Magos 2

Páginas 1 | 2 | 3 | 4

leitura: 13 min

3. Impossibilidade histórica

a. O deslocamento de personagens ilustres de uma terra distante em busca de um menino desconhecido.

b. O aparecimento/desaparecimento de um astro celeste em função de um fato terrestre.

c. O comportamento de Herodes que consulta os especialistas, mas não vai a Belém.

d. A perturbação de toda Jerusalém.

d. A conversão de gentios logo após o nascimento de Jesus.

 

Tudo isto nos leva em outra direção

 

4. Mateus, um evangelho antissemita?

Durante muito tempo, Mateus foi considerado o mais antissemita dos evangelhos, no qual se revelaria como os seguidores do Nazareno teriam entrado em choque, nos anos que se seguiram à destruição de Jerusalém em 70 d.C., com um farisaísmo sectário, acusado ao longo do evangelho de perversão, tirania, ambição, intemperança. Enfim, acreditava-se que a polêmica de Mateus com o judaísmo poderia ser resumida na seguinte frase: os judeus recusaram Jesus como Messias, enquanto que os gentios o acolheram favoravelmente. Esta é a posição clássica da exegese e prevalece ainda em muitos comentaristas.

Entretanto, pesquisas dos períodos pós-exílico e pós-guerra dos anos 60/70 d.C. contra Roma levaram autores importantes como Anthony J. Saldarini e J. Andrew Overman à defesa de uma visão radicalmente diferente sobre o evangelho de Mateus: o texto de Mateus é mais judaico do que imaginamos. É a expressão de um grupo dissidente judaico que tenta, no contexto pluralista judaico do Segundo Templo e do pós–guerra de 70, impor sua visão e interpretação da vértebra do judaísmo deste período: a Torá e as tradições judaicas[2].

O movimento de Jesus é intra-judaico. “O texto de Mateus é um texto judaico que tem um programa normativo para uma comunidade judaica e quer ver este programa triunfar sobre o de seus rivais. O autor considera ter a verdadeira interpretação da Torá, o que ele faz mediante a tradição de Jesus, que ele declara ser o Messias e Filho de Deus”[3].

E o que diz J. Andrew Overman? Na situação e no ambiente da comunidade de Mateus, o fator que influenciou mais profundamente seu desenvolvimento foi a competição e o conflito com o chamado judaísmo formativo, um grupo, que, como a comunidade de Mateus, estava envolvido em um processo de construção e definição social após a destruição do Templo de Jerusalém. “Na época da escritura do Evangelho de Mateus, os dois grupos, o judaísmo formativo e o judaísmo de Mateus, estavam evidentemente em competição e, ao que parece, o judaísmo formativo estava ganhando terreno. Isso tem um impacto significativo na forma e no conteúdo do Evangelho de Mateus. Muitos dos desenvolvimentos na vida da comunidade de Mateus ocorriam em resposta ao impacto que um judaísmo formativo em organização e consolidação estava tendo sobre as pessoas da comunidade e sobre seu mundo”[4].

Saldarini, por sua vez, garante que “em nenhuma passagem Mateus rejeita o ‘Judaísmo’ ou o ‘povo judeu’. Nem, ao contrário da opinião de muitos intérpretes, afastou-se da comunidade judaica em favor de uma nova comunidade cristã. Nenhuma das polêmicas de Mateus apontam para o Judaísmo ou o povo judeu como um todo, mas sim para certas interpretações do Judaísmo e para líderes da oposição e, ocasionalmente, para o povo que os segue na rejeição do grupo mateano e seu entendimento da vontade de Deus”. E mais adiante: “Embora seja, às vezes, descrito como antijudaico, na verdade Mateus reserva seu veneno para líderes judaicos hostis e, ocasionalmente, para quem segue estes líderes em uma firme rejeição de Jesus”. E ainda: “Mateus e seu grupo estão em luta pelos corações e mentes dos companheiros judeus”[5].

