Deuteronomista

O contexto da Obra Histórica Deuteronomista

 

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Königsberg, Alemanha, 1943: nesta ocasião, Martin Noth propõe, pela primeira vez, que os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam uma coletânea (Sammelwerk) de tradições, que deverá ser chamada de historiografia deuteronomista. Nome que lhe é atribuído por sua grande semelhança com as leis e os discursos exortativos do Deuteronômio. Livro este, que, por sua vez, em seus discursos iniciais, cumpre a função de introdução à coletânea. Para Noth, a OHDtr (= Obra Histórica Deuteronomista) teria sido redigida por um só autor, possivelmente na Palestina do século VI a.C., com o objetivo de explicar o fim do reino de Judá e o exílio babilônico então em curso como fruto da apostasia do povo1.

Hoje, mais de 70 anos após a “invenção” de Noth, dezenas de hipóteses sobre a OHDtr, espalhadas em milhares de estudos, são propostas pelos especialistas, destacando-se, entre elas, duas correntes: a de Cross e a de Smend.

Frank Moore Cross, em um artigo de 1968, reeditado em 1973, propõe duas edições da OHDtr: a primeira, elaborada na época de Josias (640-609 a.C.), é um escrito otimista que dá suporte e celebra a reforma político-religiosa deste rei de Jerusalém; a segunda, escrita durante o exílio, é marcada pela experiência da catástrofe de 586 a.C. e transforma o anterior escrito de propaganda em explicação teológica das causas da desgraça que atingiu Jerusalém e Judá. Seus discípulos R. D. Nelson e R. E. Friedman, além de muitos outros pesquisadores, seguem-no de perto2.

Saindo de Harvard, nos Estados Unidos, para Göttingen, na Alemanha, encontramos a hipótese de Rudolf Smend, feita em 1971 e retomada em 1978, e de seus discípulos W. Dietrich e T. Veijola. Eles propõem três redações para a OHDtr, todas escritas no tempo do exílio. Para Smend, à semelhança de M. Noth, o objetivo da OHDtr seria o de explicar a catástrofe do exílio. Muitos pesquisadores, sobretudo nos países de língua alemã, aderiram às suas explicações3.

É evidente que a maior parte das questões sobre a OHDtr ainda não foram satisfatoriamente respondidas. Como, por exemplo: quem escreveu esta obra? Quando? Quantas modificações sofreu? Onde começa? Qual o seu objetivo? E até: existe mesmo uma OHDtr? Também: não estaríamos atribuindo ao “deuteronomista” muitas coisas sobre as quais não conhecemos a origem? Existe, de fato, um “pandeuteronomismo”? Uma “invasão” de teologia deuteronomista em vários livros bíblicos, como muitos sugerem, é aceitável?

A proposta deste artigo é apontar, apesar de todas estas questões, o contexto em que a OHDtr foi escrita. Esta tentativa talvez suscite mais questões do que ofereça respostas. Entretanto, um bom ponto para começarmos a pensar a situação é o seguinte: do século XII a.C. (época da chegada dos “Povos do Mar”) até 745 a.C. (época do rei assírio Tiglat-Pileser III), quase nenhuma interferência duradoura de grandes impérios pode ser detectada na região de Canaã, permitindo aos povos da região uma relativa estabilidade e a construção de sua independência4. Mas a partir de 745 a.C…. Assim começaremos a delinear nosso contexto a partir da metade do século VIII a.C.

 

1. Israel é destruído pela Assíria

A Assíria parecia inerte, até que, em 745 a.C.,  subiu ao trono Tiglat-Pileser III (= Teglat-Falasar III), aquele que iria tornar-se um dos maiores reis da Assíria, o verdadeiro fundador de seu império. Desde sua ascensão, Tiglat-Pileser III empreendeu uma série de operações militares. Depois de garantir sua retaguarda e as grandes vias de comunicação com o Irã e o Golfo Pérsico, os exércitos assírios tomaram o caminho do sul. As conquistas de Tiglat-Pileser III são mal documentadas, mas sabe-se que de 743 a 738 a.C. ele desbaratou a coalizão siro-urártia e se impôs aos dinastas aramaicos.

O sucesso da expansão imperialista assíria nesta época se explica, pelo menos em parte, pela agressiva política de Tiglat-Pileser III, que não se limitava apenas a recolher tributos, como seus antecessores, Tiglat-Pileser III (745-727 a.C.)mas submetia permanentemente os territórios conquistados. As rebeliões eram punidas com invasão, destruição, deportação e incorporação do território ao império assírio.

Ou seja, com Tiglat-Pileser III a guerra converteu-se em guerra de conquista: o território ocupado era incluído nos limites da terra de Assur e dividido em províncias dirigidas por governadores (bel pihati) que dispunham de guarnições permanentes. As tropas assírias estavam, portanto, sempre a postos para sufocar as dissidências e empreender novas operações. Por outro lado, o rei deportou numerosas populações para regiões distantes, a fim de separá-las de seu meio natural e impedir quaisquer veleidades de rebelião. Isto criou um amálgama de populações de diferentes origens e culturas, submetidas, entretanto, a uma única jurisdição, pois Tiglat-Pileser III computou-as entre os habitantes da terra de Assur, obrigando-as, como tais, às mesmas contribuições e corveias. Em todo o império praticou-se essa política de conquista e assimilação. Liverani calcula que esta prática assíria de “deportação cruzada” de populações, envolveu, ao longo de três séculos, algo como 4 milhões e meio de pessoas. Quebrava-se, deste modo, a resistência política e se preservava a economia local5.

