Paideia grega

Paideia grega e apocalíptica judaica

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Resumo

O artigo mostra a reação de Israel ao processo de helenização, especialmente a partir do segundo século antes de Cristo, quando surge a apocalíptica judaica. Esse movimento, de cunho mais literário, é uma radicalização da escatologia já existente em Israel, com a finalidade de resistir à destruição da identidade e dos valores ético-religiosos do povo judeu. Como exemplo dessa reação, o autor analisa um texto apocalíptico do livro de Daniel, o mais antigo de todos eles, provavelmente: 2,1-49. Face ao imperialismo, a sobrevivência passa pela convicção de que nem a sabedoria nem o poder humano podem confrontar o Deus verdadeiro de Israel.

Abstract

The article presents Israel’s reaction to the Hellenization process, especially from the second century BC, when the Jewish apocalyptic arises. This movement, of a more literary nature, is a radicalization of the eschatology already existing in Israel, with the purpose of resisting the destruction of the identity and ethical-religious values of the Jewish people. As an example of this reaction, the author analyzes an apocalyptic text from the book of Daniel, probably the oldest of them all: 2,1-49. Facing the imperialism the survival requires a conviction that neither wisdom nor human power can confront Israel’s true God.

 

Muitas e variadas foram as formas utilizadas pelos gregos em todo o Oriente Médio para implantar a helenização nos territórios conquistados pelos exércitos de Alexandre Magno no século IV aC. Muitas e variadas foram também as estratégias utilizadas pelos povos do Oriente Médio para lidar com este processo.

Entretanto, aqui vou apenas citar uma destas formas de implantação do helenismo, a paideia grega, e, com mais vagar, abordar uma interessante estratégia de resistência à helenização de alguns grupos da Palestina, a apocalíptica judaica.

 

1. A paideia grega chega a Jerusalém

Após a morte de Alexandre Magno em 323 aC, a Palestina fica sob controle dos Ptolomeus, que a governam a partir de Alexandria, no Egito, até 198 aC, quando passa, então, a pertencer ao Império Selêucida, que tem sua capital em Antioquia, na Síria.

Entretanto, pressionados por Roma, com quem estão em conflito, os Selêucidas assistem ao progressivo declínio de seu Império. Para solidificá-lo, os reis selêucidas, e especialmente Antíoco IV Epífanes (175-164 aC), implementam um intenso processo de helenização dos vários povos e cidades da região. Isto inclui Jerusalém, onde a helenização avançara bastante desde o século anterior, especialmente entre a aristocracia sacerdotal e leiga. Forma-se, deste modo, um forte partido pró-helênico, que pretende incrementar o avanço civilizatório grego e, por isso, está em luta com os judeus tradicionais e fiéis à Lei. Como parte deste processo de helenização, é instalado um ginásio em Jerusalém em 174 aC.

Não temos testemunhos diretos do funcionamento do ginásio de Jerusalém, mas podemos supor grande semelhança com os ginásios das outras cidades palestinas e fenícias.

Um ginásio grego não é uma simples praça de esportes. É uma instituição cultural das mais importantes, usada no processo de helenização de várias cidades orientais. Além da prática dos esportes gregos, o ginásio implica a presença de divindades protetoras, como Héracles (= Hércules) e Hermes e ensina a maneira grega de se viver e de se ver o mundo. Falar o grego corretamente, conhecer e discutir a cultu­ra grega, vestir-se à moda grega, são algumas das atividades praticadas no ginásio1.

É no ginásio que funciona, normalmente, a efebia (de éfêbos, “jovem”, “efebo”), a mais característica e oficial de todas as instituições educativas gregas, a que se implanta por toda a parte aonde chegam os gregos, trazendo consigo a paideia, que é normalmente traduzida por “educação”, mas que não é apenas a técnica que se aplica à criança (país). A paideia é também a cultura, e os latinos traduzem-na por humanitas. A paideia tem a mesma conotação que damos à palavra “civilização”.

Os ginásios são numerosos no mundo helenístico e bastante semelhantes na sua estrutura. Atenas, por exemplo, tem três ginásios. H.-I. Marrou descreve o ginásio inferi­or de Priene, cidade da Jônia, como um tipo padrão2.

