Flávio Josefo 3

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5. No cerco de Jerusalém

No cerco de Jerusalém ele está ao lado de Tito e tenta, repetidamente, convencer os sitiados a se renderem. Objetivamente, Josefo é um traidor, mas não é assim que ele se vê. Diz, por exemplo, aos sitiados que os romanos são os senhores do universo, que ninguém pode escapar deles, e, até mesmo, que Deus agora está é do lado deles e não com os judeus…

Disse Josefo

“Que, se é vergonhoso estar sujeito a um poder desprezível, não o é ter como senhores àqueles que reinam em toda a terra, pois, que país está isento do domínio dos romanos, senão aquele que um excessivo calor ou um frio insuportável o teria tornado inútil? Que se via que de todos os lados a fortuna lhes estendia os braços e que Deus, que tem em suas mãos o império do mundo, depois de tê-lo, no correr dos séculos, dado a diversas nações, tinha então estabelecido a sua sede na Itália?”[27].

Além desse argumento “teológico”, oferecido aos sitiados, Josefo fornece ao leitor outras razões para explicar a derrota de Jerusalém. Segundo ele, a cidade estava tão dividida em facções em luta que os próprios judeus foram os maiores responsáveis por sua derrota. Em suas palavras:

“Podemos dizer com verdade que uma guerra tão cruel em seu interior, não lhes era menos funesta que uma guerra externa e que Jerusalém não sofreu mais da parte dos romanos, do que o furor dessas infelizes divisões, que já lhe havia feito experimentar males ainda maiores. Assim não tenho receio de afirmar que é principalmente a esses inimigos de sua pátria e não aos romanos, que devemos atribuir a ruína dessa poderosa cidade e que a única glória que lhes pode caber  é ter exterminado esses malfeitores, cuja impiedade unida a tantos outros crimes que nem poderíamos imaginar, lhe tinha destruído a união que lhe dava muito mais força que suas mesmas muralhas. Não podemos pois dizer, com razão, que os crimes dos judeus são a verdadeira causa de suas desgraças e que, o que os romanos lhes fizeram sofrer, não foi um justo castigo? Deixo, porém, a cada qual, que julgue como lhe aprouver”[28].

E o pior é que, em sua frase final, ele instala, no leitor, a dúvida: você deve decidir… Não terá sido merecido o “castigo” infligido aos judeus? E é preciso acrescentar o seguinte: em toda esta parte de A Guerra Judaica, Tito sempre aparece como bom e compassivo, enquanto os líderes da revolta são terríveis e sanguinários. Se no acampamento romano acontece algo de cruel com judeus desertores ou capturados – como o caso dos dois mil que tiveram suas barrigas abertas pelos soldados que procuravam o pretenso ouro que teriam engolido ao sair de Jerusalém – jamais é com a aprovação do “justo” Tito. São “excessos” cometidos por tropas auxiliares…[29].

Creio que aqui será o momento certo para colocarmos a dura avaliação que Giuseppe Ricciotti faz de Flávio Josefo em sua introdução à tradução para o italiano de A Guerra Judaica[30].

Diz Ricciotti na p. 6: “Josefo (…) tinha tanta ambição e tanto apego à sua carreira política que preferiu curvar-se, como um frágil caniço, em várias direções”. E na p. 12: “O fator político contava, para Josefo, apenas enquanto era um meio para triunfar, e qualquer ideologia abstrata era afirmada ou negada segundo as circunstâncias o exigiam”.

Ou na p. 34 da mesma obra: “Julgado como homem, Josefo aparece como um espírito mesquinho, sem caráter, disposto a fazer qualquer negocio desde que alcançasse seus objetivos”. E na p. 41: “Considerando o título Guerra judaica como original e autêntico, temos nele mesmo o ponto de vista a partir do qual fala o historiador: é o ponto de vista dos romanos, não o dos judeus…”.

Por sua vez, Emil Schürer diz que sobre o caráter de Josefo as opiniões expressas ao longo dos séculos são bastante contraditórias. Supervalorizado na Idade Média, ele tem sido mais duramente tratado pelos críticos modernos. E acrescenta: “Ninguém vai querer defender o seu caráter. As características básicas de sua personalidade foram vaidade e complacência. E mesmo que ele não tenha sido o infame traidor que a Autobiografia parece mostrar, a sua passagem para o lado dos romanos e sua íntima adesão à família imperial Flávia foram feitas com mais ingenuidade e indiferença do que se poderia esperar de alguém que lamentava a queda da própria nação” [31].

