FAQ Isaías

Perguntas mais frequentes sobre o profeta Isaías

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Os 66 capítulos do livro de Isaías são todos dele mesmo?

De jeito nenhum. Dos 66 capítulos do livro, menos de 20 pertencem ao profeta do século VIII a.C. que viveu em Jerusalém e atuou durante os governos dos reis Joatão, Acaz e Ezequias. Estes quase 20 capítulos estão concentrados na primeira parte do livro, em Is 1-39, o chamado Proto-Isaías.

E quem foi que produziu o resto do livro?

Os capítulos 40-55 foram produzidos por um profeta anônimo durante o exílio babilônico. Chamamos este profeta pelos apelidos de Dêutero-Isaías, Segundo Isaías, Isaías Júnior… Depois do exílio, em Judá, foram escritos os capítulos 56-66 e vários outros que estão dentro de Is 1-39 por outros profetas anônimos. Is 56-66 é chamado hoje de Trito-Isaías ou Terceiro Isaías.

Então, ao pegar o livro de Isaías, o que estamos lendo?

Na verdade estamos lendo uma coletânea de oráculos proféticos de épocas bem diferentes. A redação final desta obra, que chamamos de livro de Isaías, deve ter acontecido só por volta de 400 a.C. ou mesmo mais tarde. E Isaías, o profeta, atuou de 740 a 701 a.C. Trezentos anos depois ainda se atualizavam as palavras do profeta. Pois mesmo os oráculos da época dele foram relidos na perspectiva pós-exílica. O horizonte de leitura do livro completo de Isaías é o da época persa e da comunidade judaica pós-exílica.

E agora, o que vamos ler?

Agora vamos ler apenas os capítulos de Isaías que estão dentro do primeiro bloco, o de Is 1-39. Queremos ver a atuação do profeta lá na sua época. Vamos falar de Isaías nos três momentos políticos em que ele atuou, durante os governos dos reis Joatão (739-734 a.C.), Acaz (734/3-716 a.C.) e Ezequias (716/15-699/8 a.C.).

O que andou falando Isaías na época do rei Joatão?

Isaías falou muito das condições sociais e políticas em que Judá se encontrava. E, às vezes, falava também de Samaria, que ainda existia nesta época. E ele não anda muito contente com o seu país e com o rumo das coisas. Vive anunciando um julgamento que está para se abater sobre o país, porque há muitos problemas internos, uma elite que se recusa a encarar estes problemas, sem esquecer que o Império assírio é uma ameaça crescente que paira sobre todos os pequenos reinos da região.

Por que Isaías se queixa tanto de seus conterrâneos?

Porque, diz ele em 1,2-3, a aliança com Iahweh foi esquecida em Judá. Embora Iahweh tenha um enorme amor por seu povo, os israelitas são incapazes de ver isso, revoltando-se contra ele e, assim, colocando-se abaixo até mesmo do boi e do jumento. Diz o profeta:

“Ouvi, ó céus, presta atenção, ó terra, porque Iahweh está falando:
Criei filhos e fi-los crescer,
mas eles se rebelaram contra mim.
O boi conhece o seu dono,
e o jumento, a manjedoura de seu senhor,
mas Israel é incapaz de conhecer,
o meu povo não pode entender”.

Mas as pessoas não estão procurando Iahweh no Templo de Jerusalém?

Estão frequentando o Templo sim. Mas para Isaías isso não basta. Encher o Templo com iniquidade e solenidade é um erro enorme, vai dizer Isaías em 1,10-20. Porque as pessoas que vivem levando tantas oferendas para Iahweh são as mesmas que não se importam em fazer o direito (mishpât) funcionar, que não fazem justiça ao desprotegido órfão e à abandonada viúva. Isaías, em um dos textos proféticos mais violentos contra um culto que funciona só para mascarar as injustiças que se cometem no dia-a-dia, pede aos príncipes de Sodoma e ao povo de Gomorra – na verdade, de Jerusalém! – para ouvirem a palavra de Iahweh:

“Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios? – diz Iahweh
Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros cevados;
no sangue de touros, de cordeiros e de bodes não tenho prazer.
Quando vindes à minha presença,
quem vos pediu que pisásseis os meus átrios?
Basta de trazer-me oferendas vãs:
elas são para mim um incenso abominável.
Lua nova, sábado e assembleia,
não posso suportar iniquidade e solenidade” (Is 1,11-13).