As duas disciplinas características do ensino superior grego, e que são ensina­das no ginásio, são, especialmente, a retórica e a filosofia. Mas o quadro completo é composto pelas sete “artes liberais”: gramática, retórica, dialética, geometria, aritmética, astronomia e teoria musical. Só que a cultura adquirida pelos efebos é superficial, pois a efebia helenística dura apenas um ano e o ambiente é de uma frivolidade tipicamente aristocrática.

Essencial na educação literária ministrada no ginásio é a leitura dos clássicos. E entre os clássicos, o mais clássico reina supremo: Homero. E, em Homero, a Ilíada. Homero, provavelmente do século IX aC, é o maior poeta épico grego.

Aqui me limito a chamar a atenção para três elementos importantes de sua obra, presentes tanto na “Ilíada” quanto na “Odisseia” e que certamente passam a fazer parte da mun­divisão dos jovens efebos na época helenística3.

O primeiro elemento é a significativa presença dos deuses na epopeia homérica. Em ambos os poemas, as ações se desenvolvem sempre em dois planos: o dos ho­mens e o dos deuses. Mas estes planos estão entrelaçados: os deuses, apesar de imortais e sobre-humanos, têm paixões e sentimentos como os homens e participam de seu mundo e de seus conflitos.

O segundo elemento que é necessário salientar na obra homérica é o modelo de sociedade que aí aparece. O mundo da Ilíada e da Odisseia é um mundo aristocrático. Seus homens são heróis, seus heróis são reis e sua virtude fundamental é a bravura. O herói busca a glória e evita a covardia. Isto acontece tanto na guerra, que é o mundo da Ilíada, quanto na paz, que é o mundo da Odisseia.

O último elemento para o qual chamo a atenção é a visão da vida em Homero: tudo é belo e grandioso, mesmo na guerra. Predomina uma visão aristocrática da vida que, na época helenística, é saboroso alimento para os espíritos gregos, conquistadores do Oriente e exploradores de suas riquezas.

Além de Homero, os outros três pilares da cultura helenística são o ateniense Demóstenes (século IV aC), o maior dos oradores gregos, Eurípedes, grande dramaturgo do século V aC, e Menandro, comediógrafo do século IV aC.

Se no mundo aristocrático de Homero tudo é belo e grandioso, por outro lado, a época helenística se mostra nas comédias de Menandro como um tempo que exige solidariedade porque é um tempo de atribulações e tormentos. Em suas peças aparecem constantemente crianças não identificadas que não conhecem o pai: este viajara para longe ou a criança fora abandonada. Mas a solidariedade está presente sob a forma da ternura e da amizade que deve reinar entre as pessoas.

Certamente o grande movimento de instrução dos judeus na Torá, que os escri­bas empreendem a partir da época helenística, deve estar ligado, e em contraposição, à influência da paideia grega. Voltar-se para a Torá é um modo de proteger-se da cada vez mais presente mundivisão grega que põe em risco a identidade judaica4.

 

2. A apocalíptica: estratégia para lidar com o imperialismo

O verbo grego kalýpto significa “cobrir”, “esconder”, “ocultar”, “velar”, enquanto a preposição apó indica um movimento de afastamento ou retirada de algo que está na parte externa de um objeto. Daí o verbo apokalýptô, que significa “descobrir”, “revelar”, “desvelar”, “retirar o véu”.

Foram os tradutores da LXX que utilizaram apokalýptô para traduzir o verbo hebraico gâlâh, que tem o significado de “despir”, “descobrir”, “revelar”, “desvelar”. E o Novo Testamento usa o verbo grego no mesmo sentido da LXX.

Deste verbo deriva o substantivo feminino grego apokálypsis, “revelação”, “apocalipse”. De “apocalipse” deriva “apocalíptica” e é exatamente com esse nome que é costumeiro designar uma corrente de pensamento e uma literatura surgidas em Israel, mais ou menos, entre os anos 200 aC e 100 dC5.

Os israelitas sempre haviam considerado fundamental para a comunicação com Iahweh a existência dos profetas. Sem Iahweh não existe Israel e sem profecia não se pode saber a vontade de Iahweh.

Entretanto, há vários exemplos na literatura dos séculos II e I aC que mostram como, para os judeus desta época, a profecia silenciara. Após Ageu, Zacarias e Malaquias não surgiam mais profetas. Na linguagem da época se diz que “os céus estão fechados” e o Espírito de Iahweh não mais se manifesta. Os judeus esperam, portanto, a chegada da era messiânica, pois só com o Messias os céus se abrirão e ele poderá receber o Espírito de Iahweh.

