Magos 3

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6.3. Jesus nasceu em Belém ou em Nazaré?

E o local do nascimento de Jesus? Tanto Mateus como Lucas afirmam que foi em Belém, porém só em Mt 2 e Lc 2 existe essa afirmação de forma clara. Nem nas narrativas da infância, nem no resto do Novo Testamento essa afirmação volta a ser feita e mesmo em outras partes de Mateus e Lucas Jesus é simplesmente Jesus de Nazaré ou o Nazareno[16].

Mas as opiniões dos especialistas quanto ao local real do nascimento de Jesus são divergentes. Alguns defendem ser Belém e apelam para a própria Escritura, como o faz Mateus; outros defendem ser Nazaré e aceitam ser Belém apenas o “lugar teológico” do nascimento do Messias, por causa da tradição usada pelos primeiros cristãos.

Belém, aqui em Mt 1,1-12, exerce dupla função:
. é a cidade de Davi, com tudo o que Davi representa para Israel
. opõe-se ao poder opressor de Jerusalém, lugar do idumeu Herodes e do Sinédrio.

Na citação de Mq 5,1 + 2Sm 5,2, Mateus usa o texto da Septuaginta, tradução grega da Bíblia feita no século III a.C., onde o sentido messiânico é mais acentuado.

O texto hebraico (TM = texto massorético) diz: “embora pequena entre os clãs“… Mateus muda para “de modo algum és o menor entre os clãs de Judá…“, para exaltar a cidade de Davi e de Jesus. Mateus muda também o “Belém, Éfrata” de Miqueias, para “Belém, terra de Judá“, para evitar confusão com a Belém do norte.

E como era habitual na exegese rabínica, o contexto messiânico – ou seja, o texto lido messianicamente na sinagoga – de Mq 5,1 atraiu 2Sm 5,2, que fala de Davi: “És tu que apascentarás o meu povo Israel e és tu quem serás chefe de Israel“.

A posição de John P. Meier sobre o assunto é a seguinte: “Mesmo que o nascimento de Jesus em Belém não possa ser totalmente excluído (raramente consegue-se ‘provar uma negativa’ em história antiga), temos que aceitar o fato de que, na opinião predominante nos Evangelhos e nos Atos, Jesus veio de Nazaré e – exceto pelos capítulos 1-2 de Mateus e Lucas – somente de Nazaré. Os caminhos um tanto sinuosos e suspeitos que Mateus e Lucas percorrem para conciliar a tradição dominante de Nazaré com a tradição especial de Belém das suas Narrativas da Infância talvez indiquem que o nascimento de Jesus em Belém deva ser entendido não como fato histórico, mas como um teologúmeno, ou seja, um princípio teológico (p. ex., Jesus é o verdadeiro Descendente de Davi, o Messias real da profecia), sob a forma de uma narrativa aparentemente histórica. É preciso admitir, no entanto, que não se pode ter certeza nesse ponto”[17].


 Um esboço da vida de Jesus, segundo John P. Meier

“Jesus de Nazaré nasceu – mais provavelmente em Nazaré, e não em Belém – por volta de 7 ou 6 a.C., alguns anos antes da morte do Rei Herodes, o Grande (4 a.C.). Após ter sido educado de forma convencional numa família devota de camponeses judeus da Baixa Galileia, ele foi atraído para o movimento de João Batista, cujo ministério começou na região do Vale do Jordão, entre o final de 27 ou começo de 28 d.C.; batizado por João, logo Jesus seguiu seu próprio caminho, iniciando seu ministério ainda em 28, com a idade de 33 ou 34 anos. Regularmente ele dividiu sua atividade entre a região da Galileia e Jerusalém (incluindo a área adjacente da Judeia), dirigindo-se para  a cidade santa para as grandes festas, quando as grandes multidões de peregrinos lhe proporcionariam um público que, de outra forma, ele não conseguiria atingir. Seu ministério se prolongou por dois anos e alguns meses.

Em 30 A.D., estando em Jerusalém para a festa da Páscoa que se avizinhava, Jesus aparentemente sentiu que a crescente hostilidade entre as autoridades do templo e ele estava prestes a alcançar seu clímax. Jesus celebrou uma solene ceia de despedida com seu círculo mais íntimo de discípulos, ao anoitecer da quinta-feira, 6 de abril (pela nossa contagem atual), quando começava o décimo quarto dia de Nisan, o dia de preparação para a Páscoa (de acordo com a contagem litúrgica judaica). Preso em Getsêmani na noite de 6 para 7 de abril, ele foi primeiro inquirido por alguns funcionários judeus (pouco provavelmente por todo o Sinédrio) e depois entregue a Pilatos na madrugada de sexta-feira, 7 de abril. Pilatos prontamente o condenou à morte na cruz. Depois de flagelado e humilhado, Jesus foi crucificado no mesmo dia, nos arredores de Jerusalém. Morreu na sexta-feira, 7 de abril de 30, com a idade de 36 anos aproximadamente” (MEIER, J. P.  Um judeu marginal: repensando o Jesus Histórico. Volume Um: as raízes do problema e da pessoa. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 401-402).