E esta política envolveu Israel, quando grande instabilidade tomou conta do reino nos seus últimos 30 anos, pois de 753 a 722 a.C. seis reis se sucederam no trono de Samaria, abalado por as­sassinatos e golpes sangrentos. Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Me­nahem, Pecah e Oseias) e 4 assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah). Como estaremos lidando com mais de uma dezena de nomes, um quadro cronológico dos reis de Israel pode ser útil aqui6.

NomeDataDuração
Jeroboão I931-910/9 a.C.21 anos
Nadab910-9092 anos
Baasa909/8-88622 anos
Ela886/5-8852 anos
Zimri885/47 dias
Omri885/4-87411 anos
Acab874/3-85321 anos
Ocozias853-8522 anos
Jorão852-84111 anos
Jeú841-81328 anos
Joacaz813-79716 anos
Joás797-78215 anos
Jeroboão II782/1-75329 anos
Zacarias7536 meses
Salum753/21 mês
Menahem753/2-74211 anos
Pecahia742/1-7402 anos
Pecah740/39-7319 anos
Oseias731-7229 anos

Em 738 a.C. Tiglat-Pileser III já submetera grande parte da Síria e da Fenícia e Israel começou a pagar-lhe tributo quando governava Menahem (2Rs 15,19-20). Contudo, grupos anti-assírios assassinaram Pecahia, filho e sucessor de Menahem, e Pecah, o golpista que subiu ao poder, associou-se a Rason, rei de Damasco, para enfrentar a interferência assíria na região. Desta campanha deveria participar Acaz, rei de Jerusalém, que ao se recusar, teve seu governo ameaçado com uma invasão de Judá por Pecah e Rason (Is 7,1-17; 2Rs 16,5-18). Acreditando não poder se defender sozinho, Acaz, para desgosto do profeta Isaías que o aconselhava, chamou em seu socorro o rei assírio Tiglat-Pileser III, dando-lhe, assim, a oportunidade de que necessitava para ampliar o seu poder na região siro-palestina.

Tiglat-Pileser III destruiu e incorporou ao seu território a Síria e destruiu boa parte do território de Israel a partir de 734 a.C., além de conseguir o assassinato de Pecah e sua substituição por Oseias, um rei submisso à Assíria. Samaria não foi, desta vez, anexada nem destruída, mas, sobre o território restante os assírios constituíram as províncias de Dor (na costa), Meguido (Galileia) e Galaad (Transjordânia). Embora a lista detalhada dos israelitas deportados esteja corrompida nos anais de Tiglat-Pileser III, tanto Liverani quanto Finkelstein/Silberman consideram razoável o número total de 13.520 pessoas. A destruição dos territórios é arqueologicamente documentada em Hasor, Dan, Tel Kinneret, Bet-shean e outras localidades7.

Entretanto, isso não era tudo. Israel só se submetera à Assíria porque não tinha outra opção. Quando Tiglat-Pileser III foi sucedido por Salmanasar V (727/6-722 a.C.), Oseias pensou ser o momento adequado para a revolta. Negou o pagamento do tributo à Assíria e aliou-se ao Egito. Foi um suicídio. O Egito estava todo dividido e muito fraco. Não veio a ajuda esperada. Salmanasar V atacou, prendeu o rei, ocupou o país e cercou Samaria em 724 a.C. (2Rs 17,3-6).

Samaria caiu em 722 a.C. e o irmão de Salmanasar V, Sargão II (721-705 a.C.), foi quem se en­carregou daSargão II (721-705 a.C.) deportação e substituição da população israelita por outros povos que fo­ram ali instalados. A destruição de Samaria pela Assíria é bem documentada pela arqueologia. Segundo os anais de Sargão II, o número de deportados samaritanos foi de 27.290 pessoas8.

Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman, explicam, por outro lado, que a interpretação bíblica do trágico destino de Israel é muito mais teológica do que histórica: segundo a OHDtr, a devastação de Israel pelos exércitos estrangeiros fazia parte de um preciso plano divino, que puniu o povo e seus líderes por sua recusa do culto a Iahweh no Templo de Jerusalém e por sua adesão a outros deuses (2Rs 17,7-41). Mas a arqueologia traz uma perspectiva diferente: Israel foi invadido pelos assírios por ter sido um reino bem sucedido que, vivendo à sombra do grande império, suscitou sua cobiça. A Assíria ambicionava a região siro-palestina basicamente por causa de seus recursos naturais, do controle do comércio do Mediterrâneo e, não por último, por causa do Egito, ferrenho adversário dos impérios da Mesopotâmia na luta pela hegemonia geopolítica do Antigo Oriente Médio9.

 

2. Judá na época de Ezequias: reforma e invasão assíria

Pode ser útil observar, neste ponto, um quadro cronológico dos reis de Judá.

NomeDataDuração
Roboão931-914 a.C17 anos
Abian914-9123 anos
Asa912-87141 anos
Josafá871/0-84823 anos
Jorão848-8417 anos
Ocozias8411 ano
Atalia841-8356 anos
Joás835-79640 anos
Amasias796-76729 anos
Ozias767-73928 anos
Joatão739-7345 anos
Acaz734/3-71618 anos
Ezequias716/15-699/817 anos
Manassés698-643/255 anos
Amon643/2-6402 anos
Josias640-60931 anos
Joacaz6093 meses
Joaquim609-59811 anos
Joaquin598/73 meses
Sedecias597-58611 anos

Judá teve a proteção assíria, mas perdeu sua independência. Acaz acabou vassalo da Assíria, pagando-lhe tributo e rendendo homenagem aos deuses assírios. A esperança reapareceu com seu filho Ezequias. Associado ao trono desde criança, em 728/7 a.C., ao ser coroado em 716/15 a.C. este rei começou uma reforma no país para tentar debelar a crise.

