Ler a Bíblia no Brasil hoje 2

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3. Para que se lê a Bíblia?

É o momento de apontar alguns desafios que o uso da Bíblia propõe. Parece haver duas tendências, hoje: uma, que faz da leitura bíblica um instrumento para incentivar a organização popular, mas não para na Bíblia e sim desemboca na vida; outra que produz uma reificação da Bíblia, conduzindo a uma espécie de “sionismo cristão”, tendo como meta a Igreja, na reestruturação de uma neocristandade.

 

3.1. Da Bíblia à sociedade: passagem para o político

No primeiro caso, a própria Bíblia pode ser ultrapassada em determinado momento da mobilização popular. Isto acontece quando são conquistados outros canais de participação política, levando a Igreja comprometida com a pastoral popular à perda da hegemonia da contestação popular.

Tal acontece porque o discurso pastoral tende a ser genérico, privilegiando uma linguagem utópica. Ele encontra sensíveis dificuldades em fazer a passagem dos princípios éticos para as propostas políticas concretas. Ele tende a fazer da política objeto de crença. E isto pode ser reforçado pelas categorias bíblicas, para dar conta das necessidades da racionalidade política moderna. Isto pode ser claramente observado no Brasil atual. Daí a urgência de uma organização política mais eficaz.

Bíblia do PeregrinoEstas dificuldades, entretanto, poderiam ser enfrentadas com o uso de instrumentos socioanalíticos válidos, tanto na leitura da Bíblia quanto na leitura da realidade social atual. Enquanto a leitura histórico-crítica ajuda a desvendar melhor o próprio texto da Bíblia, a mediação socioanalítica ajuda a compreender melhor o contexto. Donde a pertinência de uma abordagem socioantropológica, que considere categorias tais como transformação, totalidade e contradição, repito, tanto na análise da Bíblia quanto na análise da realidade.

Por que estas categorias, pertencentes ao método dialético, poderiam ser úteis? Vejamos:

. a transformação, hipótese fundamental da dialética, adverte que nada existe de fixo, estabelecido de uma vez por todas, sejam ideias, categorias, princípios ou estruturas sociais. Todos os fenômenos humanos são produtos sociais e todos têm que ser analisados em sua historicidade. Afirma-se, aqui, a radical historicidade de todas as formas de vida social, inclusive das ideologias, utopias e religiões

. a totalidade indica que, na análise de cada um dos elementos ou dimensões da realidade social, não se pode perder de vista a sua relação com o conjunto. Não se pode entender um texto, uma proposta ética ou política, sem relacioná-la com os aspectos sociais, econômicos, políticos, religiosos do momento histórico em questão

. a contradição, finalmente, supõe que existe um conflito social permanente, levando a enfrentamentos ideológicos, políticos, religiosos que, em última instância, são os confrontos entre as várias classes sociais.

Tal abordagem evitaria alguns dos mais recorrentes obstáculos hermenêuticos na leitura da Bíblia, tais como o idealismo que nega o Real, o individualismo que nega o Social, o moralismo que nega o Político e o espiritualismo que nega a História.

 

3.2. Da Bíblia à Igreja: permanência no religioso

A outra tendência absolutiza a Bíblia e se torna vítima das atrações do populismo. Como se dá isso?

Na medida em que as igrejas dão voz e vez ao povo através da intervenção da consciência crítica hierarquizada e institucionalizada, elas se legitimam em sua prática religiosa pelo processo de identificação do “povo brasileiro” com “povo de Deus”.

Esta atitude é paralela à do populismo político que explora a ideia de unidade nacional para manter o domínio das elites sobre as classes populares. Os dois jogos se completam e se amparam na relação entre o político e o religioso.

Esta atitude soteriológica tem suas regras: cada ato humano, mais ou menos político, pouco importa, é transfigurado pela leitura teológica que o insere no plano divino global de salvação do homem. De certo modo, são as igrejas recriando a sociedade brasileira mediante o filtro teológico.

Roberto Romano vê um jogo hegeliano nesta atitude: as igrejas sempre se veem como essências desenvolvidas e idênticas a si mesmas –  instituições de origem divina –  exteriorizadas historicamente no outro – o povo.

A sustentação do jogo tem o referencial simbólico da encarnação: “A Igreja [católica] se faz povo, torna-se povo com o povo, e se recolhe na afirmação universal de Si como consciência do Homem enquanto ser genérico e absoluto. Todo este movimento, que se dá na consciência de si da Igreja, aparece como se fosse produzido pela consciência de si dos homens”[12].

Neste caso, a Bíblia é usada pela hierarquia como “chave sagrada” para entrar na consciência do povo e lhe dar a medida da realidade.

As consequências políticas de tal atitude soteriológica são evidentes: modernizam-se as estruturas eclesiásticas para atingir a estrutura social eBíblia da CNBB “salvar” o povo… salvando-se o povo, salvam-se as igrejas… Assim o jogo se inverte e mostra “seu real sentido: é preciso transformar as estruturas sociais para salvar o povo, para salvar as igrejas”[13].