E os gentios? “Presentes de diversas maneiras, os gentios fazem parte do mundo judaico de Mateus. Alguns deles desempenham papel especial, como os magos, a mulher cananeia e o centurião ao pé da cruz. Quando Mateus enfatiza a presença e a fé dos não judeus, faz disso um artifício para que seu grupo dê uma resposta mais convincente à sua fé. Contudo, como afirmamos, Mateus, mantém abertas as fronteiras para os gentios, desde que estes estejam dispostos a se aproximarem, positivamente, de Israel e de Jesus, confirmando suas tradições e a Lei”, nos lembra Carlos Alberto Rodrigues Jorge quando fala do 40 capítulo do livro de Saldarini, O horizonte de Mateus: as nações[6].

Saldarini é enfático ao afirmar no capítulo conclusivo de seu livro: “Mateus não substitui Israel pelos gentios, ao contrário do que pensam muitos comentaristas. A teoria de substituição ou supercessionária foi desenvolvida por autores cristãos do século II, por exemplo, Barnabé e Justino, e foi depois projetada de volta para Mateus, em geral pela construção de uma teologia da história da salvação alheia a Mateus. Mateus abre as portas para não judeus, mas espera que eles observem a lei revelada na Bíblia”[7].

A quem se dirige Mateus? Saldarini, ainda nas Conclusões, define: “Este estudo conclui que o evangelho de Mateus dirige-se a um grupo dissidente na comunidade judaica da grande Síria, uma seita reformista que procura influência e poder (relativamente sem sucesso) na comunidade judaica como um todo”[8].

E quem é o autor do evangelho? “O autor de Mateus (…) provavelmente é um judeu que, embora expulso da assembleia de sua cidade, ainda se identifica como membro da comunidade judaica e apoia a obediência à Lei judaica de acordo com a interpretação de Jesus”, diz Saldarini[9].

 

5. O sentido de Mt 1-2

É neste contexto da comunidade de Mateus que devemos ler os capítulos 1e 2, onde são respondidas duas questões:

Quem é Jesus?
a. Mt 1,1-17  : filho de Davi, filho de Abraão

b. Mt 1,18-25: Emanuel, Salvador, Filho de Deus.

De onde é Jesus e de que época?
a. Mt 2,1-12  : nascido em Belém, no tempo de Herodes

b.  Mt 2,13-15: fugiu para o Egito, por causa de Herodes

b’. Mt 2,16-18: escapou do massacre ordenado por Herodes

a’. Mt 2,19-23: voltou para Nazaré, após a morte de Herodes.

 

Olhando de outro ângulo, pode-se dizer que temos em Mt 1-2 um tema de abertura, como na música erudita, e o desenvolvimento do tema em cinco amostras de quem é Jesus para a comunidade cristã. Assim:

1. Tema
1,1-17: Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão

2. Desenvolvimento do tema ou amostras de quem é Jesus
a. 1,18-25: gerado pelo Espírito

b. 2,1-12: rejeitado pelas elites judaicas, aceito pelos sábios gentios

c. 2,13-15: realiza o itinerário exodal de Israel, como um novo Moisés

d. 2,16-18: realiza o itinerário exílico de Israel

e. 2,19-23: cumpre o fim do exílio e volta à terra

 

Portanto, Mt 1-2 deve ser lido à luz da ressurreição e da confissão da comunidade de que Jesus é o Messias. Não é uma narração de fatos históricos precisos, mas um painel teológico construído com os pedaços da tradição judaica e cristã, com função pastoral.

Mt 1-2 é um midrash, gênero rabínico de exegese ou explicação da Bíblia. É uma atualização de um dado bíblico em função da situação atual. O termo vem da raiz darash, “procurar”, e significa, portanto, “procura”, “busca”. Em um dos tipos de midrash, a haggadah (da raiz higgid, “anunciar”, “narrar”, significa “o que diz a Escritura”), por exemplo, os escribas refletiam sobre os grandes acontecimentos da salvação narrados na Escritura e sobre os homens importantes, para mostrar a sua atualidade[10].