Um dos alvos da reforma teria sido a ruptura com práticas cultuais não-javistas dos agricultores. Entre outras coisas, teria abolido os lugares altos (bâmôt), quebrado as estelas (matsêbôt), cortado o poste sagrado (‘asherâh). Até mesmo do Templo de Jerusalém Ezequias teria retirado símbolos dos cultos da fertilidade, como uma serpente de bronze. É o que nos conta 2Rs 18,4, embora aqui a OHDtr tente apresentar uma justificativa para a presença desta serpente de bronze no Templo (“que Moisés havia feito, pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso” – cf. Nm 21,8-9).

Entretanto, há autores, como Finkelstein/Silberman e Liverani, que apresentam uma perspectiva um pouco diferente: a “reforma” de Ezequias não teria sido a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos. A reforma sinaliza na direção da transformação de Iahweh de Deus nacional, convivendo com os deuses regionais, em Deus exclusivo10.

A destruição de Samaria levou refugiados de Israel para Jerusalém, pois novas estruturas foram construídas, como bairros novos, ampliação de muralhas e o túnel que levava as águas da fonte Gihon para o reservatório de Siloé. Sobre este último feito testemunham 2Rs 20,20 e a Inscrição de Siloé, que celebra o encontro das duas turmas de escavadores11.

O fato é que Jerusalém superou seu antigo isolamento e, ancorada na política assíria, cresceu de 5 para 60 hectares e de cerca de 1000 para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII a.C., podem ser contados cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. A fortaleza de Laquis, na Shefelá, se desenvolveu extraordinariamente. Outros fortalezas foram construídas na mesma região. Surge portanto, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado. Todas estas mudanças trazem consigo o fenômeno do profetismo, bem mais antigo no reino de Israel, mas só a partir deste momento tomando forma bem definida em Jerusalém, com Isaías (Is 1-39) e Miqueias, duas vozes formidáveis em defesa do javismo12.

Enquanto isso, na Assíria, Senaquerib subiu ao trono em 705 a.C. e imediatamente teve que enfren­tar Senaquerib (705-681 a.C.)nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do oeste então se levantaram. Acredi­tavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias; Ascalon e Ekron, com algumas ci­dades filisteias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos líderes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se cuidadosamente para esperar a Assí­ria. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701 a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab, Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib. Somente Ascalon e Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.

Testemunhos arqueológicos da devastação foram encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Laquis encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive – hoje está no British Museum – e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade do reino e protegia a entrada de Judá13.

Entretanto, por motivos ainda hoje desconhecidos, talvez uma peste, Senaquerib levantou o cerco de Jerusalém e retornou à Assíria. A cidade voltou a respirar, no último minuto, mas teve que pagar forte tributo aos assírios. Não se sabe porque Jerusalém se salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaquerib foram ataca­dos por ratos (peste bubônica?). Talvez Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. Ou ainda: há autores que pensam que Jerusalém nem precisou ser sitiada para ser vencida. Nos Anais de Senaquerib se diz o seguinte: “Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (…) Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola…”.

Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na Pa­lestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo: “Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade se­nhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, an­timônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão”14.

Informação que concorda, em geral, com a de 2Rs 18,13-16: “No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, subiu contra todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: ‘Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres’. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talen­tos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iahweh, que… rei de Judá, havia revestido de metal, e o entregou ao rei da Assíria”.

Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a “maldade” de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.

Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) – as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época – e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza. Entretanto, o filho de Manassés, Amon, ao sucedê-lo, foi assassinado, certamente por grupos prejudicados com o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas oito anos, é declarado rei de Judá15.

 

3. A reforma de Josias

A Assíria estava nos seus estertores finais, enfrentando uma violência proveniente de vários pontos do império. Povos dominados e oprimidos pela extrema violência e crueldade assírias levantaram as cabeças. Principalmente os babilônios e os medos, artífices da derrocada definitiva da Assíria, entre 626 e 609 a.C. Foi um momento bom para Judá. Sob a influência de um forte espírito nacionalista, o rei Josias deu início a uma ampla reforma, descrita em pormenores em 2Rs 22,3-23,25 como o obra mestra deste rei. Parece que a reforma começou aí pelo ano de 629 a.C., décimo segundo do reinado de Josias, que contaria então com 20 anos de idade.

Do Templo de Jerusalém foi recuperado um código de leis, “o livro da Lei” (sêfer hattôrâh), como se lê em 2Rs 22,8. Ao ser promulgado por Josias em 622 a.C. como lei oficial do reino de Judá, este “livro da Aliança” (2Rs 23,2) deu vida à reforma, mostrando que era preciso reviver as antigas tradições mosaicas, pois só elas valiam a pena. “Todo o povo aderiu à Aliança”, diz 2Rs 23,3.