O que se percebe é a esperança de que a situação de calamidade, que se prolonga desde o exílio no século VI aC, possa ter um fim com a chegada do Messias que vem libertar aquele Israel que permanece fiel a Iahweh. Este tema parece generalizado nos últimos dois séculos antes de Cristo e no século I dC. O Livro Etiópico de Henoc, obra apocalíptica escrita nos séculos II-I aC, talvez proveniente de um ambiente farisaico, diz, por exemplo, em 52,1-9, que o Eleito (o Messias), quando chegar, derrubará seis reinos que dominam o mundo e acolherá os justos e santos.

Alguns profetas pós-exílicos se comprometeram com a reconstrução do Templo e de Jerusalém, como Ageu e Zacarias. Outros procuram manter a comunidade judaica na observância das normas do javismo e esperam a libertação do país através de uma ação divina. Contudo, o próprio Templo, depois de reconstruído, ainda no século VI aC, acaba se transformando em instrumento de manutenção do domínio persa e depois grego, traindo os planos proféticos. Além do que, a instituição de uma Lei escrita, a partir de Esdras, no século V aC, marginaliza o profeta, que é um “carismático” e, portanto, sempre perigoso para leis estabelecidas.

Mas a falência da profecia deixa um vazio que precisa ser preenchido, pois os problemas continuam. É nesta situação que surge a apocalíptica. Neste sentido, a apocalíptica é filha e herdeira da profecia. Parece que grupos proféticos marginalizados pelo crescente poder sacerdotal vão sendo empurrados na direção da apocalíptica6.

“Com a apocalíptica – e é aí que se situa a grande diferença – operava-se, portanto, a passagem do profeta que fala para o profeta que escreve, da era do oráculo para a era do livro”, observa A. Paul7 . O Apocalipse do NT, por exemplo, se diz um livro apocalíptico (1,1: “Revelação…”) e, ao mesmo tempo, um livro profético (1,3: “Feliz o leitor e os ouvintes das palavras desta profecia…”).

Um alerta, porém: as origens e a natureza da apocalíptica remontam, ao que parece, a épocas bem mais antigas. A literatura apocalíptica do século II aC e posteriores é o resultado de um longo desenvolvimento que começa no pré-exílio, nascendo a escatologia apocalíptica não apenas da profecia, mas também de outras raízes mais arcaicas8.

Uma coisa muito interessante é a concepção de tempo da apocalíptica. Seu tempo é mítico: início e fim (do mundo) encontram-se em um lugar teórico – mítico -, onde tudo começa enquanto tudo termina. O mundo está sempre nascendo como novo. A morte deste mundo, para o surgimento de um mundo novo, assegura a existência do mundo. A oposição, ou melhor, a continuidade entre “este mundo” e o “mundo que virá”, a passagem de um mundo para o outro é típico da apocalíptica.

Além disso, como obseva M. Hengel, uma marcante característica da apocalíptica dos assideus – judeus fiéis que lutam ao lado dos Macabeus no século II aC – é sua visão da história mundial como uma unidade, cujo centro é Israel. E amplia: a base epistemológica da apocalíptica é a revelação de uma “sabedoria” divina especial acerca da história, do cosmos e do destino dos homens, ocultada à razão humana. É uma típica reação contra o racionalismo grego, inclusive usando a astrologia como meio válido para atingir um conhecimento superior através da revelação9.

Outros autores nos lembram que foi a fusão do mito e da escatologia que produziu o que chamamos de apocalíptica. Na realidade podemos definir a apocalíptica como a mitologização da escatologia.

P. D. Hanson, falando da apocalíptica como filha e sucessora da profecia, diz que enquanto a profecia consegue integrar uma visão dos eventos cósmicos com os acontecimentos históricos, a apocalíptica perde este tensão dialética e se refugia no mito, procurando saídas numa ordem cósmica supratemporal.

“A escatologia profética se transforma em apocalíptica no momento em que se renuncia à tarefa de traduzir a visão cósmica para as categorias da realidade do mundo (…) Pois em sua forma não traduzida, o mito falava de uma salvação que alçava as pessoas humanas acima do fluxo da esfera mundana, uma salvação adquirida a nível atemporal, cósmico, que oferecia um escape desta ordem caída para uma nova criação que fazia a pessoa voltar para a segurança do estado primevo da natureza antes de sua queda na corrupção e mudança. Gradualmente os descendentes pós-exílicos dos profetas cederam a essa tentação e assim abdicaram do seu ofício político de integrar a mensagem ao âmbito político histórico”10.

