Portinari: Guerra e Paz no século XXI

No Blog do Emir Sader, O povo, a guerra e a paz de Portinari, postado em 11/09/2007 às 10h30.

Uma oportuna reflexão sobre a guerra e a paz a partir dos painéis de Portinari, o pintor de Brodowski, no Conselho de Segurança da ONU (United Nations Security Council – UNSC), em Nova York.

 

Neste ano, cumprem-se 40 anos da inauguração dos painéis Guerra e Paz, de Candido Portinari, no prédio da ONU, em Nova York. Quadros que não puderam ser Guerra e Paz de Candido Portinari inaugurados pelo pintor brasileiro, que teve sua entrada nos EUA impedida por negação de visto de parte do governo estadunidense, sob acusação de comunista. Até hoje os quadros estão no Conselho de Segurança, sem identificação, a ponto que os guias não sabem indicar aos visitantes a autoria dos painéis. Este ano está prevista uma cerimônia que inaugure uma das obras primas do maior pintor brasileiro, 50 anos depois.

Este artigo celebra os quadros, mais do que atuais, de Portinari.

O POVO, A GUERRA E A PAZ DE PORTINARI

Desde que Portinari pensou na ideia dos painéis de guerra e paz, muitos canhões dispararam, muitos acordos de paz foram obtidos. Mas o que aconteceu com esses dois temas cruciais que têm cruzado toda a história da humanidade, desde então?

Quando pintava os painéis, Portinari pode conhecer o que seria o pós-guerra, depois daquela que foi praticamente uma única guerra interimperialista de 1914 a 1945. Chegada a paz, que mundo seria aquele?

Em 1967 o Che se referia a esse período:

“Já se cumpriram vinte e um anos desde o fim da última conflagração mundial e diversas publicações, em infinidade de idiomas, celebram o acontecimento simbolizado pela derrota do Japão. Há um clima de aparente otimismo em muitos setores dos distintos campos em que o campo se divide.

Vinte e um anos sem guerra mundial, nestes tempos de confrontações máximas, de choques violentos e mudanças repentinas, parecem uma cifra muito alta. Mas, sem analisar os resultados práticos dessa paz pela que todos nos manifestamos dispostos a lutar (a miséria, a degradação, a exploração cada vez maior de enormes setores do mundo) é preciso perguntar-nos se ela é real.

Enquanto Portinari escolhia o tema dos seus painéis e começava a ideá-los, segundo o Che:

Na Coreia, depois de anos de luta feroz, a parte norte do país ficou submetida à mais horrível devastação que figure nos anais da guerra moderna; devastada por bombas; sem fábricas, escolas ou hospitais; sem nenhum tipo de casa para abrigar a dez milhões de habitantes.

No outro lado, o exército e o povo da Coreia e os voluntários da República Popular da China contaram com o abastecimento e a assessoria do aparato militar soviético. Por parte dos estadunidenses foram feitos todos os tipos de provas de armas de destruição, excluindo as termonucleares, mas incluindo as bacteriológicas e as químicas, em escala limitada. No Vietnã, se sucederam ações bélicas, sustentadas pelas forças patrióticas desse país quase ininterruptamente contra três potências imperialistas: o Japão, cujo poderio havia sofrido uma queda vertical a partir das bombas de Hiroshima e Nagasaki; a França, que recupera daquele país vencido suas colônias indochinesas e ignorava as promessas feitas em momentos difíceis; e os EUA, nesta última fase da luta.

E concluía o Che:

Tudo parece indicar que a paz, essa paz precária a que se deu esse nome, só porque não se produziu nenhuma conflagração de caráter mundial, está outra vez em perigo de ser rompida diante de qualquer passo irreversível e inaceitável, dado pelos estadunidenses.

Os tempos de paz depois de 1945 representaram que os acordos de Yalta inviabilizavam as guerras nos países do centro do sistema EUA, Europa, Japão. Estas continuavam a ser protagonizadas pelas grandes potências imperiais, mas passavam a ter seus cenários na periferia do sistema: Ásia, África, América Latina, para os quais os tempos foram de guerra mais do que nunca.

Ficam claras, nesse cenário, as razões que levaram Portinari a – convidado, em 1950, a fazer os painéis -, tivesse escolhido o tema da guerra e da paz. Consciente politicamente do período que a humanidade passava a enfrentar, apesar do fim do conflito mundial, um ano antes, ele escrevia:

…A luta pela paz é uma decisiva e urgente tarefa. É uma campanha de esclarecimento e de alerta que exige determinação e coragem. Devemos organizar a luta pela Paz, ampliar cada vez mais a nossa frente antiguerra, para ela todos os homens de boa vontade, sem distinção de crenças ou de raças, para assim, unidos os povos do mundo inteiro, não somente com palavras mas com ações, levarem até a vitória final a grande causa da Paz, da Cultura, do Progresso e da Fraternidade dos Povos…

Vítima, ele também, entre outros, da repressão advinda dos inícios da guerra fria – quando os partidos comunistas foram ilegalizados, conforme a linha ditada por Washington -, Portinari buscou, em 1948, refúgio no Uruguai. Não faltava a Portinari a consciência do vínculo entre seu destino individual e os maiores enfrentamentos do novo período histórico, que fazia enfrentar a paz e a guerra.

O trabalho dos painéis inicia em 1952 e é concluído em 1956. Terminada a guerra da Coreia, a dialética entre a guerra e a paz ganha novas formas. A sensibilidade genial de Portinari e sua profunda compreensão histórica faz com que ele não pinte a guerra ou a paz. Sabe que em tempos imperiais, uma e outra estão permanentemente em tensão e em conflito. Que a paz é uma conquista sobre as dinâmicas belicistas das potências imperiais, que fazem da guerra suas tentativas de impor seus interesses, violando permanentemente a paz.

O historiador britânico Eric Hobsbawn, depois de analisar as guerras no século XXI, se arrisca a prever:

…no século XXI, a guerra não será tão sangrenta como foi no século XX, mas a violência armada, que dará lugar a um grau de sofrimento e umas perdas desproporcionais, continuará onipresente e será um mal endêmico e epidêmico por momentos, em grande parte do mundo. Fica longe a ideia de um século de paz.

Assim, os painéis de guerra e paz de Portinari continuam dramaticamente atuais no século XXI. Não apenas seus riscos, mas principalmente as caras, as expressões humanas dos seus indizíveis sofrimentos de mulheres chorando, com filhos mortos, ajoelhadas diante dos seus corpos. As caras do povo vítima da guerra e sujeito da paz -, que ninguém soube retratar melhor do que Portinari – o pintor da guerra e da paz, o pintor do povo.