Aproveitando a fraqueza assíria, Josias ocupou algumas partes do antigo reino de Israel, aumentando seus tributos e melhorando suas defesas. Houve uma limpeza geral no país: cultos e práticas estrangeiras, introduzidos em Judá sob a influência assíria, foram eliminados. A magia e os vários modos de adivinhação, banidos. Santuários do antigo reino de Israel, considerados idólatras, arrasados, com especial destaque, no texto de 2Rs 23,4-20, para a destruição do santuário de Betel.

Mas esta é uma reconstrução fundada na OHDtr. Até que ponto ela é confiável? O que fez Josias e que chamamos hoje de “reforma”?

Apesar de algumas sugestões mais antigas de Padres da Igreja, sabemos que foi o alemão W. M. L. de Wette quem, em 1805, sugeriu que o “livro da Lei”, que impulsionou a reforma de Josias, deveria corresponder ao Deuteronômio, ou, pelo menos, a uma forma mais primitiva deste livro. Mas, mais importante ainda foi a sua conclusão de que este Deuteronômio original foi composto na época de Josias, guardado no Templo e, em seguida, utilizado como documento de propaganda para a reforma deste rei. Além disso, De Wette dividiu o Pentateuco em Tetrateuco e Deuteronômio, considerando este último como o livro mais recente deste conjunto e chamando a atenção para seu parentesco com o livro de Josué16.

De lá para cá esta tem sido a opinião dominante sobre a identidade do “livro da Lei”, embora não exista acordo entre os especialistas sobre a data do escrito original, sobre a identidade de seus autores e nem sobre o número de reedições pelas quais o livro do Deuteronômio passou. Alguns defendem sua origem em Israel, antes da queda de Samaria, nos meios levítico-proféticos, outros sua primeira redação por refugiados (levitas?) do reino do norte vindos para Jerusalém na época de Ezequias, outros, ainda, sua escrita na época de Josias por escribas reais… Só existe relativo consenso quanto ao seu conteúdo: o Deuteronômio original compreenderia os capítulos 12,1-26,15 – um código de leis – ornamentados por uma introdução, os atuais capítulos 4,44-11,32, e uma conclusão, os capítulos 26,16-28,68.

Uma citação de Richard H. Lowery nos dá bem a dimensão do problema: “A procura pelos profissionais da teologia deuteronômica é tão confusa quanto a busca de uma motivação para a reforma de Josias. É certamente estranha uma literatura que leva seus leitores críticos a concluir que é antimonárquica e pró-monárquica, de origem setentrional e meridional, produto de levitas rurais, sacerdotes de Jerusalém, escribas reais, emigrados recentes, pessoas próximas da corte, mestres sapienciais e círculos proféticos. Todas essas propostas foram apresentadas, no entanto, porque cada uma delas tem certa justificação na literatura. Um exame melhor da reforma de Josias estabelece o contexto para classificar algumas dessas características contraditórias da teologia deuteronômica”17.

Quanto à época e finalidade da obra, Finkelstein/Silberman, por exemplo, colocam tanto o Pentateuco quanto a OHDtr na época de Josias. Na Introdução de seu livro de 2001, nas páginas 15-41, sob o título A Arqueologia e a Bíblia, após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia oferece hoje evidência suficiente para que se sustente uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século VII a.C.

E dizem: “Dessa forma, direcionaremos o foco para Judá, no final do século VIII e no século VII a.C., quando esse processo literário começou de verdade, e discutiremos que muito do Pentateuco é criação tardia do final do período monárquico, defendendo a ideologia e as necessidades do reino de Judá e, como tal, intimamente relacionado à história deuteronomista. E nos alinharemos com os estudiosos que argumentam que a história deuteronomista foi compilada, em sua parte principal, na época do rei Josias, com a intenção de prover validação ideológica para ambições políticas específicas e reformas religiosas”18.

Também Liverani é de opinião que “chama a atenção o estratagema da descoberta de um manuscrito ‘antigo’ para dar o aval da autoridade tradicional àquela que deveria ser, no entanto, um reforma inovadora”. Mas, para ele, o mais importante é constatar que a reforma acontece justamente quando a autoridade assíria na região está em decadência, pois o que Josias percebeu foi a oportunidade de substituir “uma dependência e fidelidade ao senhor terreno, o imperador, por uma dependência e fidelidade ao senhor divino, Iahweh”19.

Seguindo esta linha de raciocínio, Liverani considera que a centralização do culto em Jerusalém e a ortodoxia javista da reforma pode até ser o seu conceito mais “operacional”, mas o mais importante é o estabelecimento de uma relação de “aliança” entre Iahweh e seu “povo eleito”, fundando-a na Lei de Moisés. É que esta teologia adquire, neste momento, grande importância política. Através da ideia de uma libertação do Egito – embora esta seja, nas palavras do autor, uma memória “deformada pela interpretação migratória” – e do pleno controle sobre o território de Canaã, projeta-se o futuro do país: o mesmo Deus que os livrara da escravidão egípcia os livrará agora de qualquer outra escravidão, seja a egípcia que novamente os ameaça, seja a assíria, duradoura, mas, neste momento, em crise20.

Na mesma direção de elemento legitimador da reforma vai a afirmação sobre a celebração da Páscoa em 2Rs 23,21-22. Mas, quanto ao restante, há muitas incertezas: a arqueologia não tem dados sobre uma reforma do antigo Templo (dito “salomônico”), até hoje inacessível, nem sobre a extensão do território de Israel que teria sido anexado, sendo improvável que o controle de Jerusalém passasse muito ao norte de Betel. Nem mesmo o templo de Betel foi encontrado, as estatuetas da deusa da fertilidade Asherá foram achadas em grande quantidade nas residências… embora os sinetes da época não contenham mais figuras divinas astrais, como antes! Por outro lado, os sinais da expansão territorial de Judá sob Josias são visíveis, a população aumentou, fortalezas, como Laquis, foram restauradas. Talvez Josias tenha conseguido um território semelhante ao de Manassés, embora com outras características.