 

6. A condição privilegiada em Roma

Após a guerra, Flávio Josefo vai viver em Roma, recebendo de Vespasiano uma casa, pensão, propriedades e a cidadania romana. Casa-se 4 vezes, tem 3 filhos, como vimos, e morre em 102 ou 103 d.C., em Roma.

Nestes cerca de 30 anos morando em Roma, Josefo escreve extensa obra sobre os judeus e a guerra judaica contra Roma: Bellum Iudaicum (A Guerra Judaica) em 7 livros; Antiquitates Iudaicae (Antiguidades Judaicas) em 20 livros; Contra Apionem (Contra Apião) em 1 livro e Vita (Autobiografia) também em 1 livro.

A Guerra Judaica é escrita primeiramente em aramaico e, em seguida, entre 79 e 81 d.C., traduzida para o grego. Alguns acham que é por remorso – pelo modo suspeito como salva sua vida – que Flávio Josefo escreve esta obra. Mas é mais provável que A Guerra Judaica seja uma obra de encomenda. Sendo ainda numerosos os judeus tanto no Império Romano quanto nas regiões dos partos, babilônios e árabes, e esboçando-se possibilidades de novas revoltas, é preciso dissuadir qualquer nova tentativa de insurreição. E a melhor dissuasão é o relato da guerra na Judeia. E quem melhor do que Josefo para fazê-lo?[32]

Ao descrever o poderio do exército romano, como, aliás, já anotamos acima, Josefo diz:

 “Meu fim, no que acabo de dizer, não é tanto tecer elogios aos romanos, mas consolar àqueles que eles venceram e fazer os outros perder o desejo de se revoltar contra eles” (sublinhado meu)[33].

Josefo não faz uma simples crônica dos acontecimentos da guerra. Ele dedica o primeiro livro inteiro às causas remotas da guerra, voltando no tempo até a revolta dos Macabeus no século II a.C.

Seus modelos são os gregos Tucídides e Políbio. Tucídides é um historiador ateniense que vive entre 460 e 400 a.C., aproximadamente. Escreve a história da guerra do Peloponeso, considerada uma das mais importantes obras históricas de todos os tempos por sua imparcialidade e seu método científico.

Políbio nasceu em Megalópolis, na Arcádia em 202 aproximadamente e morreu em 120 a.C. Escreveu, além de outras obras, a “História”, em 40 livros, dos quais somente os 5 primeiros sobreviveram na íntegra. A obra visa registrar a ascensão rápida e dramática de Roma à supremacia do Mediterrâneo. “Ele teve a percepção clara, notável num contemporâneo, do posição a que Roma havia chegado no mundo mediterrâneo. Políbio procura sistematicamente as causas dos eventos (‘nada, seja provável, seja improvável, pode acontecer sem uma causa’), seguindo a evolução das nações e seu declínio, e não se equivocou ao expor as causas da decadência da Grécia. Sua narrativa é clara e simples, sem artifícios de retórica, escrita no dialeto comum baseado no ático, predominante na Grécia a partir de 300 a.C.”, comenta  Paul Harvey[34].

Mas, como bom judeu, Josefo sempre destaca, em sua história, além das causas humanas, a ação da providência divina que tudo dirige. No prefácio de A Guerra Judaica, o próprio Josefo explica a sua concepção de história:

“Indiscutivelmente, o historiador que merece elogios é aquele que consigna acontecimentos cuja história nunca foi escrita e que elabora a crônica de seu tempo, tendo em vista as gerações futuras”[35].

Antiguidades Judaicas, publicada em grego, é sua segunda obra e fica pronta em 93 d.C.

Josefo, como qualquer judeu da época, sofre muito com a ignorância do mundo greco-romano acerca dos judeus e de seus costumes, tradições e crenças. Os judeus são vistos e julgados a partir dos padrões culturais e civilizatórios gregos, transformando-se assim a sua história em uma história muitas vezes mítica e absurda porque a diferença cultural não é respeitada. Os costumes alimentares e cultuais judaicos, em geral causam profunda estranheza ao mundo grego. Além do que, as origens de Israel são frequentemente desfiguradas por feroz antissemitismo que tem sua origem nos conflitos da época, e que não deveria ser assim retroprojetado, pelos autores gregos que escrevem sobre os judeus, para o fim do II milênio.