Esta parece ser uma limitação enorme da apocalíptica. Entretanto, é preciso entender o que significava a escatologia para o pensamento hebraico. Éschaton, em grego, significa “último”, éschata “as últimas coisas”. O termo hebraico correspondente é aharît: “fim”, “conclusão”, “resultado”, “desfecho”. Éschaton como “fim do tempo do mundo”, “destruição total do mundo” é um conceito que o AT ignora. É que para o pensamento hebraico, mesmo um acontecimento intra-histórico tem o valor de definitivo, é aharît. A escatologia é, no AT, a transformação do mundo e da história, atingindo um “novo estado de coisas”, sem um encerramento definitivo das coisas. A escatologia está, assim, ligada à história, vista como um processo de intervenções de Iahweh em favor de Israel. Podemos dizer, neste sentido, que a apocalíptica é a radicalização da escatologia.

E essa radicalização torna-se mais forte a partir do século II aC, no momento das grandes crises nacionais, quando Israel, agredido por outros povos, corre o risco de desaparecer como nação, que a apocalíptica floresce com grande força.

Poderíamos dizer que há, assim, três fases marcantes na história da apocalíptica:

  • a época da guerra dos Macabeus contra Antíoco IV Epífanes e o partido helenizante, no séc. II aC

  • a partir do domínio romano, que se inicia com Pompeu em 63 aC

  • durante as guerras judaicas contra os romanos em 66-73 dC e 131-135 dC

Deste modo, a literatura apocalíptica funciona como uma literatura de resistência: através da escrita, Israel se manifesta vivo e atuante. Os céus estão fechados? A história, porém, é ainda possível: através do livro, manifesta-se o Espírito, que garante a identidade do povo de Israel.

 

3. Um exemplo: o livro de Daniel

Existe uma boa quantidade de livros apocalípticos judaicos. A maioria, apócrifos e/ou pseudepígrafos11. Mas aqui vou utilizar como exemplo o livro de Daniel, provavelmente a mais antiga obra da apocalíptica judaica, uma peça literária de resistência escrita na época da luta dos Macabeus contra a helenização no século II aC12>.

Daniel não é o autor do livro. Estamos frente a um texto apocalíptico, escrito em 164 aC – embora haja incerteza quanto à data de alguns de seus capítulos – cujo autor se esconde por trás de um pseudônimo. Daniel talvez jamais tenha existido, embora haja pistas de um certo Danel em Ez 14,14.20;28,3 e um Dnil que aparece no poema de Aqhat encontrado em Ugarit, e que podem ter inspirado o legendário personagem bíblico13.

Acredito ser oportuno lembrar aqui que os livros bíblicos, tanto os do AT quanto os do NT, não trazem – com raras exceções, como o Eclesiástico – a assinatura de seu autor. Mas os livros apocalípticos são assinados. Só que também não com os nomes de seus autores e sim com o nome de um personagem importante do passado que, em geral, é a figura central do livro. Este é um recurso literário conhecido como pseudonímia. A pseudonímia é o uso de um “nome falso”, processo através do qual antigos heróis da história israelita intervêm no momento presente, o momento vivido pelo escritor. Deste modo, Henoc, Salomão, Moisés, Baruc, Esdras, Jó, Adão, Abraão, Elias, Isaías e tantos outros aparecem como autores e personagens centrais de livros escritos entre 200 aC e 100 dC.

Assinar um livro recente com o nome de um personagem importante das origens é uma eficiente forma de legitimá-lo. Os grandes personagens do passado do povo, através desta intervenção, asseguram a continuidade da história israelita, eles que são seus criadores e condutores. Eles se fazem presentes através do livro, processo no qual a “sociabilidade” da escritura é essencial.

Em nosso caso, o sábio Daniel (= Deus julga), um jovem judeu de Jerusalém, é o protagonista desta narrativa que estrategicamente é situada na época dos reis babilônicos e persas, no tempo do exílio.