Ainda sobre as incertezas que cercam a reforma de Josias, não se pode esquecer o profeta Jeremias, que vivia em Jerusalém na época de Josias e que, segundo aparece em seu livro, embora opinasse sobre os acontecimentos políticos e as práticas religiosas de maneira veemente, aparentemente não deixou uma palavra sequer sobre a reforma de Josias, por mais que os comentaristas se esforcem em encontrar a sua avaliação sobre o que teria sido o fato mais importante de sua época21.

Apesar de tudo isto, calculam Finkelstein/Silberman que a população de Judá não tenha ultrapassado os 75 mil habitantes, “com ocupação relativamente densa nas zonas rurais das áreas montanhosas judaicas, com uma rede de assentamentos nas regiões áridas ao leste e ao sul e com um povoamento consideravelmente esparso na Shefelá. De muitas maneiras, era um Estado denso sob o aspecto dos assentamentos, e a capital detinha cerca de 20 por cento da população. A vida urbana em Jerusalém atingiu um pico que só seria igualado no período romano (…) Em termos de seu desenvolvimento religioso e da expressão literária de sua identidade, a era de Josias marcou novo estágio significativo na história de Judá”22.

Contudo, a situação se complicou. É que em 612 a.C. a Assíria teve seu império assaltado e sua capital destruída pelos medos e babilônios. Seu rei fugiu para Harã e resistiu ainda dois anos. Diz a Crônica Babilônica: “No décimo sexto ano de Nabopolassar, no mês de ayyar, o rei da Babilônia mobilizou suas tropas e marchou contra a Assíria (…) No mês de arahsammu os medos vieram em auxílio do rei da Babilônia; eles uniram suas tropas e marcharam para Harã contra Assur-ubalit, que se tinha assentado no trono da Assíria23.

Em 610 a.C. o rei da Assíria é desalojado de Harã. Em 609 a.C. os assírios tentam retomar Harã. Sem sucesso. Os egípcios foram ajudá-los. Josias, rei de Judá, foi encontrar o faraó Necao II em Meguido e acabou morto. 2Cr 35,20-24 fala de um conflito militar, hipótese simpática a muitos historiadores, que a adotam. Contudo, há autores que pensam que Necao II teria simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de Josias.

De qualquer maneira, a OHDtr, que idealizara Josias de maneira quase messiânica, atribuindo-lhe características das figuras de Moisés (que fizera a Aliança), Josué (que ocupara Canaã), Davi (que unificara politicamente o território) e Salomão (que construíra o Templo), não consegue explicar como essa catástrofe histórica pôde acontecer, levando o povo de Israel, mais uma vez, à submissão ao Egito. 2Rs 23,29-30 é lacônico: “No seu tempo, o Faraó Necao, rei do Egito, partiu para junto do rei da Assíria, às margens do rio Eufrates. O rei Josias marchou contra ele, mas Necao matou-o em Meguido, no primeiro encontro. Seus servos transportaram seu corpo de carro desde Meguido, e o conduziram para Jerusalém e o sepultaram no seu túmulo. O povo da terra tomou Joacaz, filho de Josias, ungiu-o e o constituiu rei em lugar de seu pai”.

 

4. Os últimos dias de Judá

Como assírios e egípcios nada conseguiram contra os babilônios, o faraó Necao II procurou consolidar seu poder na Palestina. Chama Joacaz até seu quartel-general na Síria, depõe o rei e deporta-o para o Egito. Coloca no trono de Judá o irmão de Joacaz, Joaquim, que tinha 25 anos de idade. Joacaz reinara três meses. Judá passou então a pagar pesado tributo ao Egito, o que durou até 605 a.C., quando o rei babilônio Nabucodonosor derrotou as forças egípcias e desceu até a Palestina. Joaquim fez com ele um acordo e Judá não foi destruído.

Mas não durou nada. Em 600 a.C. Nabucodonosor tentou invadir o Egito e não conseguiu. Judá rebelou-Crônica Babilônica que menciona a tomada de Jerusalém em 597 a.C.se, acreditando na libertação. Seu erro foi fatal. Enquanto os babilônios marchavam para Jerusalém, morreu Joaquim (provavelmente assassinado), em dezembro de 598 a.C. e foi substituído por seu filho Joaquin, de 18 anos, que capitulou no dia 16 de março de 597 a.C. O rei foi deportado para a Babilônia com a corte e toda a classe dirigente. Segundo a Crônica Babilônica “No sétimo ano, no mês de kismilu [18.12.598-15.1.597], o rei da Babilônia mobilizou suas tropas e marchou para Hattu. Ele se estabeleceu na cidade de Judá e no mês de addar, no segundo dia [16.3.597], ele tomou a cidade; aprisionou o rei e colocou outro, de sua escolha, no lugar dele, e exigiu uma pesada renda que levou para a Babilônia24.