Márcio Moreira Alves já apontava, na década de 70 do século XX, tais limites da Igreja católica no Brasil. “A imutabilidade da cadeia de comando e a estrutura de tomada de decisões eclesiais tornam difícil, diria mesmo, improvável, o comprometimento do conjunto da instituição numa luta pela transformação radical das estruturas sociais do país, ou seja, numa luta pela construção do socialismo. A estrutura monárquica da Igreja resiste às iniciativas democráticas, tanto no plano nacional como no internacional”[14].

Márcio acrescentava que, para a Igreja católica ajudar efetivamente o regime brasileiro de dominação, ela não precisa fazer nada ativamente. Basta que repita sua posição clássica,  já que ela sempre foi um dos elementos da estrutura conservadora do país.

E o que dizer das igrejas neopentecostais, ferramentas religiosas do neoliberalismo? Confira, por exemplo, Religiosidade contemporânea: aproximações entre o neopentecostalismo e o neoliberalismo.

 

Conclusão

Gostaria de concluir estas observações com uma reflexão sobre a palavra, pois Bíblia é, antes de tudo, palavra.

Sabe-se que o termo hebraico dâbâr significa, ao mesmo tempo, “palavra” e “acontecimento”. É uma palavra que se realiza no processo concreto da vida humana: assim é entendida a Palavra que Iahweh dirige ao povo de Israel. Para o pensamento semita, portanto, a verdade da palavra está contida no próprio acontecimento e não fora, acima e antes dele.

Ora, a sociedade capitalista possui enorme habilidade para transformar discursos instituintes e históricos em discursos instituídos e competentes[15].

O mecanismo funciona da seguinte maneira: um discurso que era histórico torna-se instituído e competente, podendo ser ouvido e aceito como autorizado porque perde os laços com o lugar e o tempo de sua origem. É o discurso que funciona segundo a restrição seguinte: “Não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância”.

E isto acontece porque a divisão capitalista do trabalho burocratiza as sociedades contemporâneas e transforma os discursos por ela autorizados em discursos dissimuladores de suas relações de dominação.

Este discurso competente e autorizado – o discurso de mestre – pressupõe a incompetência e a não autoridade dos ouvintes, que não são considerados como sujeitos sociais e políticos. Mas são considerados como sujeitos individuais e pessoas privadas, revalidando, aparentemente, dessa maneira, a sua competência social usurpada.

O homem religioso relaciona-se com Deus privadamente, interiormente, intuitivamente, sentimentalmente. E tem no agente autorizado o mediador de seu discurso. Claro, o mediador, mestre do discurso, tem seu lugar aquém da referência do próprio discurso, lugar inquestionável.

Este é, a meu ver, o risco maior que tocaia a palavra bíblica hoje.

 

Bibliografia

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BENEDETTI, L. R. Templo, Praça, Coração – A articulação do campo religioso católico. São Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2000.

BOFF, C. Teologia e Prática: Teologia do Político e suas mediações. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.

CARRANZA, B. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. 2. ed. Aparecida: Santuário, 2000.

CELAM Documentos do CELAM – Conclusões das conferências do Rio de Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo. São Paulo: Paulus, 2004.

CHAUÍ, M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

DIAS DA SILVA, C. M. A Bíblia não serve só para rezar. São Paulo: Loyola, 2011.

DIAS DA SILVA, C. M. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007.

DIAS DA SILVA, C. M. com a colaboração de especialistas, Metodologia de exegese bíblica. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2009.

EGGER, W. Metodologia do Novo Testamento: introdução aos métodos linguísticos e histórico-críticos. São Paulo: Loyola, 1994.

KONINGS, J.; RIBEIRO, S. H. et al. Bíblia: Teoria e Prática. Leituras de Rute. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 98, 2008.

LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social: elementos para uma análise marxista. 19. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

MESTERS, C. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA  A interpretação da Bíblia na Igreja, 1993. Disponível online no site do Vaticano.

ROMANO, R. Brasil: Igreja contra Estado: crítica ao populismo católico. São Paulo: Kairós, 1979.

SCHNELLE, U. Introdução à exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004.

TEIXEIRA, F. A gênese das CEBs no Brasil: elementos explicativos. São Paulo: Paulinas, 1988.

VV.AA. Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

VV.AA. Traduções da Bíblia. Pistis & Praxis, Curitiba, v. 8, n. 1, 2016.

>> Bibliografia atualizada em 13,09,2020

> Este artigo foi publicado inicialmente em Cadernos do Cearp, Ribeirão Preto, n. 3, p. 23-36, 1995.

Artigos


[12]. ROMANO, R. Brasil: Igreja contra Estado: crítica ao populismo católico. São Paulo: Kairós, 1979, p. 38.

[13]. Idem, ibidem, p. 220.

[14]. ALVES, M. M. A Igreja e a Política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p. 247.

[15]. Cf. a categoria em CHAUÍ, M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 3-13.

Última atualização: 13.09.2020 – 11h57

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