O profeta exorta em seguida:

“Lavai-vos, purificai-vos!
Tirai da minha vista as vossas más ações!
Cessai de praticar o mal,
aprendei a fazer o bem!
Buscai o direito (mishpât), corrigi o opressor!
Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva” (Is 1,16-17).

E o governo de Jerusalém, como está se comportando?

Muito mal. Isaías faz em 1,21-26 um lamento fúnebre sobre a cidade, em hebraico, uma qiná, um canto que se entoava sobre o defunto, aqui usado para um morto-vivo, Jerusalém, prostituída ao mal. É, o profeta fala da cidade personificada na imagem de uma prostituta que se vendeu à injustiça. E qual é essa injustiça? A corrupção pelo dinheiro e do dinheiro na qual caíram seus dirigentes. Mas o profeta tem esperança: a cidade será purificada, pela ação de Iahweh, como o metal o é pelo fogo, tornando-se, novamente a cidade da justiça.

Os vv. 21-23 contêm um lamento/repreensão sobre a cidade prostituída:

“Como se transformou em prostituta (zônâh) a cidade fiel?
Sião, onde prevalecia o direito (mishpât),
onde habitava a justiça (tsedheq),
mas agora povoada de assassinos” (v. 21).

E os dirigentes?

“Os teus príncipes são uns rebeldes, companheiros de ladrões;
todos são ávidos por subornos e correm atrás de presentes.
Não fazem justiça ao órfão, a causa da viúva não os atinge” (v. 23).

Mas não há uma consciência de que estão construindo uma enorme crise?

Que nada. Isaías, em 2,6-22, descreve um mundo fechado em si mesmo, onde os homens de seu tempo se curvam diante dos ídolos fabricados por eles mesmos e creem na força de suas riquezas e no poderio de seus exércitos, importando costumes estrangeiros proibidos em Israel. Isaías acredita que os homens de sua terra perderão esta segurança, serão humilhados até o pó da terra, em condições infra-humanas, porque todas as obras das quais se orgulham, quer sejam da natureza, quer sejam as produzidas por suas mãos, serão condenadas por Iahweh, já que a solidariedade javista morreu há muito tempo.

Diz ele no v. 17 que no dia de Iahweh
“O orgulho do homem será humilhado,
a altivez dos varões se abaterá,
e só Iahweh será exaltado naquele dia”.

Isaías insiste muito em suas denúncias?

Insiste. Um bom exemplo disso é o famoso cântico da vinha, em Is 5,1-7. Em um poema lírico de grande beleza, uma espécie de “canção de amor”, o profeta/poeta expõe o amor de Iahweh (= o agricultor) por seu povo, representado aqui como uma vinha plantada com todo o cuidado e carinho, mas que nada de bom produziu. No v. 7, através de belíssimo jogo de palavras em hebraico, com sons semelhantes e sentidos contrastantes, Isaías descreve a situação judaíta:

“Pois bem,  a vinha de Iahweh dos Exércitos é a casa de Israel,
e os homens de Judá são a sua plantação preciosa.
Deles esperava o direito (mishpât), mas o que produziram foi a transgressão (mishpâh);
esperava a justiça (tsedhâqâh), mas o que apareceu foram gritos de desespero (tse‘aqâh)”.

Como Isaías caracteriza, na prática, este abandono do javismo?

De vários formas. Uma delas é através de ameaças, na forma de seis “ais”, como em Is 5,8-24. O profeta denuncia o comportamento dos ricos e latifundiários, dos que vivem em grandes festas custeadas pelo trabalho dos pobres, dos que exploram o povo negando-lhe a justiça e dos que se fazem grandes e importantes vivendo em grandes banquetes.

Is 5,8 diz, por exemplo:

“Ai dos juntam casa a casa,
dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível,
até serem eles os únicos moradores da terra”.

Ou em 5,20-23:

“Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal,
dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas,
dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo!
Ai dos que são sábios a seus próprios olhos
e inteligentes na sua própria opinião!
Ai dos que são fortes para beber vinho
e dos que são valentes para misturar bebidas,
que absolvem o ímpio mediante suborno
e negam ao justo a sua justiça”.