No lugar de Joaquin os babilônios deixaram o tio, Sedecias, então com 21 anos de idade. Judá estava mesmo arruinado. Com várias cidades destruídas, sua economia desorganizada e o melhor da nação exilado, pouco restava ao fraco Sedecias que pudesse ser feito. Algumas tentativas de revolta foram abafadas. Finalmente, em 588 a.C., Judá começou uma clara rebelião contra a Babilônia, que o levou à destruição final. Os babilônios destruíram, em 588 mesmo, as cidades fortificadas de Judá, assediando a desesperada Jerusalém em 587 a.C., no mês de janeiro. Na fortaleza de Laquis foram encontrados, em 1935 e 1938, vinte e um óstraca. Testemunhos dramáticos da invasão babilônica de 588 a.C., os óstraca [pedaços de cerâmica sobre os quais se escrevia uma mensagem] falam do cerco, da situação crítica em que se encontram e das medidas tomadas25.

Durante um breve período, o cerco de Jerusalém foi levantado: havia a esperança egípcia. Que não se concretizou. Finalmente, em 19 de julho de 586 a.C., Jerusalém cedeu. Sedecias fugiu na direção de Amon. Não adiantou. Foi preso e levado diante de Nabucodonosor a Rebla, na Síria, assistiu à execução de seus filhos, foi cegado, acorrentado e levado para a Babilônia, onde morreu. Em agosto, o comandante da guarda de Nabucodonosor entrou em Jerusalém, incendiou tudo, derrubou o Templo, as muralhas, levou as pessoas de maior destaque que executou em Rebla, diante de Nabucodonosor, enquanto deportava outro grupo para a Babilônia. Calcula-se que cerca de 4.600 homens da classe dirigente judaica tenham ido para o exílio. Somadas as mulheres e as crianças, seu número poderia chegar a quase vinte mil pessoas. A população restante, camponesa, foi deixada no país.

Estes dados estão em Jr 52,27-30, que documenta três deportações: a de 597 a.C., sob Joaquin; a de 586Carta IV de Laquis a.C., sob Sedecias; e uma última, de 582 a.C., talvez em represália ao assassinato de Godolias. Porque, de fato, na Judeia, os babilônios colocaram Godolias como governador. Godolias acabou assassinado pelo nacionalista Ismael, em outubro do mesmo ano. Acabara-se Judá. A história do povo, e sua literatura, vão continuar no exílio, que durou mais de 50 anos.

Uma observação sobre esta deportação numericamente modesta: enquanto os assírios deportavam grandes contingentes da população, os babilônios deportavam apenas a classe dirigente. Tanto assírios quanto babilônios obtinham, com esta estratégia, mão de obra especializada e quebravam a resistência política dos vencidos. Mas, enquanto os assírios buscavam uma uniformidade “assíria” nas províncias, com rigoroso controle político-militar, os babilônios deixavam as terras conquistadas nas mãos das populações locais – sem chance de se rebelar porque politicamente desorganizadas – ao mesmo tempo que permitiam às elites deportadas a manutenção de sua identidade. Pode ser que isto explique o destino bem diferente dos israelitas, que nunca mais voltaram, em relação aos judaítas, que irão reconstruir o seu país quando terminar o exílio26.

Mas como foi o exílio? Esta é uma questão complexa, porque conhecemos razoavelmente bem o que aconteceu antes da destruição e temos dados que nos permitem tentar reconstruir o que aconteceu depois, na época persa. Mas e durante o exílio? Existe documentação sobre como viviam os exilados e sobre como viviam os remanescentes na terra de Judá? E isto é importante, pois foi neste contexto que parte ou mesmo toda a OHDtr foi elaborada.

 

5. O exílio babilônico

No Segundo Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, realizado em Lausanne, Suíça, de 27 a 30 de julho de 1997, os pesquisadores de 9 países europeus e 18 Universidades que fazem parte do grupo discutiram o tema do exílio babilônico. Os debates foram publicados, em 1998, no livro Conduzindo um Cativo ao Cativeiro. ‘O Exílio’ como História e Ideologia27.

Por que julgaram importante debater o exílio? Porque o exílio é um forte símbolo na Bíblia e na pesquisa veterotestamentária. Quando história de Israel e literatura bíblica são discutidas, as coisas costumam ser classificadas em pré-exílicas e pós-exílicas. O conceito de culpa-exílio (castigo)-restauração teve grande impacto tanto no Antigo Testamento quanto na discussão teológica sobre o Antigo Testamento. Sem dúvida, ‘o exílio’ é um divisor de águas nas discussões sobre o Antigo Testamento. Mas pouco sabemos sobre ele. Até mesmo de sua existência já se duvidou: estamos lidando com um evento histórico ou não? Os judaítas foram de fato para a Babilônia no século VI a.C. e voltaram (seus descendentes) para reconstruir sua capital e seu país? Ou não estaríamos lidando com um conceito teológico e literário que serviu muito bem às necessidades dos judeus oprimidos, dos líderes religiosos, pregadores, teólogos e escritores, mas que teria sido totalmente inventado?

Segundo Lester L. Grabbe, coordenador do grupo, em dois pontos todos concordaram: 1. Ocorreram uma ou mais deportações dos reinos de Israel e Judá; 2. O termo exílio é fortemente marcado por significados teológicos e ideológicos e não é, de modo algum, um termo neutro para se referir a uma época ou a um episódio históricos.