No capítulo 1 o texto conta como, após a deportação dos judeus de Jerusalém para a Babilônia, alguns jovens judeus de famílias nobres são escolhidos e educados durante três anos para, em seguida, servirem ao rei. Entre eles – que terão os nomes trocados – estão Daniel (Baltassar), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênego). Só que a descrição do período babilônico feita pelo livro é imprecisa e seu conhecimento das cortes babilônica e persa superficiais.

Não houve, como o livro afirma, uma deportação em 605 aC; Baltasar é filho de Nabônides e não de Nabucodonosor; Dario, que é persa e não medo, é um dos sucessores de Ciro e não seu predecessor… Além do que, a doutrina sobre os anjos, o costume de evitar o nome de Iahweh e outros elementos não são daquele tempo, o exílico, mas bem posteriores.

Enfim, uma série de inconsistências que acabam mostrando que a finalidade do livro e seu gênero literário não são históricos. É um escrito da resistência judaica, no duro período da perseguição selêucida. Daniel quer mostrar que, apesar de tudo, é preciso ter uma fé inabalável em Iahweh, porque mais cedo ou mais tarde os judeus sairão vitoriosos e engrandecidos.

Um bom exemplo do modo apocalíptico de pensar é Dn 2, 1-49, texto que narra o sonho de Nabucodonosor com a estátua de quatro metais, sonho que é interpretado por Daniel.

O texto pode ser lido em seis sequencias. Nelas tentarei mostrar as relações e oposições básicas entre personagens, circunstâncias e valores.

a) 2,1-13

Cenário: corte de Nabucodonosor. O texto conta que Nabucodonosor, ainda no segundo ano de reinado, tem sonhos tão perturbadores que lhe provocam insônia. Convoca, então, o rei, magos e adivinhos e exige deles que lhe contem o sonho e o interpretem para não serem mortos com suas famílias e possam ser magnificamente recompensados. Os especialistas, entretanto, querem primeiro ouvir o sonho, como é natural, para que possam interpretá-lo. Dizem: “O problema que o rei propõe é difícil e ninguém pode resolvê-lo diante do rei senão os deuses, cuja morada não se encontra entre os seres de carne” (v. 11). Então, o rei promulga o decreto de extermínio de todos os sábios da Babilônia, inclusive Daniel e seus companheiros.

Observamos aqui algumas oposições básicas: o poder absoluto e despótico do rei se contrapõe ao servilismo e à impotência dos sábios babilônicos, que são seus servos. Contrapõe-se igualmente o poder dos deuses, que tudo podem e sabem, à limitação dos homens, que não podem saber os pensamentos do rei. Ainda: o despotismo real aparece fortemente no poder do rei de fazer alguém viver em grande honra ou morrer em grande desgraça.

b) 2,14-19a

O texto continua dizendo que, ao se informar com o chefe da guarda encarregado da execução dos sábios, Daniel vai ao rei e lhe pede um prazo, no fim do qual ele mesmo interpretará o sonho para o rei. Adiada a execução, “Daniel voltou para sua casa e comunicou o fato a Ananias, Misael e Azarias, seus companheiros, pedindo-lhes que implorassem a misericórdia do Deus do céu sobre esse mistério…” (vv.17-18). Então, o mistério é revelado a Daniel em uma visão noturna.

Aqui, três atitudes se diferenciam nitidamente: a atitude de força do rei, usando o seu poder militar para punir, o imobilismo dos sábios que nada fazem e a iniciativa de Daniel, que, sabiamente, negocia uma saída para a crise. E se os sábios babilônios nada fazem, é porque não têm a quem recorrer. Daniel e seus companheiros, entretanto, recorrem ao Deus do céu – expressão muito usada no AT para designar Iahweh em ambiente não judaico. Há ainda a oposição entre o “mistério”, o enigma, o segredo (o sonho do rei) que ninguém consegue desvendar e a revelação em visão. O que desequilibra, de fato, as coisas em favor de Daniel e companheiros é “a misericórdia do Deus do céu”.

c) 2,19b-23

Agora Daniel agradece ao Deus do céu, usando a típica fórmula judaica para a “bênção”: uma invocação ao nome de Deus, seguida de uma comemoração de seus benefícios, terminando com a repetição da invocação e breve menção do benefício particular: “Tu me fazes conhecer agora o que de ti havíamos implorado, e o enigma do rei no-lo dás a conhecer” (v. 23b), conclui Daniel.