E como Isaías vê esta sua atividade profética?

Is 6,1-13, em um relato escrito muito tempo depois, como qualquer texto de vocação, o profeta reflete sobre o sentido de sua missão e sobre o insucesso de sua pregação. Sua função foi de fato, pensa Isaías, pregar o fim e a morte de Judá.

Até quando, Isaías se pergunta em 6,11-12, ele deve ser o porta-voz de Iahweh?

“Até que as cidades fiquem desertas, por falta de habitantes, e as casas vazias, por falta de moradores; até que o solo se reduza a um ermo, a uma desolação; até que Iahweh remova para longe os seus homens e no seio da terra reine uma grande solidão”.

E na época de Acaz, o que aconteceu em Judá?

Na época de Acaz aconteceu em Judá uma grande crise política e militar, provocada pela crescente ameaça do Império assírio e pelos muitos erros do governo de Judá. Vamos olhar a situação internacional. A Assíria passou, a partir da política expansionista do rei Teglat-Falasar III, inaugurada em 745 a.C., a constituir a grande ameaça para os pequenos reinos da região. Israel (do norte), Damasco e outros da região tornaram-se tributários da Assíria. Golpes de Estado em Israel, alianças com a a Assíria ou contra a Assíria estavam na ordem do dia.

Então o rei golpista Faceia, de Israel, fez uma aliança com Damasco e ambos decidiram invadir Judá, derrubar Acaz e colocar um estrangeiro em seu lugar, para usar o reino do sul numa coalizão militar contra a Assíria. Esta é a chamada guerra siro-efraimita, desencadeada em 734 a.C. Acaz, acuado, resolveu pedir o auxílio da Assíria e Teglat-Falasar III acabou com Damasco e tomou 3/4 de Israel, reduzindo o país a quase nada. Aliás, poucos anos depois, em 722 a.C., Samaria foi destruída pelas tropas assírias de Salmanasar V e de Sargão II, pondo fim ao reino do norte que congregava a maior parte das tribos israelitas. Judá, por enquanto, escapou da destruição.

Quanto custou para Judá esta ajuda assíria?

Judá perdeu sua independência. Entre outras coisas, Acaz viu-se obrigado a reconhecer os deuses assírios como seus libertadores e a prestar-lhes culto. Além disso, o rei de Judá foi obrigado a apresentar-se a Teglat-Falasar III para prestar-lhe obediência e teve que pagar forte tributo à Assíria, rapinando tesouros do palácio e do Templo e aumentando os impostos pagos pelo povo. Então, a injustiça, que já era moeda corrente na época anterior, como denunciava Isaías, correu solta. A religião oficial era mantida pelo Estado e se calava, ou melhor, encobria os problemas com grandes festas, como se tudo estivesse bem. A situação econômica, entretanto, tornou-se péssima e Acaz ficou desmoralizado frente ao povo de Judá. E olhem que ele era um rei em começo de governo e ainda bem jovem, tendo, no início da crise, quando muito, 20 anos de idade.

Mas havia alguma esperança para Judá?

Havia. Chamava-se Ezequias e era filho de Acaz. Ainda criança, Ezequias foi associado ao trono, provavelmente com 5 anos de idade apenas, em 728/7 a.C. Mas o que podia um menino desta idade fazer por Judá? Manter a esperança. É que nesta época se ensinava em Judá que Iahweh escolhera Sião (= Jerusalém) como lugar privilegiado e fizera à dinastia davídica uma promessa de permanência eterna no poder. Se um rei davídico – como Acaz, neste caso – não fosse bem sucedido no governo, o problema poderia ser resolvido com o rei seguinte. Acaz estava indo muito mal, mas Ezequias era uma esperança de dias melhores.

E Isaías trata destes problemas na época de Acaz?