Daí que uma das principais questões debatidas no Seminário foi se o uso do termo exílio deveria ser banido ou não do meio acadêmico, já que sua carga teológica e ideológica é um problema para o estudo deste fenômeno ou época. Alguns sugeriram deportação ou diáspora no lugar de exílio, alegando ser este um termo neutro, enquanto outros discordaram também deste termo, porque isto seria assumir ainda uma agenda bíblica e não histórica. Mas qual é a diferença real entre estes termos, se o hebraico usa a mesma palavra (gôlâh) tanto para exílio quanto para diáspora e deportação? Não houve consenso quanto a este ponto.

Outro ponto de desacordo foi a questão da ‘volta’ do exílio. Alguns acham que não houve continuidade entre os deportados da época babilônica e os que se estabeleceram na Judeia na época persa. Outros acham que se pode falar de uma ‘volta do exílio’. E foi preciso discutir o que significa ‘continuidade’, que não precisa ser necessariamente biológica, pode ser cultural. Discutiu-se aí o significado de etnia. Mas e se foram outros povos que vieram para Judá na época persa, deportados, por sua vez, de suas terras de origem? Ainda: se nem todos os judaítas foram exilados – apesar do mito da ‘terra vazia’ –, por que falar de ‘restauração’, outro conceito extremamente problemático?

Esta é apenas uma pequena amostra do que o exílio babilônico pode provocar no meio acadêmico. Apesar de toda esta incerteza, alguns dados sobre o exílio poderiam ser deduzidos, se usarmos o conhecimento que temos do mundo babilônico comparado com os escassos dados bíblicos.

Por exemplo: o rei Joaquin viveu na Babilônia, onde criou seus filhos, e era respeitado pelo grupo exilado, pois seu neto Zorobabel aparecerá como um dos líderes da reconstrução do Templo por volta de 520 a.C., na época persa. Do mesmo modo, a classe dirigente deportada, incluindo chefes de família, sacerdotes e profetas tinham uma certa liberdade para se organizarem e manter sua identidade na região das cidades em que viviam, como Babilônia e Nippur, e nos povoados que reconstruíram ao longo de rios e canais. É razoável pensar também que os deportados foram usados como colonos na agricultura local, que teve grande crescimento neste período, como atestam tanto a arqueologia da Baixa Mesopotâmia quanto arquivos de templos babilônicos. Não é descartada inclusive uma certa atividade comercial e financeira por parte de algumas famílias judaítas, como aparece nos arquivos familiares dos Murashu de Nippur. Além disso, a língua aramaica já teria começado a ser usada, segundo uma tendência geral no império, e os nomes “cananeus” dos meses vão sendo substituídos por nomes babilônicos28.

 

Conclusão

Uma conclusão? Não há conclusão. A história de Israel está passando atualmente por profundas mudanças e tudo o que se pode fazer hoje são tentativas abertas à discussão. Como faz exemplarmente Mario Liverani que, na obra citada neste artigo, propõe uma história normal seguida por uma história inventada.

É conveniente, porém, lembrarmos aqui que estas mudanças não são de hoje. Começaram, na verdade, em meados da década de 70 do século XX com a crise da teoria documentária do Pentateuco, modelo explicativo para a origem dos cinco primeiros livros da Bíblia vigente desde o século XIX, e atingiram o campo da História de Israel, como era de se prever.

De lá para cá, nem no campo dos estudos do Pentateuco e muito menos na área da História de Israel se chegou a um consenso em relação a dezenas de questões. O mesmo vale para a Obra Histórica Deuteronomista. É aquilo que escreveu o exegeta britânico Philip R. Davies em 1992: para quem se empenha numa pesquisa histórica, a única certeza é que o Israel bíblico é um problema e não um dado29.

 

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> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88, p. 11-27, 2005

>> Bibliografia atualizada em 15.02.2022

Artigos


1 . O livro de M. Noth chama-se Überlieferungsgeschichtliche Studien [Estudos de história das tradições]. Cf. DE PURY, A.; RÖMER, T.; MACCHI, J.-D. (éds.) Israël construit son histoire: l’historiographie deutéronomiste à la lumière des recherches récentes. Genève: Labor et Fides, 1996, p. 18-39.

2 . O artigo de CROSS, F. M. The Themes of the Book of Kings and the Structure of the Deuteronomistic History pode ser lido em seu livro Canaanite Myth and Hebrew Epic: Essays in the History of the Religion of Israel. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1973, p. 274-289 (Reprint Edition: 1997).

3 . Cf. SMEND, R. Die Entstehung des Alten Testaments. Stuttgart: Kohlhammer, 1978 [1990].

4 . Autores tão diferentes como John Bright e Mario Liverani concordam neste ponto. Cf. BRIGHT, J. História de Israel. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 327; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 185.

5 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 193-194. Para saber mais sobre Tiglat-Pileser III e seu governo, cf. GARELLI, P.; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático: impérios Mesopotâmicos-Israel. São Paulo: Pioneira-Edusp, 1982, p. 87-96. Cf. sobre o imperialimso assírio, LIVERANI, M. Antico Oriente: Storia, società, economia. 4. ed. Bari: Laterza, 2011, p. 665-728 [Em português: Antigo Oriente: História, Sociedade e Economia. São Paulo: EDUSP, 2016]; LIVERANI, M. Assiria: La preistoria dell’imperialismo. Bari: Laterza, 2017. Cf. ainda Assíria: a pré-história do imperialismo, post publicado no Observatório Bíblico em 8 de junho de 2017.

