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4. O comando da Galileia
Quando explode o conflito com Roma, em 66 d.C., Josefo aceita, talvez por ambição, quem sabe por vaidade, o comando da Galileia. Entretanto, mais do que preparar o território e a população para o enfrentamento inevitável com as legiões romanas de Vespasiano e Tito, Josefo preocupa-se em combater os conflitos internos provocados pelas várias facções judaicas em luta. Sua atitude é tão ambígua que ele é repetidamente acusado por vários grupos galileus de traição à causa judaica.
Mireille Hadas-Lebel faz uma observação interessante: Flávio Josefo “sentirá mais tarde tamanha necessidade de se justificar a respeito desse período de sua vida que, por isso mesmo, se torna suspeito. Nove décimos de sua Autobiografia são, com efeito, dedicados aos poucos meses em que ele exerceu as funções de general governador da Galileia (…) A superabundância de detalhes relativos a esta época é muito enganadora, pois Josefo nos fornece, com vinte anos de distância, na Guerra e na Autobiografia, dois relatos paralelos, um na terceira pessoa, o outro na primeira pessoa, entre os quais subsistem divergências não desprezíveis. Onde ele diz a verdade? E se houvesse uma terceira verdade? Por ter querido demais justificar-se, Josefo abre a porta para o pior inimigo do historiador: a dúvida da posteridade”[12].
Martin Goodman, em obra sobre as origens da revolta judaica contra Roma, diz confiar intensamente na narrativa de Josefo, historiador que pode ser acusado de negligente, mas que se mostra impressionantemente preciso quando confrontado com outras evidências. Sendo assim, diz: “A minuciosa narrativa de Josefo foi, por isso, totalmente explorada neste livro”. Contudo, acrescenta: “Mas seus juízos de valor foram tratados como mais do que um pouco suspeitos. Quando não podem ser comprovados por sua minuciosa narrativa eles foram considerados como representativos da atitude apenas da classe dirigente à qual ele pertencia, e não de todos os judeus da Judeia”[13].
Os rebeldes de Jerusalém deram a Josefo os poderes que eram anteriormente atribuídos ao prefeito romano, já que sua tarefa é, ao mesmo tempo administrativa, judiciária e militar. Josefo tinha como função sublevar toda a população da Galileia contra Roma e unificar todos as facções e comandos, pois graças à sua proximidade com a Síria, a região seria a primeira a ser atacada pelos romanos, como, de fato, o foi. Eis o relato de Josefo, em terceira pessoa, na Guerra Judaica, quando fala da distribuição dos comandos:
“Josefo, filho de Matias, [foi escolhido] para exercer um cargo semelhante na alta e na baixa Galileia, acrescentando-se ao seu governo Gamal, que é a praça mais forte de todo o país (…). O primeiro cuidado de Josefo foi conquistar o afeto do povo, para tirar grandes vantagens e reparar assim as faltas que pudesse cometer. Para conquistar também os mais poderosos, dividindo com eles a sua autoridade, escolheu setenta dos mais sábios e dos mais hábeis, que constituiu administradores da província e deu assim àqueles povos a alegria de serem governados por pessoas do próprio país e conhecedores dos seus costumes. Além disso estabeleceu em cada cidade sete juízes, para julgar as pequenas causas, segundo a forma que ele lhes havia determinado. Quanto às grandes, reservou para si mesmo o julgamento”[14].