Trata. É neste contexto da guerra siro-efraimita e da consequente dependência assíria que devemos ler os oráculos deste período, que estão em Is 7,1-12,6. Por causa de 7,14, convencionou-se chamar este bloco de Livro do Emanuel. Os textos falam de invasão, ataque, libertação, proteção, ameaças e promessas. São seis capítulos organizados pelo redator do livro de Isaías em torno de três temas:

. os sinais, como o do menino que vai nascer, em 7,14-15.
. o binômio invasão/libertação, que aparece em vários textos
. o significado de nomes próprios, como os dos filhos de Isaías (“Pronto-saque-próxima-pilhagem” e “Um-resto-voltará”) e até mesmo o nome de Isaías (“Iahweh é salvação”).  Diz 8,18: “Eis que eu e os filhos que Iahweh me deu nos tornamos, em Israel, sinais (‘othôth) e prodígios (môphethîm) da parte de Iahweh dos Exércitos, que habita no monte Sião”.

Do que trata Is 7,1-17?

Trata desta esperança chamada Ezequias. É um texto que deve ser lido em duas etapas. O primeiro bloco, Is 7,1-9, relata o encontro de Isaías com Acaz, às vésperas da guerra siro-efraimita, em 734 ou 733 a.C.  Quando os reis de Damasco e de Samaria planejam invadir Judá para depor Acaz e no seu lugar colocar um rei não-davídico – o filho de Tabeel – que envolveria o país na coalizão antiassíria, Isaías vai ao encontro de Acaz acompanhado por seu filho Sear-Iasub (= Um-resto-voltará), indicação ou sinal de esperança frente à crítica situação que se desenha. Acaz está cuidando das defesas de Jerusalém. Segundo Isaías, a dinastia davídica está ameaçada por dois fatores: os planos inimigos e o medo do rei. Os planos inimigos fracassarão, o temor e as alianças políticas farão o rei de Judá fracassar. O que dá estabilidade é a fé a confiança em Iahweh.

O que diz Isaías a Acaz nesta ocasião?

O que Isaías diz a Acaz, segundo os vv. 4-9 do capítulo 7, é o seguinte:

“Toma as tuas precauções, mas conserva a calma e não tenhas medo nem vacile o teu coração diante dessas duas achas de lenha fumegantes, isto é, por causa da cólera de Rason, de Aram, e do filho de Romelias, pois que Aram, Efraim e o filho de Romelias tramaram o mal contra ti, dizendo: Subamos contra Judá e provoquemos a cisão e a divisão em seu seio em nosso benefício e estabeleçamos como rei sobre ele o filho de Tabeel.
Assim diz o Senhor Iahweh:
Tal não se realizará, tal não há de suceder,
porque a cabeça de Aram é Damasco, e a cabeça de Damasco é Rason; (…)
A cabeça de Efraim é Samaria e a cabeça de Samaria é o filho de Romelias.
Se não o crerdes, não vos mantereis firmes”.

Parece faltar alguma coisa ao texto. Há várias propostas:

e a cabeça de Jerusalém é Iahweh
ou
e a cabeça de Jerusalém é a casa de Davi
ou
mas a capital de Judá é Jerusalém
e a cabeça de Jerusalém é o filho de Davi.

E o que diz o segundo bloco, Is 7,10-17?

Is 7,10-17 relata novo encontro de Isaías com Acaz, desta vez, talvez, no palácio, no qual o profeta oferece ao rei um sinal de que tudo se arranjará diante da ameaça siro-efraimita. Com a recusa do rei em pedir um sinal a Iahweh, Isaías muda de tom e relata a Acaz que Iahweh, por própria iniciativa, dar-lhe-á um sinal. Que consiste no seguinte: a jovem mulher (‘almâh) dará à luz um filho, seu nome será Emanuel (Deus-conosco) e ele comerá coalhada e mel até que chegue ao uso da razão. Até lá Samaria e Damasco serão destruídas. Dizem os vv. 14-16:

“Pois sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal (‘ôth):
Eis que a jovem está grávida (hinnêh hâ’almâh hârâh)
e dará à luz um filho
e por-lhe-á o nome de Emanuel (‘immânû ‘êl).
Ele se alimentará de coalhada e de mel
até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem.
Com efeito, antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem,
a terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a um ermo”.