6 . Há várias cronologias possíveis para o período dos reis. Estou seguindo a de PAVLOVSKY, V.; VOGT, E. Die Jahre der Könige von Juda und Israel. Biblica, Roma, n. 45, p. 321-347, 1964. Outra muito respeitada é a de GALIL, G. The Chronology of the Kings of Israel and Judah. Leiden: Brill, 1996. Para os problemas da cronologia do Antigo Oriente Médio, cf. MANNING, S. W. et alii Integrated Tree-Ring-Radiocarbon High-Resolution Timeframe to Resolve Earlier Second Millennium BCE Mesopotamian Chronology. PLOS ONE 11(7): e0157144. Published: July 13, 2016; VAN DE MIEROOP , M. A History of the Ancient Near East ca. 3000–323 BC. 3. ed. Chichester, West Sussex, UK: Wiley Blackwell, 2016.

7 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 185-86; FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 295-297. Os anais de Tiglat-Pileser III podem ser consultados em TADMOR, H. The Inscriptions of Tiglath-Pileser III King of Assyria: Critical Edition, with Introductions, Translations and Commentary by Hayim Tadmor. Jerusalem: The Israel Academy of Sciences and Humanities, 1994. Para esta e outras fontes assírias, veja esta bibliografia.

8 . PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (= ANET). 3. ed. Princeton: Princeton University Press, 1969, p. 284-285; FUCHS, A. Die Inschriften Sargons II. aus Khorsabad. Göttingen: Cuvillier, 1994, p. 313-314.

9 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 304-307. Cf. também FINKELSTEIN, I. O reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015; KAEFER, J. A. A Bíblia, a arqueologia e a história de Israel e Judá. São Paulo: Paulus, 2015

10 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 318; LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 199-200.

11 . A Inscrição de Siloé, em hebraico arcaico, do século VIII a.C., tem seis linhas. Foi descoberta em 1880 e, alguns anos depois, removida para o Museu de Istambul. Cf. foto, texto, tradução, explicação, bibliografia e links em HANSON, K. C. Siloam Inscription; BiblePlaces.com Hezekiah’s Tunnel. Também em FREEDMAN, D. N. (ed.) The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM. New York: Doubleday & Logos Research Systems, [1992], 1997, verbete Siloam Inscription.

12 . Neste ponto Finkelstein/Silberman e Liverani defendem, na esteira de Morton Smith, o nascimento do movimento só-Iahweh, fenômeno sobre o qual ainda não me convenci. Cf., para isso, DA SILVA, A. J. Resenha de FINKELSTEIN, I; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001 (Tradução brasileira: A Bíblia não tinha razão).

13 . Cf. as ruínas de Laquis ou Tell ed-Duweir em BiblePlaces.com Lachish. Links levam a fotos do relevo assírio da tomada da cidade. Texto e fotos podem ser vistos também em MAZAR, A. Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000-586 a.C. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 408-414. Cf. também os posts sobre a tomada de Laquis por Senaquerib em 701 a.C., publicados no Observatório Bíblico em 27.04.2020: 1, 2 e 3

14 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 76.

15 . Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 356-369.

16 . A tese de W. M. L. de Wette foi publicada em 1805 em sua Dissertatio criticoexegetica… Em seguida, ele retoma suas idéias em suas Beiträge zur Einleitung in das Alte Testament [Contribuições para a Introdução ao Antigo Testamento] 2 Bde. Halle: Schimmelpfennig, 1806-1807 (reimpressão em 1 volume: Hildesheim: George Olms, 1971). Cf. SKA, J.-L. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2014, p. 120-121.

17 . LOWERY, R. H. Os reis reformadores: culto e sociedade no Judá do Primeiro Templo. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 296. Cf. também DA SILVA, A. J. A descoberta do Livro da Lei na época de Josias e O Código Deuteronômico seria pós-josiânico? posts publicados no Observatório Bíblico, respectivamente, em 27 de janeiro de 2007 e 15 de setembro de 2009.

18 . FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 29.

19 . LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 222.

20 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p.223.

21 . Sobre Jeremias, cf. DA SILVA, A. J. Perguntas mais frequentes sobre o profeta Jeremias. Philip R. Davies, por exemplo, não admite nem a existência de uma reforma na época de Josias. Cf. VV.AA. Recenti tendenze nella ricostruzione della storia antica d’Israele. Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2005. p. 139-155.

22 . FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 388-389.

23 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 81-82. Cf. também DA SILVA, A. J. História de Israel.

24 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 84.

25 . Para fotos e textos dos óstraca, faça uma busca no Google pela expressão “lachish letters”, ou, em português, “cartas de laquis”. Em BRIEND, J. (org.) Israel e Judá, p. 85-86, há dois textos das cartas de Laquis.

26 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 243-246. Vale lembrar que, na página 241, Liverani mostra como a destruição de Judá é bem documentada pela arqueologia, listando mais de vinte localidades arrasadas pela guerra nesta época.

27 . GRABBE, L.L. (ed.) Leading Captivity Captive: ‘The Exile’ as History and Ideology. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1998.

28 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia, p. 267-272. Cf. também DA SILVA, A. J. O paradigma bíblico exílio-restauração caducou? e Abordando Yehud, posts publicados no Observatório Bíblico, respectivamente, em 8 e 12 de agosto de 2009.

29 . Cf. DA SILVA, A. J. Resenha de DAVIES, Philip R., In Search of ‘Ancient Israel’. 2. ed. London: T & T Clark, 2015. Cf. também VV.AA. Recenti tendenze nella ricostruzione della storia antica d’Israele, Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2005.

Última atualização: 10.03.2022 – 09h43

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