O ponto central da oração de Daniel encontra-se na convicção de que a sabedoria, a ciência e a força vêm do Deus do céu, que as concedem aos homens, e não de reis (força) e sábios (sabedoria). É Deus quem concede estes dons e ao homem que os recebe compete agradecer: “A Ti, Deus de meus pais, dou graças e te louvo por me teres concedido a sabedoria e a força” (v. 23a), diz Daniel.

d) 2,24-28

Daniel comparece, finalmente, diante do rei e se diz capaz de dar ao rei a interpretação de seu sonho. Como o rei quer, além da interpretação, também o sonho, Daniel lhe diz que este mistério, “nem os sábios nem os adivinhos nem os magos nem os astrólogos podem dá-lo a conhecer ao rei. Mas há um Deus no céu que revela os mistérios, e que dá a conhecer ao rei Nabucodonosor o que deve acontecer no fim dos dias” (vv. 27b-28a).

O contraste principal deste quadro é entre a impotência – mais uma vez – dos sábios, adivinhos, magos e astrólogos e o Deus do céu que revela os acontecimentos e os dá a conhecer a Daniel que lhe é fiel. E isto é ainda mais significativo se lembrarmos que a Babilônia é a terra dos maiores adivinhos e astrólogos da antiguidade. A adivinhação é a maior das ciências nesta época.

e) 2,29-45

Daniel, prossegue o texto, expõe ao rei o seu sonho. Nabucodonosor sonhara com enorme estátua composta de quatro metais: a cabeça, de ouro; o peito e os braços, de prata; o ventre e as coxas, de bronze; as pernas, de ferro; e os pés, parte de ferro e parte de argila. Entretanto, uma pedra, não lançada por mão humana, atinge a estátua que é pulverizada e levada pelo vento. A pedra torna-se uma grande montanha que enche toda a terra. Em seguida, Daniel explica ao rei que ele, Nabucodonosor, é a cabeça de ouro da estátua; a prata representa um reino inferior ao dele, que será substituído por outro representado pelo bronze, e que, por sua vez, terá como sucessor um reino forte como o ferro que tritura tudo. Os pés de ferro/argila simbolizam um reino parcialmente forte como o ferro e parcialmente fraco como a argila. A pedra que destrói os reinos é um reino suscitado pelo Deus do céu, “um reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre” (v. 44).

De maneira alegórica, o livro de Daniel, usando antigos mitos sobre a idade do mundo, descreve a sucessão dos grandes impérios históricos numa relação de valor decrescente: ouro, prata, bronze, ferro/argila. Segundo a visão da época, os impérios são os seguintes:

  • cabeça de ouro: império neobabilônico

  • peito e braços de prata: reino medo

  • ventre e coxas de bronze: império persa

  • pernas de ferro e pés de ferro/argila: império grego de Alexandre (ferro), depois dividido entre Ptolomeus e Selêucidas

A pedra simboliza o reino messiânico, o reino divino de Iahweh, definitivo, que destrói os poderes humanos. Esta é a pedra que esmaga o império selêucida que oprime Israel.

f) 2,46-49

O texto termina com Nabucodonosor prostrando-se diante de Daniel e até mesmo oferecendo-lhe sacrifícios, pois reconhece, enfim, que “o vosso Deus é o Deus dos deuses e o senhor dos reis e o revelador dos mistérios, pois tu pudeste revelar este mistério” (v.47b). Daniel é nomeado governador e chefe dos sábios, enquanto seus três companheiros administram os negócios da província de Babilônia.

O gesto de Nabucodonosor diante de Daniel (prostrar-se, inclinar-se e oferecer sacrifícios) é de extrema exaltação do Deus de Israel sobre os outros deuses e sobre o poder real.

Podemos concluir com algumas observações gerais:

  • O rei, que tem poder absoluto, que pode mandar os homens viverem com honra ou morrerem na desgraça, não tem poder para conhecer o seu destino, ou melhor, o destino de seu poder e o de seus pares. Então, diante de sua impotência, o rei age pela força.

  • Por outro lado, o Deus do céu é quem dá a força e a sabedoria, é quem dá o poder e retira o poder, e só quem lhe é fiel, como Daniel, pode conhecer, através da revelação, este mistério.

  • Finalmente, o texto insiste em que os grandes impérios cairão, os poderes passarão e só restará o poder e o reino dados por Deus. Quem permanecer com Deus, como Daniel e seus três companheiros, será honrado.