Os LXX, na sua versão grega da Bíblia, traduziram ‘almâh por parthénos (= virgem). Mt usou a versão dos LXX (cf. Mt 1,23): Idoù he parténos (= a virgem) en gastrì hécsei (= conceberá) kai técsetai hyón… Entretanto, a palavra hebraica para designar virgem é bethûlâh. A palavra ‘almâh significa uma jovem mulher, virgem ou não. Além do que esta jovem é uma pessoa concreta, conhecida e, provavelmente, presente na ocasião, porque o texto diz: Eis aqui (hinnêh) a () jovem….

Do que é razoável concluir que a mulher aqui chamada de ‘almâh é muito provavelmente a jovem rainha, talvez designada assim antes do nascimento do primeiro filho. É bem provável que o menino seja Ezequias, filho de Acaz. Isaías falou a Acaz nos primeiros meses de 733 a.C., e Ezequias teria nascido no inverno de 733-32 a.C. O nascimento do menino garante, desta maneira, a continuidade da dinastia davídica, atualizando a promessa e resumindo a aliança de Iahweh com o povo através de seu nome, Emanuel (‘immânû ‘el), que evoca fórmula frequente no AT, especialmente no deuteronomista:

. Dt 20,4: Porque Iahweh vosso Deus marcha convosco
. Js 1,9: Porque Iahweh teu Deus está contigo
. Jz 6,13: Se Iahweh está conosco (weyêsh Yhwh ‘immânû)
. 1Sm 20,13: E que Iahweh esteja contigo
. 2 Sm 5,10: Davi ia crescendo, e Iahweh, Deus dos Exércitos, estava com ele.

Por outro lado, o sinal não seria, segundo alguns, de salvação, mas de castigo. Acaz é rejeitado porque não confia em Iahweh. O alimento do menino, do mesmo modo, supõe um período de devastação e miséria em Judá, como consequência da política filo-assíria de Acaz. É mais provável, entretanto, que seja um alimento de tempos de abundância, como sugerem as passagens de Ex 3,8.17 e 2Sm 17,29.

Isaías volta a falar do nascimento de Ezequias?

Sim. Em Is 8,23b-9,6. O começo deste belíssimo poema nos coloca no ambiente adequado: menciona as três regiões de Israel conquistadas entre 734 e 732 a.C. por Teglat-Falasar III. São Zabulon (caminho do mar), Neftali (o além-Jordão) e a Galileia (o distrito das nações). Isaías fala destas regiões para despertar a esperança: Iahweh, que humilhou estas terras, as cobrirá de glória. E o povo, que vivia nas trevas e na tristeza, viverá na luz e na alegria. Uma alegria enorme, que é causada pelo fim da opressão – o jugo, a canga e o bastão do opressor foram quebrados -, pelo fim da guerra (a bota e o uniforme militar foram queimados) e, principalmente, pelo nascimento de um menino em Judá. Diz 9,5:

“Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado,
ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome:
Conselheiro-maravilhoso (peleh yô’ts), Deus-forte (‘el gibôr),
Pai-eterno (abhî’adh), Príncipe-da-paz (sar shâlôm)”.

Este menino é, sem dúvida, um personagem da casa real. Confirmam-no os quatro títulos que lhe são atribuídos. Títulos muito discutidos, em que alguns veem características sobre-humanas e messiânicas. Mas que na realidade parecem caber bem aos reis, segundo a mentalidade da época: a sabedoria do rei na administração aparece no título de Conselheiro, sua capacidade militar em Deus-forte, enquanto o zelo pela prosperidade do povo o caracteriza como Pai, expressando Príncipe-da-paz sua preocupação com a felicidade do povo. E o v. 6 esclarece que este menino é da “casa de Davi” e caracteriza suas ações: governará com direito (mishpât) e justiça (tsedâqah). Por isso, a maioria dos especialistas acredita tratar-se de Ezequias. Talvez por ocasião de seu nascimento, anunciado em 7,10-17. Ezequias teria nascido no inverno de 733/32 a.C.

E 11,1-9 ainda trata das expectativas de Isaías a respeito de Ezequias?

