Leitura popular da Bíblia no Brasil

Já faz tempo que o artigo foi escrito, uns dois anos.

Mas, para quem não tem acesso aos livros do Mesters, vale a pena ler, está online no site do CEBI: uma explicação do que é a leitura popular da Bíblia no Brasil. Faz um histórico, explica o método… Tudo muito fácil.

Também pode ser lido meu artigo: Ler a Bíblia no Brasil hoje.

 

Sobre a Leitura Popular da Bíblia no Brasil

Neste artigo abordamos a leitura popular da Bíblia que se faz nas Comunidades Eclesiais da Base da América Latina. É bom lembrar que elas são apenas uma minoria. O impacto e a irradiação da leitura feita nas Comunidades Eclesiais de Base são grandes e significativos para a vida das igrejas e para a caminhada do movimento popular.

Este artigo é como uma fotografia. Uma vez feita, ela não muda mais. Mas a pessoa fotografada continua mudando. Depois de alguns anos, ela talvez não se reconheça mais nesta fotografia que aqui apresentamos com muito respeito e carinho. O artigo reflete a nossa prática no CEBI e nas Comunidades Eclesiais da Base (CEBs). Abordamos a leitura popular feita nas comunidades. Apesar de elas serem uma minoria, é significativa a sua irradiação na vida das igrejas.

 

1a Parte

Dez Características da leitura popular

Como entrada no nosso assunto apresentamos aqui dez pontos que, de certo modo, oferecem uma visão global da leitura popular e são um resumo de tudo que vamos dizer.

1. A Bíblia é reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus. Esta fé já existia antes da chegada do que se convencionou chamar leitura popular. É nesta raiz antiga que se enxerta todo o nosso trabalho com a Bíblia junto do povo. Sem esta fé, todo o método teria de ser diferente. “Não es tu que sustentas a raiz, mas a raiz sustenta a ti” (Rm 11,18).

2. Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz consigo a sua própria história e tem nos olhos os problemas que vêm da realidade dura da sua vida. A Bíblia aparece como um espelho, “sím-bolo” (Hb 9,9; 11,19), daquilo que ele mesmo vive. Estabelece-se uma ligação profunda entre Bíblia e vida que, às vezes, pode dar a impressão de um concordismo superficial. Na realidade, é uma leitura de fé muito semelhante à que faziam as primeiras comunidades (cf. At 1,16-20; 2,29-35; 4,24-31) e os Santos Padres.

3. A partir desta ligação entre Bíblia e vida, os pobres fazem a descoberta, a maior de todas: “Se Deus esteve com aquele povo no passado, então Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar. Ele escuta também o nosso clamor!” (cf. Ex 2,24;3,7). Nasce assim, imperceptivelmente, uma nova experiência de Deus e da vida que se torna o critério mais determinante da leitura popular e que menos aparece nas suas explicitações e interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo.

4. Antes deste contato mais vivido com a Palavra de Deus, a Bíblia ficava longe da vida do povo. Era o livro dos “padres”, dos “pastores”, do clero. Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível, começou a fazer parte da vida quotidiana de crianças, mulheres e homens empobrecidos. E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou perto! “Vocês que antes estavam longe foram trazidos para perto!” (Ef 2,13) Difícil para um de nós avaliar a experiência de novidade e de gratuidade que isto representa para as pessoas empobrecidas.

5. Assim, aos poucos, foi surgindo uma nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua interpretação. Ela já não é vista como um livro estranho que pertence ao clero, mas sim como o nosso livro, “escrito para nós que tocamos o fim dos tempos” (1Cor 10,11). Às vezes, ela chega a ser o primeiro instrumento de uma análise mais crítica da realidade. Por exemplo, a respeito de uma empresa que oprime e explora o povo, o pessoal da comunidade dizia: “É o Golias que temos que enfrentar!”

6. Pouco a pouco, cresce a descoberta de que a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. A Bíblia ajuda a descobrir que a Palavra de Deus, antes de ser lida na Bíblia, já existia na vida. As comunidades descobrem que a sua caminhada é bíblica. “Na verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia” (Gn 28,16)!

