Teologia e novos paradigmas

Sobre a Teologia e novos paradigmas

 

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Resumo

A questão dos “novos paradigmas” é abordada por meio de uma aproximação da teologia com crises profundas vividas por Israel, mostrando a necessidade de se reinventar a sociedade face aos desafios históricos que constantemente se apresentam. Hoje, a teologia expulsa do paraíso de suas alianças e seguranças, vê-se diante da necessidade de recuperar sua força profética e seu compromisso com a vida, para ser instrumento útil na construção do shâlôm.

 

Ao debater com teólogos, teólogas, biblistas, filósofos e cientistas sociais sobre o tema Teologia e Novos Paradigmas, pode-se ter a sensação de que a teologia foi “expulsa do paraíso”.

Um “paraíso” onde tranquilamente se vivia em um tempo absoluto e regular e em um espaço delimitado e ordenado. Onde o homem e a mulher viviam relações de shâlôm com Deus, com os animais, com a natureza e consigo mesmos. Permanentemente, sem preocupações nem sofrimentos, sem nenhuma pressa.

Entretanto, por algum motivo, um dia, o homem e a mulher foram “expulsos do paraíso”. E então, tudo mudou: DOS ANJOS, M. F. (org.) Teologia Aberta ao Futuro. São Paulo: SOTER/Loyola, 1997precisaram construir ferramentas para sobreviver naquele ambiente hostil “fora do paraíso”, produzir alimentos e comê-los com “sofrimento e com o suor do rosto” para sustentar a vida, gerar filhos e filhas “com dores multiplicadas” para garantir a continuidade da mesma vida, sempre ameaçada – e vencida – pela morte, buscar espaços longínquos onde haveria uma “terra prometida” e viver um tempo de modo algum permanente e absoluto, até “voltar ao pó” de onde saíram. O sonho acabou, suor e sangue, dor e sofrimento, vida e morte se misturaram no cotidiano humano, pois a entrada do paraíso estava bem guardada pelos “querubins” e “o caminho da árvore da vida” impedido pela “chama da espada fulgurante”. Não havia como escapar do cotidiano desta conflitiva realidade. E, com o tempo, na memória arquetípica de homens e mulheres, o mito do “paraíso” deixou de ser uma saudade para tornar-se uma esperança[1].

 

1.Tal homem, qual sociedade. E vice-versa

Nos tempos “áureos” de Israel, quando se vivia de modo “paradisíaco”, foi acontecendo o minguar progressivo e irreversível do shâlôm e a realidade ficou fria, dura, insensível e desumana como a morte. Os repetidos erros, cometidos pelas elites israelitas no período monárquico – reis, príncipes, sacerdotes, juízes, falsos profetas e grandes proprietários, segundo a denúncia dos profetas – levaram Israel aos vários exílios e aos domínios implacáveis dos assírios, babilônios, persas, gregos e romanos sobre a sua terra, o seu “paraíso”.

A sociedade pós-exílica (refiro-me aqui ao exílio babilônico de 586 a.C.) viveu uma realidade pós-catastrófica[2]. A má qualidade da terra do pequeno distrito judaico inviabilizou a produção autossuficiente de alimentos, gerando endividamento e escravidão, e os pesados tributos exigidos pelos dominadores estrangeiros empurraram grande parte da população em direção à pobreza. E, ao mesmo tempo, criou uma aristocracia que se beneficiou com a nova ordem social. Houve um enfraquecimento do clã (mishpâhâh), unidade básica da sociedade israelita, e um fortalecimento da família (beth-‘abh), tornando-se esta a unidade econômica fundamental.

Ora, era o clã – constituído por um agrupamento de famílias ampliadas (beth-‘abhoth) – que gerava, através das relações de parentesco, as leis da solidariedade que sustentavam a sociedade israelita.