Parece que o ponto de referência do profeta continua sendo um rei da época, descendente de Davi, que salvaria o país da catástrofe. O texto fala de um personagem régio (v.1), de suas qualidades (v.2), de sua atuação (vv. 3b-5), da instauração de uma nova realidade (vv. 6-8) para concluir que então haverá em Israel conhecimento de Iahweh. Este personagem esperado, fiel a Iahweh, vai instaurar um reino de justiça e paz, onde o pobre e o oprimido serão protegidos contra a prepotência dos poderosos. Justiça e paz que são simbolizadas, no poema, pela convivência harmoniosa de animais selvagens e domésticos. A identificação deste personagem da família davídica é problemática. Alguns acreditam que o poema trata da utopia profética de Isaías por ocasião da coroação de Ezequias como rei em 716/15 a.C. Outros defendem que se Ezequias fora o objeto da esperança de Isaías de tirar o país da crise, como aparece em 7,1-17 e 8,23b-9,6, agora, decepcionado com sua política pró-egípcia que acaba provocando a invasão do assírio Senaquerib, pensa em alguém que no futuro possa resgatar Israel.

E Ezequias correspondeu, pelo menos no começo, às expectativas de Isaías?

Pelo menos no começo, sim. Pois, ao tomar posse como rei em 716/15 a.C., após a morte de seu pai Acaz, Ezequias manteve-se fora das rebeliões antiassírias, insufladas pelo Egito, que explodiam a todo momento na região. E aproveitou a pouca vigilância assíria para fazer uma reforma em Judá. Foi uma reforma religiosa, social e econômica. A volta ao javismo exigia sem dúvida, também, o fim dos abusos econômicos. Ezequias fez, assim, uma reforma fiscal e administrativa, regulamentando a coleta dos impostos e defendendo os artesãos dos exploradores, com a criação de associações profissionais. Retirou do Templo os símbolos idolátricos e construiu um novo bairro em Jerusalém, para abrigar os refugiados de Israel com a destruição de Samaria em 722 a.C.

Como foi que Ezequias se envolveu em uma rebelião antiassíria?

Com a morte do rei assírio Sargão II, subiu ao trono Senaquerib, no ano de 705 a.C. E explodiram revoltas por todos os lados. Ezequias tornou-se um dos líderes da revolta na Síria-Palestina e teve de enfrentar Senaquerib quase sozinho, porque muitas cidades e Estados da região capitularam facilmente. Em 701 a.C. Senaquerib destruiu 46 cidades fortificadas de Judá e sitiou Jerusalém. Porém, não se sabe por qual motivo, levantou o cerco e foi embora. O que não o impediu de cobrar pesados tributos de Ezequias. Isto é narrado em 2Rs 18,13-16 e confirmado pelos Anais de Senaquerib. Diz Senaquerib que encerrou Ezequias “em Jerusalém, sua cidade real como um pássaro na gaiola (…) e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras…”

Qual foi a posição de Isaías face a essa coalizão antiassíria?

De denúncia. Isaías coloca-se frontalmente contra qualquer atitude militar antiassíria, pois isso jogaria Judá em perigosa e fatal aventura. Como o Egito se empenha em insuflar a reação antiassíria – pois seu interesse maior era manter o perigoso rival afastado, impedindo seu avanço em direção ao sul mesmo com o sacrifício dos pequenos países da Palestina – Isaías em vários oráculos denuncia as embaixadas egípcias e os defensores de uma aliança egípcia para o enfrentamento com a Assíria. Isto aparece muito claro nos textos de Is 18,1-7; 28,7-13; 28,14-15.18-19; 30,1-5; 30,6-7; 31,1-3. Neste último texto, por exemplo, ele denuncia  a aliança com o Egito como ilusória, pois seus numerosos carros de guerra e sua cavalaria poderosa não podem ajudar: Judá traiu Iahweh e não tem saída. Diz o profeta em 31,1.3:

“Ai dos que descem ao Egito, à busca do socorro.
Procuram apoiar-se em cavalos,
põem a sua confiança nos carros, porque são muitos,
e nos cavaleiros, porque são de grande força,
mas não voltam os seus olhares para o Santo de Israel,
não buscam a Iahweh.
Pois o egípcio é homem e não deus,
os seus cavalos são carne e não espírito.
Quando Iahweh estender a sua mão,
aquele que socorre tropeçará e o socorrido cairá,
e perecerão ambos juntos”.