Josefo descreve, em seguida, como fortificou a Galileia, construindo muralhas em cidades da baixa e da alta Galileia, assim como recrutou um exército considerável de sessenta mil homens de infantaria, duzentos e cinquenta cavaleiros, quatro mil e quinhentos mercenários e seiscentos guardas pessoais. Estabeleceu em seu exército, à maneira dos romanos, cuja estrutura militar demonstra conhecer bem, uma rígida hierarquia, para que a disciplina pudesse suprir a falta de armamento adequado e de treinamento militar que o curto tempo não permitia obter. É o que lemos em A Guerra Judaica:
“Como sabia que o que tornava os romanos maximamente invencíveis era a obediência e a disciplina, e via que o tempo não lhe permitia exercitar seus homens tanto quanto ele desejara , julgou dever pelo menos torná-los obedientes.Como para isso contribui eficazmente o número de comandantes, ele lhos deu, à imitação dos romanos, muitos oficiais e chefes”. Além do urgente (e precário) treinamento, “falava-lhes principalmente da disciplina dos romanos, que era rígida e extrema e que eles tinham que combater contra homens, cuja força corporal unida a uma invencível firmeza de alma, tinha conquistado quase todo o mundo”[15]
Entretanto, o comportamento de Josefo logo despertou suspeitas entre os galileus, pois em duas ocasiões ele se mostrou favorável a Agripa II, o último governante da família herodiana e aliado de Roma. Josefo precisou usar de toda a sua comprovada astúcia para sobreviver. Teve em João de Gíscala, um dos líderes da rebelião, seu pior inimigo. Este conseguiu que uma comissão viesse de Jerusalém para investigar as atividades de Josefo, acusado de não preparar a Galileia para a resistência, mas a delegação tinha ordens de obter a demissão de Josefo e, em caso de resistência, de matá-lo sem hesitação.
Avaliando a missão de Josefo na Galileia, diz Mireille Hadas-Lebel: “Apesar de todos os esforços de Josefo para fazer sua ação aparecer sob um luz favorável, o balanço desses poucos meses é totalmente negativo. Não só ele não conseguiu unificar a região sob seu comando, como nela provocou novas clivagens. Suscitou inimizades ferozes, escapou a várias tentativas de assassinato, e só se manteve em seu posto graças a apoios junto aos poderosos”[16].
De sua parte, Josefo interpreta sua missão como sendo a de manter a paz na Galileia, ou seja, “primeiro a paz interna, impedindo os confrontos entre judeus e os ataques surpresa de bandos armados contra as populações pagãs, em suma tudo o que prejudica a ordem e a unidade; e igualmente abster-se, pelo máximo de tempo possível, de provocar a intervenção dos romanos ou de seus aliados”[17].
Vespasiano, enfim, ataca a Galileia com um bem aparelhado exército de mais de 60 mil homens. Josefo, na Guerra Judaica, faz uma detalhada descrição do exército romano, com a finalidade, se justifica, de não
“tanto tecer elogios aos romanos, mas consolar àqueles que eles venceram e fazer os outros perder o desejo de se revoltar contra eles”[18].
Por outro lado, sobre o seu próprio exército, diz ele que
“somente a notícia de sua [Vespasiano] chegada, de tal modo assustou os judeus, que quantos se haviam reunido a Josefo e tinham acampado em Garis, perto de Séforis, fugiram, não somente antes do combate, mas mesmo sem ter visto o exército”[19].
A devastação da Galileia pelos romanos é total. Os galileus não tinham com enfrentá-los em campo aberto e, sitiadas, as cidades foram caindo uma a uma. Bloqueado, por fim, em Jotapata, Josefo resiste, com extrema habilidade, a 47 dias de cerco.
Ocorre, então, na queda de Jotapata em 20 de julho de 67, um dos mais suspeitos episódios de toda a vida de Josefo. Vejamos sua descrição em A Guerra Judaica:
“Ele [Josefo] fora tão feliz, que depois da queda da cidade, fugindo pelo meio dos inimigos, desceu a um poço muito profundo, ao lado do qual havia uma caverna espaçosa, que não podia ser vista do alto. Lá encontrou quarenta dos mais valentes dos seus, que também ali se tinham refugiado e que tinham todo o necessário para vários dias (…) Dois dias assim se passaram; no terceiro, uma mulher o denunciou (…) Vespasiano mandou Paulino e Galicano, dois tribunos, garantir-lhe que o trataria bem, exortando-o a sair; ele não quis fazê-lo, porque, não estando persuadido da clemência dos romanos, e sabendo do seu ressentimento, pelo mal que lhes havia feito, temia que quando o tivessem em seu poder, procurassem vingar-se”[20].