7. A Bíblia entra na vida do povo não pela porta da imposição autoritária, mas sim pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz presente não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo. As pessoas que participam dos grupos bíblicos, elas mesmos se encarregam de divulgar esta Boa Notícia e atraem outras para participar. “Vinde ver um homem que me contou toda a minha vida!” (Jo 4,29).

8. Para que se produza esta ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que vêm da realidade, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com a vida do povo. Aqui aparece como é importante o/a intérprete ter convivência e experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica da realidade de hoje como no estudo do texto e do seu contexto social. c) Ter uma visão global da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras, e que esteja ligada com a situação concreta das suas vidas hoje.

9. A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente que compreende não só a contribuição intelectual do/a exegeta, mas também todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios, “enfim, tudo que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer maneira merece louvor” (Fl 4,8). Aqui aparecem a riqueza da criatividade popular e a amplidão das intuições que vão nascendo.

10. Para uma boa interpretação, é muito importante o ambiente de fé e de fraternidade, através de cantos, orações e celebrações. Sem este contexto do Espírito, não se chega a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. Pois o sentido da Bíblia não é só uma idéia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de raciocínios; é também um sentir, um conforto que é sentido com o coração, “para que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15,4).

 

2ª Parte

Um pouco de história

Tudo isso que hoje está acontecendo nas Comunidades Eclesiais de Base tem uma história vinda de longe. Muitos fatores contribuíram para que se chegasse a esse tipo de leitura da Bíblia. Destacaremos três fatores que não podem ser ignorados para se entender a atual conjuntura. Há um quarto fator que não pode ser avaliado nem verificado. Em seguida, veremos as três etapas que marcaram e continuam marcando este processo histórico da leitura popular da Bíblia.

Três etapas, três aspectos

No decorrer desses anos todos, foram aparecendo três aspectos da interpretação popular, aspectos simultâneos, misturados entre si. Ao longo dos anos, cada um deles foi tendo o seu momento privilegiado. São como que três etapas. Trata-se dos três aspectos da mesma atitude interpretativa do povo frente à Bíblia. Eles indicam os três objetivos distintos, que estão presentes e misturados, às vezes conflitantes, no uso popular da Bíblia.
Conhecer a Bíblia – Instruir

O processo de conhecer melhor a Bíblia começou já no século XIX com o trabalho renovador dos exegetas da Europa, tanto evangélicos como católicos. As novas descobertas trouxeram novos conhecimentos, abriam uma nova janela sobre o texto bíblico e sobre o contexto da sua origem.

A vontade de conhecer a Bíblia estimulou muita gente a uma leitura mais freqüente. Na igreja católica, a renovação da exegese, as encíclicas de Leão XIII, Bento XV e Pio XII, as novas traduções da Bíblia e o trabalho de divulgação dos exegetas levaram a Bíblia para mais perto do povo. Além disso, no Brasil, como já mencionamos, o que ajudou a provocar nos católicos um interesse maior pela Bíblia foi o vigor missionário das igrejas evangélicas de missão.

Foram surgindo, em todo canto, as semanas bíblicas, cursos bíblicos, escolas e escolinhas bíblicas, gincanas e maratonas bíblicas, e tantos outros movimentos e iniciativas para divulgar a Bíblia e estimular a sua leitura como, por exemplo, o assim chamado Mês da Bíblia, que foi celebrado durante mais de 25 anos e continua até hoje em muitos lugares, ou o Movimento da Boa Nova (MOBON). Este surgiu, inicialmente, como um movimento mais apologético de defesa do catolicismo contra a influência crescente das igrejas evangélicas. Atualmente, é um dos movimentos de evangelização libertadora mais difundidos que anima mais de 15.000 grupos em vários Estados do Brasil. Difícil de lembrar e enumerar todas as iniciativas que a criatividade popular inventou para divulgar a leitura e o conhecimento da Bíblia.
Criar Comunidade – Celebrar

Na medida em que a Palavra começava a ser conhecida, ela produzia os seus frutos. O primeiro fruto foi aglutinar as pessoas e criar comunidade. Semanas bíblicas populares, difusão da Bíblia em língua vernácula, cursos, encontros, treinamentos, inúmeros grupos e círculos bíblicos, mês da Bíblia, movimento da Boa Nova: tudo isto produziu um fervilhar comunitário muito grande em torno da Palavra de Deus. O movimento da renovação litúrgica fez com que se multiplicassem e se intensificassem as celebrações da Palavra.