Quando Judá foi derrotado por Senaquerib, como reagiu Isaías?

Is 22,1-14 é um bom exemplo de sua atitude. Quando Jerusalém comemora a retirada dos exércitos de Senaquerib sem tê-la destruído, Isaías protesta. Protesta porque, segundo ele, a alegria está fora de lugar, permanecendo o perigo assírio. Jerusalém não saiu vitoriosa, mas foi vergonhosamente derrotada e não há motivo para festa. Diz Is 22,1b-5a:

“Que tens tu, afinal, que todos os teus habitantes sobem aos telhados
cheios de júbilo, cidade ruidosa, cidade vibrante?
Os teus trespassados não foram trespassados à espada,
nem foram mortos na guerra.
Os teus comandantes fugiram todos juntos,
sem arcos, foram capturados,
todos juntos foram capturados;
eles tinham fugido para longe.
Diante disso, eu disse:
Desviai de mim os vossos olhos, que eu choro amargamente;
não insistais em consolar-me
da ruína sofrida pela filha do meu povo.
Na verdade, este dia é um dia de inquietude, de derrota e de confusão”.

Como terminou Isaías os seus dias, após cerca de 40 anos de atividade profética?

Como terminam os profetas. Angustiado por não ser ouvido. Vendo mais do que seus contemporâneos, mas sem conseguir convencê-los. Na verdade não sabemos como Isaías terminou a sua vida. Há apenas lendas. Um livro apócrifo do século I d.C., Vidas dos Profetas,  escrito por um anônimo judeu da Palestina, diz que o filho e sucessor de Ezequias, Manassés, um dos piores reis de Judá, totalmente alinhado à política assíria, mandou serrar Isaías ao meio…

Mas um bom texto para avaliarmos como o profeta viu sua missão é Is 30,8-17, por muitos chamado de Testamento de Isaías, por causa do v. 8. Dizem os vv. 8-11:

“Vai agora e escreve-o sobre uma prancheta,
grava-o em um livro
que se conserve para dias futuros,
para todo o sempre,
porque este povo é rebelde, constituído de filhos desleais,
de filhos que se recusam a ouvir a Lei de Iahweh,
e dizem aos videntes: ‘Não queirais ver’
e aos seus profetas: ‘Não procureis ter visões que nos revelem o que é reto.
Dizei-nos antes coisas agradáveis, procurai ter visões ilusórias.
Afastai-vos do caminho, apartai-vos da vereda,
fazei desaparecer da nossa presença o Santo de Israel'”.

Seria possível, neste ponto, fazer uma síntese do pensamento de Isaías?

Sim. Para a compreensão da mensagem de Isaías é preciso salientar seus dois grandes temas: a questão social, especialmente durante seus primeiros anos de atividade, e a questão política, forte a partir do governo de Acaz e dos acontecimentos que cercaram a guerra siro-efraimita.

O que mais chama a atenção na crítica social de Isaías?

Sua profunda semelhança com Amós. Talvez os oráculos do pastor de Técua já fossem conhecidos em Jerusalém na época de Isaías. Afinal, são quase contemporâneos: Amós é de 760 a.C. e Isaías começa em 740 a.C. A problemática social era a mesma para ambos, embora Amós fosse um camponês e Isaías um homem culto ligado à corte. Mas, Isaías, assim como Amós, ataca os grupos dominantes da sociedade: autoridades, magistrados, latifundiários, políticos. É duro e irônico com as damas da classe alta de Jerusalém em Is 3,16-24, assim como Amós o fora com as madames de Samaria em Am 4,1-3. Por outro lado, defende, com paixão, órfãos, viúvas, oprimidos, o povo explorado e desgovernado pelos governantes. Denuncia igualmente a máscara da religião que encobre a injustiça, como vimos em Is 1,10-20. Assim como Am 2,6-16 ou 4,4-5 e 5,21-27.

E sua posição política?

