolos não fizeram). Eles anunciam a palavra por toda à parte: Filipe, aos samaritanos e ao eunuco etíope (8,5-40); outros do mesmo grupo, aos gregos (11,19-21).
O grupo dos Hebreus é formado por judeus cristãos de língua aramaica e de cultura tradicional hebraica. São fiéis observantes da Lei e do Templo. A ele pertencem sacerdotes (6,7) e fariseus convertidos (15,5). Os doze apóstolos são responsáveis por este grupo, mais tarde liderado por Tiago, o irmão do Senhor.
A apresentação de At 6,1ss até 15,35, como seção dos Helenistas, com os relatos intercalados dos atos de Paulo (capítulo 9) e os de Pedro (9,3-11,18), tem sabor de novidade. Os atos dos Helenistas compreendem inclusive o Concílio de Jerusalém, pois este acontece em função da Igreja de Antioquia, fundada pelos Helenistas.
Talvez um outro ponto de destaque com real sabor de novidade, para quem não leu ainda Rius-Camps e Juan Mateos, é a presença do “nós” como presença do Espírito, a partir de 16,10. Lucas vem fazendo sua narração tranquilamente na terceira pessoa. De repente, ele passa para a primeira pessoa do plural. É o aparecimento do “nós”.
Sobre este “nós” já se escreveu muito. “A explicação mais corrente, diz o autor na página 132, é que Lucas utilizou, nesse caso, uma fonte; ou então que o próprio Lucas se tenha unido a Paulo no porto de Trôade, seguindo depois juntamente com ele. Outra explicação é que, agora, (em 16,6-10) depois da conversão de Paulo (ao se submeter ao Espírito por duas vezes), Lucas identifica-se com Paulo e o acompanha (física ou literariamente) em sua nova missão. O ‘nós’ representaria, dessa forma, a comunidade do Espírito. Cada vez que Paulo segue a estratégia do Espírito, o ‘nós’ reaparece no relato”. Quando não segue, o “nós” desaparece.
Na realidade o “nós” desaparece várias vezes, pois a estratégia do Espírito é que Paulo se dirija aos pagãos e não aos judeus, mas em toda cidade que Paulo entra, primeiro ele vai à sinagoga para tentar mais uma vez converter os judeus, e aí o Espírito fica de fora.
Quando Paulo enfrenta o Espírito em uma jovem escrava em 16,16-18, o “nós” desaparece, pois o “nós” representa justamente a comunidade do Espírito. E só aparece de novo em 20,5 e vai continuar até 21,18.
Na página 188 o autor, na “Reflexão Pastoral”, esclarece que “Paulo, em sua viagem a Jerusalém, vai lutando com o Espírito Santo. A vontade do Espírito é que ele não vá a Jerusalém, mas que siga diretamente para Roma, a fim de continuar, a partir daquela cidade, a missão até os confins da terra.” Depois de 21,18, quando Paulo se submete à comunidade judeu-cristã de Jerusalém, o grupo “nós” desaparece novamente para reaparecer em 27,1 até 28,16. Aqui, “no v. 16, aparece pela última vez o “nós”, que representa, como dissemos, a comunidade do Espírito. No v. 17, os líderes judeus entram nesta casa e, no v.25a, saem dela. Desse diálogo, o Espírito não participa; por isso é que o “nós” não aparece. O Espírito retorna no v. 25b, quando Paulo finalmente dá razão ao Espírito e se converte à sua estratégia missionária” (p. 207).
No final da sua obra, à página 211, o autor vai nos dizer que “o que Lucas nos narra, na realidade, é o triunfo da missão, o triunfo da Palavra de Deus, o triunfo do Espírito Santo (o grifo é nosso) de Jerusalém até Roma, qual ponto de partida para a missão até os confins da Terra (1,8). O que Lucas nos narra, acima de tudo, dentro desta história da missão, é a conversão ao Espírito dos personagens chave da missão: Pedro, Estêvão, Filipe, Barnabé, Marcos e, por último, Paulo. Quando esses personagens se convertem ao Espírito, já não se fala mais deles em Atos.”
O último ponto que gostaríamos de observar é o que chamaríamos de a grande novidade do livro. Trata-se dos aportes pastorais chamados “Reflexão Pastoral”. Neles o autor retoma o núcleo dos capítulos tratados, abordando-os do ponto de vista pastoral e atualizando-os em forma de perguntas muito pertinentes para a nossa caminhada de Igreja.
Sirva-nos de exemplo o item 1 da “Reflexão Pastoral”, a propósito dos dois capítulos iniciais dos Atos. Está na página 49: “No texto dos Atos, aparece a tensão entre a tendência institucionalizada (a reconstituição dos doze apóstolos para dar identidade e continuidade ao movimento de Jesus) e a ‘violência’ do Espírito (furacão e fogo), que apresenta o movimento como um movimento missionário dirigido a todas as nações. Como vivemos essa tensão na atualidade? A institucionalização normalmente é restritiva (vejam-se as condições apresentadas por Pedro para tornar-se apóstolo); o Espírito, pelo contrário, é universal (todas as nações, toda carne: filhos/filhas, jovens/anciãos, escravos/escravas; cf. também o v. 39: para vocês e para os que estão distantes). Como vivemos hoje o universalismo do Espírito?”
Aí esta o livro do Pablo Richard. Acho que o Espírito acompanhou o autor na clareza de exposição, na profundidade da abordagem aliada à simplicidade e capacidade de segurar o leitor. Não me refiro ao leitor especializado, mas ao leitor leigo.
O livro é realmente fascinante e acessível, e chegou em boa hora, quando a Igreja do Brasil se debruça sobre os Atos dos Apóstolos diante do Projeto SINM (Ser Igreja no Novo Milênio).
Esta resenha foi publicada em 2001.
Última atualização: 13.08.2023 – 18h41