Como não conseguiam convencê-lo a se entregar, os soldados romanos decidiram incendiar a caverna, só não o fazendo porque Vespasiano o queria vivo, garante Josefo. E prossegue:
“Josefo então lembrou-se dos sonhos que tivera, nos quais Deus lhe fizera ver as desgraças que sucederiam aos judeus e os felizes resultados obtidos pelos romanos, pois ele sabia explicar os sonhos e ver a verdade mesmo no meio das trevas, a qual Deus muitas vezes se compraz em esconder e como ele era sacrificador, também conhecia as profecias que estão nos livros santos. Como se, naquele momento, estivesse cheio do Espírito de Deus, tudo o que Ele lhe havia feito ver nos sonhos pareceu renovar-se, e ele dirigiu-lhe esta oração: ‘Grande Deus, Criador do universo, pois que resolvestes terminar a prosperidade dos judeus para aumentar a dos romanos e me escolhestes para lhes predizer o que está para acontecer, eu me submeto à vossa vontade, entrego-me aos romanos e consinto em continuar a viver. Mas, protesto diante de vossa eterna majestade, que, como um vosso ministro e não como um traidor, eu me entrego a eles’”[21].
E, então, o óbvio aconteceu: os que estavam com ele não concordaram com esta “brilhante” ideia! Depois de um discurso no qual denunciam sua decisão como traição às leis judaicas, eles puxaram das espadas para matá-lo. Seus companheiros estavam firmemente decididos a morrer ali por suas próprias mãos, mas jamais se entregariam aos romanos. Contudo, uma vez mais, prevaleceu a astúcia de Josefo:
“Josefo, por seu lado, não perdeu a calma, em tão grave perigo: confiando na proteção de Deus, assim lhes falou: ‘Pois que estais mesmo resolvidos a morrer, lancemos a sorte para ver quem deverá ser morto por primeiro por aquele que o seguirá; continuemos a fazer sempre do mesmo modo, a fim de que nenhum de nós se mate por si mesmo, mas receba a morte das mãos de um outro’ (…) Foi então lançada a sorte e o que era determinado apresentava o pescoço ao que o devia matar; isso continuou até que restavam somente Josefo e um outro; o que aconteceu, talvez, por uma especial proteção de Deus ou por casualidade. Josefo, vendo que se ele lançasse a sorte, ela, ou lhe custaria a vida ou ele teria que manchar suas mãos no sangue de um amigo, aconselhou-o a viver, dando-lhe garantia de salvá-lo”[22].
Feito prisioneiro, “prediz” a Vespasiano o Império e consegue sobreviver. Quando, em junho de 69 d.C., Vespasiano é feito imperador, Josefo passa da condição de prisioneiro a protegido dos romanos.
A “predição” feita a Vespasiano, como descrita em A Guerra Judaica, é peça para se admirar… e para se espantar com a capacidade de sobrevivência de Josefo:
“Vós julgais, sem dúvida, senhor, que tendes somente a Josefo, prisioneiro em vossas mãos. Mas eu venho por ordem de Deus comunicar-lhe uma coisa que muito vos interessa, e é muito mais importante. Eu bem sei de que modo os que têm a honra de comandar os exércitos dos judeus devem morrer, por terem caído vivos em vossos mãos. Quereis mandar-me a Nero. E por que mandar-me, pois que ele e os que lhe devem suceder até vós têm tão pouco tempo de vida? É somente a vós e a Tito, vosso filho, que eu considero imperadores; a este, depois de vós, porque ambos subireis ao trono. Fazei-me pois guardar quanto vos aprouver, mas como vosso prisioneiro, não de outro; somente vós vos tornastes, pelo direito da guerra, senhores da minha liberdade e de minha vida; mas sê-lo-eis dentro em breve de toda a terra e eu merecerei um tratamento muito mais severo do que a prisão, seu eu for tão mau e tão ousado, em abusar do nome de Deus, para vos obrigar a prestar fé a uma impostura”[23].