Mas, já na época grega, a terra israelita pertence ao rei estrangeiro por direito de conquista e ele a dá a quem bem quiser. A lei se fundamenta, assim, na vontade do rei e não nas tradições dos antepassados (Torá). Isto dá à aristocracia o elemento que faltava para legitimar seus ganhos excessivos. Recolhendo dos camponeses o produto da terra, vendendo-o com lucro, e pagando o tributo aos dominadores, a aristocracia enriquecida aliou-se aos invasores, adquiriu a sua cultura e pressionou-os a abolir a Lei judaica, que prejudicava seus negócios ao exigir um compromisso de solidariedade baseado no conceito de aliança. A esta aristocracia cooptada, os invasores concederam o direito de cidadania para que controlasse a população restante.

A falência das soluções coletivas tornou-se inevitável, enquanto que os conflitos internos dos vários grupos judaicos e a fragmentação social completaram o quadro pós-catastrófico.

Os profetas combatiam a crise, denunciando seus mecanismos com realismo e visão clara do desastre que se aproximava. Mas a apocalíptica, filha guerreira da profecia, perdeu, frequentemente, o sentido da realidade, refugiando-se no mito e na expectativa de um milagre que salvasse Israel e reconstruísse seu “paraíso”. Os essênios, compreendendo que a antiga solidariedade israelita baseada nas relações de parentesco tornara-se inviável, racionalizaram-na em normas éticas, cuja validade ficava assegurada através de um pacto rigoroso que insistia na construção de relações pessoais e recíprocas. Os zelotas e os sicários, lutando em nome de um Deus único, tentavam enfraquecer, com armas na mão, os dominadores estrangeiros e seus cúmplices judeus aristocratas, que, por sua vez, se organizavam no grupo saduceu bem entrincheirado no Templo. E os fariseus, que apoiados na Lei e convivendo, às vezes bem, às vezes mal, com a situação, fortaleciam a Sinagoga… Sem contar os milhões de judeus vivendo na diáspora. E os cristãos do primeiro século…[3].

 

2.Tal sociedade, qual teologia

Tudo isto me sugere certa analogia com a situação atual da teologia cristã, “expulsa do paraíso”.

Em tempos idos, ancorada nas certezas criadas pela autoridade da cristandade medieval, a teologia mantinha inquestionável superioridade sobre outros modos de conhecimento, derivada de seu ser superior de origem revelada e amparada pelas linguagens do platonismo e, em seguida, do aristotelismo.

Do século XV ao século XVIII aconteceram, entretanto, dois deslocamentos no pensamento humano europeu:

  • o primeiro foi a passagem da especulação escolástica à filosofia da natureza, quando, com a ascensão da burguesia, a natureza passou a ser entendida e explicada experimentalmente e o universo foi reduzido a um mundo geométrico e a uma física mecanicista
  • o segundo deslocamento se deu quando se passou da análise da natureza para a análise da sociedade, gerando uma crítica ao poder absoluto, no qual Deus criava, organizava e geria o mundo através da Igreja e de suas leituras da realidade, de suas teologias, especialmente.

É que a partir de Descartes há uma decisiva virada antropocêntrica que descobre o sujeito pensante autônomo e coloca a consciência como a medida e a forma do ser.

Após Kant e Hegel a razão humana alcançou, então, sua maioridade. Kant foi a encarnação filosófica da classe burguesa: é o homem quem cria os universos científico e moral, segundo as normas da própria razão. Não é mais Deus o fiador do conhecimento científico nem da vida moral. E no hegelianismo a ordem estabelecida não retrata mais um plano divino, mas a racionalidade imanente da própria história, palco de lutas entre contrários, fruto da contradição, superando-se sempre. O mundo e a história não são réplicas imperfeitas de um mundo transcendente e estático na sua perfeição, pois eles são a ideia fazendo-se, procurando a perfeição[4].

Assim confrontada com a razão moderna, a teologia reagiu, primeiro, ofendida, pois perdia sua supremacia para as ciências da natureza e da sociedade. Contudo, com o tempo, incorporou os novos paradigmas da razão iluminista e desenvolveu uma convivência bastante razoável com as ciências, construindo ferramentas mais adequadas a um mundo que se deslocara para o antropocentrismo.

Só que o Iluminismo, que se pensava definitivo, vê seus pressupostos se desmoronando na pós-modernidade, suas metas ficando cada vez mais distantes e suas realizações ameaçando a humanidade com possíveis catástrofes globais.