  • Situe-se esta mensagem no contexto da luta dos Macabeus14 contra Antíoco IV Epífanes e o partido helenizante de Jerusalém no século II aC e começaremos a entender a apocalíptica como estratégia de sobrevivência face ao imperialismo grego.

 

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>> Bibliografia atualizada em 05.08.2020

> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 113, p.11-22, 2012

Artigos


1.Sobre Alexandre Magno, os Ptolomeus, os Selêucidas e a situação da Palestina a partir do século IV aC , cf. https://airtonjo.com/site1/historia-18.htm e seguintes. Sobre os instrumentos da helenização, cf. https://airtonjo.com/site1/heleniza.htm. Ou DA SILVA, A. J. Os instrumentos da helenização. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 61, p. 23-37, 1999; Judaísmo e Helenismo: encontro e conflito. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 48, p. 9-18, 1996; Judaísmo e Helenismo: resistência e submissão – O ambiente do querigma cristão. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 39, p. 10-19, 1993. Observo aqui que o termo hellênízein (= helenizar) significa “falar grego corretamente” e também “adotar um estilo de vida grego”.

2.Cf. MARROU, H.-I. História da educação na antiguidade. 5ª reimpressão. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1990, p. 203-207.

3.Cf., para o que se segue, DE ROMILLY, J. Fundamentos de literatura grega. Zahar: Rio de Janeiro, 1984, p. 17-43; HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, verbetes Ilíada e Odisseia; JAEGGER, W. Paideia. A formação do homem grego. 5. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

4.Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, 2003; SCHÜRER, E. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ II. Edinburgh: T. & T. Clark, 1986, p. 322-336.

5.Cf. o meu artigo online, com muito mais detalhes: Apocalíptica: busca de um tempo sem fronteiras, em https://airtonjo.com/site1/apocaliptica.htm.

6.WILSON, R. R. Profecia e sociedade no antigo Israel. 2. ed. rev. São Paulo: Targumim/Paulus, 2006, p. 357, assinala que “em termos de estrutura sociológica, grupos periféricos de sustentação profética e grupos apocalípticos são estreitamente relacionados entre si, e, sendo assim, não é difícil entender como um tenha podido desenvolver-se rumo ao outro”.

7.PAUL, A. O que é o Intertestamento. São Paulo: Paulus, 1981, p. 64.

8. Cf. HANSON, P. D. The Dawn of Apocalyptic: The Historical and Sociological Roots of Jewish Apocalyptic Eschatology. Philadelphia: Fortress Press, 1984, p. 6.

9.Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist. Eugene, OR: Wipf & Stock Publishers, 2003.

10.Cf. HANSON, P. D. Apocalíptica no Antigo Testamento: um reexame, em VV.AA. Apocalipsismo. São Leopoldo: Sinodal, 1983, p. 50-51.

11. Boas traduções em espanhol podem ser lidas em DIEZ MACHO, A.; PIÑERO, A. (eds.) Apócrifos del Antiguo Testamento I-VI. Madrid: Cristiandad, 1982-2009. Em inglês, há várias possibilidades, inclusive online.

12.Sobre Daniel, cf. BOCCACCINI, G. Roots of Rabbinic Judaism: An Intellectual History, from Ezequiel to Daniel. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2002; COLLINS, J. J. A imaginação apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010, p. 133-173; COLLINS, J. J.; CROSS, F. M.; YARBRO COLLINS, A. Daniel. Minneapolis: Augsburg Fortress, 2004; SCHÖKEL, L. A.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 1259-1349; STORNIOLO, I. Como ler o livro de Daniel. Reino de Deus x Imperialismo. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1997.

13.Cf. DEL OLMO LETE, G. Mitos y leyendas de Canaan según la tradición de Ugarit. Madrid: Cristiandad, 1981, p. 325-401. Comenta o autor na p. 356: “Talvez o núcleo histórico possa se radicar na lembrança e exaltação de um príncipe lendário estrangeiro, hábil caçador, morto em idade prematura, filho do não menos lendário rei Dnil”.

14.Sobre a helenização forçada da Palestina e a resistência judaica conduzida pelos Macabeus, cf. https://airtonjo.com/site1/historia-24.htm e seguintes.

Última atualização: 06.08.2020 – 05h31

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