Nos meios (essênios e) cristãos insistia-se muito no cumprimento das promessas da Escritura: agora, no momento adequado e definitivo, via-se a sua realização na vida da comunidade. É o midrash pesher. Mateus faz exatamente tal leitura das Escrituras em 1-2. O pressuposto do pesher é o seguinte: o profeta, salmista ou sábio não escreveu para a sua época, mas para os tempos finais, de realização das promessas. O princípio que rege tal comentário é o da apocalíptica, fazendo da Escritura uma imensa alegoria… Pesher significa “explicação”, “significado”.

 

6. Os elementos mais importantes de Mt 2,1-12

6.1. Herodes Magno

Herodes Magno (37-4 a.C.) é um usurpador do trono judeu, com aprovação de Roma. Ele é idumeu e Edom foi um tradicional inimigo de Israel. Deste modo, por ser estrangeiro, não tem para com os judeus nenhuma relação de reciprocidade e sua legitimidade se funda na própria estrutura do poder exercido[11].

Herodes constrói uma estrutura de poder independente da tradição judaica:

. nomeia o sumo sacerdote do Templo: destitui os Asmoneus e nomeia um sacerdote da família sacerdotal babilônica e, mais tarde, da alexandrina

. exige de seus súditos um juramento que obriga a pessoa a obedecer às suas ordens em oposição às normas patriarcais; se a pessoa recusar o juramento, é perseguida

. interfere na justiça do Sinédrio

. manda vender os assaltantes e os revolucionários políticos capturados como escravos no exterior, sem direito a resgate

. a venda à escravidão e a execução pessoal (a morte) tornam-se normas comuns do arrendamento estatal.

Mas, se ele viola assim a tradição, como consegue legitimidade? A estrutura de poder do Estado sob Herodes é bem diferente da estrutura da época dos Macabeus:

. o rei é legitimado como pessoa e não por descendência

. o poderio não se orienta pela tradição, mas pela aplicação do direito pelo senhor

. o direito à terra é transmitido pela distribuição: o dominador a dá ao usuário: é a “assignatio

. a base filosófica helenística é que legitima o poder do rei, quando diz que o rei é “lei viva” (émpsychos nómos), em oposição à lei codificada, ou seja: o rei é a fonte da lei, porque ele é regido pelo “nous“: o rei tem função salvadora e, por isso, dá aos seus súditos uma ordem racional, através das normas do Estado. “O rei em sua pessoa é a continuação do seu reino e o salvador de seus súditos”, diz H. G. Kippenberg[12].

. o poder militar de Herodes se baseia em mercenários estrangeiros que ficam em fortalezas ou em terras dadas aos mercenários (cleruquias) por ele (terras no vale de Jezrael), e nas cidades não judaicas por ele fundadas, a cujos cidadãos ele dá como posse o território que as rodeia, com os camponeses dentro!

Daí seu pavor, segundo Mateus, ao ouvir falar de um rei dos judeus descendente de Davi. Para Mateus, ele é a figura do Faraó que persegue o novo Moisés, libertador do povo.

 

6.2. A data do nascimento de Jesus

Como pode Jesus ter nascido antes da Era Cristã?

Vamos começar pela citação de uma extensa nota de rodapé de um dos mais importantes estudos sobre o Jesus histórico existentes atualmente, que é o de John P. Meier, Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. 