Também a teologia, que se queria universal, viu nascer, especialmente nas últimas quatro décadas, outros modos de pensar (teologicamente), obrigando-a a deslocar seu olhar exclusivamente europeu, burguês e machista para continentes periféricos, para populações pobres e excluídas, para a fala teológica feminista, para teologias não-cristãs.

Vive-se hoje um inquestionável pluralismo teológico. E a enorme quantidade de problemas com que se defronta a teologia, deixam-na meio deslocada aqui “fora do paraíso”. Aliás, hoje só tem sentido falar de teologias e não de teologia.

 

3. O olhar do biblista: algumas sugestões

Como exegeta, gostaria de sugerir alguns parâmetros do pensamento bíblico que contribuíssem, ainda que modestamente, para a discussão sobre “Teologia e Novos Paradigmas”. Isto porque acredito que somos capazes de nos reapropriarmos de certos paradigmas e de transformá-los em armas de revolução permanente[5].

Quando lemos a Bíblia como um catálogo de formulações doutrinais ou um elenco de verdades abstratas que explicam e regulam a realidade, caímos no idealismo e não conseguimos vê-la como um relato da experiência de Deus feita pelo povo de Israel e pelas comunidades cristãs. Ora, falar e usar a Bíblia como palavra de Deus – e toda sã teologia judaica e cristã o faz – tem um sentido muito mais forte e transformador do que podemos, às vezes, imaginar.

Em hebraico, dâbhâr é “palavra”, na sua moderna função noética de “compreensão”, “pensamento”, “inteligência”, nous, em grego. Mas é também “fato”, “acontecimento”, “evento”, enquanto possui forte função dinâmica e é portadora de grande poder de realização.

Como isso é possível?

É que “no projeto israelita de uma sociedade solidária, sem classes sociais tão demarcadas, a diferenciação entre os que ‘faziam os fatos’, trabalhando, e os que ‘faziam o sentido’, interpretando o trabalho, não era tão acentuada como em nossas sociedades classistas, onde os que trabalham, alienados do produto de suas mãos, não dizem o sentido de seu trabalho. E os que dizem o sentido, não trabalham, exploram o trabalho dos outros, mediante a sua ‘verdade’ social prévia. Contudo (…), nos textos bíblicos, a verdade da palavra está contida no próprio acontecimento e não no mundo das ideias alhures preconcebidas”[6].

Assim, quando uma teologia retira os acontecimentos bíblicos de seu contexto e os usa de maneira absoluta e moralizante – como acontece na restauração católica ora em curso – não só desaparecem Deus e os valores bíblicos, como também é aniquilado o “homem humano”, pois homens e mulheres estão é no mundo concreto e só neste mundo concreto é que eles e elas podem relacionar-se entre si.

A globalização neoliberal da economia de mercado, de um lado, e o radicalismo religioso fundamentalista, de outro, tirando homens e mulheres do mundo real, transportando-os para uma “realidade virtual”, pregam o “fim da história” e a inexistência da crise, enquanto no mundo pós-catastrófico em que vivemos, aumenta absurdamente o número dos excluídos, que acabam buscando soluções individuais, de rápido efeito, ou mergulham em ilusórias expectativas messiânicas.

Ora, em congresso realizado pela SOTER (julho de 1996), sentiu-se que já está passando da hora de deslocarmos nossa atenção “da relação ‘velho paradigma’ e crise para a análise da relação entre crise e ‘novo paradigma'”[7]. É preciso, segundo alguns, resgatar os conceitos de autonomia, transdisciplinaridade e sistematicidade da teologia. Faz-se urgente optar por uma ética da dignidade, do amor e da responsabilidade do ser humano como imagem do Deus bíblico, como tão bem o tematizou o Concílio Vaticano II[8].

Nesse congresso, também falou-se muito da necessidade de uma teologia que seja elaborada a partir da experiência e da linguagem dos mais variados grupos cristãos, superando, deste modo, abstratos conceitos importados de culturas estranhas à nossa mundivisão.