O que poderia ter acontecido de fato? Embora o relato traga as marcas de fatos já acontecidos quando narrados, certamente Josefo estava, no momento da prisão, ciente de muitas coisas, entre elas a da origem humilde de Vespasiano, sua dura ascensão ao comando, sua crendice em muitos presságios que pareciam apontar-lhe o caminho do sucesso e outras coisas do gênero. E, assim, sabendo que nas mãos de Nero seu destino não seria nada agradável – pois era um dos chefes da revolta e sua protetora Popeia já havia morrido – Josefo falou a Vespasiano exatamente o que ele queria ouvir[24].
Mas, enquanto Vespasiano, ainda não feito imperador, continua a conquista da Galileia, Josefo permanece prisioneiro em Cesareia. São dois anos e meio, de julho de 67 a dezembro de 69. E, observa Mireille Hadas-Lebel, “é neste ponto do relato de Josefo que sentimos mais claramente o quanto sua perspectiva sobre as operações militares se deslocou. Tudo é agora visto do campo do vencedor”[25].
De fato, a narrativa de A Guerra Judaica assume agora uma perspectiva que demonstra uma romanização crescente de Josefo. Das ações militares de Tito faz uma verdadeira hagiografia e as mais crueis atitudes de Vespasiano são descritas como naturais, como quando, fingindo anistiá-los, reúne os estrangeiros sobreviventes do ataque a Tariqueia no estádio de Tiberíades e os massacra:
“Ali fez matar todos os velhos e os incapazes de pegar em armas, em número de mil e duzentos; mandou a Nero seis mil homens fortes e robustos para trabalhar no istmo de Moreia [em Corinto, onde Nero tentou abrir o canal, ação que só se concretizou em 1893]. O povo foi feito escravo; foram vendidos trinta mil e quatrocentos deles; o resto foi dado a Agripa, para fazer o que quisesse dos que eram do seu reino”[26].
[12]. HADAS-LEBEL, M. Flávio Josefo: o judeu de Roma, p. 77.
[13]. GOODMAN, M. A classe dirigente da Judeia: as origens da revolta judaica contra Roma, 66-70 d.C. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 35.
[14]. JOSEFO, F. História dos Hebreus, p. 579-580. Para maior conhecimento da estrutura econômica, política e social da Galileia desta época pode se ler FREYNE, S. A Galileia, Jesus e os evangelhos: enfoques literários e investigações históricas. São Paulo: Loyola, 1996, especialmente as p. 121-153.
[15]. Idem, ibidem, p. 580.
[16]. HADAS-LEBEL, M. Flávio Josefo: o judeu de Roma, p. 103-104.
[17]. Idem, ibidem, p. 104. Diz Josefo na Autobiografia: “Como eu nada mais tinha a peito do que manter a paz na Galileia…”. Cf. JOSEFO, F. História dos Hebreus, p. 480.
[18]. Idem, ibidem, p. 589.
[19]. Idem, ibidem, p. 590.
[20]. Idem, ibidem, p. 599.
[21]. Idem, ibidem, p. 599.
[22]. Idem, ibidem, p. 601.
[23]. Idem, ibidem, p. 601.
[24]. Cf. SUETÔNIO A vida dos Doze Césares. São Paulo: Martin Claret, 2010, p. 315-330. Suetônio, historiador romano, viveu de ap. 70 a 160 d.C. A vida dos Doze Césares é a mais importante de suas obras conservadas. Contém as biografias de Júlio César e de onze imperadores, de Augusto a Domiciano. Suetônio recolhe um grande número de presságios que pareciam confirmar o futuro imperial de Vespasiano. Descreve também a “predição” de Josefo: “José, um dos mais nobres cativos, no instante em que o punham a ferros, não cessou de afirmar que cedo seria libertado pelo próprio Vespasiano, mas por Vespasiano feito imperador” (p. 320).
[25]. HADAS-LEBEL, M. Flávio Josefo: um judeu de Roma, p. 144.
[26]. JOSEFO História dos Hebreus, p. 607.
Última atualização: 27.04.2019 – 12h00