Foram surgindo e crescendo as Comunidades Eclesiais de Base que por sua vez suscitavam, em todo canto, os círculos bíblicos, grupos de reflexão, grupos de evangelho, grupos de oração. No começo dos anos 70, temos a iniciativa dos Encontros Intereclesiais das Comunidades de Base, que foram acontecendo periodicamente e que no ano 2000 celebraram o décimo Intereclesial em Porto Seguro, Bahia, por ocasião da comemoração dos 500 anos da vinda dos europeus para o Continente Latino Americano. A dimensão comunitária chegou a renovar várias paróquias que passaram a se organizar como uma comunidade de comunidades.

Aqui convém chamar mencionar o fenômeno intrigante da evasão em massa dos fiéis das igrejas tradicionais para as igrejas pentecostais, que tem a ver com a mudança socioeconômica havida nos últimos 50 anos. Na metade do século XX, em torno de 75% da população brasileira vivia no campo, área rural. A industrialização e o êxodo rural produziu um mudança radical. No censo de 2001, 82% da população vive na cidade e somente 18% no campo. Ora, o que antes parecia impossível, hoje tornou-se um fato normal: antes, a autoridade moral maior que, no Brasil, norteava as consciências era a Igreja Católica. Nas pequenas cidades do interior, o vigário exercia um poder sagrado muito forte. Dificilmente, o povo tinha coragem de enfrentar ou de romper com este sistema secular. Hoje, em nome de uma experiência comunitária nos grupos pentecostais das periferias das grandes cidades, milhões de brasileiros rompem com aquela que antes era a maior autoridade moral. Por mais contraditório e ambivalente que possa parecer este fato, ele não deixa de ter um aspecto positivo: em nome da Palavra de Deus e de um encontro com Jesus, o povo tem coragem de romper e de entrar por caminhos novos que talvez não sejam novos, mas que são diferentes e têm uma dimensão comunitária muito profunda.
Servir ao povo – Transformar

Sobretudo a partir de 1968, foi dado um passo a mais. O conhecimento da Bíblia e a preocupação comunitária encontraram o seu objetivo que é o serviço ao povo. Não tendo dinheiro nem tempo para ler os livros sobre a Bíblia, os pobres nas suas comunidades e nos círculos bíblicos começaram a ler a Bíblia a partir do único critério de que dispunham, a saber, a sua vida de fé, vivida em comunidade, e a sua vida sofrida de povo oprimido. Lendo assim a Bíblia, descobriam o óbvio que não conheciam: uma história de opressão igual à que eles mesmos sofriam, uma história de luta pelos mesmos valores que eles perseguem até hoje: terra, justiça, partilha, fraternidade, vida de gente. O resultado desta prática libertadora foi explicitado na Teologia da Libertação que tenta sistematizar a vivência nova que está ocorrendo nas comunidades.

É o período em que começa a ser acentuada a dimensão política da fé. Na Igreja Católica, desde o Concílio Vaticano II e sobretudo desde a conferência episcopal de Medellin (1968), ocorreu uma evolução importante. Diante da situação dramática dos índios, criou-se o CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Diante da situação cada vez pior dos agricultores, criou-se a CPT (Comissão Pastoral da Terra). Diante da situação dos operários, criou-se a CPO (Comissão Pastoral dos Operários). Diante da situação dos pescadores, criou-se a CPP (Comissão Pastoral dos Pescadores).

São instrumentos novos de pastoral que ajudam estas classes e grupos de pessoas a defenderem melhor sua vida, sua terra, seus direitos, sua identidade. Eles têm em comum o seguinte: surgiram por causa da fé renovada em Jesus e, como Jesus, defendem a vida, são ecumênicos, incomodam a sociedade estabelecida, provocam polêmica. Tudo isto revela a evolução que está ocorrendo na consciência que as igrejas têm de si mesmas e da sua missão: lutar pela defesa da vida ameaçada do povo. É neste mesmo período dos anos 70 que surge o CEBI, o Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos para a Pastoral Popular que tem como objetivo articular, explicitar, aprofundar, divulgar e legitimar a leitura da Bíblia que o povo vinha fazendo nas suas comunidades.