Nisto ele é bem diferente de Amós. Sua posição política depende das tradições sobre a eleição divina de Jerusalém e da dinastia davídica. Iahweh está comprometido com a cidade e com a descendência de Davi. É preciso que o povo confie em Iahweh e mantenha a calma mesmo nos piores momentos. Nada de recorrer, portanto, a auxílios estrangeiros, quer venham do Egito, quer venham da Assíria. O contrário da fé é o temor, é o medo que se manifesta quando Judá busca segurança no poder das armas e das alianças políticas. Isaías, que é um poeta brilhante, empenha, nesta vertente política, toda a sua habilidade, para manter viva a esperança de seus conterrâneos. É um profeta profundamente utópico!

Afinal, o que pretendia Isaías com a sua pregação?

Isaías quer que o homem de sua época restabeleça o equilíbrio perdido na sua relação com Iahweh. O homem de seu tempo se colocara no cume de um panteão terreno, dominando e decidindo tudo segundo mesquinhos interesses, sem exigências éticas de justiça e solidariedade. Isaías percebe Iahweh como soberano, glorioso, santo. E o homem, em geral, na sua condição humana, e, concretamente, o seu povo, os seus contemporâneos, como impuros e fracos, como aparece no texto de sua vocação no capítulo 6. Se Israel não aceitar Iahweh – leia-se a prática do javismo – como decisivo, então virá o dia de Iahweh, e a arrogância humana será despedaçada. Como diz Is 2,12-17:

“Porque haverá um dia de Iahweh dos Exércitos
contra tudo o que é orgulhoso e altivo,
contra tudo o que se exalta, para que seja humilhado;
contra todos os cedros do Líbano, altaneiros e elevados,
e contra todos os carvalhos de Basã;
contra todos os montes altaneiros
e contra todos os outeiros elevados;
contra toda a torre alta
e contra toda a muralha fortificada;
contra todos os navios de Társis
e contra tudo o que parece precioso.
O orgulho do homem será humilhado,
a altivez dos varões se abaterá,
e só Iahweh será exaltado naquele dia”.

Como faço para saber mais sobre Isaías?

Em primeiro lugar, é recomendável ler os capítulos 1-39 do livro de Isaías. Depois, alguns livros e artigos podem ser lidos ou consultados. Como os seguintes:

BLENKINSOPP, J. Isaiah 1-39: A New Translation with Introduction and Commentary. New York: Doubleday, 2000, 544 p. – ISBN 9780385497169.

CROATO, J. S. et al. Os livros Proféticos: a voz dos profetas e suas releituras. RIBLA, Petrópolis, n. 35/36, 2000.

DA SILVA, A. J. A Voz Necessária: Encontro com os Profetas do Século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998, 144 p. – ISBN 8534910634. Disponível para download em pdf. Atualizado em 2011.

DA SILVA, A. J. Do mau uso de Isaías na defesa do sionismo. Observatório Bíblico, 02.05.2007.

DA SILVA, A. J. Isaías 7,14 em Mateus 1,23. Observatório Bíblico, 24.12.2019.

DA SILVA, A. J. Lendo a poesia de Isaías. Observatório Bíblico, 11.06.2018.

DA SILVA, A. J. Manuscrito de Isaías pode ser lido online. Observatório Bíblico, 04.11.2006.

DA SILVA, A. J. O livro de Isaías representa a pregação de um único profeta ou será uma coletânea de ditos proféticos de várias épocas? Observatório Bíblico, 21.09.2006.

HAUSER, A. J. (ed.) Recent Research on the Major Prophets. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2008, xiv + 389 p. – ISBN 9781906055134. Disponível online.

NAKANOSE, S.; DE PAULA PEDRO, E. Como ler o Primeiro Isaías (Is 1-39): Confiar em Javé, o Santo de Israel. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1999, 112 p. – ISBN 8534915466.

SCHÖKEL, L. A.; SICRE DÍAZ, J. L. Profetas I: Isaías. Jeremias. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, 680 p. – ISBN 8505006992.

SCHWANTES, M. et al. Profetas e profecias: novas leituras. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 73, 2002.

SICRE, J. L. Com os pobres da terra: a justiça social nos profetas de Israel. São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2011, 638 p. – ISBN 9788598481340.

SICRE DÍAZ, J. L. Introdução ao profetismo bíblico. Petrópolis: Vozes, 2016, 536 p. – ISBN 9788532652416.

>> Bibliografia atualizada em 22.02.2023.

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Última atualização: 22.02.2023 – 10h13