Antiguidades Judaicas não tem, portanto, apenas o objetivo de informar, mas Josefo quer, através de uma história de milênios, defender seu povo e impressionar os romanos. Mostrar a antiguidade das origens é, na sua época, fundamental para qualquer povo que queira ser respeitado.

Para nós, Antiguidades Judaicas é importante, especialmente quando trata da história dos Macabeus e do governo de Herodes Magno.

Como dissemos acima, o antissemitismo está em pleno florescimento no século I d.C. e se manifesta sobretudo entre escritores egípcios helenizados de Alexandria. É contra este antissemitismo que Josefo escreve o Contra Apião em 95 d.C., contestando como falsas várias ideias bastante difundidas em Roma por esse popular autor[36].

Apião (Apíôn), que pode ser situado na primeira metade do século I d.C., “era um escritor e professor grego de origem egípcia, que exerceu um importante papel na vida cultural e política de seu tempo. Ele ficou famoso como um mestre em Homero e como autor de uma obra sobre a história do Egito”[37].

Apião não nasce em Alexandria, mas torna-se cidadão alexandrino. Representa os gregos contra os judeus de Alexandria diante de Calígula, enquanto Fílon de Alexandria representa os judeus, no ano 40 d.C., na questão dos direitos cívicos dos judeus alexandrinos.

Apião é o mais ferrenho dos antissemitas do mundo helenístico e, como é um escritor muito popular, tem grande influência na formação da opinião pública culta de sua época, e, por isso, Flávio Josefo o escolhe como alvo entre todos os antissemitas. Ele fala dos judeus nos livros 3 e 4 de sua Aegyptiaca.

A última obra de Josefo é a Autobiografia, escrita após 95 d.C., não se sabe exatamente em que ano. O livro é motivado por um relato da guerra escrito por seu velho inimigo Justo de Tiberíades.

Justo é um dos mais ardorosos líderes galileus na revolta contra Roma e confronta-se com o moderado Josefo nos meses que antecedem a chegada de Vespasiano. Em sua obra, infelizmente perdida, Justo, entretanto, descreve Josefo como um nacionalista judeu fanático e destaca o seu papel antiromano na guerra, deixando o nosso autor em situação perigosa com essa inversão dos fatos.

Josefo critica violentamente a história escrita por Justo, chamando-o ironicamente de o mais genial dos escritores e perguntando-lhe porque não escreveu sua obra quando ainda estavam vivos Vespasiano e Tito, que conduziram as operações da guerra.

A Autobiografia não é uma grande obra: polêmica, pesada e confusa, deixa o leitor indiferente ou cansado. Mas, por outro lado, traz muitos dados sobre Josefo, transformando-o no escritor da antiguidade sobre quem mais informações possuímos.

 

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>> Bibliografia atualizada em 03.12.2016

> Este artigo foi publicado inicialmente em Cadernos de Teologia, Campinas, n. 5, p. 29-51, 1998.

Artigos


[27] . Idem, ibidem, p. 655.

[28] . Idem, ibidem, p. 649.

[29] . Cf. o episódio em Idem, ibidem, p. 664.

[30] . Cf. RICCIOTTI, G.  La Guerra Giudaica. 3. ed. Torino: Società Editrice Internazionale, 1963.

[31] . SCHÜRER, E. Storia del popolo giudaico al tempo de Gesù Cristo, p. 92.

[32] . Cf.  HADAS-LEBEL, M. Flávio Josefo, o judeu de Roma, p. 237-238.

[33] . JOSEFO, F. História dos Hebreus, p. 589.

[34]. HARVEY, P. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, verbete Políbios.

[35] . JOSEFO, F. História dos Hebreus, p. 497.

[36] . Cf. FELDMAN, L. H. ; LEVISON, J. R. (eds.) Josephus’ Contra Apionem: Studies in its Character and Context with a Latin Concordance to the Portion Missing in Greek. Leiden: Brill, 1996. 

[37] . Cf. STERN, M. Greek and Latin Authors on Jews and Judaism I. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1976, p. 389.

Última atualização: 27.04.2019 – 12h00