Aqui devem ser lembrados os mártires, os testemunhos da fé, essa “nuvem de testemunhas ao nosso redor” (Hb 12,1), que deram a sua vida pela causa da liberdade, da justiça e da fraternidade. Assim como o autor da carta aos hebreus faz a memória dos testemunhos da fé (Hb 11,1-40), a Agenda Latino Americana, cada ano de novo, faz a memória dos milhares e milhares de mártires latino-americanos, homens e mulheres, leigos e religiosos, conhecidos e anônimos, que imitaram a Jesus que disse:

“Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”(Jo 10,10).

Fonte: CEBI – Carlos Mesters e Francisco Orofino.

Hans Küng: fazer uma Teologia aberta

Ética Mundial, religiões e origem da vida. Hans Küng no RS

…Essa reportagem pretende resgatar algumas das ideias abordadas por Küng nas conferências proferidas no Rio Grande do Sul na sua recente visita nos dias 22 e 23 de outubro passados (…) Fazer uma Teologia aberta. Eis o convite deixado por Hans Küng aos teólogos e teólogas do Rio Grande do Sul, com os quais se encontrou na última segunda-feira (…). “Não precisamos ter medo de que a Teologia não seja relevante”, disse o teólogo fechando sua conferência. E acrescentou: “a Teologia quando não tem fundamento se torna arbitrária; caso se atenha ao ‘certo’ se torna tediosa. Ela deve estar aberta ao diálogo com ateus, agnósticos, representantes das outras religiões e em diálogo com as ciências da natureza” …

Fonte: IHU – 25/10/2007

Paulo Soethe fala sobre Hans Küng

Um grande futuro para o Projeto de Ética Mundial no Brasil. Uma entrevista com Paulo Soethe

O professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Soethe, foi o incentivador maior da visita de Hans Küng ao Brasil. Desde a chegada do teólogo em Porto Alegre, Soethe o acompanha sempre com serenidade, respeito e admiração, auxiliando na tradução do alemão e português e fazendo a apresentação do professor em todos os lugares onde Küng tem visita agendada. Ao término da conferência do teólogo no Instituto Goethe, em Porto Alegre, na manhã da última terça-feira, dia 23 de outubro, Paulo Soethe falou rapidamente à IHU On-Line sobre a importância da presença de Hans Küng no Brasil e sobre sua relação com este importante teólogo. Graduado em Letras Alemão-Português pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), o Prof. Dr. Paulo Soethe cursou pós-doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha.

Leia a entrevista.

Fonte: IHU – 25/10/2007.

Hans Küng na Câmara dos Deputados

Teólogo suíço explica princípios da ética global

O teólogo suíço Hans Küng explicou há pouco que a ética global se baseia em dois princípios fundamentais: a reciprocidade e a humanidade. Segundo ele, a reciprocidade já estava presente na regra de ouro de Confúcio, 500 anos a.C.: não faça ao outro o que não quer que façam a si mesmo. A humanidade também estava presente nas religiões chinesas e prega que cada ser deve ser tratado como especial.

A base desses princípios, explicou Küng, são quatro imperativos básicos (que também estariam presentes no budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo):
1. não mentir, principalmente nas grandes mentiras que tem consequências sociais;
2. não matar, principalmente em relação a genocídios em massa;
3. não roubar, aplica-se, principalmente, a grandes centros financeiros que causam prejuízos a milhões de pessoas;
4. respeitar a igualdade entre homens e mulheres. Segundo Kung, por tratar da sexualidade, esse é o principal problema para as religiões.

Na opinião do teólogo suíço, para que esses princípios se realizem é necessário uma vontade ética. Por isso, é tão importante o papel das religiões que devem motivar as pessoas a desenvolver esses comportamentos.

Hans Küng participa de audiência pública promovida pelas comissões de Direitos Humanos e Minorias; e de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, e pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar no plenário 9.

Fonte: Agência Câmara – 25/10/2007 – 11h16