 

6.4. Os Magos

Segundo o historiador grego Heródoto (ap. 480-ap. 425 a.C.), os magos eram originariamente uma tribo dos medos que atuavam como sacerdotes e adivinhos sob os reis aquemênidas (séculos VI-IV a.C.). Diz Heródoto: “As tribos dos medos são as seguintes: os busos, os paretacenos, os estrúcatos, os arizantos, os búdios e os magos” (História I,101)… “Astiages relatou a visão que tivera em sonho aos intérpretes magos, e ficou apavorado ao ouvir as suas palavras” (História I,107)… “Astiages (…) para decidir a sorte de Ciros, mandou chamar os mesmos magos que, como dissemos, tinham interpretado seu sonho; quando eles chegaram Astiages lhes perguntou qual havia sido a sua interpretação da visão. Os magos lhe deram a mesma resposta anterior: disseram que o menino teria fatalmente reinado” (História I, 120)… “Dizendo essas palavras ele [Astiages] mandou primeiro empalar os magos intérpretes de sonhos, que o haviam convencido a deixar Ciros viver” (História I, 128)… “Sua maneira de sacrificar aos deuses é a seguinte (…) Depois de a carne ser arrumada dessa maneira um mago se aproxima e canta por cima dela uma teogonia (dizem que esse é o assunto de seu canto); ninguém tem o direito de oferecer um sacrifício sem a presença de um mago” (História I, 132)[18].

O geógrafo grego Estrabão (ap. 64 a.C.-19 d.C.) diz que os magos oferecem libações e sacrifícios diante do altar do fogo: “Na Capadócia (pois ali a seita dos Magos, que são também chamados Pýraithoi [‘acendedores de fogo’], é grande e neste país há também muitos templos dos deuses persas) o povo…” (Geografia 15.3.15)[19]. O escritor ateniense Xenofonte (ap. 430- ap.355 a.C.), em sua obra Ciropedia 4.5.14, faz a mesma afirmação sobre as libações.

Quando Cambises estava no Egito, lutando para conquistá-lo em 525 a.C., um mago chamado Bardiya/Smerdis, fazendo-se passar por irmão de Cambises, tomou o poder na Pérsia, sendo, em seguida, derrotado por Dario I. Na famosa inscrição no rochedo de Behistun, o impostor, também conhecido como Gaumata, é chamado por Dario, em Persa Antigo, de magush. Aliás, palavra de sentido incerto. Sugeriu-se que possa vir do Proto-Indo-Europeu magh– = “ser capaz de”.

Os persas continuaram a usar derivações da palavra magush como uma palavra para “sacerdote” até o fim da era sassânida, por volta de 650 d.C. Um sacerdote comum era chamado mog e o sacerdote chefe era magupat, “senhor dos magos”.

A relação dos magos com Zaratustra é controvertida, assim como a religião dos magos sob os aquemênidas. É possível que os magos medos tenham sido substituídos por Dario I pelos magos persas – que aceitavam o zoroastrismo – após a revolta de Gaumata. De qualquer maneira, em muitos escritos antigos, os magos aparecem associados ao zoroastrismo e a Zaratustra. Na época helenística os magos aparecem também cada vez mais associados à astrologia. E Zaratustra com eles[20].

 

Três reis magos: Melquior, Baltazar e Gaspar?

Os presentes dos magos em Mt 2,11 – ouro, incenso e mirra – representam para o evangelista as riquezas orientais. É possível que Mateus não visse aqui nenhum simbolismo especial na escolha de cada um deles.

Is 60,6 diz a propósito do esplendor de Jerusalém, glorificada por Iahweh, que recebe as riquezas vindas das nações pelas mãos de seus reis e de seus povos:

“Uma horda de camelos te inundará
os camelinhos de Madiã e Efa;
todos virão de Sabá
trazendo ouro e incenso
e proclamando os louvores de Iahweh”.

O Sl 72,10-11 diz:

“Os reis de Társis e das ilhas vão trazer-lhe ofertas.
Os reis de Sabá e Seba vão pagar-lhe tributo;
todos os reis se prostrarão diante dele,
as nações todas o servirão”.