No AT é bastante usado o verbo yâdha’ , “conhecer”. E pode ser interessante para a teologia latino-americana resgatar o seu sentido, pois, além de exprimir a ação de saber alguma coisa, yâdha’ carrega consigo a ideia de experiência, relação profunda, contato íntimo. Tanto que é usado para falar da relação sexual entre um homem e uma mulher.

E o importante é que “quando o seu sujeito é Iahweh, o verbo yâdha’ significa ‘destinar a uma função’, ‘eleger alguém para’. É um conceito muito próximo de bahar, ‘eleição’, usado pelo Deuteronômio para falar da vocação de Israel, escolhido por Iahweh para ser seu povo”[9].

Daí que uma comunidade que se quer profética pode, através deste referencial, ampliar sua consciência teológica, trabalhando sua vocação cristã como um processo histórico de grande significação.

Uma vocação que é ruptura e não acomodação, que denuncia e transgride o discurso dominante do neoliberalismo e que busca preservar as formas de resistência popular, mantendo acesa a chama da esperança, mesmo nos momentos mais difíceis.

Uma experiência de transgressão ativa e lúcida, fazendo a teologia colocar os pés no chão desta vida conflitiva vivida “fora do paraíso”. Uma teologia assim trabalhada redescobre, com certeza, suas origens populares e se torna ferramenta útil na construção do shâlôm, onde homens e mulheres vivam na harmonia com Deus, com os animais, com a natureza e consigo mesmos.

> Texto publicado originalmente como “A expulsão do paraíso: sobre a Teologia e Novos Paradigmas”, em DOS ANJOS, M. F. (org.) Teologia Aberta ao Futuro. São Paulo: SOTER/Loyola, 1997, p. 127-133. Revisto e atualizado em 2020.

Artigos


  1. Cf. MESTERS, C., Paraíso terrestre: saudade ou esperança? 20 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
  2. Utilizo aqui a categoria popularizada por KURZ, R. em O colapso da modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008, onde o autor defende a tese de que, nas sociedades ditas do “Terceiro Mundo”, a catástrofe já aconteceu e estas avançam rapidamente rumo à fragmentação e à falência, enquanto o “Segundo Mundo” segue-lhe, de perto, os passos. Nas palavras do autor: “Revela-se assim que o Terceiro Mundo ou já fracassou em suas tentativas de modernização (…) ou, no melhor caso, encontrou um status precário no papel de países ascendentes, que permanece exposto à espada de Dâmocles do mercado mundial e, mesmo assim, já não permite um desenvolvimento interno da sociedade inteira” (p. 176-177). Ou: “Os perdedores do Sul e do Leste não querem compreender que a situação do passado recente, que caiu na crise e contra a qual lutaram, já foi a modernização, a única historicamente possível para eles dentro do contexto do sistema mundial produtor de mercadorias. Não seguirá a esta nenhuma ‘metamodernização’, mas apenas o horror infinito das sociedades pós-catastróficas” (p. 196).
  3. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, [1988] 1997; SAULNIER, C. ; ROLLAND, B. A Palestina no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus 1983; HENGEL, M. The “Helenization” of Judaea in the First Century after Christ. Eugene, OR: Wipf and Stock, 2003; SHANKS, H. (org.) Para compreender os Manuscritos do Mar Morto. Rio de Janeiro: Imago, 1993; DA SILVA, A. J. Os essênios: a racionalização da solidariedade.
  4. Cf. LARA, T. A. Caminhos da Razão no Ocidente. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
  5. Cf. NEGRI, A. Revoluções de Kuhn, em Folha de São Paulo, 28.07.96, 5.11; KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2017.
  6. DA SILVA, A. J. Nascido profeta: a vocação de Jeremias. São Paulo: Paulus, 1992, p. 45.
  7. NEGRI, A. Idem, ibidem.
  8. Cf. JOSAPHAT, C. Teologia e Novos Paradigmas, palestra proferida na FTCR da PUC-Campinas em 01.08.96. Texto fotocopiado (18 p.).
  9. DA SILVA, A. J. Nascido profeta, p. 48.

Última atualização: 03.12.2020 – 08h32