No volume I, capítulo 11, nota 24, Meier observa: “O paradoxo de Jesus ter nascido em alguma data anterior a 4 a.C. se deve ao nosso atual sistema de contagem dos anos, a.C. (‘antes de Cristo’ e d.C. (‘depois de Cristo’) ou A.D. (anno Domini = ‘no ano do Senhor [Jesus]’), estabelecido pelo monge Dionísio Exíguo. Na primeira metade do século VI A.D., Dionísio sugeriu que os cristãos deveriam contar os anos a partir do nascimento de Cristo, e não do reinado do Imperador Diocleciano (notório por sua perseguição aos cristãos) – isto para não falar da contagem a partir da tradicional data da fundação da cidade de Roma (A.U.C. [ab urbe condita], que corresponderia a 753 a.C. no nosso atual sistema de contagem). Infelizmente, a aritmética de Dionísio não estava no mesmo nível de sua devoção; ele calculou erradamente o ano da morte de Herodes (dessa forma antecipando as posições de alguns exegetas do século XX) e, em decorrência, o ano do nascimento de Jesus. Dionísio considerou que 1 A.D. fosse equivalente a 754 A.U.C., errando por quatro anos no mínimo, pois Herodes morreu em 750 A.U.C.”[13].

O mesmo autor, tratando das narrativas da infância de Jesus segundo Mateus e Lucas, vai dizer: “Será que as Narrativas da Infância têm algo a contribuir para o nosso conhecimento do Jesus histórico? Alguns exegetas responderiam: praticamente nada. Contudo, um julgamento totalmente negativo pode ser muito radical”.

E continua dizendo que a teoria mais bem aceita sobre a relação entre os evangelhos sinóticos mostra que Mateus e Lucas não se conheceram. Além do que as narrativas da infância são bem diferentes entre si. Em que isto contribui?

“Quaisquer concordâncias entre os dois [Mateus e Lucas] nessas narrativas se tornam historicamente significativas, em especial quando o critério da múltipla confirmação é invocado. Essas concordâncias em duas narrativas independentes e profundamente contrastantes representariam, no mínimo, um recurso a uma tradição mais antiga, e não a criação dos evangelistas (…) Por exemplo, apesar de todas as suas divergências, tanto Mateus como Lucas situam o nascimento de Jesus durante o reinado de Herodes, o Grande (37-4 a.C.; cf. Mateus 2,1 e Lucas 1,5)”[14].

Para concluir: “A correlação de Mateus 2 e Lucas 3,23 torna provável – embora não certo – que Jesus tenha nascido poucos anos, e apenas poucos, antes de 4 a.C.”[15].

Página 3


[2]. Cf. SALDARINI, A. J. A comunidade judaico-cristã de Mateus. São Paulo: Paulinas, 2000. Cf. também a resenha desta obra, feita por Carlos Alberto Rodrigues Jorge, à época aluno do 30 ano de Teologia, em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 8,  p. 71-75, 2000.

[3]. RODRIGUES JORGE, C. A. o. c., p. 72.

[4]. OVERMAN, J. A. O Evangelho de Mateus e o judaísmo formativo: o  mundo social da comunidade de Mateus. São Paulo: Loyola, 1997, p. 14; Cf., do mesmo autor, Igreja e comunidade em crise: o Evangelho segundo Mateus. São Paulo: Paulinas, 1999.

[5]. SALDARINI, A. J. A comunidade judaico-cristã de Mateus, p. 80 e 119.

[6]. RODRIGUES JORGE, C. A. o. c., p. 73.

[7]. SALDARINI, A. J. o. c., p. 321.

[8]. Idem, ibidem, p. 320.

[9]. Idem, ibidem, p. 42.

[10]. Cf. KETTERER, E. ; REMAUD, M. O Midraxe. São Paulo: Paulus, 1996.

[11]. Cf., para o que se segue, KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, [1988] 1997, p. 109-116. Há um resumo deste livro no Observatório Bíblico, publicado em 2007.

[12]. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia, p. 114.

[13]. MEIER, J. P. Um judeu marginal: repensando o Jesus Histórico. Volume Um: as raízes do problema e da pessoa. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 411, nota 24.

[14]. Idem, ibidem, p. 213-214.

[15]. Idem, ibidem, p. 371.

Última atualização: 27.04.2019 – 13h10