Os presentes são, assim, também lidos à luz da Escritura por Mateus, embora indiretamente. O ouro de Ofir (algum ponto no sudoeste da Arábia), o incenso e a mirra do Iêmen (Sabá, na Bíblia) e da Somália eram muito apreciados na época bíblica.

Mas a tradição posterior desenvolveu toda uma história sobre os magos a partir dos presentes.

Os Padres da Igreja, por exemplo: Tertuliano os chama de reis, Justino Mártir, Tertuliano e Epifânio, sabedores da origem dos presentes, dizem que eles vêm da Arábia… (embora outros Padres achem que eles vêm da Pérsia, como Clemente de Alexandria, Cirilo de Alexandria, São João Crisóstomo, Orígenes…).

Os Evangelhos Apócrifos expandem muito a tradição sobre os magos.

O Proto-evangelho de Tiago [21], o mais antigo deles (ca. 150) diz em 21,1-4:

1. Em Belém da Judeia houve uma confusão, porque vieram magos, dizendo: ‘Onde está o nascido rei dos Judeus? Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’.

2. Ouvindo isso, Herodes se perturbou e enviou ministros aos magos; mandou também chamar os sumos sacerdotes e os interrogou, dizendo: “Como está escrito a respeito do Cristo, onde deve ele nascer?” Eles responderam: “Em Belém da Judeia, porque assim está escrito”. Depois ele os dispensou. Interrogou também os magos dizendo: “Que sinal vistes a respeito do rei que nasceu?” Os magos responderam: “Vimos uma estrela grandíssima brilhando entre essas estrelas e obscurecendo-as, tanto que as estrelas não apareciam mais. Foi assim que ficamos sabendo que tinha nascido um rei em Israel e viemos adorá-lo”. “Ide e procurai”, disse Herodes, “e se o encontrardes, fazei-me sabê-lo, para que também eu vá adorá-lo”. Em seguida, os magos partiram.

3. E eis, a estrela que tinham visto no Oriente precedia-os até que chegaram à gruta, e parou em cima da gruta. Os magos, vendo o menino com Maria, sua mãe, tiraram presentes de suas sacolas: ouro, incenso e mirra.

4. Tendo sido avisados por um anjo para não entrarem na Judeia, voltaram ao seu país por outro caminho.

Um texto siríaco do século VI, chamado A Caverna dos Tesouros, nomeia os magos como Hormizdah, rei da Pérsia, Yazdegerd, rei de Sabá e Perozadh, rei de Seba.

O Excerpta Latina Barbari, um manuscrito latino traduzido do grego, do século VI, conservado na Biblioteca Nacional de Paris, nomeia os magos como Bithisarea, Meliquior e Gathaspa.

Um tratado atribuído a Beda, O Venerável (monge do mosteiro de Jarrow, Inglaterra, ca. 673-735), chamado Excerpta et Collectanea chama os magos de Melquior, Gaspar e Baltazar. E foram estes os nomes que prevaleceram. Diz o texto:

“Melquior, um homem velho com cabelos brancos e longa barba… ofereceu ouro para o Senhor como a um rei. O segundo, de nome Gaspar, jovem, imberbe e de pele avermelhada… honrou-o como Deus com seu presente de incenso, oferenda digna da divindade. O terceiro, de pele negra e de barba cerrada, chamado Baltazar… com o seu presente de mirra testemunhou o Filho do Homem que deveria morrer”[22].

O Evangelho Armênio da Infância [23] diz em V,10:

“Um anjo do Senhor foi apressadamente ao país dos persas para avisar os reis magos que fossem adorar o menino recém-nascido. Eles, guiados durante nove meses pela estrela, chegaram no momento em que a Virgem acabava de dar à luz. Porque, nesse tempo, o reino dos persas dominava, por seu poder e suas vitórias, todos os reis que existiam nos países do Oriente. Os reis dos magos eram três irmãos: o primeiro Melquior (Melcon), reinava sobre os persas; o segundo, Baltazar, reinava na Índia; o terceiro, Gaspar, reinava no país dos árabes. Tendo-se reunido, por ordem de Deus, chegaram no momento em que a Virgem se tornava mãe. Eles tinham apressado a viagem e encontram-se lá no momento exato do nascimento de Jesus”.

O Evangelho Siro-Árabe da Infância diz:

“Nesta mesma noite, um anjo da guarda foi mandado à Pérsia e apareceu às pessoas do país na forma de uma estrela muito brilhante, a qual iluminou toda a terra dos persas. Ora, como no dia 25 do primeiro kanun – festa da natividade de Cristo – celebrava-se uma grande festa na casa de todos os persas adoradores do fogo e das estrelas, os magos, com grande pompa, celebravam magnificamente sua solenidade, quando, de repente, uma luz viva brilhou por cima de suas cabeças. Deixando seus reis, suas festas, todos os seus divertimentos e suas casas, saíram para apreciar o espetáculo. Viram no céu uma estrela brilhante em cima da Pérsia. Pelo seu brilho, ela se assemelhava a um grande sol.

E seus reis disseram aos sacerdotes em sua língua: ‘Que sinal é este que estamos vendo?’ E eles, como por adivinhação, disseram: ‘Nasceu o rei dos reis, o deus dos deuses, a luz emanada da luz. Eis que um dos deuses veio anunciar-nos seu nascimento para irmos oferecer-lhe presentes e adorá-lo’.

Levantaram-se então todos, chefes, magistrados, generais, e disseram aos seus sacerdotes: ‘Que presentes convém levarmos?’ E os sacerdotes lhes disseram: ‘Ouro, mirra e incenso’.

Então os três reis, filhos dos reis da Pérsia, tomaram, como que por uma disposição misteriosa, um, três libras de mirra, o outro, três libras de ouro, e o terceiro, três libras de incenso. Estavam revestidos de seus preciosos indumentos, a tiara na cabeça e seu tesouro nas mãos. Ao canto do galo, deixaram seu país, com nove homens que os acompanhavam, e partiram, precedidos da estrela que lhes tinha aparecido”.

Nas pinturas, em alguns momentos os magos foram representados pelos cristãos como sendo doze, em outros quatro, em outros ainda dois… Acabaram tornando-se santos, como no famoso mosaico do século VI da igreja de Santo Apolinário Novo em Ravenna, na Itália, onde acima de suas figuras se lê SCS. (=Sanctus) Baltazar, SCS. Melquior, SCS. Gaspar.

Quando o veneziano Marco Polo (ca.1254-ca.1324) viajou para a Pérsia,  as tumbas dos magos lhe foram mostradas, com seus corpos perfeitamente conservados…

Competindo com esta tradição, diz outra que o Imperador Zeno recuperou as relíquias dos magos em 490, em Hadramaut, na Arábia do sul. De Constantinopla elas foram para Milão. Quando o Imperador alemão Frederico I Barba-Ruiva (1152-1190) conquistou Milão, seu chanceler Reinald von Dassel, conseguiu levar as relíquias dos magos para sua cidade natal, Colônia. Assim, os magos, depois de tantas andanças, descansam em paz na famosa catedral gótica de Colônia, Alemanha, desde 1164…[24].

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[16]. Cf. MEIER, J. P. Um judeu marginal I, p. 214.

[17]. Idem, ibidem p. 216. De que não se pode ter certeza nesta questão é também a posição de BROWN, R. E. The Birth of the Messiah. Garden City, NY: Doubleday, 1977, p. 513-516 [tradução brasileira: O nascimento do Messias. São Paulo: Paulinas, 2009].

[18]. HERÔDOTOS História. Brasília: Editora da UnB, 1985. Sobre os magos, cf. YAMAUCHI, E. M. Persia and the Bible. Grand Rapids, MI: Baker Books, 1996, p. 467-491.

[19]. STRABO Geography, Books 15-16. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995. Sobre as libações, cf. Geografia 15.3.14.

[20]. Cf. YAMAUCHI, E. M. Persia and the Bible, p. 467-474. “Zoroastro” é apenas outra forma, derivada do grego, para falar do mesmo Zaratustra.

[21]. O Proto-evangelho de Tiago suscita até hoje grande controvérsia quanto à sua autoria. Pensava-se ser o autor Tiago Menor, o chamado “irmão do Senhor”, mas isto é improvável. O que se sabe é que este evangelho é a compilação, feita talvez no século IV, de três documentos gregos originariamente independentes. Cf. introdução e texto em MORALDI, L. Evangelhos Apócrifos. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1999, p. 91-117.

[22]. Cf. YAMAUCHI, E. M. Persia and the Bible, p. 486-487. O nome Melquior significa “meu rei é luz”; Baltazar deriva, provavelmente, do nome babilônico dado a Daniel, “Belteshazzar” (cf. Dn 1,7); Gaspar pode vir do nome indiano Gundaphorus, segundo Edwin M. Yamauchi, o. c., p. 486, nota 115.

[23]. O Evangelho Armênio da Infância é uma tradução de um texto siríaco feita no século VI. Cf. DE SANTOS OTERO, A. Los Evangelios Apócrifos: Edición crítica e bilingue. Madrid: BAC, 2006, p. 359-365.

[24]. Cf. YAMAUCHI, E. M. o. c., p. 491.

Última atualização: 03.01.2022 – 18h29

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